Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
133/10.5YFLSB
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: RECUSA
JUIZ
SUSPEIÇÃO
IMPARCIALIDADE
IMPEDIMENTOS
JUIZ NATURAL
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
ADVOGADO
Data do Acordão: 09/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA/RECUSA
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO DE RECUSA DE JUIZ
Sumário : I - À luz do art. 43.º, n.º 1, do CPP, a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e justo, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. O CPP actual abandonou o regime vigente no antecedente CPP, de enunciação casuística das causas de suspeição de magistrado, consagrando no mencionado art. 43.º, uma cláusula geral em tal domínio, mantendo, no entanto, uma enunciação especificada quanto aos impedimentos nos seus arts. 39.º e 40.º.
II - Os impedimentos divergem das suspeições porque naqueles se englobam as circunstâncias que afectam sempre a imparcialidade do julgador e que, por isso, devem ser denunciadas pelos impedidos; já as suspeições só pelas partes devem ser arguidas, só elas sendo juízes para determinarem se aquela imparcialidade, concebida como o dizer do direito à margem de qualquer interesse pessoal, num plano de alienidade ante as partes e de supremacia, se torna ou não realidade (Luís Osório, Comentário do CPP, II, 1932, pág. 225).
III - O juiz, como forma de assegurar a igualdade dos cidadãos perante a lei – art. 13.º da CRP – deve esforçar-se por se manter alheio e acima das influências exteriores; a independência do juiz é sobretudo uma responsabilidade que terá a dimensão ou a densidade da sua fortaleza de ânimo, carácter e personalidade, de tal modo que quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade está posta em causa, a administração da justiça e, então, o juiz é um juiz inabilitis.
IV - A recusa de juiz terá lugar sempre que concorra a cláusula geral de existência de risco de a sua intervenção ser reputada suspeita, por verificação de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, não bastando, como é pacífica a jurisprudência do STJ, uma convicção mais ou menos subjectiva ou intimista de um dos sujeitos processuais, que, levando, sem mais, ao afastamento do juiz introduziria uma perigosa violação do princípio do juiz natural ou legal, previamente definido em função das regras de competência, uma das garantias fundamentais para o cidadão, sobretudo para o arguido, com tradução no art. 32.º, n.º 9, da CRP.
V - Daí que, na concordância prática, entre os interesses em jogo, se deva ser particularmente exigente na recusa, em ordem à constatação de uma especial gravidade da suspeita, ancorada em factos objectivos e objectivados, que não leve ao afastamento do juiz por qualquer motivo fútil.
VI - A imparcialidade há-de, por isso mesmo, ser testada num plano de rigorosa casuística, em função do concretismo da situação e da posição ante ela, actuada processualmente pelo juiz.
VII - Por isso, o motivo sério e grave com virtualidade para abalar a credibilidade do juiz, que, em princípio, se presume, não resulta tanto do convencimento subjectivo dos sujeitos processuais, mas antes de um puro derivado da ponderada valoração do caso concreto, fazendo intervir as regras da experiência comum, id quod plerumque accidit, procurando a resposta no homo medius, representativo do pulsar da sociedade, que nela colhe, sem esforço, a resposta positiva ou negativa.
VIII - A imparcialidade ou parcialidade subjectiva do julgador é de muito difícil alcance ou demonstração, mas porque se pretende pôr a salvo de suspeições na sua actividade de julgar, lapidarmente o Prof. Cavaleiro Ferreira, afirmou que, na realidade das coisas, o juiz permanece imparcial, por isso interessa sobretudo considerar se em relação ao processo poderá ser imparcial, objectivamente equidistante do conflito.
IX - A imparcialidade há-de ser submetida a um teste subjectivo, como ainda objectivo, comenta o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, para quem o teste subjectivo visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou evidenciou preconceito sobre o seu mérito; o teste objectivo visa apreciar se, de um ponto de vista do cidadão comum, podem suscitar-se sérias dúvidas sobre a imparcialidade; a perspectiva do queixoso releva, mas não é decisiva (Comentário do Código de Processo Penal, pág. 128).
X - A inimizade entre o juiz e o arguido não se situa, em princípio, no mesmo plano da inimizade entre o seu defensor e o juiz; o advogado do arguido enquanto técnico de direito não disfruta de campo para extrapolar da busca da melhor solução para o litígio e o juiz está vinculado a realizar no plano deontológico e no dos princípios, com que ambos lidam, a justiça reclamada no caso concreto. Essa inimizade entre juiz e defensor não funciona, em regra, “nos direitos do nosso círculo cultural”, segundo se escreve no Ac. do TC n.º 227/97, de 12-03, proferido no Proc. n.º 675/95 - 1.ª.
XI - Tal situação de inimizade, suposto que existente, não leva a que, automaticamente, se ponha em causa a independência, a imparcialidade e a objectividade do juiz; dificilmente conduzindo à declaração de suspeição. Seja como for, importa não perder de vista, há uma proximidade notável entre o arguido, seus interesses e o defensor, de que é vivo porta voz, de tal ordem que não repugna admitir certas situações em que uma grave, vincada e agudizada inimizade com o juiz pode afectar também os interesses do constituinte ao decidir-se.
XII - Nesta extrema hipótese exige-se, para verificação de razões de recusa, acrescida indagação até que ponto essas relações degradadas podem ser causa legítima de suspeição, o que sucederá quando a ruptura das relações entre ambos adquire um grau de grave tensão, de molde a produzir um “efeito ricochete”, negativo, sobre o arguido, geradora de uma suspeição comunitária endereçada ao julgador, ditando a necessidade, para garantia de defesa, de não faltarem os indispensáveis meios para aquela suspeição ser afastada (cf. parecer do Prof. Figueiredo Dias).
XIII - O caso dos autos é o de um Juiz Desembargador, supondo-se atingido nos seus direitos fundamentais do bom-nome e reputação de Magistrado, rigor e isenção, através de notícias difundidas por meios de comunicação social – jornal, TV e rádio – demanda os responsáveis pelas notícias, em vista de ser indemnizado pelos danos causados, socorrendo-se das respectivas acções cíveis, pela ofensa pessoal, que, do seu ponto de vista, aquelas notícias incorporam. Essas acções foram contestadas umas pelo ora requerente, enquanto advogado dos réus, outras pelo ora advogado do requerente, que o patrocina como arguido naquele processo crime em que foi condenado em 1.ª instância em pena de multa e numa indemnização por dano não patrimonial, processo crime em recurso na Relação. O relator do processo não é o Juiz Desembargador em causa, que participa, no entanto, como juiz vogal no julgamento a efectuar.
XIV - Objectivamente, é extremamente difícil que o Juiz Desembargador visado circunscreva as posições assumidas pelos supostos lesantes (réus) como posição destes, e só destes, sem deixar de as reportar, basicamente, oriundas dos seus advogados, enquanto técnicos de direito, produtores, também eles, de contrariedade, desgosto, inevitável azedume, pelos dissabores que o envolvimento judicial sempre causa. E a abordagem da questão deve abranger, ainda, para valoração, a consideração na réplica de uma das mencionadas acções cíveis de que a contestação é, em alguns pontos, malévola, eivada de “cariz mal educado e grosseiro, violando ostensiva e gravemente os deveres de urbanidade”, atingindo directamente o defensor do requerente no dito processo crime, havendo que adicionar, ainda, a instauração de queixas à AO e ao CSM, para se aquilatar da dimensão do conflito que os opõe.
XV - O homem médio, face ao acervo de factos expostos, valorados objectivamente, interpretando o sentimento reinante na comunidade, responderia positivamente sobre se ocorre motivo grave e sério capaz de pôr em crise o valor fundamental da imparcialidade, objectividade e independência na função de julgar. Aquele depreenderia que a intervenção do Magistrado é adequada a suscitar desconfiança sobre a sua lisura e seriedade exigíveis face aos acontecimentos, que são multiformes, graves, dispersando-se no tempo, porém, sem termo à vista, em que surgem também como seus antagonistas o advogado do requerente e o seu defensor, sendo estes, num plano objectivo, atenta aquela osmose, indissociabilidade, com génese profissional e até, eventualmente, pessoal, quem, também, lhe causa dissabores, angústias, incómodos, fonte de um clima de crispação e de incontornável projecção no decidir, estados possíveis de poderem afectar a serenidade do desfecho do processo, susceptíveis de redundar em prejuízo para os réus.
XVI - O resultado do recurso pode culminar numa situação de inteira e justificada improcedência, mas esta, aos olhos do cidadão comum, será portadora de uma carga de inimizade, enquanto motivo sério e adequado a gerar dúvida séria sobre a imparcialidade do Magistrado em causa.
XVII - Está fora do núcleo duro do incidente afirmar uma fraqueza, a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça face a eventuais interesses próprios, mas de admitir ou não o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição (cf. Prof. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, I, págs. 237/239). Não se trata, com isso de lançar qualquer anátema sobre o Magistrado, mas dar realização à teleologia subjacente ao instituto da recusa – art. 43.º, n.º 1, do CPP – de assegurar a conveniência e necessidade de preservar o mais possível a dignidade profissional e a erosão da sua imagem pessoal e, como lógica decorrência, ainda lograr uma imagem reforçada da inevitável necessidade de administrar salutar justiça, revestindo-a da dignidade que merece, preservada de suspeitas de falta de isenção e rigor (Ac. TC de 16-06-98, in BMJ 378/76).
XVIII - A estrutura da sociedade reclama cada vez mais rigor e transparência, exigindo exteriorização subjectiva e demonstração objectiva de probidade funcional, que é dever da administração pública e, por maioria de razão, da Magistratura judicial (Ac. do STJ de 07-04-2010, Proc. n.º 1257/09). Assim, objectivamente, mais do subjectivamente, concorre razão para o Juiz Desembargador em causa não intervir no julgamento a que vai ser submetido o requerente.
Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

I O advogado AA , arguido no P:º n.º 1468/07 ABRG.G1 , pendente de recurso no Tribunal da Relação de Guimarães , deduziu incidente de recusa do Juiz Desembargador BB , invocando para o efeito que :

Na sequência de notícias publicadas em diversos órgãos da comunicação social sobre a polémica actuação daquele magistrado tanto na 1.ª instância como na Relação de Guimarães , tem vindo há anos a mover sucessivos processos judiciais contra jornalistas , órgãos de comunicação social e terceiros , invocando que , com a publicação de notícias , foi ofendido na sua integridade moral , bom nome , reputação e honra , o que lhe provocou mágoas profundas , para além de diversos sintomas patológicos no foro físico e psíquico .

Tais acções judiciais contam-se pelas dezenas , sempre movidas pelo mesmo Juiz Desembargador em que pede avultadas indemnizações .

O advogado requerente no exercício da sua actividade patrocinou a jornalista CC , DD e EE , no P.º n.º 14.509/01 5TDLSB , em que os jornalistas foram condenados em 1.ª instância , tendo posteriormente , sido absolvidos na Relação .

Actualmente o advogado requerente patrocina a jornalista CC na acção que lhe é movida pelo mesmo Juiz Desembargador no P.º n.º 684/2002 , do Tribunal judicial de Oeiras , encontrando-se designado o dia 29/10/2010 para julgamento .

Nessa acção intenta o mesmo Juiz o pagamento de uma indemnização de 500.000€ em virtude da reportagem televisiva da autoria da constituinte do advogado requerente emitida pela ...., em 11.6.2001 .

Ambos os processos são melindrosos , implicando um envolvimento pessoal e excepcional do mencionado Juiz Desembargador na sua qualidade de autor , dada a matéria em causa que se prende com a prova dos prejuízos emocionais , psíquicos e físicos que lhe foram causados .

No entanto tal factualidade embora incomode o requerente não tem virtualidade , por si só , para se reputar de razão grave e séria para fundar a recusa .

Sucede, porém, que o advogado que patrocina o ora advogado requerente no seu julgamento a efectivar na Relação de Guimarães , em recurso da decisão que condenou o requerente em 1.ª instância , patrocinou os RR . FF , GG e HH , Comunicação Social , SA , no P.º n.º 26/02 , da 6.ª Vara , 3 .ª Sec., do Tribunal do Porto , em que o Juiz Desembargador visado , pediu uma indemnização de 400.000 € , pela publicação de uma notícia por danos eventualmente causados pelos seus ( do defensor ) constituintes , os quais foram absolvidos .

Igualmente patrocina os RR . II e HH na acção n.º 462/06 , da 2.ª Sec. , da 7:ª Vara Cível do Porto , peticionando uma indemnização de 100.000 € pelos danos que eventualmente lhe causou em virtude da publicação de uma notícia .

No entender do Juiz Desembargador demandante está em causa nesta acção a dignidade de um homem que exerce a difícil missão de magistrado e que apela aos tribunais e à justiça , face à maior difamação que lhe foi feita , a de ser parcial , concluindo a 1.ª instância que o direito que pretendia fazer valer se mostrava prescrito , fundamentando-se a decisão no interesse HH da informação .

É , ainda , advogado da Dr.ª JJ no P.º n.º 158/02 , que pende na 1.ª Sec. , da 1.ª Vara Cível de Lisboa , onde peticionava uma indemnização por danos causados de 250.000 € , que terminou com uma condenação em 17.3.2009 , de 15.000 € , em virtude de afirmações que proferiu à TSF , decisão que a Relação revogou , ordenando a ampliação da matéria de facto .

Embora o carácter incómodo e extravagante que isso possa causar ao advogado requerente e ao seu advogado defensor , poder-se-ia adiantar que tal circunstancialismo não constitui razão para põr em causa a imparcialidade do demandante .

Todavia no P.º n.º 462 /06.2TVPRT , da 2.ª Sec. , da 7.ª Vara Cível do Porto , o advogado do requerente , face ao teor da petição inicial , contestando, afirma que o Desembargador em causa litiga de má fé na petição da indemnização , dando conhecimento ao Conselho Superior da Magistratura da actuação do magistrado em causa no exercício das suas funções .

Por seu turno a sua advogada salienta na sequente réplica que a conduta assumida pelo advogado dos RR , enquanto profissional do foro , e ante afirmações ali produzidas em alguns dos seus art.ºs ( 1.º , 2.º , 3 .º , 5.º , 6.º , 20.º , 29.º , 30.º . 31.º , 36.º a 37 .º ) da contestação , são malévolas e violam preceitos da CRP e do E O A

Em consequência tomou a iniciativa de participar contra o advogado subscritor da contestação à O A por as reputar de gravíssimas , na medida em que são ofensivas de si e do seu constituinte , qualificando a contestação como eivada de “ cariz mal educado e grosseiro , violando ostensiva e gravemente os deveres de urbanidade “ .

O processo disciplinar sequente foi arquivado .

O advogado do requerente participou , também , ao CSM , ante a sua indignação –vertida no art.º 6.º da contestação - de ver os pais de uma criança que morreu no hospital ser demandados ao pagamento de uma indemnização pelo dito magistrado que absolveu em recurso o médico que tinha sido condenado como responsável por tal morte .

O CSM arquivou , porém , o processo .

Desconhece , no entanto , se foi apresentada queixa criminal contra o advogado do requerente , dado que este nunca foi notificado para prestar declarações .

Uma vez que a factualidade descrita se prende com questões pessoais do Juiz Desembargador , que entende colidirem com a sua honra e dignidade , em que o requerente e o ora seu advogado foram seus opositores , mas com particular realce para a sua animosidade para com o advogado signatário ( defensor do requerente, KK) do requerimento inicial , perfila-se motivo grave e sério adequado a gerar desconfiança na imparcialidade e isenção do magistrado em causa .

O requerente , advogado AA , tem direito a um julgamento justo no P.º n.º 1468/07.OTABR.G1 , nos termos do art.º 43.º , do CPP , 32.º n.º 1 , da CRP e 6.º da CEDH , peticionando a recusa daquele juiz .

II . Este STJ ordenou a junção de documentos , em vista da instrução do incidente .

O Juiz Desembargador visado apresentou resposta em que fez questão de salientar que nada o move contra o ilustre advogado do requerente e este , que se esqueceu que na Relação já obteve ganho de um recurso , relegando para este STJ a decisão do incidente por apelo à jurisprudência reinante na matéria .

III . Colhidos os legais vistos cumpre decidir :

A questão que o incidente deduzido coloca é a de saber se deve ser recusada a intervenção de um juiz desembargador, como juiz vogal , no julgamento , em recurso , pendente na Relação de Guimarães ( P.º n.º 1468/07.OTABR.G1 ) .em que é arguido o advogado requerente , acusado e condenado em 1:ª instância pela prática de um crime de difamação , p . e p . p. pelos art.ºs 180.º n.º 1 , 182 .º e 183.º n.º 1 e 3 , do CP , na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 20 € e na indemnização de 10.000 € , à pessoa do assistente LL , pelo facto de aquele juiz desembargador ter movido várias acções cíveis de indemnização , cujo patrocínio coube ao advogado requerente e também ao advogado que ora o defende , no desenvolvimento das quais se criou um clima de animosidade , em particular contra o advogado que ora patrocina o requerente

Essa animosidade nutrida por aquele magistrado , especialmente contra o defensor do requerente , segundo este , integra motivo grave e sério , adequado a gerar desconfiança sobre a sua a actuação imparcial no julgamento em vias de efectivação na Relação , comprometendo um julgamento justo a que tem direito à face do art.º 32.º n.º 1 , da CRP e 6.º da CEDH .

IV. À luz do art.º 43.º , n.º 1 , do CPP , a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita , por existir motivo , sério e justo , adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade .

O CPP actual abandonou o regime vigente no antecedente CPP, reinante, de resto , nos sistemas latinos –com excepção do italiano –de enunciação casuística das causas de suspeição de magistrado , consagrando no art.º 43 .º , uma cláusula geral em tal domínio , mantendo , no entanto , uma enunciação especificada quanto aos impedimentos nos seus art.ºs 39.º e 40.º .

Os impedimentos divergem das suspeições porque naqueles se englobam as circunstâncias que afectam sempre a imparcialidade do julgador por isso que devem ser denunciados pelos impedidos ; já as suspeições só pelas partes devem ser arguidas , só elas sendo juízes para determinarem se aquela imparcialidade , concebida como o dizer do direito à margem de qualquer interesse pessoal , num plano de alienidade ante as partes e de supremacia , se torna ou não realidade ( Luís Osório , Comentário do CPP , II , 1932 , pág. 225) .

A norma do art.º 43.º , do CPP , acolhe o princípio de que é dever do juiz evitar a todo o preço quaisquer circunstâncias que possam perturbar uma atmosfera de pura objectividade e incondicional juridicidade , não enquanto tais circunstâncias possam fazer perder a imparcialidade , mas logo , e essencialmente , enquanto possam criar nos outros a convicção de que a perdeu ( Cfr. Prof. Figueiredo Dias , Direito Processual Penal , I , 1974 , págs . 319/320 .)

O juiz , como forma de assegurar a igualdade dos cidadãos perante a lei –art.º 13.º , da CRP -, deve , assim , esforçar-se por se manter alheio e acima das influência exteriores ; a independência do juiz é sobretudo uma responsabilidade que terá a dimensão ou a densidade da sua fortaleza de ânimo , carácter e personalidade de tal modo que quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do HH nessa imparcialidade está posta em causa a administração da justiça e , então , o juiz é um juiz “ inabilis “ Esta posição é , claramente , afirmada nos Acs do TC , 11.º Vol. , 951 , 68/90 e 124/90 , 15 Vol., 247 e segs .e 417 e segs ., respectivamente .

A recusa do juiz terá lugar sempre que concorra a cláusula geral de existência de risco de a sua intervenção ser reputada suspeita , por verificação de motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade , não bastando , como é pacífica jurisprudência do STJ , uma convicção mais ou menos subjectiva ou intimista de um dos sujeitos processuais , que, levando , sem mais , ao afastamento do juiz introduziria uma perigosa violação do princípio do juiz natural ou legal, previamente definido em função das regras de competência , uma das garantias fundamentais para o cidadão , sobretudo para o arguido , com tradução no art.º 32.º n.º 9 , da CRP.

Só em situações-limite o princípio deve ser postergado-Ac. deste STJ , de 7.5.2008 , P.º n.º 08.P1526 .

Daí que , na concordância prática , entre os interesses em jogo, se deva ser particularmente exigente na recusa , em ordem à constatação de uma especial gravidade da suspeita , ancorada em factos objectivos e objectivados , que não leve ao afastamento do juiz por um qualquer motivo fútil- cfr. Acs . de 28.6.2006 , P.º n.º 06P/937 , 27.9.2006 , P.º 06P2322 e in CJ , STJ , XIVTIII , 200 e de 27.4.2005 , P.º 05909.

Esse conceito de motivo grave e sério é um conceito indeterminado , e como conceito indeterminado que é , comporta uma certa plasticidade , apto em cada caso a tomar a forma que a realidade lhe confere , não tão vazio que seja desprovido de uma certa eticidade , no dizer de Paulo Ferreira da Cunha , Princípios de Direito , Ed. Resjuridica , 453 ; ele “ faculta uma espécie de osmose entre as máximas ético-sociais e o Direito “ no dizer de Baptista Machado , in Introdução ao Direito e Discurso Legitimador , Almedina , pág . 114 .

A imparcialidade há-de , por isso mesmo , ser testada num plano de rigorosa casuística , em função do concretismo da situação e da posição ante ela , actuada processualmente pelo juiz .

Por isso o motivo sério e grave com virtualidade para abalar a credibilidade do juiz , que , em princípio , se presume , não resulta tanto do convencimento subjectivo dos sujeitos processuais , mas antes um puro derivado da ponderada valoração do caso concreto , fazendo intervir as regras da experiência comum , “ id quod plerumque accidit” , procurando a resposta no “ homo medius “ , representativo do pulsar da sociedade , que nela colhe , sem esforço , a resposta positiva ou negativa . Neste sentido , cfr. , Curso de Processo Penal , I , Prof. Germano Marques da Silva , 199/203 , e, também , Acs., deste STJ , de 5.4.2000 , P.º n.º 156/2000 , 3.ª Sec. , in CJ , STJ , VIII , I , 224 , da Rel Évora , de 5.12 . 2000 , CJ , XXV, 5 , 284 e da Rel. Coimbra de 6.7.96 , in CJ XX , 4 , 62 .

A imparcialidade ou parcialidade subjectiva do julgador é de muito difícil alcance ou demonstração , mas porque se pretende põr a salvo de suspeições na sua actividade de julgar, lapidarmente o Prof. Cavaleiro de Ferreira , afirmou que, na realidade das coisas , o juiz permanece imparcial, por isso interessa sobretudo considerar se em relação ao processo poderá ser imparcial, objectivamente equidistante do conflito .

Na tradição anglosaxónica é da gíria forense o aforismo “ justice must not only be done , it must also be seen to be done , citado por Jean Claude Sasfer, no Comentário ao art.º 6 .º , da CEDH , onde se enuncia , como , ainda Henriques Gaspar , in RPCC, Ano 4 , n.º 3 , 1996 , -405 a 414 , que tanto a doutrina e jurisprudência estrangeira , relevam a dimensão subjectiva como objectiva da imparcialidade , mas mais que se alguma valia deve ser conferida a qualquer delas , é à objectiva , por ser de difícil comprovação a subjectiva

V. A imparcialidade há-de ser submetida a um teste subjectivo , como ainda objectivo , comenta o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque , para quem o teste subjectiva visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou evidenciou preconceito sobre o seu mérito ; o teste objectivo visa apreciar se , de um ponto de visa do cidadão comum , podem suscitar-se sérias dúvidas sobre a imparcialidade ; a perspectiva do queixoso releva , mas não é decisiva –Comentário ao Código de Processo Penal , pág. 128 .

VI. A inimizade entre o juiz e o arguido não se situa , em princípio , no mesmo plano da inimizade entre o seu defensor e o juiz ; o advogado do arguido enquanto técnico de direito não disfruta de campo para extrapolar da busca da melhor solução para o litígio e o juiz está vinculado a realizar no plano deontológico e no dos princípios, com que ambos lidam , a justiça reclamada no caso concreto .

Essa inimizade entre juiz e defensor não funciona , em regra , “ nos direitos do nosso círculo cultural “ , segundo se escreve no Ac. do TC n.º 227/97 , de 12.3.97 , proferido no P.º n.º 675/95 -1.ª Sec. , que seguimos , nalguns dos seus passos , como motivo adequado de suspeição .

Tal situação de inimizade , suposto que existente , não leva a que , automaticamente , se ponha em causa a independência , a imparcialidade e a objectividade do juiz , dificilmente conduzindo à declaração de suspeição .

Seja como for , importa não perder de vista , há uma proximidade notável entre o arguido, seu interesses e o defensor , de que é vivo porta voz , de tal ordem que não repugna admitir certas situações em que uma grave, vincada e agudizada inimizade com o juiz pode afectar também os interesses do constituinte ao decidir-se

Nesta extrema hipótese exige –se , para verificação de razões de recusa , acrescida indagação até que ponto essas relações degradadas podem ser causa legítima de suspeição o que sucederá quando a ruptura das relações entre ambos adquire um grau de grave tensão , de molde a produzir um “ efeito de ricochete “ , negativo , sobre o arguido , geradora de uma suspeição comunitária endereçada ao julgador , ditando a necessidade , para garantia de defesa , de não faltarem os indispensáveis meios para aquela suspeição ser afastada , este o parecer do Prof. Figueiredo Dias , em alusão no précitado Ac. do TC n.º 227/97 .

O caso dos autos , de forma , agora mais sintetizada , é a de um Juiz Desembargador , supondo-se atingido nos seus direitos fundamentais do bom nome e reputação de Magistrado , rigor e isenção , através de notícias difundidas por meios de comunicação social –jornal , TV e rádio –demanda os responsáveis pelas notícias , em vista de ser indemnizado pelos danos causados , socorrendo-se das respectivas acções cíveis , pela ofensa pessoal , que , do seu ponto de vista , aquelas notícias incorporam.

Essas acções foram contestadas umas pelo ora requerente , enquanto advogado dos RR , outras pelo ora advogado do requerente , que, como dissemos , o patrocina como arguido naquele processo crime em que foi condenado em 1.ª instância em pena de multa e numa indemnização por dano não patrimonial , processo crime em recurso na Relação .

O relator do processo , segundo indagação oficiosa promovida por este STJ , não é o Juiz Desembargador em causa , que participa , no entanto, com juiz vogal no julgamento a efectuar .

VII . São os próprios requerente e seu advogado que , à partida , não descortinam nesse simples desfilar de acções em que ambos defendem os respectivos RR , motivo de recusa do magistrado em causa .

Não deixa de dizer-se que , objectivamente , é extremamente difícil que o Juiz Desembargador visado circunscreva as posições assumidas pelos supostos lesantes (RR) como posições destes , e só destes , sem deixar de as reportar , basicamente , oriundas dos seus advogados, enquanto técnicos de direito , produtores , também eles , de contrariedade , desgosto , inevitável azedume , pelos dissabores que o envolvimento judicial sempre causa .

Mas a abordagem da questão não deve quedar-se só por aqui , abrangendo, ainda , para valoração , desde logo a consideração na réplica de que a contestação no P.º n.º 462 /06.2TVPRT , da 2.ª Sec. , da 7.ª Vara Cível do Porto, em alguns pontos é malévola , eivada de “ cariz mal educado e grosseiro , violando ostensiva e gravemente os deveres de urbanidade “ , atingindo directamente o defensor do requerente no dito processo crime , havendo que adicionar , ainda , a instauração daquelas queixas à O A e ao CSM, para se aquilatar da dimensão do conflito que os opõe .

E agora é chegado o momento de , perquirindo o homem médio , face ao acervo de factos expostos , valorados objectivamente , aquele , interpretando o sentimento reinante na comunidade , responderia positivamente sobre se ocorre motivo grave e sério capaz de põr em crise o valor fundamental da imparcialidade , objectividade e independência na função de julgar .

E a resposta não pode deixar de ser a afirmativa , depreendendo aquele que a intervenção do Magistrado é adequada a suscitar desconfiança sobre a sua lisura e seriedade exigíveis face aos acontecimentos que são multiformes , graves , dispersando-se no tempo , porém sem termo à vista , em que surgem também como seus antagonistas o advogado requerente e o seu defensor , sendo estes , num plano objectivo, atenta aquela osmose , indissociabilidade, com génese profissional e até , eventualmente , pessoal , quem , também, lhe causa dissabores , angústias , incómodos , fonte de um clima de crispação e de incontornável projecção no decidir , estados passíveis de poderem afectar a serenidade no desfecho do processo , susceptíveis de redundar em prejuízo para os RR .

O resultado do recurso pode culminar numa situação de inteira e justificada improcedência, mas esta aos olhos do cidadão comum, será portadora de uma carga de inimizade , enquanto motivo sério e adequado a gerar dúvida séria sobre a imparcialidade do Magistrado em causa .

VII . Está fora núcleo duro do incidente afirmar uma fraqueza , a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais , ou de fazer justiça face a eventuais interesses próprios , mas de admitir ou não o risco do não reconhecimento HH da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição , no ensinamento do Prof. Cavaleiro de Ferreira , Curso de Processo Penal , I , 237/239 .

Não se trata , com isso , de lançar qualquer anátema sobre o Magistrado, mas dar realização à teleologia subjacente ao instituto da recusa –art.º 43.º n.º1 , do CPP – de assegurar a conveniência e necessidade de preservar o mais possível a dignidade profissional e a erosão da sua imagem pessoal e , como lógica decorrência ,ainda lograr uma imagem reforçada da inevitável necessidade de administrar salutar justiça , revestindo-a da dignidade que merece , preservada de suspeitas de falta de isenção e rigor , como se fez questão de significar no Ac. do TC , de 16.6.98 , BMJ 378/76 .

A estrutura normativa da sociedade reclama cada mais rigor e transparência , exigindo exteriorização subjectiva e demonstração objectiva de probidade funcional , que é , dever da administração pública e , por maioria de razão , da Magistratura judicial –cfr. Ac. do STJ , de 7.4.2010 , P.º n.º 1257/09-TDLSB L1 A ST

Objectivamente , mais do que subjectivamente , concorre razão para o Juiz Desembargador em causa não intervir no julgamento a que vai ser submetido o advogado AA , na Relação de Guimarães e no processo mencionado .

VIII . Nestes termos se defere ao incidente de recusa requerido

Sem tributação

Lisboa, 15 de Setembro de 2010

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral