Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9934/13.1T2SNT-A.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
PENHORA
DIREITO DE SUPERFÍCIE
BENS IMPENHORÁVEIS
VENDA JUDICIAL
DOMÍNIO PRIVADO
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
PESSOA COLETIVA DE DIREITO PÚBLICO
MUNICÍPIO
TRANSMISSÃO
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / VIGÊNCIA, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS LEIS – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO / ACÇÃO DE CUMPRIMENTO E EXECUÇÃO – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE SUPERFÍCIE / DIREITOS E ENCARGOS DO SUPERFICIÁRIO E DO PROPRIETÁRIO / EXTINÇÃO DO DIREITO DE SUPERFÍCIE.
Doutrina:
- Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, Universidade Católica Editora, 2017, p. 436;
- Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed., p. 242;
- Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1999, p. 413;
- Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex, Lisboa 1993, p. 706 e 707;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, p.602.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, 824.º, 1524.º,1534.º, 1535.º E 1536.º, N.º 1, ALÍNEA D).
LEI DOS SOLOS, APROVADA PELO DL N.º 794/76, DE 05-10.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 02-11-2017, PROCESSO Nº. 231/06.8TBBRR.L3.S1.
Sumário :
I - O direito de superfície, definido no art. 1524.º do CC, pode assumir carácter perpétuo ou temporário, permitindo ao superficiário um aproveitamento integral das utilidades da obra ou plantação.

II - Tal direito convive, no entanto, necessariamente, com o direito de propriedade sobre o terreno, o direito do fundeiro, direito maior, como evidencia o facto de a lei lhe reconhecer, sem reciprocidade, direito de preferência na alienação ou na dação em cumprimento daquele (art. 1535.º do CC), caso em que se consolida a propriedade através da reunião na sua pessoa dos dois direitos, com a consequente extinção do direito de superfície (art. 1536.º, n.º 1, al. d), do CC).

II - A expressa consagração no art. 1534.º do CC da transmissibilidade, por acto entre vivos ou por morte, quer do direito de superfície, quer do direito de propriedade do solo, mostra que o primeiro é, por princípio, passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito da acção executiva movida contra o superficiário.

III - Porém, o direito de superfície administrativa sobre um bem do domínio privado de uma pessoa colectiva pública (no caso, o Município embargante) está sujeito às limitações decorrentes do regime especial a que se mostra submetido (Lei dos Solos, aprovada pelo DL n.º 794/76, de 05-10, em vigor à data da sua constituição – art. 12.º do CC) e ao consignado na escritura pública da sua constituição.

IV - Traduzindo-se a penhora na apreensão judicial de bens do executado com vista à sua ulterior venda (art. 824.º do CC), deve entender-se que as coisas ou direitos cuja venda esteja dependente da anuência de outrem (que não o executado ou o exequente) não podem ser objecto de penhora, dado que não tem sentido permitir a prática de um acto preparatório da transmissão do bem ou direito em causa, sem o consentimento de que depende a sua posterior alienação.

V - Tendo as partes consagrado, na escritura pública de constituição do direito de superfície, outorgada em 30-08-1982, a proibição de venda desse direito sem a autorização do Município (proprietário do solo), não pode a sua transmissão ser concretizada, sem esse consentimento, pela via da venda judicial.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I. Relatório:


O Município de … deduziu os presentes embargos de terceiro contra BB e Hockey Clube CC, por apenso à acção executiva que o primeiro moveu contra o segundo, pedindo que fosse «excluído dos bens nomeados à penhora o direito de superfície do prédio» descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3…6/20…8.

Alegou para o efeito que é dono e legítimo proprietário daquele prédio, encontrando-se registado a favor do executado Hockey Clube CC, por 99 anos, o direito de superfície, sob condição de reversão a favor do Município, com todas as benfeitorias nele introduzidas, caso lhe seja dado destino diferente de parque de jogos.

Mais alegou não poder subsistir a penhora realizada sobre tal direito de superfície, uma vez que é impenhorável por se tratar um direito inalienável, na medida em que para esta ocorrer é necessário o consentimento do embargante, sendo a dedução dos presentes embargos a sua negação.

Alegou ainda que o direito de superfície em questão se constituiu intuitu personae, tendo em consideração as especiais natureza e actividades ali desenvolvidas pelo Hockey Clube CC, consideradas de relevante interesse público, sendo que a qualidade de vida da juventude que o clube agrega será prejudicada, afectando irremediavelmente a continuação dos treinos e a realização dos jogos calendarizados, o que é revelador do «fundado receio, lesão grave e irreparável».


Admitidos liminarmente, apenas o exequente BB contestou, invocando, em suma, a penhorabilidade do direito de superfície e a desnecessidade de o embargante autorizar a venda judicial, sendo que o embargante tem direito de preferência na venda, mediante o pagamento do valor em causa, o que afasta os pressupostos da gravidade e irreparabilidade dos danos provocados com tal venda.

Finalizou, pedindo que, na improcedência dos embargos, se mantenha a penhora já registada, prosseguindo a execução seus termos, designadamente com a venda judicial.

No saneador foram os embargos julgados improcedentes e os embargados absolvidos do pedido.


Inconformado com o assim decidido, apelou o embargante.

O Tribunal da Relação de …, dando provimento à apelação, revogou a decisão recorrida e, em sua substituição, julgou os presentes embargos de terceiro procedentes, determinando, em consequência:

«a) o levantamento da penhora incidente sobre o direito de superfície de que é titular o embargado Hockey Clube CC, constituído pela escritura pública realizada no dia 30 de agosto de 1982, tendo por objecto o prédio urbano sito em …, freguesia de …, concelho de Sintra, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº 3…, com a área de 12.913 m2;

b) o cancelamento do registo de tal penhora e a que se reporta a inscrição Ap. 2 de 2…3/08/05».


Recorre agora de revista o embargado BB, deduzindo na sua alegação as seguintes conclusões:

«1. A penhora do direito de superfície e construções nele implantadas pelo Hockey Club CC em nada afecta a propriedade do Município de … e o acórdão confunde os conceitos entre eles, em clara violação dos art°s 1524°, 1525° do Cód. Civil;

2. O direito de superfície e o direito de propriedade do proprietário do solo constituem realidades jurídicas distintas, susceptíveis de serem objecto de relações jurídicas independentes, com a possibilidade de constituição e subsistência separada de direitos reais de garantia, como a penhora e outras;

3. O direito do superficiário Hockey sobre a coisa implantada é uma verdadeira propriedade, de domínio sobre coisa própria, não um simples direito real de gozo de coisa alheia pertencente ao proprietário do solo o Município de …, já que

4. a propriedade superficiário, incide também sobre o espaço aéreo e o subsolo por ela ocupados), direitos esses que, sendo o objecto do direito de propriedade um imóvel, abrangem o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico, tendo o acórdão violado os art.°s 1305° e 1344° e a definição legal de prédios no art.° 204°, n.° 2, todos do Código Civil;

5. O direito de propriedade do Município de … não é incompatível com a penhora, pois o que esta abrange é tão somente o direito de superfície, compreendendo as construções e instalações pertencentes ao superficiário que as erigiu e, assim não tendo entendido, o Acórdão recorrido violou, entre outros os arts 1532° 1534°, 1541°, do Cód. Civil;

6. O direito de propriedade do Município de … ao prédio descrito não se insere no domínio público pois foi-lhe doado por particulares, está registado em seu nome no Registo Predial, é bem do domínio privado do Município de … e está sujeito a um regime de direito privado e integrado no correspondente comércio jurídico;

7. Assim, não se inclui em nenhum dos fins Art. 2.° - 1, nem se insere no invocado dispositivo do art° 5º n° 1 Dec Lei 794/76 de 5/11, disposições cuja interpretação foi violada;

8. O direito de superfície, objecto de penhora, não foi constituído intuitu personae;

9. Uma obrigação é intuitu personae se eia foi assumida tendo em consideração as qualidades próprias da pessoa do devedor, podendo qualificar-se negócio jurídico intuitu personae quando a sua realização teve lugar em razão das características específicas de uma das suas partes;

10. O objectivo da constituição do direito de superfície - construção de parque de jogos - encargo habitual, se o fundeiro não quer ou não pode meter-se em construções e constitui o direito a favor de que o possa e queira fazer;

11. O direito de superfície, objecto de penhora, foi constituído gratuitamente, por 99 anos porque o Hockey Club levou a cabo importantes construções, com elevados investimentos e o Município, quando findar o contrato, ficará enriquecido e por isso, é que atribuiu esta condição; 12. A cláusula de reversão se lhe der outro destino que não o parque de jogos, é a contrapartida da concessão do direito de superfície para o Município assegurar a referida construção. Daí a "penalidade": regressa ao Município se não construir o parque de jogos.

13. O próprio título constitutivo do direito de superfície à luz das regras de interpretação do negócio jurídico, designadamente as dos arts. 236° e 238° do CC, não se descortina que o direito tenha sido constituído intuitu personae, isto é, só para o executado Hockey Clube CC e, por conseguinte, não possa ser transmitido e/ou que a sua transmissão implique a extinção do próprio direito de superfície por verificação de condição resolutivo nos termos do art. 1536°, n° 2 do CC, dispositivos legais violados no Acórdão recorrido;

14. E, como muito bem se diz na douta sentença de Ia Instancia, é o próprio art° 20° n°s 1 e 2 do Dec Lei 794/76 de 5/11 que estabelece regime de transmissibilidade do direito de superfície, tal como no actual art. 156° do DL 80/2015, permitindo a penhora do direito de superfície constituído pelos Municípios sobre imóveis de sua propriedade, caindo pela base as conclusões do Acórdão recorrido que pretende ver reforço do intuitu personae na necessidade de consentimento do Município para ser aquele direito transmitido ou alienado;

15. Tal consentimento é necessário para evitar especulação na venda do direito de superfície, como consta do art° 21° n° 2 do cit. De Lei 794/76 de 5/11, cuja interpretação foi violada no Acórdão recorrido;

16. Nem mesmo imperfeitamente foi invocado por parte do Recorrido Embargante que se tenha exprimido mal ou o destinatário da sua declaração, tenha, não obstante, entendido bem o que aquele pretendia dizer e não disse, a saber, que tal direito de superfície era constituído intuitu personae, a do executado, sem qualquer transmissibilidade para terceiros;

17. No título constitutivo do direito de superfície em causa está prevista a possibilidade de ser transmitido a terceiros, apenas é exigida a autorização do Município, em consonância, aliás, com o exigido no art° 20° do Dec. Lei 794/76, preceito violado no acórdão recorrido;

18. Especulação que inexiste na venda judicial e, ainda, por o Embargante beneficiar do direito de preferência, na compra do mesmo direito de superfície;

19. De resto, é por não ser inalienável e do domínio publico que o Município pôde constituir o direito de superfície a favor do Hockey Clube CC;

20. A vinculação assumida pela entidade superficiário Hokey Club CC para com o fundeiro o Município de … é de natureza estritamente obrigacional;

21. Mas o acórdão recorrido, ao impor ao Recorrente, estranho à relação superficiário, terceiro de boa fé e credor do executado Hockey Club CC, a impenhorabilidade do Direito de superfície, acaba por lhe conferir caracter real;

22. O acórdão recorrido com a posição assumida, viola frontalmente o princípio da tipicidade dos direitos reais que se traduz na proibição de constituição de direitos reais que não caibam em cada um dos tipos previstos na lei, bem como na impossibilidade de lhes ser atribuído conteúdo diferente do que corresponde à formatação legal, estar vedado, no campo desses direitos, o recurso à aplicação da analogia.

23. Ao estender, ilegal e ilegitimamente, este principio ao Recorrente, que nada teve a ver com a constituição desse direito de superfície, violou o princípio da tipicidade ou numerus clausus dos direitos reais, acolhido no art. 1306°-1 C. Civil;

24. O Recorrido, exigindo o seu consentimento, ao Hockey CC, para este alienar o direito de superfície concedido, não o torna objectivamente indisponível, pois não é um bem do domínio publico, nem está sujeito por lei a essa inalienabilidade (p.ex. direito a alimentos, direito à sucessão de pessoa viva, entre outros regulados na Lei substantiva);

25. A inalienabilidade e a impenhorabilidade só podem derivar de preceito expresso de lei e não de uma cláusula contratual, já porque esta não obriga terceiros, é res inter alios acta, já porque não está na alçada de particulares alterar a natureza Jurídica dos bens;

26. E a indisponibilidade subjectiva também não gera a impenhorabilidade, pois aquela sempre resultaria por razões de interesse próprio, inoponíveis a terceiros, ao Recorrente, in casu, pelo que o Acórdão violou o disposto nos art°s 736°, 737° do C.P.C.;

27. E que, até os bens do incapaz são penhoráveis, sem prejuízo do seu representante legal de intervir na acção executiva a seu lado;

28. Como errada é a comparação da situação da penhora do direito dos lojistas em Centro Comercial (contrato inominado) com a do direito de superfície. Já que a instalação do comerciante na loja do centro tem como escopo principal a integração do lojista no conjunto organizado de actividades comerciais que constituem o tenant mix específico de cada nova unidade global, inteiramente estranha ao contrato de locação, mesmo de locação do estabelecimento comercial e ao direito de superfície;

29. O município de … não é o dono do direito de superfície, das construções e do parque que pertencem ao superficiário, nem existe qualquer intervenção daquele na administração do Clube que é totalmente independente e pode exercer o seu direito de preferência na venda do mesmo;

30. O interesse do Exequente e ora Recorrente não foi sequer ponderado no Acórdão recorrido que nem sequer aludiu ao seu direito à indemnização por acórdão deste Supremo Tribunal, e por cujo valor aguarda há mais de quinze anos;

31. O Exeqte vê-se completamente postergado e objecto de má vontade, por meros interesses clubistas e autárquicos, com os quais nada tem a ver;

32. O direito de superfície em apreço não é inalienável, e é penhorável, como qualquer bem do património do Executado Hockey Club CC, essencial para a garantia do seu direito de credito sobre este;

33. A solução preconizada no acórdão recorrido conduz a resultado iníquo, ganho injustificado do Executado Hockey que assim vê protegido o seu património, não responde pela injustiça gritante, deixando cego o Exeqte. e Recorrente sem qualquer compensação, em violação dos mais básicos princípios gerais de Justiça, de protecção à integridade física, bem como à especial protecção na educação física e no desporto, previstos nos art°s 20.5, 25.1 e 70.1.d) da Constituição da Republica Portuguesa e da boa fé no art° 227° do Cód. Civil, entre outros, flagrantemente violados no acórdão recorrido.

Nestes termos e nos doutamente supridos por V. Ex.as, Venerandos Senhores Juízes Conselheiros, deve ser concedido provimento ao presente Recurso de Revista, revogando-se o Acórdão recorrido, rejeitando-se os embargos de terceiro deduzidos pelo Município de …, repristinando-se integralmente a douta decisão de 1ª Instancia».

Contra-alegou o embargante Município de …, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

Vêm provados os seguintes factos:

1 .O imóvel descrito sob o nº 3… na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sito em …, freguesia de … (descrito em livro sob o nº 1…6 livro nº 55), com a área total de 12.913m2 tem registadas as seguintes inscrições:

- Ap. 11 de 1982/08/24 - aquisição a favor do Município de …, por doação de DD e EE (inscrição G-1);

- Ap 6 de 1982/11/30 – constituição do direito de superfície a favor do Hockey Clube CC com as seguintes obrigações “reverterá para a Câmara Municipal de …, o direito sobre o prédio, com todas as benfeitorias nele introduzidas, caso seja dado destino diferente de parque de jogos – na transmissão do direito adquirido a Câmara Municipal de … terá preferência” (inscrição F-1);

- Ap. 2 de 2013/08/05 - penhora do direito de superfície na ação executiva de que estes autos constituem apenso, em que é exequente BB e executada Hockey Clube CC, para pagamento da quantia exequenda de € 211.832,29;.

2 . O título subjacente à inscrição F-1 supra referida foi a escritura pública intitulada de “cedência do direito de superfície de um terreno destinado a parque de jogos celebrada com Hockey Clube CC, conforme teor da respectiva cópia a fls. 39 a 41 e que aqui se dá por reproduzida, na qual consta designadamente que “aos trinta dias do mês de Agosto do ano de mil novecentos e oitenta e dois, nesta Vila de …, Edifício dos Pacos do Concelho e Gabinete da Presidência da Câmara, perante mim FF, chefe da Secretaria da Câmara Municipal do concelho de … e, nessa qualidade, exercendo funções Notariais, no uso da competência que me confere o art. 3º do Código do Notariado, compareceram como Outorgantes: Primeiro – GG (…) o qual outorga nesta escritura na qualidade de Presidente desta Câmara Municipal e em representação do Município com poderes para o acto. Segundos: HH (…) II (…), JJ (…) e KK (…), os quais outorgam, respectivamente, na qualidade de Presidente da Direcção, Vice-Presidente da Direcção, Presidente da Assembleia Geral e Membro do Conselho Consultivo e Juridicional do Hockey Clube CC (…). Assim presentes pelo Primeiro Outorgante foi dito que a Câmara Municipal de … é dona e legítima proprietária de uma parcela de terreno sita em …, freguesia de Sintra (…), com a área de doze mil novecentos e treze metros quadrados (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de … – Segunda Secção, sob o número dezassete mil seiscentos e quarenta e seis, a folhas setenta verso, do Livro B-cinquenta e cinco, registado na mesma Conservatória, a favor desta Câmara Municipal de … sob o número quarenta e oito mil setecentos e cinco, a folhas, cento e cinquenta e seis-verso, do Livro G-cento e seus e descrito na matriz cadastral rústica da freguesia de Sintra (….) como parte do artigo vinte e cinco secção E. Que em cumprimento de deliberação desta Câmara Municipal tomada em sua reunião ordinária realizada em vinte e oito de Julho último, constitui a favor do Hockey Clube CC o direito de superfície do prédio acima mencionado, nas seguintes condições: UM: O direito de superfície sobre o terreno já mencionado, ao qual se atribui o valor de dez escudos por metro quadrado, no total de cento e vinte e nove mil cento e trinta escudos, para efeitos fiscais, é cedido gratuitamente ao Hockey Clube CC, representando pelos Segundos Outorgantes, pelo prazo de NOVENTA E NOVE ANOS, prorrogáveis. DOIS: O objecto da concessão deste direito de superfície é a construção de um PARQUE DE JOGOS. TRÊS: Reverterá para esta Câmara Municipal, o direito alienado sobre o terreno em causa, com todas as benfeitorias nele introduzidas, no caso de lhe ser dado destino diferente do que mencionado, sem que o Hockey Clube CC, tenha direito a qualquer indemnização. QUATRO: A superficiária não poderá transmitir o direito de superfície sem a prévia autorização desta Câmara Municipal, a qual em caso de alienação terá a preferência. Pelos Segundos Outorgantes foi dito que aceitam para o Hockey Clube CC, que neste acto representam, a presente escritura, nos termos nele exarados e a cujo cumprimento se obrigam.”


De direito:

Vistas as conclusões da alegação do recorrente, as quais delimitam o objecto do recurso (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), a questão nuclear a decidir passa por saber se o direito de superfície cedido pelo Município de … ao Hockey Clube CC, contra o qual o recorrente moveu acção executiva, é inalienável e, consequentemente, insusceptível de penhora.

Sobre esta questão as instâncias divergiram, considerando a 1ª instância que se trata de um direito passível de penhora e decidindo a Relação em sentido contrário com base no entendimento de que «estamos perante uma verdadeira situação de inalienabilidade do direito de superfície de que é titular o embargado Hockey Clube CC, constituído pela escritura pública realizada no dia 30 de agosto de 1982, tendo por objecto o prédio urbano sito em …, freguesia de …, concelho de Sintra, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 3…, com a área de 12.913 m2, e que lhe foi cedido pelo dono do solo desse prédio, o Município de ….

A alienação de tal direito de superfície, no âmbito do processo executivo de que os presentes embargos de terceiro são apenso, sem o consentimento do aqui embargante Município de …, significaria uma evidente violação, quer do contrato de constituição daquele direito, quer do disposto no nº 2 do art. 20º do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11 (vigente à data da celebração do contrato, entretanto revogado, mas aplicável á concreta situação aqui em apreço, pelas razões acima referidas), representando, consequentemente, uma flagrante e injustificável violação do direito do dono do solo».

A razão encontra-se com o Tribunal da Relação.

O direito de superfície surge definido no artigo 1524º do Código Civil como «a faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações», dizendo-se fundeiro o dono do solo e superficiário o titular da construção implantada ou da plantação.

Este conceito está, na opinião de Menezes Cordeiro (Direitos Reais, Lex, Lisboa 1993, págs. 706 e 707), seriamente amputado por esvaziado de significado económico, preferindo considerá-lo, de forma mais abrangente, como «a afectação jurídica de um prédio alheio em termos de nele se efectuar, ou simplesmente manter, edifícios ou plantações, com o subsequente aproveitamento das coisas assim mantidas».

Podendo assumir carácter perpétuo ou temporário, este direito permite ao superficiário um aproveitamento integral das utilidades da obra ou plantação, mas convive, necessariamente, com o direito de propriedade sobre o terreno, o direito do fundeiro, direito maior, como o evidencia o facto de a lei lhe reconhecer, sem reciprocidade, direito de preferência na alienação ou na dação em cumprimento do direito de superfície (artigo 1535º do Código Civil), permitindo ao titular do direito de propriedade sobre o solo consolidar a propriedade através da reunião na sua pessoa dos dois direitos e da consequente extinção do direito de superfície, nos termos do disposto no artigo 1536 nº 1 al. d) do Código Civil (cfr. Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, Universidade Católica Editora, 2017, pág. 436, e Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1999, pág. 413).

A expressa consagração no artigo 1534º do Código Civil da transmissibilidade por acto entre vivos ou por morte quer do direito de superfície, quer do direito de propriedade do solo, mostra que o mesmo é, por princípio, passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito de acção executiva movida, designadamente, contra o superficiário.

Embora se esteja perante uma só coisa, tudo se passa, em sentido jurídico, como se a mesma tivesse sido idealmente cindida em partes dotadas de autonomia que lhes permite serem excepcionalmente objecto de diversos direitos reais de garantia, como a hipoteca e a penhora (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.11.2017, subscrito pela ora relatora, proferido na Revista nº. 231/06.8TBBRR.L3.S1, e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, 1987, pág.602).

Importa distinguir, contudo, se o direito de superfície é constituído por particulares – em superfície civil – ou pelo Estado ou pessoas colectivas de direito público em terrenos do seu domínio privado – em superfície administrativa –, uma vez que o regime legal aplicável não é o mesmo. Na verdade, no primeiro caso, aplica-se o estatuído no Código Civil, enquanto, no segundo caso, tem aplicação legislação especial e, só subsidiariamente, o Código Civil (artigo 1527º deste diploma).

A possibilidade de constituição da superfície administrativa, apareceu regulada na Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, cujo artigo 22º estabelecia: «Só o Estado, as autarquias locais e as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa podem constituir, em terrenos do seu domínio privado, o direito de superfície», dispondo no artigo 25º ser possível constar, entre o mais, do título de constituição do direito de superfície a dependência de autorização do proprietário do solo para a alienação daquele direito (nº 1 al. b)).

Posteriormente, veio a Lei dos Solos, aprovada pelo DL nº 794/76, de 5 de Outubro, consagrar no artigo 5º que:

«1. Os terrenos já pertencentes à Administração (…) não podem ser alienados, salvo a pessoas colectivas de direito público e empresas públicas, devendo apenas ser cedido o direito à utilização, mediante a constituição do direito de superfície, dos terrenos destinados a empreendimentos cuja realização não venha a ser efectuada pela Administração».

E, regulando o regime especial da superfície administrativa no capítulo IV, veio estabelecer no artigo 20º que:

«1. Na constituição do direito de superfície serão sempre fixados prazos para o início e conclusão das construções a erigir e serão adoptadas as providências que se mostrem adequadas para evitar especulação na alienação do direito.

2. Para os fins do disposto na última parte do número anterior poderá convencionar-se, designadamente, a proibição da alienação do direito durante certo prazo e a sujeição da mesma a autorização da Administração.

3. A Administração gozará sempre do direito de preferência, em primeiro grau, na alienação por acto inter vivos (…)».

    Revogada pela Lei nº 31/2014, de 30 de Maio, a referida Lei dos Solos (DL nº 794/76, de 5 de Outubro), manteve, neste particular, o regime legal assim estabelecido, apesar das subsequentes alterações nela introduzidas pelo DL nº 313/80, de 19 de Agosto, pelo DL nº 400/84, de 31 de Dezembro, e pelo DL nº 307/2009, de 23 de Outubro.

Esse regime legal especial tinha «subjacente a filosofia de que o Estado nunca deve alienar o solo de que seja civilmente titular mas apenas proporcionar o seu aproveitamento a particulares, quando não possa ou não queira ele próprio providenciar nesse sentido», como decorre do segmento final do nº 1 do transcrito artigo 20º e dá nota Menezes Cordeiro (loc. cit., pág. 718), citado no acórdão agora sob censura.

O embargante Município de … outorgou com o Hockey Clube CC escritura pública, realizada em 30 de Agosto de 1982, por intermédio da qual cedeu ao segundo o direito de superfície sobre o prédio identificado, da qual resulta que a cedência, (i) feita pelo prazo de 99 anos, prorrogáveis, (ii) foi gratuita, (iii) teve por objecto a construção de um parque de jogos, (iv) revertendo aquele direito de superfície para o Município de … (fundeiro) com todas as benfeitorias introduzidas no terreno sobre o qual foi constituído, sem o direito a qualquer indemnização para o superficiário Hockey Clube CC, no caso de lhe ser destino diferente, (v) o qual não poderia transmitir o aludido direito de superfície sem a prévia autorização do Município de …, (vi) tendo preferência na sua aquisição, em caso de alienação consentida pelo Município Fundeiro.

     A constituição do direito de superfície nas referidas condições foi aceite pelo Hockey Clube CC, mantendo-se a situação inalterada aquando da penhora daquele direito de superfície na acção executiva que lhe foi movida pelo embargado BB, ali exequente, para pagamento coercivo da quantia exequenda (€ 211.832,29), penhora registada através da Ap. 2 de 2013/08/05.

       Não nos oferece dúvidas que estamos em face da constituição de um direito de superfície administrativa sobre um bem do domínio privado de pessoa colectiva pública, como é o Município embargante, submetida ao regime especial da Lei dos Solos aprovada pelo DL nº 794/76, de 5 de Outubro, em vigor na data da sua constituição por contrato (artigo 12º do Código Civil).

       Como tal, sujeito às limitações legais decorrentes do respectivo regime especial e ao consignado na escritura pública que o corporiza o contrato, na qual as partes consagraram, além do mais, a proibição da venda do direito de superfície sem a autorização do Município proprietário do solo.

Subjacentes à cláusula de inalienabilidade sem aquela autorização, estavam, como se viu, preocupações do legislador com a especulação na alienação do direito de superfície, que não são afastadas pelo facto de a transmissão se operar através de venda judicial, a qual se rege, compreensivelmente, pelas regras do mercado e tem por finalidade obter o melhor preço para solver o crédito do exequente.

Os artigos 736º e 737º do Código de Processo Civil enunciam os bens absolutamente ou relativamente impenhoráveis, entre os quais figuram as coisas ou direitos inalienáveis.

Traduzindo-se a penhora na apreensão judicial de bens do executado com vista à sua ulterior venda judicial (artigo 824º do Código Civil), deve entender-se que as coisas ou direitos cuja venda esteja dependente da anuência de outrem, que não o executado ou o exequente, não podem ser objecto de penhora.

Não tem sentido permitir a prática de um acto preparatório da transmissão do bem ou direito em causa, sem o consentimento de que depende a sua posterior alienação.

A circunstância de os bens ou direitos se encontrarem no comércio ou serem em abstracto alienáveis não é, por si só, bastante para que possam ser objecto de penhora. Necessário é que a transmissão, em concreto, dos bens ou direitos a penhorar, dependa apenas da vontade do credor.

A propósito de um caso paralelo – penhora de quota quando a escritura de constituição da sociedade faça depender a cessão do consentimento da sociedade –, escreveu Alberto do Reis (Processo de Execução, vol. 1º Reimpressão, Coimbra Editora, 1982, pág. 344), que:

  «Se os bens ou direitos não são, em absoluto, inalienáveis, mas só podem ser alienados em determinadas circunstâncias ou precedendo certos requisitos, para que a penhora seja admissível faz-se mister que concorram essas circunstâncias ou esses requisitos».

Acrescenta o mesmo autor que «a execução sacrifica a vontade do executado, prescinde dela, porque em consequência da eficácia do título executivo a posição do executado é a de sujeição; mas o que não pode, sem ofensa da ordem jurídica, é sacrificar a vontade de pessoas para quem o título executivo não tem eficácia alguma».

Esta é a situação do direito de superfície penhorado na execução, posto que a penhora foi realizada sem o consentimento do Município de …, muito embora tivesse sido contratualmente clausulado que tal direito não podia ser alienado sem o consentimento daquele, proprietário do solo.

Se a transmissão daquele direito não pode realizar-se por iniciativa do superficiário sem o aludido consentimento, também não poderá concretizar-se, através da penhora, pela via da venda judicial.

Encontramo-nos, como afirma Lebre de Freitas (A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª ed., pág. 242), perante uma «limitação intrínseca inserta num esquema de cumprimento contratual» como é a que resulta da exigência de autorização do embargante para a transmissão do direito de superfície inserta na escritura de constituição deste direito.

Não nos merece, por conseguinte, o douto acórdão recorrido qualquer reparo, não podendo a penhora realizada subsistir, sob pena de ofender o direito do embargante, ora recorrido (artigo 342º nº 1 do Código de Processo Civil).


III. Decisão:

Nesta conformidade, acorda-se no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 12 de Julho de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relator)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado