Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7536/12.9TDLSB-D.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
INCONCILIABILIDADE DE DECISÕES
INJUSTIÇA DA CONDENAÇÃO
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
DESPACHO
ADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - A jurisprudência do STJ não tem tido um entendimento unânime relativamente a esta questão do n.º 2 do art. 449.º do CPP, equiparar à sentença, transitada em julgado, o «despacho que tiver posto fim ao processo», havendo uma corrente que pugna pela admissibilidade do recurso de revisão do despacho que revoga a suspensão de execução da pena e, uma outra, que defende a sua inadmissibilidade por não se tratar de despacho que põe fim ao processo.
II - A corrente que sustenta a admissibilidade da revisão assenta na ideia fundamental de que a decisão de revogação da pena suspensa na execução, fazendo ainda parte da sentença condenatória, deve ser-lhe estendido, por interpretação extensiva do art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPP, o regime aplicado à sentença (porquanto faz parte integrante da sentença condenatória).
III - Já a corrente do STJ, claramente maioritária, que pugna pela inadmissibilidade da revisão funda-se na ideia de que a decisão suscetível de revisão é a que define, positiva ou negativamente, a responsabilidade individual quanto a factos que podem constituir crime: considerando a prova (conhecendo ou examinando juridicamente decisão que dela conheceu), ou apreciando factos extintivos da responsabilidade penal, ou, ainda, decidindo sobre a qualificação jurídico-penal dos factos. O despacho de revogação da pena substitutiva de suspensão de execução da pena não tem um caráter complementar ou integrador da sentença condenatória e o despacho que põe termo ao processo, equiparado à sentença, a que alude o n.º 2 do art. 449.º do CPP, há de ser o que conhece a final do objeto do processo ou a que, dele não conhecendo, àquele puser termo e aquele despacho não é uma decisão que põe fim ao processo.
IV - Para evitar contradições entre acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal sobre esta matéria o acórdão do STJ n.º 1/2024 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 02-02-2024), proferiu, entretanto, a seguinte jurisprudência: «Nos termos dos n.ºs 1 e 2, do art. 449.º, do Código de Processo Penal, não é admissível recurso extraordinário de revisão do despacho que revoga a suspensão de execução da pena.».
V - Fixada jurisprudência, neste sentido, impõe-se rejeitar o recurso de revisão por inadmissibilidade legal.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 7536/12.9TDLSB-D.S1


Recurso extraordinário de revisão


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I- Relatório


1. Por despacho judicial de 7 de novembro de 2022, proferido no proc. n.º 7536/12.9TDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Criminal de ... - J... .., foi revogada a suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão, em que o arguido AA havia sido condenado, no mesmo processo, por acórdão transitado em julgado em 28 de abril de 2014, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.


2. Invocando como fundamento de revisão, o previsto na alínea c), n.º 1, do art.449.º do Código de Processo Penal, vem o condenado AA, em 21 de abril de 2023, interpor recurso extraordinário de revisão de sentença, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):


1. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no art.º 449.º, n.º1, alínea c) porquanto


no entendimento do recorrente existem duas sentenças/despachos inconciliáveis com os mesmos factos que serviram de fundamento, para duas decisões antagónicas, uma de condenação, e outra de absolvição, o que coloca em causa graves dúvidas sobre a justiça da condenação;


2. O recorrente, no âmbito do processo n.º 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de ...- J... ., por Acórdão proferido a 08.04.2013, transitado em julgado a 14.01.2014 foi condenado na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sujeita a regime de prova, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes. E no âmbito do processo 7536/12.9TDLSB do Juízo Central Criminal de L.....- J... .., foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 5 anos de prisão, suspensos na sua Execução, pelo mesmo período de tempo, sujeito a regime de prova, tendo a decisão transitada em julgado no dia 28/04/2014.


3. O recorrente, no âmbito de processo 48/19.1..., que correu termos no Juízo Local Criminal do ... - J... ., foi condenado pela prática em autoria material de 1 (um) crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º, alínea a), por referência ao artigo 21.º, n.º 1, e à Tabela I-B, todos do D.L. n.º 15/93, de 22 de janeiro na pena de 20 (vinte meses)


de prisão, sendo que a pena de prisão está a ser executada e cumprida em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.


4. O recorrente foi ouvido, em sede de audição de condenado, nos termos e para os efeitos dos artigos 55º e 56º do Código Penal e art.º 495º do Código de Processo Penal:


a) no dia 11-10-2022, às 14:30 horas, no âmbito do processo 7536/12.9TDLSB, do Juízo Central Criminal de ... – J... ..;


b) E no dia 20-10-2022, às 10:00 horas, no âmbito do processo 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de ... – J... .


5. Após a diligência, no processo 7536/12.9TDLSB, do Juízo Central Criminal de ... – J... .., o digno Procurador do Ministério Público promoveu a revogação da suspensão da pena que foi aplicada ao arguido, dizendo a final o seguinte: “ Nesta conformidade, verifica-se que, nas Declarações ora prestadas em Tribunal, o Arguido não falou verdade e foi arranjando justificações sem sentido, à medida que falava. O seu discurso de autocensura foi muito pobre, o que revela, à saciedade que não interiorizou a gravidade das suas condutas. Perante estes factos descritos, como pode o Tribunal formular um juízo de prognose favorável ao Arguido ? Como se pode confiar numa pessoa que pratica o mesmo tipo de crime, no período de suspensão da pena, durante mais de um ano, e que só trabalha em estabelecimentos nocturnos? Face a tudo o atrás descrito, ao cometer um crime da exacta mesma natureza do dos autos, durante o período de suspensão da pena aqui decretado e ao não ter quaisquer condições de vida que façam supor que o Arguido se vai manter longe da prática de mais factos ilícitos, não é possível formular um qualquer juízo de prognose favorável ao Arguido. Pelo que, atenta a realidade acima descrita, entende-se que as finalidades que estiveram na base da suspensão da pena não foram alcançadas, pelo que outra alternativa não existe que não seja a revogação da suspensão da pena que foi aplicada ao mesmo, nos termos do art. 56º/nº1/b) do Código Penal, o que ora se promove”.


6. E por Despacho, datado de 07/11/2022, o Mmo Juiz a quo, no processo 7536/12.9TDLSB decidiu revogar a suspensão da execução da pena de prisão de 5 anos, exarando a final o seguinte: Nos termos do artigo 56.º, n.ºs. 1, alínea b), e 2, do Código Penal, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de prisão de 5 (cinco) anos aplicada ao arguido/condenado AA.


7. Porém, no âmbito do processo 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de ... – J... ., decorrente da audição de condenado, a digna Procuradora do Ministério Público promoveu a não revogação da suspensão da pena aplicada ao arguido naqueles, dizendo o seguinte: - O arguido AA, foi condenado, por acórdão proferido nos presentes autos e transitado em julgado a 14.01.2014, como autor material de crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º do DL 15/93, de 22.01 na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova. O arguido veio a ser condenado pela prática de crime de tráfico de menor gravidade, praticado a 19.11.2018 (após o termo do prazo de suspensão da execução da pena aplicada nestes autos) tendo sido condenado, na pena de 20 meses em regime de permanência na habitação, decisão transitada em julgado a 2.06.2022. Do relatório elaborado pela DGRSP resulta que, pese embora seja de registar o fraco juízo crítico em relação ao crime praticado, o arguido parece estar a encetar esforços no sentido de reequilibrar a sua familiar, pessoal e profissional, o que deverá ser atendido, até porque o arguido se encontra a ser acompanhado em regime de prova naquele outro processo até 18.03.2024. Por isso nos parece não ser de revogar a suspensão da execução da pena aplicada ao arguido nestes autos.


8. E por Despacho de 12/04/2023 o Mmo Juiz a quo, no processo 8004/11.1..., decidiu declarar extinta a pena de prisão suspensa na sua execução de harmonia com o estatuído no Art.º 57.º, n.º 1, do Código Penal, exarando a final o seguinte: - Afigura-se assim que, as finalidades que estavam na base da suspensão não se mostram goradas, pois que esta outra condenação, e mais recente, aplicou ao arguido uma pena de prisão igualmente suspensa na sua execução, optando assim por não privar de liberdade o arguido.


Pelo que, se entende que não se mostram manifesta e inequivocamente comprometidas as finalidades que se pretendiam alcançar com a suspensão. Sem olvidar que, os factos deste processo remontam a 2011 (decorreram já doze anos desde então), os factos da condenação aplicada no processo n.º 48/19.1... são de 2017 (e Novembro de 2018), logo são remotos no tempo. Face ao exposto, e em conformidade com a douta promoção que antecede, decorrido que está o período da suspensão, tendo sido cumprido o regime de prova e inexistindo motivos que possam conduzir à sua revogação, declaro extinta a pena de prisão suspensa na sua execução aplicada nos presentes autos ao arguido AA, de harmonia com o estatuído no Art.º 57.º, n.º 1, do Código Penal.


9. Assim, resulta das decisões proferidas no processo 7536/12.9TDLSB, do Juízo Central Criminal de ... J... .. e no processo 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de ... J... .. uma oposição inconciliável, de que resultam graves dúvidas sobre a condenação proferida no processo 7536/12.9TDLSB, do Juízo Central Criminal de ... – J... ...


10. É modesto entendimento do recorrente que da análise aos respectivos Despachos os mesmos são sempre escudados nas promoções do Ministério Público.


11. Temos assim, uma decisão condenatória e outra absolutória, que contrasta com toda a dinâmica subjectiva que é a audição de condenado.


12. E que, o hiato temporal, entre as duas audições de condenado, foi de 9 dias, pois no processo 7536/12.9TDLSB, do Juízo Central Criminal de ... – J... .., o recorrente foi inquirido, em sede de audição de condenado no dia 11-10-2022, às 14:30 horas e no âmbito do processo 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de ... – J... ., o recorrente foi inquirido, em sede de audição de condenado no dia 20-10-2022, às 10:00 horas.


13. Questionamos das razões, ou da razão de ciência, que assistiram um Tribunal a decidir num sentido e um outro Tribunal a decidir em sentido oposto. Pois quanto à documentação existente, e que foi a mesma, esta serviu, quer a um quer a outro tribunal, para alicerçarem a respectiva decisão, nomeadamente os relatórios sociais, sendo que a interpretação dada aos mesmos, é antagonicamente dispersa.


14. Contrastando, de forma inequívoca, o resultado positivo de tais dados, quanto ao promovido pelo Ministério Público no processo 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de ... – J... ., em que “pese embora seja de registar o fraco juízo crítico em relação ao crime praticado, o arguido parece estar a encetar esforços no sentido de reequilibrar a sua vida familiar, pessoal e profissional, o que deverá ser atendido, até porque o arguido se encontra a ser acompanhado em regime de prova naquele outro processo até 18.03.2024”.


15. Questionado-se o recorrente da subjectividade inerente às decisões e às promoções, porquanto sendo o Ministério Público um corpo uno e hierarquizado, movido pelo princípio da unidade (in https://comarca-lisboa.ministeriopublico.pt/pagina/quem-somos-17), aqui perante o mesmo sujeito processual, o recorrente, com os mesmos dramas e angústias de se ver a cumprir pena de prisão efectiva – quer num quer noutro processo -, o resultado de uma audição, com todo o nervosismo inerente àquele comportamento humano, é diferentemente catalogado, interpretado.


16. E isto, em observação directa, em audiência, fazendo-se aqui o apelo ao princípio da imediação, o qual pressupõe um contacto directo e pessoal entre o julgador e as pessoas que perante ele depõem.


17. E bem andou o Mmo. Juiz a quo, em referência ao processo 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de... – J... ., em que, na sua fundamentação, aponta para os factos que levam a decidir pela extinção da pena suspensa, ao invés de revogar a suspensão da execução da pena de prisão, dizendo que “para além de ter sido condenado pela prática de um crime cometido no período da suspensão, impõe-se que o julgador equacione, com base nos factos constantes dos autos (que não podem ater-se à condenação sofrida), se as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. No mesmo sentido apontam Leal Henriques e Simas Santos, in Acórdão da Relação do Porto de 25 de Maio de 1992, Colectânea de Jurisprudência, Ano X, página 101; “O não cumprimento das obrigações impostas não deve desencadear necessariamente a revogação da condenação condicional. Na verdade, se se quer lutar contra a pena de prisão, e se a revogação inelutavelmente a envolve, daí resulta que tal revogação deverá ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências...” (…) Mas as causas de revogação não devem ser entendidas como um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. Resulta do plasmado nos Arts.º 40.º e 71.º, do Código Penal que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral especial ou individual, esta positiva ou negativa, porque, por um lado, ressocializadora e por outro dissuasora - tudo relativamente ao delinquente funcionando a culpa, simultaneamente, como seu pressuposto e limite máximo. O instituto de suspensão da execução da pena de prisão integra-se nesta função ressocializadora do condenado. Ora, a decisão proferida em 11.01.2022 ponderou a condenação sofrida nestes autos e entendeu-se condenar o arguido em pena não privativa da liberdade, em contexto prisional, dado que a pena de prisão sofrida o foi em regime de permanência na habitação, sendo certo que tal juízo é inequivocamente mais contemporâneo.


18. Resultando das decisões proferidas no processo 7536/12.9TDLSB, do Juízo Central Criminal de ... J... .. e no processo 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de... J... . uma oposição inconciliável, de que resultam graves dúvidas sobre a condenação proferida no processo 7536/12.9TDLSB, do Juízo Central Criminal de ... – J... ...


Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, requer-se a V/Exas se dignem anular o Despacho que decide revogar a suspensão da execução da pena de 5 (cinco) anos, aplicada ao recorrente, com a ulterior tramitação, caso seja de Vosso douto entendimento.


3. O Ministério Público junto do Juízo Central Criminal de ..., respondeu ao recurso extraordinário de revisão, concluindo a sua resposta nestes termos (transcrição):


1. O Despacho que revoga a Suspensão da Pena encontra-se fora das situações que se encontram previstas no citado art.449º do CPP e, por isso, fora das hipóteses de Recurso de Revisão legalmente previstas.


2. Entre as razões que impedem a admissão do presente Recurso de Revisão respeita a circunstância deste meio processual não constituir um terceiro grau de Recurso, como faz o ora Recorrente, encapotadamente.


3. O Recurso de Revisão é um meio processual absolutamente excepcional, que coloca em causa o caso julgado, pelo que, por uma questão de segurança jurídica, tem que ser admitido só em casos excepcionais, o que não sucede nos presentes autos.


4. A Revisão de Sentença respeita, como diz o nome, a “Sentenças” ou a “Despachos” que tenham essa natureza, que coloquem fim ao processo, o que não acontece no caso concreto.


5. Um Despacho como o ora recorrido, que revoga a Suspensão da Pena de Prisão, não coloca termo ao processo, antes o prolonga, seguindo-se, após, a fase da execução da pena de prisão.


6. Nesta conformidade, não poderá ser admitido o presente Recurso, devendo ser indeferido liminarmente.


7. Refira-se, por outro lado, que não se detecta, nos autos, qualquer decisão injusta, que a ordem jurídica e judiciária não comporta e reclama uma “correcção”.


8. Não se apura qualquer injustiça que tenha que ser alterada, já que o que se observa nos autos é uma mera divergência na análise de uma situação de facto respeitante ao Arguido recorrente, ocorrida em dois processos distintos.


9. Num caso, o Mmo. Juiz de Direito fez uma apreciação concreta da situação do Arguido, na outra situação, outro Mmo. Juiz de Direito fez uma valoração distinta.


10. Coarctar a Liberdade de Apreciação dos Magistrados Judiciais, como pretende o ora Recorrente, exigindo uma conclusão igual a dois Tribunais diferentes, constitui uma intolerável violação da Independência dos Juízes e é seriamente atentatória do Estado de Direito.


11. Assim sendo, o Recurso de Revisão ora interposto, caso seja admitido, o que só por mera hipótese se admite, deverá ser considerado improcedente, mantendo-se o Douto Despacho recorrido em toda a sua plenitude.


4. Sobre o mérito do pedido formulado pelo condenado, pronunciou-se o Ex.mo Juiz de Direito, nos termos do art.454.º do Código de Processo Penal, informando o seguinte (transcrição):


Ao abrigo do preceituado no artigo 454.º, do Código de Processo Penal, e não havendo necessidade de realização de quaisquer diligências probatórias, é nosso entendimento, à semelhança daquele propugnado pelo Digno Procurador da República, que, para além do despacho em causa ser insusceptível de revisão (pois trata-se de um despacho que não põe fim ao processo, antes dá sequência à condenação antes proferida, abrindo a fase da execução da pena de prisão, tal como decorre do n.º 2, do artigo 56.º, do Código Penal), o recurso de revisão em apreço não é legalmente admissível, por não se verificar o (alegado) fundamento previsto na al. c), do n.º 1, do artigo 449.º, do Código de Processo Penal.


O Colendo Supremo Tribunal de Justiça, no entanto, e como sempre, fará a melhor e mais salutar justiça.”


5. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal de Justiça, no visto a que alude o art.445.º, n.º1, do C.P.P., emitiu parecer no sentido de ser legalmente inadmissível o recurso de revisão em presença, devendo ser rejeitado, sendo que, de qualquer forma, e na linha das tomadas de posição do Ministério Público na 1.ª instância e do Mm.º Juiz titular do processo, por não se verificarem os requisitos a que se refere a norma do art.449.º, n.º 1, alínea c), do C.P.P., e /ou de qualquer dos demais segmentos do mesmo preceito legal, sempre seria de negar a pretendida revisão de despacho.


6. Notificado o requerente do pedido de revisão da posição assumida pelo Ministério Público na vista a que alude o art.455.º, n.º1 do C.P.P., para, em 10 dias, querendo, dizer que tivesse por conveniente, nada disse.


7. Realizada a Conferência, nos termos do art.455.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, cumpre decidir.


II – Fundamentação


8. São as seguintes as decisões relevantes no âmbito deste recurso, em face das certidões juntas aos autos:


A) O despacho recorrido, de 7 de novembro de 2022, proferido no proc. n.º 7536/12.9TDLSB, pelo Juízo Central Criminal de ..., J... .. - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, transitado em julgado em 17 de abril de 2023, tem o seguinte teor (transcrição):


“Por acórdão transitado em julgado em 28.04.2014, foi o arguido AA condenado, para além do mais, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, acompanhada de regime de prova.


Esse regime de prova assentou num plano de reinserção social, elaborado e executado pela DGRSP, tendo sido homologado pelo Tribunal, sendo que, apesar dos relatórios intercalares serem globalmente positivos, a avaliação final já suscitava “algumas reservas quanto à capacidade de prossecução de um projeto de vida de acordo com os valores sócio jurídico vigentes” (cfr. relatórios de 30.05.2016, 25.07.2017, 17.10.2018, e de 02.08.2019).


Sucede que, o arguido viria novamente a ser condenado, por acórdão transitado em julgado a 02.06.2022, proferido no âmbito do processo n.º 48/19.1... (do Juízo Local Criminal do ... – ..), pela prática, entre Julho de 2017 e Novembro de 2018, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, al. a), do citado Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 20 meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.


Em face do referido circunstancialismo, foi designada data para audição do arguido/condenado, tendo o mesmo, nessa diligência, começado por referir que não tinha traficado quaisquer produtos estupefacientes, tratando-se de uma situação de mero consumo, num claro intuito de atenuar a sua responsabilidade. Instado pelo Tribunal, acabou por admitir o tráfico, fazendo ainda referência a uma “má fase da sua vida”, decorrente, sobretudo, do falecimento do progenitor, embora sem lograr explicitar a relação causa/efeito entre esse período e o cometimento de um novo crime de tráfico de estupefacientes.


No mais, esclareceu as suas actuais condições de vida, nomeadamente a circunstância de trabalhar a partir de casa, fruto do cumprimento da referida pena de prisão em regime de permanência na habitação, gerindo uma página web de um stand de venda de automóveis, tendo neste momento a seu cargo, juntamente com a companheira (que também está empregada) dois filhos menores.


O Ministério Público, com vista nos autos, escudando-se na factualidade descrita e na personalidade revelada pelo arguido, promoveu a revogação da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada (cfr. fls. 5201).


Notificado o arguido e o seu Ilustre defensor, este último, por requerimento de fls. 5205 e segts., alegou, em súmula, que aquele se encontrava nervoso e assustado na aludida diligência, tendo transmitido uma ideia diferente da pretendida, sendo certo que, apesar disso, tem a perfeita consciência da gravidade da sua conduta, bem como das consequências que dela resultam. Mais referiu que tem mantido um percurso profissional regular e estável, apesar das restrições resultantes do cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, contribuindo para a subsistência do agregado familiar, razão pela qual não deverá ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado nos presentes autos.


Juntou documentos, relativos à sua actividade profissional, tendo ainda requerido, caso o Tribunal entenda necessário, a elaboração de um relatório social sobre as suas actuais condições de vida.


Cumpre apreciar e decidir.


Diga-se, desde já, relativamente à requerida elaboração de um (novo) relatório social, que tal diligência se mostra desnecessária, considerando, por um lado, os elementos já constantes dos autos (inclusive os documentos ora juntos pela defesa), e, por outro, as declarações prestadas pelo arguido a esse mesmo respeito.


Avançando, pois, na análise do comportamento do arguido, estabelece o artigo 56.º, n.º 1, do Código Penal, que “A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social [alínea a)] ou; cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas” [alínea b)].


Decorre, assim, de tal preceito legal, que a revogação da suspensão da execução da pena apenas deve ser determinada quando o condenado “(…) infirmar definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da suspensão, é dizer, a esperança de, por meio desta, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade” (Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 356 e 357). As causas de revogação da suspensão da execução de pena não deverão, pois, ser entendidas formalmente, antes deverão perfilar indiciariamente o fracasso, em definitivo, da prognose inicial que determinou a sua aplicação.


Ora, tal como decorre da factualidade elencada, verifica-se que o arguido foi condenado por factos cometidos durante o período de suspensão de execução da pena de prisão imposta nestes autos, pelo que, impõe-se, assim, analisar se se verifica a condicionante estabelecida na alínea b), do citado artigo 56.º, do Código Penal, susceptível de conduzir à revogação daquela mesma suspensão.


Pois bem, parece-nos evidente que o arguido infirmou o aludido juízo de prognose, porquanto, no decurso do referido período de suspensão, voltou a incorrer na prática de um novo crime doloso, com a agravante de se tratar de ilícito de idêntica etiologia (crime de tráfico de estupefacientes). Tal comportamento é claramente demonstrativo de que a solene advertência contida na condenação anterior não surtiu qualquer efeito.


Ora, é claro que não basta afirmar o cometimento de um novo crime no período de suspensão da execução da pena, para se concluir pela infirmação do juízo de prognose favorável determinante para a aplicação dessa suspensão. No entanto, constatamos que não se trata de uma condenação isolada por um crime sem particular importância para o juízo relativo à desconformidade ético-social do seu comportamento, resultando, pelo invés, que estamos perante um crime de idêntica natureza, o que evidencia, por si só, que a personalidade do arguido é fortemente refractária do dever de respeito à lei, denotando incapacidade de assimilar a carga negativa associada a comportamentos penalmente relevantes.


Perante o panorama ora traçado, como convencer, então, da subsistência do bem fundado do juízo de prognose que levou à suspensão da execução da pena nos presentes autos? Quantas condenações pela prática de crimes serão necessárias para que seja fundado um juízo de prognose negativo?


E ainda que se entendesse que tal condenação seria insuficiente para se considerar como esgotadas todas as possibilidades de, com a suspensão, virem a ser alcançadas as finalidades da punição, bastaria atentar nas declarações do arguido. Com efeito, contrariamente ao que procurou transmitir, pela análise da certidão que consta dos autos, respeitante à condenação sofrida no âmbito do citado processo n.º 48/19.1..., designadamente do facto n.º 33 (cfr. fls. 5128), verifica-se que o mesmo se vinha dedicando “pelo menos desde Julho de 2017 e até Novembro de 2018 (…) à venda de produtos estupefacientes”, ou seja, longe de uma actividade irregular ou meramente episódica e, muito menos, para seu consumo exclusivo. Neste contexto, ainda que se pudesse entender algum nervosismo da parte do arguido ao responder perante o Tribunal, já nada justifica a (deliberada) intenção de mitigar a sua responsabilidade, num discurso eminentemente desculpabilizante, dando mostras, afinal, de não haver interiorizado a gravidade das suas condutas.


Diga-se, ainda, que os factores de integração familiar e profissional de que o arguido beneficia presentemente, também já existiam à data da prática dos factos respeitantes à condenação sofrida no mencionado processo, sem que, ainda assim, tivessem servido de contramotivação para a prática de um novo ilícito criminal.


Concluiu-se, assim, que o arguido não interiorizou minimamente o desvalor das suas condutas, não demonstrando qualquer receio pela ameaça da aplicação (efectiva) da pena, pelo que, estão irremediavelmente falidas as razões que determinaram a suspensão da sua execução.


Pelo exposto, e nos termos do artigo 56.º, n.ºs. 1, alínea b), e 2, do Código Penal, decide-se revogar a suspensão da execução da pena de prisão de 5 (cinco) anos aplicada ao arguido/condenado AA.


Notifique.


Após trânsito, remeta boletins, dando-se igualmente conhecimento à DGRSP e ao TEP, solicitando ainda a este Tribunal a oportuna colocação do arguido/condenado à ordem dos presentes autos, para cumprimento da referida pena de 5 (cinco) anos de prisão.”.


B) O despacho de 12 de Abril de 2023, proferido no proc. n.º 8004/11.1..., pelo Juízo Central Criminal de... - .... . - Tribunal Judicial da Comarca …, transitado em julgado em 19 de maio de 2023, tem, por sua vez, o seguinte teor (transcrição):


“Por Acórdão proferido a 08.04.2013, transitado em julgado a 14.01.2014 foi o arguido AA condenado na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, sujeita a regime de prova, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.


Decorrido o período de suspensão aludido, foi requisitado e junto o competente certificado de registo criminal do arguido, bem como foram coligidas as informações referentes a eventuais processos pendentes.


Foi observado o disposto no Art.º 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com a audição presencial do arguido.


Pugnou o Digno Ministério Público pela não revogação da suspensão pelos factos e com os fundamentos constantes da douta promoção que antecede.


Mais foi assegurado o contraditório.


Compulsados os autos, constata-se que o arguido foi condenado, no âmbito do processo n.º 48/19.1..., por factos desde Julho de 2017 e até Novembro de 2018, na pena de 20 (vinte) meses de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, decisão proferida a 11.01.2022, transitada em julgado a 02.06.2022, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade.


Com efeito, constata-se que tais factos (parte de tais factos) foram efectivamente ainda praticados no decurso de vigência da suspensão da execução da pena aplicada.


Ora, estatui o Art.º 56.º, do Código Penal que a revogação da suspensão da execução da pena nos casos em que o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social (n.º 1, alínea a) do citado preceito) ou cometer crime pelo qual venha a ser condenado e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (n.º1, alínea b)).


Porém, a condenação por crime praticado durante o período de suspensão não determina automaticamente a revogação da suspensão.


Na verdade, exige-se também a ponderação de um juízo de valor no sentido de que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.


A questão centra-se, pois, na distinção no caso em apreço, entre uma violação culposa ou grosseira e repetida das condições da suspensão, mormente porquanto o arguido não se absteve de praticar outro crime, por factos de idêntica natureza, no período de suspensão da execução da pena de prisão a que foi condenado no domínio destes autos.


Como ensina o Conselheiro Maia Gonçalves sobre esta matéria in o Código Penal de 1982, Volume I, página 303:


“Só mediante a ponderação das particularidades de cada caso concreto o juiz poderá decidir se alguma deve ser aplicada e, caso positivo, qual a que melhor se molda à situação. Assim, se o condenado deixou de cumprir uma condição devido a caso fortuito ou de força maior que definitivamente o inibe de lhe dar cumprimento, não deve ser aplicada qualquer sanção.


Se o caso fortuito ou de força maior o inibiu tão somente de cumprir dentro do prazo inicialmente estabelecido, parece quadrar-se bem uma prorrogação do prazo.


Se a falta de cumprimento é devida a culpa leve, parecem mais adequadas as medidas das alíneas a) e b), isoladas ou em conjunto.


Para os casos da falta de cumprimento dolosa ou com culpa grave, afigura-se-nos mais ajustada a medida da alínea d) in fine, ou mesmo a revogação”.


Na realidade, da mera leitura do estatuído na alínea b) do n.º1 do Art.º 56.º, do Código Penal infere-se, de forma inequívoca, que o legislador não pretendeu que o mero facto de o arguido ter sido condenado pelo cometimento de um crime no decurso da suspensão comporte a revogação dessa suspensão, pois, caso assim fosse não tinha cumulativamente acrescentado a segunda premissa da revogação.


Assim, para além de ter sido condenado pela prática de um crime cometido no período da suspensão, impõe-se que o julgador equacione, com base nos factos constantes dos autos (que não podem ater-se à condenação sofrida), se as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.


No mesmo sentido apontam Leal Henriques e Simas Santos, in Acórdão da Relação do Porto de 25 de Maio de 1992, Colectânea de Jurisprudência, Ano X, página 101;


O não cumprimento das obrigações impostas não deve desencadear necessariamente a revogação da condenação condicional. Na verdade, se se quer lutar contra a pena de prisão, e se a revogação inelutavelmente a envolve, daí resulta que tal revogação só deverá ter lugar como ultima ratio, isto é, quando estiverem esgotadas ou se revelarem de todo ineficazes as restantes providências...” (…)


Mas as causas de revogação não devem ser entendidas como um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão.


Resulta do plasmado nos Arts.º 40.º e 71.º, do Código Penal que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral especial ou individual, esta já positiva ou negativa, porque, por um lado, ressocializadora e por outro dissuasora - tudo relativamente ao delinquente – funcionando a culpa, simultaneamente, como seu pressuposto e limite máximo.


O instituto de suspensão da execução da pena de prisão integra-se nesta função ressocializadora do condenado.


Ora, a decisão proferida em 11.01.2022 ponderou já a condenação sofrida nestes autos e entendeu-se condenar o arguido em pena não privativa da liberdade, em contexto prisional, dado que a pena de prisão aí sofrida o foi em regime de permanência na habitação, sendo certo que tal juízo é inequivocamente mais contemporâneo, Pelo que, a eventual revogação da suspensão da pena sofrida nestes autos manifestamente iria degenerar no comprometimento da pena sofrida naqueles autos, bem como foi o arguido entretanto condenado no âmbito do processo n.º 1124/21.6... (proferida a 13.12.2022) e foi condenado numa pena de prisão suspensa na sua execução, e desta feita, tal decisão não ia contribuir para a reintegração do arguido.


Não sendo de olvidar que o arguido denota estar a fazer um efectivo esforço no sentido de sedimentar a sua reintegração social e laboral.


Igualmente o regime de prova foi globalmente avaliado como positivo.


Afigura-se assim que, as finalidades que estavam na base da suspensão não se mostram goradas, pois que esta outra condenação, e mais recente, aplicou ao arguido uma pena de prisão igualmente suspensa na sua execução, optando assim por não privar de liberdade o arguido.


Pelo que, se entende que não se mostram manifesta e inequivocamente comprometidas as finalidades que se pretendiam alcançar com a suspensão.


Sem olvidar que, os factos deste processo remontam a 2011 (decorreram já doze anos desde então), os factos da condenação aplicada no processo n.º 48/19.1... são de 2017 (e Novembro de 2018), logo são remotos no tempo.


Face ao exposto, e em conformidade com a douta promoção que antecede, decorrido que está o período da suspensão, tendo sido cumprido o regime de prova e inexistindo motivos que possam conduzir à sua revogação, declaro extinta a pena de prisão suspensa na sua execução aplicada nos presentes autos ao arguido AA, de harmonia com o estatuído no Art.º 57.º, n.º 1, do Código Penal.


Notifique.”.


9. Âmbito do recurso:


O pedido de revisão de sentença tem o âmbito decorrente do requerimento inicial apresentado.


No caso, o requerimento inicial apresentado pelo recorrente, solicitando autorização de revisão do despacho/sentença condenatória proferida no proc. 7536/12.9TDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Criminal de ... - J... .., tem como fundamento ou requisito, o indicado no art.449.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.


10. Vejamos, antes do mais, o regime legal que lhe subjaz.


10.1. O art.29.º da Constituição da República Portuguesa, inserido no Título II, epigrafado de «Direitos, liberdades e garantias» consagra, no seu n.º5, o princípio ne bis in idem e, assim, ainda que de forma implícita, a figura do caso julgado.


O fundamento central do caso julgado é uma concessão prática à necessidade de garantir a segurança e a certeza do direito.


Como assertivamente esclarece Eduardo Correia, com o caso julgado “…ainda mesmo com possível, sacrifício da justiça material, quere-se assegurar através dele aos cidadãos a paz; quere-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto.”.1


Porém, embora a segurança seja um dos fins do processo penal, não é o único, como acentua Cavaleiro de Ferreira:


A justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações; o direito não pode querer e não quer a manutenção duma condenação, em homenagem à estabilidade das decisões judiciais a garantia dum mal invocado prestígio ou infabilidade do juízo humano, à custa de postergação de direitos fundamentais dos cidadãos, transformados então cruelmente em vítimas ou mártires duma ideia mais do que errada, porque criminosa da lei e do direito.”. 2


O caso julgado não pode, pois, ser um dogma absoluto face à injustiça patente.


E a nossa lei fundamental não deixa de o reconhecer, privilegiando a justiça material em detrimento da segurança e da certeza que resulta da autoridade do caso julgado, ao estabelecer no art.29.º. n.º 6 da Constituição da República Portuguesa, que «os cidadãos injustamente condenados o direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença é á indemnização pelos danos sofridos».


Com o recurso de revisão consegue o legislador obter o equilíbrio entre a imutabilidade da sentença ditada pelo caso julgado (vertente da segurança) e a necessidade de assegurar o respeito pela verdade material (vertente da Justiça).


No mesmo sentido esclarece José Alberto dos Reis, no âmbito do processo civil, que “O recurso de revisão pressupõe que o caso julgado se formou em condições anormais, que ocorreram circunstâncias patológicas suscetíveis de produzir injustiça clamorosa. Visa a eliminar o escândalo dessa injustiça. Quer dizer, ao interesse da segurança e da certeza sobrepõe-se o interesse da justiça”.3


A revisão de sentença criminal, densificada no art.449.º e seguintes do Código de Processo Penal, é um recurso extraordinário que visa a impugnação de uma sentença transitada em julgado e a obtenção de uma nova decisão, mediante a repetição do julgamento.


Os fundamentos e condições de admissibilidade da revisão da sentença penal transitada em julgado, em que seria injusto e intolerável manter a sentença transitada em julgado, constam das alíneas a) a g) do n.º 1 do art.449.º do Código de Processo Penal.


O art.449.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Fundamentos e admissibilidade da revisão» estabelece, com interesse para o presente recurso:


«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:


(…)


c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;


(…)


2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.».


O fundamento da revisão da sentença transitada em julgado previsto na alínea c) do n.º1 do art.449.º do Código de Processo Penal, que o recorrente traz à colação exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a) a inconciliabilidade de decisões, entre os factos que servirem de fundamento à condenação; e, b) os dados como provados noutra sentença, resultando graves dúvidas sobre a justiça da condenação.


No caso concreto, o recorrente alega que a decisão proferida no proc. 7536/12.9TDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Central Criminal de... - J... .., por via da qual foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão a que havia sido condenado, é inconciliável com a decisão proferida no proc. n.º 8004/11.1..., do Juízo Central Criminal de ... - .... ., que declarou extinta a pena suspensa na sua execução, resultando dessa oposição “graves dúvidas sobre a condenação proferida no proc. 7536/12.9TDLSB.


10.2. Antes de apreciar o mérito do fundamento da revisão, como questão prévia, impõe-se decidir se é admissível ou não o recurso extraordinário de revisão do despacho que revoga a suspensão de execução da pena.


A questão da admissibilidade do recurso de revisão coloca-se, desde logo, pela circunstância do n.º 2 do art.449.º do Código de Processo Penal, equiparar à sentença, transitada em julgado, o «despacho que tiver posto fim ao processo».


A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não tem tido um entendimento unânime relativamente a esta questão, havendo uma corrente que pugna pela admissibilidade do recurso de revisão do despacho que revoga a suspensão de execução da pena e, uma outra, que defende a sua inadmissibilidade por não se tratar de despacho que põe fim ao processo.


A corrente que sustenta a admissibilidade da revisão assenta na ideia fundamental de que a decisão de revogação da pena suspensa na execução, fazendo ainda parte da sentença condenatória, deve ser-lhe estendido, por interpretação extensiva do art.449.º, n.º1, al. d), do C.P.P., o regime aplicado à sentença (porquanto faz parte integrante da sentença condenatória).


Já a corrente do S.T.J., claramente maioritária, que pugna pela inadmissibilidade da revisão funda-se na ideia de que a decisão suscetível de revisão é a que define, positiva ou negativamente, a responsabilidade individual quanto a factos que podem constituir crime: considerando a prova (conhecendo ou examinando juridicamente decisão que dela conheceu), ou apreciando factos extintivos da responsabilidade penal, ou, ainda, decidindo sobre a qualificação jurídico-penal dos factos. O despacho de revogação da pena substitutiva de suspensão de execução da pena não tem um caráter complementar ou integrador da sentença condenatória e o despacho que põe termo ao processo, equiparado à sentença, a que alude o n.º2 do art.449.º do C.P.P., há de ser o que conhece a final do objeto do processo ou a que, dele não conhecendo, àquele puser termo e aquele despacho não é uma decisão que põe fim ao processo.


Para evitar contradições entre acórdãos proferidos por este Supremo Tribunal sobre esta matéria no âmbito do princípio da liberdade de interpretação da lei, geradoras de incerteza no direito e fonte de desprestígio da administração da justiça, decidiu o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça proceder, por acórdão de 8 de novembro de 2023, à interpretação uniforme da lei.


Neste âmbito, fixou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2024 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 2 de fevereiro de 2024), a seguinte jurisprudência:


«Nos termos dos n.ºs 1 e 2, do art.449.º, do Código de Processo Penal, não é admissível recurso extraordinário de revisão do despacho que revoga a suspensão de execução da pena.».


De acordo com o art.445.º, n.º1, do Código de Processo Penal, a decisão proferida pelo pleno das secções criminais tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do art.441.º, n.º 2, sem prejuízo da reformatio in pejus.


O n.º 3 do art.445.º, do Código de Processo Penal, acrescenta que «A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».


Quebrando este n.º 3 a força vinculativa do acórdão de fixação da jurisprudência, prima facie, poderia entender-se que basta uma qualquer fundamentação divergente sobre a jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador, para se afastar a sua observância. Mas assim não é, como deixam logo antever os artigos 446.º e 447.º do Código de Processo Penal.


Como esclarece, entre outros, o acórdão do STJ de 5-11-2009, “A lei indica com suficiente clareza, assim, que os Acórdãos para fixação de jurisprudência têm um peso próprio, que lhes é dado pelo facto de provirem do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Há, pois, que lhes conceder o benefício, para não dizer a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto.


Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada.».4


Também Maia Gonçalves, entendia que o segundo período do n.º3 do art.445.º do C.P.P., ao conter uma particular chamada de atenção para o dever de fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência que se encontra fixada, impõe “… que os argumentos invocados para o efeito, além de ponderosos, sejam novos, no sentido de não terem sido considerados no acórdão uniformizador, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador.”5.


No mesmo sentido, e seguindo o acórdão do STJ de 13 -11-2003 (in SASTJ, n.º 75, 100), refere Paulo Pinto de Albuquerque, que “Os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada, isto é, quando a) o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou finalmente c) a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada.”.6


Em suma, como tem enfatizado o STJ, o tribunal judicial divergente não pode limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada baseado tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal.7


No caso concreto, a fixação de jurisprudência não ocorreu no presente processo, nem a sua tramitação foi suspensa nos termos do art.441.º, n.º 2, do C.P.P..


Porém, sendo muito recente o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2024, não se encontram razões para a mesma se considerar ultrapassada e divergir dela.


Tendo-se fixado jurisprudência no sentido de que nos termos dos n.ºs 1 e 2, do art.449.º, do Código de Processo Penal, não é admissível recurso extraordinário de revisão do despacho que revoga a suspensão de execução da pena, mais não resta que rejeitar o presente recurso, por inadmissibilidade legal.


III - Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por inadmissibilidade legal, a revisão peticionada pelo arguido AA, do despacho judicial de 7 de novembro de 2022 que determinou a revogação da suspensão da execução da pena.


Custas pelo recorrente, fixando em 4 UCs a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).


*


(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).


*


Lisboa, 15 de fevereiro de 2024


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


António Latas (Juiz Conselheiro Adjunto)


Agostinho Torres (Juiz Conselheiro Adjunto)


Helena Moniz (Juíza Conselheira Presidente da Secção)


_________________________________________________

1. Cf. “II - Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, Coimbra Editora, 1983, pág.7↩︎

2. Cf. In “Scientia Iuridica”, tomo XIV, n.ºs 75/76, págs. 520-521.↩︎

3. Cf. “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, vol. V, pág. 158.↩︎

4. Proc. n.º418/07.8PSBCL-A.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

5. Código de Processo Penal anotado, Almedina , 17.ª edição, páginas 1045 e 1046↩︎

6. In "Comentário do Código de Processo Penal", UCE, edição de 2007, pág.s 1202 e 1203↩︎

7. Cf. ainda, Pereira Madeira , in “Código de Processo Penal comentado”, obra coletiva de Conselheiros do STJ, Almedina , 2014, pág.1591.↩︎