Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
952/06.7TBVCD-A.P2.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SOUSA LEITE
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
CHEQUE
PRESCRIÇÃO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
LETRA DE CÂMBIO
CESSÃO DE CRÉDITO
CESSIONÁRIO
RELAÇÕES IMEDIATAS
EXCEPÇÕES
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Data do Acordão: 06/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / TEMPO E SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/ TRANSMISSÃO DE CRÉDITOS E DE DÍVIDAS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE EXECUÇÃO
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO
Doutrina: - Abel Delgado, “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”, 7ª edição, pág. 110.
- Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 8ª edição, pág. 161.
- Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral ” vol. I, 6ª edição, pág. 325.
- Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial “ vol. III, pág. 68.
- Gonçalves Dias, “Da Letra e da Livrança “pág. 438.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 303.º, 585.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 466.º, N.º 1, 487.º, 493.º, N.º 3, 496.º, 664.º, 2.ª PARTE, 713.º, N.º 2, E 726.º, 813.º, N.º1, 814.º, 816.º, 817.º
LEI UNIFORME DAS LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): - ARTIGOS 11.º, 17.º
Sumário :

I - Constituindo a prescrição dos cheques dados à execução uma excepção peremptória, esta, como princípio geral, deve ser objecto de alegação pela parte interessada na sua procedência, a ter lugar, na acção declarativa, na contestação e, na oposição à execução, no requerimento em que a mesma é deduzida, uma vez que o seu conhecimento oficioso apenas se verifica em relação àquelas indicadas excepções cuja arguição se não encontra legalmente dependente da manifestação da vontade do respectivo interessado em tal sentido – arts. 487.º, 493.º, n.º 3, 496.º e 817.º do CPC.
II - Sendo objecto de estatuição legal (art. 303.º do CC) a preclusão do conhecimento oficioso da excepção peremptória invocada pelo recorrente e não tendo sido atempadamente alegada pelo mesmo no seu articulado, mostra-se o respectivo conhecimento vedado ao STJ (arts. 466.º, n.º 1, 664.º, 2.ª parte, 713.º, n.º 2, e 726.º do CPC).
III - Na cessão de créditos, atendendo a que o crédito em que o cessionário fica investido é o mesmo que pertencia ao cedente, não se transmitem para aquele apenas os acessórios e as garantias que robustecem a consistência prática do direito cedido, mas também as vicissitudes da relação creditória, que o podem enfraquecer ou destruir.
IV - Não sendo requerido ao devedor cedido o seu consentimento para a realização do referido negócio jurídico, este não pode vir a ser colocado numa posição de inferioridade, quiçá de impossibilidade, relativamente à invocação, perante o cessionário, daqueles meios de defesa que, embora desconhecidos deste, aquele era titular perante o cedente – art. 585.º do CC.
V - No domínio do direito cambiário, decorre do estatuído no art. 17.º da LULL que, apenas no âmbito das relações imediatas, o portador da letra fica sujeito às excepções decorrentes das convenções extracartulares que hajam sido celebradas entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, situação essa, todavia, extensível ao possuidor do título que o haja recebido por um meio de transmissão diverso do endosso, v.g. cessão, uma vez que, em tais circunstâncias, o agente que passou a ser portador do título constituiu-se como representante do antecedente possuidor, na qualidade de seu sucessor, e não como um terceiro portador, titular de um direito cambiário autónomo, por si adquirido em consequência do aludido endosso (art. 11.º da LULL).
VI - Se a exequente não accionou as letras exequendas com fundamento no facto destas lhe haverem sido transmitidas por endosso, mas sim em consequência das mesmas titularem um crédito que lhe havia sido cedido pela antecedente portadora dos aludidos títulos, atendendo a que a transmissão de um crédito cambiário, por força da sua cessão ao possuidor do título dado à execução, confere a este a posição cambiária de portador imediato, de tal decorre que, ao exequente, são oponíveis os meios de defesa que o devedor poderia invocar perante o respectivo transmitente.

Decisão Texto Integral:

                   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            I – AA veio deduzir oposição à execução para pagamento de quantia certa contra si pendente no 2º Juízo Cível da comarca de Vila do Conde e em que é exequente BB, alegando, para tal, que as letras e os cheques dados à execução constituem meros títulos emitidos, em favor e de favor, a CC, pelo que nada deve à exequente, nem àquela CC, que, por carta remetida em 28/05/2005, lhe comunicou ter cedido o seu crédito à exequente.  

            Na contestação que apresentou, a exequente veio alegar que os títulos exequendos se reportam ao pagamento de artigos fornecidos ao executado pela sociedade DD, Ldª, da qual aquela CC e a contestante são sócias, artigos esses destinados à comercialização e venda por parte daquele.    

            Decorrida a normal tramitação processual foi proferida sentença, que, na procedência parcial da oposição deduzida, determinou a extinção da execução relativamente às letras juntas sob os n.º s 1, 2, 3, 5, 7, 8, 9, 10, 14,15, 16, 17, 18 e 19 dos autos principais, decisão esta que foi objecto de integral confirmação pela Relação do Porto na sequência de apelação do opoente.

            Continuando inconformado, este vem agora pedir revista, em que nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões: 

A - O douto Acórdão em crise também decidiu considerar improcedente o recurso de apelação.

B - E em consequência confirmar a sentença recorrida.

C - Confirmando a decisão que se encontram extintas as letras juntas sob os n.ºs 1, 2, 3, 5, 7, 8, 9, 10, 14, 15, 16, 17, 18 e 19.

D - Retirando-se da decisão que apenas as letras com os n.ºs 4, 6, 11, 12 e 13 não se encontram extintas.

E - Por se tratarem de títulos executivos, sem mais, que a exequente detém, encontrando-se a exequente/recorrida e o executado/recorrente no âmbito das relações mediatas,

F - e consequentemente, não podem ser oponíveis à recorrida as excepções invocadas e dadas como provadas, como sendo letras de favor, relativamente à cedente.

G - Contudo, esta conclusão é totalmente infundada, carecendo de suporte legal.

H - Tendo a execução por base títulos executivos, sendo por estes e com base nestes que se determina o fim e limites da execução.

I – A presente execução não é excepção a esta regra – art. 45º do CPC.

J - Da análise dos títulos executivos, e quanto aos cheques em particular, extrai-se que os documentos já se encontram prescritos quando foram apresentados à execução.

L - Sendo a prescrição, uma excepção peremptória de conhecimento oficioso, que determina a extinção do pedido.

M - Prescrita a obrigação cambiaria, apenas podem servir tais títulos enquanto documentos particulares, desde que devidamente alegado no respectivo requerimento executivo.

O - O que jamais sucedeu, apenas se encontrando justificada pela exequente a sua detenção.

P - Os referidos títulos não podem ser considerados exequíveis.

Q - Ainda e sem prescindir, retira-se do requerimento executivo a existência de uma cessão de créditos.

R - Devendo aplicar-se o regime jurídico contido no art. 577º e segs. do Código Civil.

S – Dando-se como assente que aquando da comunicação da cessão de créditos, o recorrente comunicou, quer à cedente, quer à cessionária/recorrida, a sua não aceitação do crédito.   

T - Que no âmbito do regime jurídico da cessão de créditos, é legitimo ao recorrente opor todos os meios de defesa  e  todas as excepções que são lícitas invocar contra a cedente à cessionária.

U - Porque o tribunal de 1 ª Instância deu corno provado que os títulos em crise foram de favor.

V - Tal facto pode ser invocado pelo recorrente e opô-lo legal e legitimamente à recorrida, não carecendo de prova quanto à existência de boa ou má fé da cessionária.

X – Não podendo vingar a tese de que por estarmos no seio das relações mediatas, nenhuma excepção podia o recorrente opor à recorrida,

Z - quando a relação cambiária já se encontra extinta quando se deu a cessão de créditos.

AA - Tais factos são notórios e oficiosos, extraindo-se dos próprios documentos dados em execução, devendo o tribunal de 1ª instância assim o considerar.

            Não foram apresentadas contra alegações.

            Colhidos os vistos devidos, cumpre decidir.                            

            II – Da Relação e dos documentos que se mostram juntos aos autos, há a considerar como assente a matéria de facto que passa a enunciar-se:

Nos autos principais foram dadas à execução 19 letras de câmbio e cinco cheques, conforme documentos juntos a fls. 8 a 28 daqueles autos - (A).

Do requerimento executivo consta:

Título Executivo: Letra

Factos:

1º - O executado foi durante longo período de tempo vendedor da empresa DD,  Ldª,  sendo  que  não  obstante  ter  adquirido,   por conveniência, em 1 de Março de 2003, a qualidade de trabalhador da referida empresa, sempre exerceu a sua profissão de vendedor por conta própria e de forma totalmente independente, sendo que era ele que conhecia os clientes, que os conhecia, que lhes cobrava os preços, para si e depois pagava o preço de custo à supra referida empresa, sendo que o seu lucro era a diferença, de preço, que combinava com aquela empresa e o preço da venda, sendo portanto que nunca recebeu salário, sendo ainda que a facturação de tecidos era feita daquela empresa directamente ao cliente.

2º - Como era o executado que cobrava os preços dos tecidos e que depois tinha que pagar o seu custo àquela empresa, este, muitas vezes, por circunstâncias que se desconhecem,  atrasava  os pagamentos o que obrigava a empresa a socorrer--se de crédito particular, nomeadamente da sócia CC, que injectava a empresa de capitais próprios ou por si pedidos, sendo que o executado lhe passava letras, ora juntas para pagamento, letras estas que não foram pagas.

3º - A referida CC cedeu o seu crédito à exequente, do que notificou o executado.                 

- fls. 382.

O opoente é casado com uma irmã de CC e da exequente BB, irmãs entre si (certidões de fls. 123, 124 e 125).

CC é sócia e gerente da sociedade DD, Ldª, da qual a exequente era também sócia (doc. de fls.11/13) - (C).

O opoente começou a vender, por sua conta própria, artigo da empresa DD Lda., desde o ano de 1999, ainda no tempo que aquela tinha outro nome – EE Ldª., o que fazia em conjunto com o seu irmão FF - (19º).

Para o exercício da sua actividade de vendedor por conta própria, o opoente usava carrinha, sua propriedade, sendo que das várias que usou consta uma Renault Trafic de matricula 00-00-00 - (21º).

… Nem tinha telemóvel da empresa ou outros - (22º).

Os cheques constantes na presente execução, com excepção do cheque com o n.º 00, constituem pagamentos de artigos que o oponente carregava da empresa DD Lda., e que por sua vez tinha vendido aos seus clientes - (23º).

Foi por indicação de CC que o Banco Millennium BCP anulou o cheque constante na presente execução com o n.º 00- (14º).

Em meados de Agosto de 2001, as sócias da DD, Lda., devido às relações de parentesco que os ligavam solicitaram ao opoente que lhes emprestasse dinheiro - (3º).

Tendo a CC, alegando ter sérias dificuldades de tesouraria, convencido o ora opoente a emprestar-lhe um cheque, dizendo-lhe que seria por quinze dias o máximo um mês, e que inclusive tinha falado com o Banco, e que se o opoente lhes entregasse um cheque, elas o depositariam na conta bancária que possuíam (para ?) o efeito, vulgarmente designada por conta de gestão de cheques  pré-datados, e que desta forma realizariam o dinheiro que necessitavam urgentemente, e que assim o opoente  não  teria  de  emprestar  dinheiro, mas apenas um cheque seu - (5º).

Tendo sido essa a razão pela qual o opoente em 14/08/01, emitiu o cheque n.º 00000000, do Banco Totta & Açores, no valor de 1.750.000$00, à ordem de CC - (6º).

Entretanto a CC, alegando novamente problemas e dificuldades financeiras, pediu ao opoente que passasse a aceitar letras, porque com letras podia reformar - (9º).

O opoente, pouco habituado a estas situações, apenas assinava as letras onde a CC lhe indicava, tendo apenas como cuidado assinar apenas 3 ou 4 letras de cada vez, só aceitando assinar mais quando as anteriores estivessem pagas, e em montantes que não ultrapassassem os € 8.000,00 - (10º).

A solicitação da CC, o opoente aceitava as letras, que posteriormente a CC descontava junto do Banco, e chegado o momento do vencimento das letras, a CC ou reformava as letras ou pagava na íntegra o valor das mesmas - (11º).

O opoente celebrou com a DD, Lda. um contrato de trabalho a termo certo com início em 01/03/03 e com duração de 12 meses, sendo renovável automaticamente, por duas vezes, e até 36 meses - (B).

O opoente exercia as funções de vendedor, designadamente contactando os clientes a quem levava amostras de tecidos, recebia encomendas, entregava encomendas, descarregava os camiões que chegavam ao armazém, carregava o seu veículo com as encomendas que recebia e deslocava-se aos clientes - (1º).

Por declaração, datada de 31/10/04, a firma DD, Lda. rescindiu o contrato de trabalho que mantinha com o opoente - (D).

Aquando da rescisão do contrato referido em (B), o opoente solicitou que a CC lhe entregasse todos as letras, bem como o cheque nº 00000000 (1º cheque junto a fls. 27) que ainda se encontravam em poder da CC, tendo esta lhe respondido que o carro havia sido assaltado e que lhe roubaram todas as letras e o referido cheque - (13º).

Por cartas de 05/12/05, cujas cópias estão juntas a fls. 15 e 18, o opoente comunicou a CC e à exequente que não era devedor de qualquer quantia para com elas, tendo essas cartas sido recebidas pelas destinatárias - (E).

 As  letras  de  câmbio  juntas  aos  autos principais com os números 7, 10 e 8 – - três letras de câmbio no valor de € 6.000,00, € 4.500,00 e € 3.000,00, emitida em 15/06/03 com vencimento para 31/07/03, emitida em 31/08/03 com vencimento para 15/10/03  e  emitida  em  21/11/03 com vencimento para 31/12/03, respectivamente, – - são reformas umas das outras, encontrando-se a letra junta sob o doc. n.º 7, no valor de € 6.000,00, já liquidada, conforme a letra emitida em 31/07/03, no valor de € 5.500,00, que reformou a letra junta sob o n.º 7 - (15º).

O que sucede também com as letras juntas sob os n.ºs 9, 5 e 6 que são reformas umas das outras - (16º).

O referido em (15º) sucede também com as letras juntas sob os nºs 3, 2, 1 e 4, que são reformas umas das outras - (24º).

E também com as letras juntas sob os n.ºs 15, 19, 17, 16 e 13, que são reformas umas das outras - (25º).

E com as letras juntas sob os n.ºs 14 e 11, que são reformas umas das outras - - (26º).

E sucede ainda com as letras juntas sob os n.ºs 18 e 12 que são reformas de letras anteriores - (27º).                                                                                                  

            III – A – Nas conclusões apresentadas perante este STJ, e antecedentemente transcritas, o recorrente vem arguir que os cheques dados à execução já se encontravam prescritos à data da apresentação do requerimento executivo, pelo que, sendo a prescrição uma excepção peremptória de conhecimento oficioso, e, não constando, por outro lado, do aludido requerimento a alegação respeitante ao fundamento da utilização dos referidos títulos como documentos particulares, de tal decorre que o pedido nos mesmos fundado tenha de improceder.

            Ora, constituindo a oposição à execução o meio processual específico colocado à disposição do executado para obstaculizar aos efeitos da mesma resultantes – art. 813º, n.º 1 do CPC -, e em que os fundamentos legalmente admissíveis como susceptíveis de invocação para tal impugnação, nomeadamente nas situações como a presente em que a execução se baseia em títulos extrajudiciais, se mostram tipificados nos arts. 814º e 816º daquela indicada codificação, de tal decorre, que, perante o aludido requerimento executivo, o executado se encontra na mesma posição em que se encontraria numa acção declarativa que contra si tivesse sido instaurada, pelo que, consequentemente, pode invocar, na referida oposição, todos os factos que, como matéria de impugnação ou de excepção, poderia alegar na contestação a tal acção declarativa, já que a prévia inexistência desta, relativamente à obrigação exequenda, precludiu a possibilidade de apresentação da sua defesa em relação à pretensão deduzida pelo exequente – “Curso de Processo de Execução” do Cons. Amâncio Ferreira, 8ª edição, pág. 161.

            Assim, constituindo a prescrição que vem invocada pelo recorrente uma excepção peremptória, esta, como princípio geral, deve ser objecto de alegação pela parte interessada na sua procedência, a ter lugar, na acção declarativa, na contestação, e, na oposição à execução, no requerimento em que a mesma é deduzida, uma vez que o seu conhecimento oficioso apenas se verifica em relação àquelas indicadas excepções cuja arguição se não encontra legalmente dependente da manifestação da vontade do respectivo interessado em tal sentido – arts. 487º, 493º, n.º 3, 496º e 817º do CPC.

            Porém, no art. 303º do CC dispõe-se que “ o tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição, já que esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita”.

            Temos, portanto, que, mostrando-se objecto de estatuição legal, a preclusão do conhecimento   oficioso   da   excepção   peremptória   que   ora   vem  invocada   pelo recorrente, e não tendo a mesma sido objecto de atempada alegação por parte do mesmo no seu articulado, o seu conhecimento mostra-se vedado a este STJ – arts. 466º, n.º 1, 664º, segunda parte, 713º, n.º 2 e 726º do CPC.

            Por outro lado, e apesar do conteúdo da parte final do despacho proferido em sede de 1ª instância a fls. 289 dos autos, no sentido da não inclusão na dívida do recorrente do cheque n.º 000, e da anulação do referido título que consta do conteúdo da resposta ao art. 14º da BI, todavia, as instâncias não se pronunciaram sobre os efeitos decorrentes de tal facto, nem, inclusive, o recorrente tal questionou em sede de recurso, pelo que, consequentemente, nada há que apreciar relativamente a tal questão, atento o seu trânsito em julgado.

                         B – Vem, também, o recorrente sustentar, e no que se reporta às letras exequendas, que, tendo ocorrido uma cessão de créditos, lhe não está vedado opor à exequente, que os referidos títulos, como o tribunal de 1ª instância deu como provado, foram de favor, pelo que, por tal motivo, não pode vingar a tese subscrita pelas instâncias, de que o opoente não podia contrapor àquela qualquer excepção, em virtude das relações em causa se situarem no âmbito das relações mediatas.

            Com efeito, nos fundamentos exarados na sentença, para os quais, e na sua generalidade a Relação remeteu nos termos do art. 713º, n.º 5 do CPC, consta a dado passo da mesma:

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            Como se vê dos factos provados, a exequente é portadora das letras e cheques que constituem os títulos executivos e, no caso sub judice, perante a factualidade referida, dúvidas não restam de que a exequente e os executados/opoentes se encontram no âmbito das relações mediatas.

- fls. 340.

            Por seu turno, no acórdão da 2ª instância, acrescentou-se à aludida fundamentação:   

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Decorre do regime do art.º 17º da LULL que, nas relações imediatas, isto é, nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado; sacador-tomador; tomador-1º endossante, etc.), nas quais, os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem.

Por outro lado, um sujeito cambiário também poderá opor ao portador da letra excepções fundadas em relações extra-cartulares estabelecidas com outrem. Mas, para tal, é necessário que, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do sujeito cambiário que lhe opõe a excepção.

Confrontando o art.º 17º com o art.º 16º, logo se alcança que o pressuposto necessário, segundo aquele preceito, da oponibilidade da excepção não é a simples má fé: conhecimento do vício anterior. Mais se exige, além do simples conhecimento, que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de causar por esse facto um prejuízo ao devedor.

Como é pacífico, é sobre o obrigado cambiário que seja demandado por quem se arrogue portador da letra, que recai o ónus de alegar e provar os factos que integrem a má fé ou a culpa grave deste na aquisição da letra, a fim de ilidir a presunção de legitimidade que deriva da 1ª parte do art.º 16º. E, se quiser opor ao demandante as excepções fundadas sobre a relação pessoal dele com o sacador ou com os portadores anteriores, é também sobre o demandado que recai o ónus de provar os factos que demonstrem que, ao adquirir a letra, o demandante tinha consciência do prejuízo que lhe causava.   
……………………………………………………………………………………………………..
Ora, no requerimento inicial da oposição, o opoente não alegou quaisquer factos tendentes a demonstrar a má fé da exequente no momento da aquisição das letras e dos cheques.

Assim, por tais razões e pelas demais que, de forma exaustiva, se aduziram na bem fundamentada sentença recorrida, a presente oposição apenas poderia proceder, como procedeu, relativamente às letras que o opoente provou terem sido pagas através de sucessivas reformas.

- fls. 418/419.

            Como foi atrás enunciado, na parte respeitante à factualidade dada por assente, da exposição apresentada pela exequente no seu requerimento executivo, relativamente aos fundamentos de que decorre o pedido pela mesma formulado – art. 810º, n.º 3, al. b) do CPC -, consta expressamente, que a sacadora das letras cedeu àquela o crédito pelas mesmas titulado, tendo procedido à notificação do executado quanto a tal cedência.

            Ora, a cessão de créditos traduz-se no contrato pelo qual o credor (cedente) transmite a terceiro (cessionário), independentemente do consentimento do devedor cedido, a totalidade ou uma parte do seu crédito, e em que a produção dos efeitos a tal inerentes, ocorrem, relativamente àquele último, após a sua notificação ou aceitação, expressa ou tácita, da referida transmissão – arts. 577º e 583º, n.º 1 do CC.

            Por outro lado, e atendendo a que o crédito em que o cessionário fica investido é o mesmo que pertencia ao cedente, não se transmitem para aquele apenas os acessórios e as garantias que robustecem a consistência prática do direito cedido, mas também as vicissitudes da relação creditória, que o podem enfraquecer ou destruir, pelo que, não sendo requerido ao devedor cedido, como atrás se referiu, o seu consentimento para a realização do referido negócio jurídico, este não pode vir a ser colocado numa posição de inferioridade, quiçá de impossibilidade, relativamente à invocação, perante o cessionário, daqueles meios de defesa, que, embora desconhecidos deste, aquele era titular perante o cedente – art. 585º do CC e “Das Obrigações em Geral ” do Prof. Antunes Varela, vol. I, 6ª edição, pág. 325.

            Porém, inserindo-se a situação em causa nos autos no domínio do direito cambiário, do estatuído no art. 17º da LULL decorre, que, apenas no âmbito das relações imediatas, as quais se traduzem naquelas que se constituem entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato,  o  portador da letra fica sujeito às excepções decorrentes das convenções extracartulares, que, no domínio das relações pessoais, hajam sido entre ambos celebradas, situação essa, todavia, extensível ao possuidor do título que o haja recebido por um meio diverso de transmissão que não o endosso, v. g. cessão, uma vez que, em tais circunstâncias, o agente que passou a ser portador do título constituiu-se como representante do antecedente possuidor, na qualidade de seu sucessor, e não como um terceiro portador, titular de um direito cambiário autónomo, por si adquirido em consequência do aludido endosso – art. 11º da LULL, “Da Letra e da Livrança “ do Dr. Gonçalves Dias, pág. 438 e “Lições de Direito Comercial “ do Prof. Ferrer Correia, vol. III, pág. 68.

            Temos, portanto, que, na situação que nos vem presente, a exequente, como, aliás, foi já antecedentemente referido, não veio accionar as letras exequendas com fundamento no facto destas lhe haverem sido transmitidas por endosso, mas sim em consequência das mesmas titularem um crédito que lhe havia sido cedido pela antecedente portadora dos aludidos títulos.

            Assim, atendendo a que, e no seguimento do que foi explanado, a transmissão de um crédito cambiário, por força da sua cessão ao possuidor do título dado à execução, confere a este a posição cambiária de portador imediato, de tal decorre, que, ao exequente, são, portanto, oponíveis os meios de defesa que o devedor poderia invocar perante o respectivo transmitente – “Lei Uniforme sobre Letras e Livranças” do Cons. Abel Delgado, 7ª edição, pág. 110.

            Ora, da matéria de facto que se mostra provada, extrai-se que “a solicitação da CC, o opoente aceitava as letras, que posteriormente a CC descontava junto do Banco, e chegado o momento do vencimento das letras, a CC ou reformava as letras ou pagava na íntegra o valor das mesmas “ - (11º) -, uma vez que, “entretanto a CC, alegando novamente problemas e dificuldades financeiras, pediu ao opoente que passasse a aceitar letras, porque com letras podia reformar - (9º) -, o que configura, que a intervenção do recorrente na subscrição das letras exequendas, como aceitante das mesmas, se traduziu num mero “favor” prestado à respectiva sacadora, destinado a facilitar a circulação cambiária dos referidos títulos, e dessa forma permitindo àquela a obtenção de crédito, através do seu desconto  junto  das  entidades bancárias,  sem  que,  porém,  e  subjacente  a  tal subscrição, existisse qualquer relação fundamental entre ambos, que determinasse o pagamento, na data do respectivo vencimento, dos quantitativos nas mesmas apostos.

E, dado que, sendo a exequente/cessionária mera representante da sacadora/cedente, nos termos dos citados arts. 585º do CC e 17º da LULL, assiste, portanto ao opoente/devedor cedido, a faculdade de invocar, como meio de defesa do qual é titular, a ocorrência da aludida convenção extracartular de “favor”, celebrada ente si e a cedente, como meio obstaculizante ao pagamento das letras accionadas.

            Procedem, assim, ainda que apenas parcialmente, as conclusões do recorrente.

            IV – Face ao que vem de expor-se, concede-se, em parte, a revista requerida, e, em consequência, revoga-se o acórdão da Relação, na parte respeitante às letras exequendas, julgando-se procedente a oposição que foi deduzida relativamente à totalidade das mesmas, com a consequente extinção da execução no que respeita ao crédito por aquelas titulado, mantendo-se, na parte restante, o decidido pela Relação.

            Custas nas instâncias e neste Supremo na proporção dos respectivos vencimentos e decaimentos. 

                   

Lisboa, 19 de Junho de 2012 

Sousa Leite (Relator)
Salreta Pereira
João Camilo