Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
530/12.1TBCHV-B.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: CASAMENTO
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS PRÓPRIOS
INDICAÇÃO DE PROVENIÊNCIA
DOCUMENTO
CÔNJUGE
Data do Acordão: 05/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL; FAMÍLIA E SUCESSÕES
Doutrina:
- Pires de Lima- A. Varela, Código Civil Anotado, vol IV, 2ª ed., p. 427;
- Antunes Varela, Direito de Família, 4.ª ed., pág. 458;
- Pereira Coelho – Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, 2ª ed., p. 516:
- Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Provada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Coimbra, 2000, p. 350;
Legislação Nacional:
- ARTIGOS 1722.º; 1723.º; 1724.º; 1726.º, N.ºS 1 E 2 , DO CÓDIGO CIVIL;
- ARTIGOS 201.º, N.º 1; 205.º, N.º 1 E 2; 304.º; 1336.º E 1350.º DO CPC.
Jurisprudência Nacional:
- AC. STJ DE 13-07-2010, ACESSÍVEL ATRAVÉS DE HTTP://WWW,DGSI.PT E ACEDIDO EM 06-05-2014, DE QUE FOI RELATOR O EX.MO CONS. GONÇALO SILVANO.
Sumário :
I – No regime de comunhão de adquiridos, a regra de que os bens adquiridos na constância do casamento são comuns pode ser afastada, entre outros casos, demonstrando-se a sub-rogação indirecta nesses bens de bens próprios de qualquer dos cônjuges, desde que a proveniência dos bens e valores utilizados na aquisição seja mencionada no documento que titula o acto aquisitivo ou em documento com intervenção de ambos os cônjuges.

II – Inexistindo estes requisitos, o bem deve ser havido como comum.

III – Relacionando-se, num inventário de partilha subsequente a divórcio de casamento celebrado em comunhão de adquiridos, um prédio rústico como bem comum e consignando a cabeça de casal que nesse prédio foi construída uma casa de habitação com dinheiros provenientes da venda de um imóvel, bem próprio seu, para fazer valer a natureza de bem próprio daquela casa por via da sub-rogação indirecta, pode ser questionada tal natureza de bem próprio através de reclamação por falta de relacionação de bens comuns.

IV – Competirá então à cabeça de casal provar a alienação onerosa de bens próprios seus e a aplicação do preço assim conseguido nessa construção, exigindo a lei para o funcionamento da sub-rogação indirecta a menção da proveniência desses valores no documento que titula o negócio jurídico ao abrigo do qual teve lugar a construção e a intervenção de ambos os cônjuges nesse documento.

V – Inexistindo esta prova documental, os bens são havidos como comuns.

VI – A complexidade justificativa da abstenção de decisão do incidente da falta de relacionação de bens no inventário restringe-se à matéria de facto e não à questão de direito e pressupõe alegações de facto cuja demonstração assenta em indagações extensas e profundas incompatíveis com a sumariedade do incidente enxertado em processo de inventário.

VII – Assim, se os factos alegados forem simples e se não forem requeridas diligências de prova demoradas e controversas, não há qualquer inconveniente na decisão no processo de inventário, não se justificando a abstenção de decidir e a remessa dos interessados para os meios comuns.

VIII – Não usando o juiz desta faculdade de, abstendo-se de decidir, remeter os interessados para os meios comuns e ordenando o prosseguimento do incidente com produção de provas e decisão, sem que qualquer dos interessados contra isso reaja, não pode, uma vez decidido o incidente, a questão da conveniência da decisão da questão em sede incidental ser posteriormente suscitada em recurso.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


RELATÒRIO

No 2ª Juízo do Tribunal de Chaves corre termos um processo de inventário, subsequente a divórcio, para partilha dos bens comuns do casal que foi constituído, segundo o regime de comunhão de adquiridos, por AA e BB, desempenhando esta última as funções de cabeça de casal.

Nesse inventário foi relacionado, entre outros bens comuns, um prédio rústico, consignando a cabeça de casal na relação de bens que nesse prédio rústico foi construída uma casa de habitação, sendo o respectivo custo suportado integralmente pela cabeça de casal, com dinheiro proveniente da venda de um apartamento que já possuía quando contraiu casamento com o interessado AA.

Este, porém, reclamou contra a relação de bens apresentada e, concretamente, contra a omissão de relacionação do prédio urbano resultante da incorporação dessa casa de habitação no prédio comum,

Assim suscitado o incidente de falta de relacionação de bens, respondeu a cabeça de casal e, produzidas as provas oferecidas, foi proferida decisão, ordenando a relacionação do prédio urbano resultante dessa incorporação como bem comum.

A cabeça de casal apelou para a Relação do Porto mas não obteve êxito de causa; com efeito, apesar de haver alterado a matéria de facto, a Relação manteve a decisão proferida pela 1ª instância, no sentido da relacionação do bem como comum, fundamentalmente por falta de prova da natureza de bem próprio dos valores que custearam a obra de construção.

Novo recurso, desta feita de revista para este STJ, com vista à revogação do acórdão recorrido para que se decida não ser possível qualificar o resultado da obra (casa construída) - qualificado como benfeitoria - como bem comum e se remetam os interessados para os meios processuais comuns.

Rematou a recorrente a sua alegação com a seguinte síntese conclusiva:

A- No prédio rústico que constitui a verba n." 15 da relação de bens, prédio esse que constitui um bem comum do extinto casal, foi construída uma casa de habitação, cujo custo final orçou em cerca de € 50.000,00.
B- Na 1ª instância decidiu-se que essa casa constituía um bem comum do ex-casal, e, como tal, deveria ser relacionada, argumentando-se que a cabeça de casal não conseguiu demonstrar que a casa aqui em questão tenha sido edificada com dinheiro próprio seu.
C- O acórdão ora recorrido decidiu que esta casa constituía uma benfeitoria e, porque erigida num prédio rústico comum, a nova realidade assim surgida assumia igualmente e de modo automático a natureza de um bem comum.
D- Efetivamente, aquela construção urbana erigida num terreno rústico, que integra o património comum dos cônjuges, constitui uma mais-valia incorporada nesse terreno, fundindo-se num único prédio, sem possibilidade de autonomização, daí resultando uma nova realidade jurídico-económica, constituindo, por isso, uma benfeitoria.
E- Só que não é a circunstância da construção ser erigida num terreno do património comum dos cônjuges que transforma a nova realidade predial ipso facto num bem igualmente comum
F- Decorre linearmente dos arts. 1723º, al. a) e 1726º, nºs 1 e 2 C.Civil que a natureza comum ou própria desta nova individualidade (que assume a natureza urbana, atentos os valores do bem incorporado e do bem incorporante) dependerá de qual seja a parte mais valiosa das prestações -art. 1726º nº 1: bem comum, se a parte mais valiosa, ou seja, de valor mais elevado provier de rendimentos e/ou bens de ambos os cônjuges; de um deles, se essa parte mais valiosa resultar de rendimentos e/ou bens desse cônjuge.
G- Acresce que esta benfeitoria, porque inseparável do prédio incorporado, pode determinar a compensação pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele - ns 2 do art. 1726º  C.Civil.
H- Devendo ainda, por imperativo processual, ser relacionada como crédito ou débito do património comum -art. 1345º, nº 5 C.Pr.Civil anterior (o aqui aplicável a esta situação).
I- Como, na situação vertente, persiste a dúvida sobre a origem dos rendimentos e/ou bens com que foi construída a referida casa, também ficaria consequentemente por apurar o valor do crédito ou débito a incluir na relação de bens.
J- Ora, perante o teor da decisão proferida no acórdão recorrido não seria possível classificar a benfeitoria: se bem próprio de algum dos cônjuges, se bem comum; nem relacionar o crédito ou débito daí decorrente.
L- Para além de que, ainda face ao teor dessa mesma decisão, esta questão ficaria definitivamente prejudicada e sem possibilidade de poder vir a ser discutida ulteriormente, como decorre do estatuído no art. 1336º, nº 1 C.Pr.Civil.
M- Uma vez que a factualidade apurada não permite formular um juízo com suficiente grau de certeza sobre a proveniência do dinheiro que suportou o custo da construção da casa, ou seja, sobre a questão de saber se estamos perante um bem comum ou bem próprio do ex-cônjuge mulher, devem as partes ser remetidas para os meios comuns para aí poderem decidir, com todas as garantias, as complexas questões atinentes a este assunto.
N – Ao decidir nos termos em que o fez, incorreu o douto acórdão recorrido em erro de omissão, interpretação e/ou aplicação dos preceitos ínsitos nos arts 1722º, 1723º e 1726º C. Civil e 1345º C.Pr. Civil


Termos em que deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outra em que se decida:
- não ser possível, perante os factos apurados, qualificar a benfeitoria consistente na construção da casa como bem comum do casal;
- remeter os interessados para os meios comuns a fim de aí poderem decidir a questão da propriedade dessa benfeitoria,

Não foram apresentadas contra-alegações.


FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto:

Na Relação e na sequência da decisão sobre a impugnação da matéria de facto, foram considerados provados os seguintes factos:

1. Após a separação do ex-casal, a cabeça-de-casal levantou da conta comum do casal com o n.º … da C…, a quantia de €1.700,00 euros.

2. No prédio rústico descrito sob a verba n.º 15 foi construído um imóvel.

3. O custo final da obra ficou próximo dos €50.000,00.

4. O prédio rústico descrito como verba 15, onde foi edificado o imóvel, é bem comum do casal.

Expressamente foram considerados não provados os seguintes factos:

1. A cabeça-de-casal levantou o montante descrito nos factos provados com o acordo do interessado reclamante e este ficou com igual quantia para si em dinheiro.

2. O custo da casa edificada no prédio rústico descrito sob a verba n.º 15 foi suportado integralmente pela cabeça-de-casal com dinheiro proveniente da venda de um apartamento que possuía no concelho do Barreiro, que vendeu em Julho de 2001 pela quantia equivalente a €58.360,00 euros.

3. Para suportar parte dos custos da construção desse imóvel o ex-casal teve solicitar um empréstimo a uma entidade bancária.

Direito

Recordando o caso:

Num inventário para partilha dos bens de determinado casal sob o regime de comunhão de adquiridos, dissolvido por divórcio, a respectiva cabeça de casal relacionou, como bem comum, um prédio rústico mas consignou que nesse prédio rústico foi construída uma casa de habitação com dinheiros próprios dela na medida em que provenientes da alienação de um imóvel próprio dela por dele ser proprietária antes do casamento.

O outro ex-cônjuge reclamou contra tal relação, sustentando a natureza comum dessa construção.

E decidindo, a 1ª instância deferiu a reclamação e determinou a inclusão na relação de bens comuns do prédio urbano construído no prédio rústico.

Invocou, para tanto, que

“dos factos provados não resultou que a construção edificada num bem comum do casal o tenha sido com dinheiro próprio da cabeça de casal, pelo que também este imóvel deve ser integrado na relação de bens por se tratar de bem comum – artigo 1722º e 1723 a contrario e 1724º do C. C.”

A cabeça de casal apelou para a Relação, mas sem êxito, já que a decisão da 1ª instância foi confirmada.

Com efeito, depois de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, a 2ª instância, a propósito da questão de “saber se a construção edificada no terreno da verba n.º 15 deve ser excluída da relação de bens, por ser bem próprio da recorrente, mantida, ou se será caso de remeter os interessados para os meios processuais comuns, para aí discutirem e verem decidida a pertença ou a não pertença do bem em questão ao universo dos bens comuns do casal”, ponderou o seguinte:

“Uma casa construída num terreno que é bem comum do casal constitui uma benfeitoria feita nesse prédio, não perdendo o prédio, onde foi edificada a casa, a natureza de bem comum do casal, nem sendo possível autonomizar em duas verbas ou coisa jurídicas distintas o terreno, por um lado, e a construção nele erigida, por outro.

Para a totalidade do prédio (terreno e construção) serem propriedade da cabeça-de-casal seria necessário que esse direito, abarcando terreno e construção, tivesse sido gerado na sua esfera jurídica”.

E depois de rejeitar a aquisição pela cabeça de casal desse direito de propriedade sobre o prédio urbano (abrangendo, portanto, o prédio rústico (solo) e a construção nele incorporada) por acessão industrial imobiliária ou por qualquer outro mecanismo legal, continuou:

“Conclui-se, face ao exposto, no sentido de que a casa construída num terreno que integra os bens comuns do casal é uma benfeitoria executada nesse terreno, o qual não perdeu, por esse facto, a natureza de bem comum.

Sendo assim, se a recorrente utilizou dinheiro exclusivamente seu na edificação da benfeitoria, então esse dinheiro poderá constituir um crédito seu sobre o património comum, mas nada mais que isso.

Face ao exposto, verifica-se que o recurso improcede, não só na parte em que pretendia ver excluída a edificação da relação de bens, como na parte em que se pretendia que tal matéria fosse debatida nos meios processuais comuns.

Não se mostrando necessário analisar qualquer outra argumentação constante das alegações, designadamente a desenvolvida acerca do ónus da prova e do julgamento da matéria de facto”.

Agora, no presente recurso de revista, a cabeça de casal defende, já não a qualificação da construção como bem próprio dela, mas a impossibilidade de qualificação como bem comum do casal e a necessidade de remessa dos interessados para os meios comuns.

Isto porque decorre dos arts. 1723º, al. a) e 1726º, n2s 1 e 2 C.Civil que a natureza comum ou própria da nova individualidade criada com a construção no prédio rústico que é bem comum dependeria dos valores do bem incorporado e do bem incorporante, ou seja, de qual seja a parte mais valiosa das prestações.

Ora, a matéria de facto provada não legitima a posição defendida pela recorrente.

Com efeito, louvando-se no preceituado no art. 1726º nº1 CC, segundo o qual os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das prestações, não é possível, face à matéria de facto apurada, afirmar que a construção efectuada no terreno comum tivesse sido custeada com fundos próprios (ou provenientes da alienação de bens próprios) da recorrente.

Visa o preceito solucionar o problema da qualificação dos bens adquiridos na constância do matrimónio em parte com dinheiro ou bens próprios e em parte com dinheiro ou bens comuns.

Mas nada na matéria de facto apurada legitima a convocação de tal normativo para o nosso caso, desde logo porque – repetimos - se desconhece a proveniência dos fundos que custearam a construção.

E desconhece-se, desde logo, porque a recorrente não demonstrou o que alegara de que tal construção foi custeada com o valor obtido na venda de um imóvel que era bem próprio dela, alegação esta que fundamentou a pretensão inicialmente formulada de que tal construção seria bem próprio dela porque custeada com o valor obtido com a venda de um imóvel que era bem próprio dela (art. 1723º-c) CC).

Na verdade, no regime da comunhão de adquiridos, os bens adquiridos na constância do casamento com bens próprios de qualquer dos cônjuges consideram-se também próprios.

É o que decorre do art. 1723º do CC, segundo o qual conservam a qualidade de bens próprios, os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges, por meio de troca directa (al a), o preço dos bens próprios alienados (al b) e os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges (al c); por outras palavras, conservam a natureza de bens próprios os bens que resultaram da sub-rogação real directa (troca directa) ou indirecta (isto é, com intervenção de dinheiro ou valores próprios).

Segundo a recorrente, a construção (edifício) em solo comum seria um bem próprio dela porque, apesar de realizada na vigência do casamento, foi custeada com o preço obtido na venda de um bem próprio; logo, por via desta alínea c) do art. 1723º CC.

Mas para isso a lei exigia que a proveniência dos fundos fosse mencionada no documento de aquisição ou em documento equivalente com intervenção de ambos os cônjuges.

Quer dizer: a natureza própria de bens adquiridos na constância de casamento celebrado no regime de comunhão de adquiridos pressupõe um rasto de prova documental sobre a proveniência dos fundos que custaram essa aquisição.

E o certo é que, no caso, a recorrente para além de não ter comprovado documentalmente a alienação do imóvel que dizia ser exclusivamente seu, também não apresentou qualquer documento em cuja criação tivessem tido intervenção ambos os cônjuges e no qual fosse mencionada a referência à proveniência dos fundos.

Ignorando-se a proveniência dos fundos que custearam, total ou parcialmente, a construção do edifício no prédio rústico comum e inexistindo documento com intervenção de ambos os cônjuges que referenciasse esses fundos a bens próprios de qualquer deles, o bem não pode deixar de ser comum.

É que
“a falta de menção da proveniência do dinheiro ou valores com que a aquisição seja feita constitui presunção iuris et de iure de que estes meios são comuns não só para efeito de qualificação dos bens adquiridos mas também para o acerto das relações entre o património comum (seria este, em princípio, o devedor na hipótese em exame) e o património próprio de cada cônjuge” (cfr. Pires de Lima- A. Varela, Código Civil Anotado, vol IV, 2ª ed., p. 427).

Assim,
“os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só se consideram como bens próprios quando a proveniência do dinheiro ou valores seja referida no próprio documento da aquisição ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.
Só nesses termos a aquisição com bens próprios oferece prova bastante, aos olhos das leis (art 1723º,c)”.(cfr. Antunes Varela, Direito de Família, 4ª ed., p. 458).

E, tratando-se de uma obra (construção de um edifício) em solo comum, a menção da proveniência dos valores utilizados no pagamento de tal obra com a intervenção de ambos os cônjuges, poderia ser efectuada, por exemplo, no documento que titula o contrato de empreitada (cfr. Pires de Lima e A. Varela, ob e loc citado; Pereira Coelho – Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, 2ª ed., p. 516).

Por isso, se pode afirmar que uma casa “construída” em solo comum, na constância do casamento, é também um bem “adquirido” na vigência do matrimónio.

Assim,
“a menção da proveniência dos bens e a intervenção dos cônjuges são requisitos absolutos da qualificação dos bens adquiridos, na constância do casamento, como próprios de um dos cônjuges. Pelo que, a sua falta implica a qualificação de tais bens como bens comuns. Assim, a eventual produção de prova em contrário nunca poderá alterar a qualificação fixada. Vistas as coisas pela outra banda, a qualificação dos bens adquiridos, na constância do casamento, como bens próprios de um dos cônjuges resulta também definitivamente – não é, não pode ser alterada mesmo que se venha a provar a diferente origem dos bens utilizados – da menção da proveniência dos valores empregues e da intervenção de ambos no respectivo acto de aquisição” (cfr. Rita Lobo Xavier, Limites à autonomia provada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, Coimbra, 2000, p. 350. itálico nosso).

Faltando estes requisitos, o edifício construído no prédio rústico integrado na comunhão conjugal tem, necessariamente, que ser qualificado como bem comum e não como bem próprio de qualquer dos cônjuges (como in casu, reclamava a cabeça de casal).

É certo que há quem interprete diversamente esta exigência legal, restringindo-a à protecção de terceiros e admitindo, quando estiverem em causa, apenas os interesses dos cônjuges, qualquer meio de prova para demonstrar a sub-rogação (cfr. Ac. STJ de 13-07-2010, acessível através de http://www,dgsi.pt e acedido em 06-05-2014, de que foi Relator o Exº Cons. Gonçalo Silvano e que contém uma resenha doutrinal e jurisprudencial sobre esta questão).

Só que, no caso em apreço, para além da inexistência de prova documental (nem sequer foi apresentada) da alegada alienação de bem da recorrente, bem como da respectiva natureza própria, os meios de prova oferecidos pelos interessados (maximé, as testemunhas) fracassaram na demonstração dos factos relevantes.

Por conseguinte, sufragando qualquer das orientações, nunca poderia ser reconhecida qualquer sub-rogação.

 Questão diversa do objecto do presente recurso é a consequência da utilização de valores provenientes de bens próprios de qualquer dos cônjuges na aquisição (ou construção) de bens comuns, questão esta solucionável através dos direitos de crédito contra o património comum.

Mas o conhecimento desta questão, como decorre do exposto, encontra-se prejudicado, desde logo por falta de prova, quer da natureza de bem próprio do bem alienado, quer da própria alienação.

Assim sendo, a integração dessa construção na comunhão conjugal não merece qualquer censura.

Outra questão suscitada no presente recurso é a de saber se se justificava a abstenção de decisão e a remessa dos interessados para os meios comuns para dirimir a controvérsia sobre a natureza própria ou comum daquele bem.

Com efeito, o juiz deve abster-se de decidir a reclamação apresentada contra a relação de bens e remeter os interessados para os meios comuns “quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente nos termos do nº2 do artigo 1336º a decisão incidental das reclamações…” (art. 1350º nº1 CPC).

No caso concreto sub judicio, nenhuma complexidade se inferia, quer da reclamação, quer da resposta; não se questionava a natureza comum do prédio rústico mas apenas a da construção nele efectuada por a cabeça de casal alegar que tal construção teria sido custeada com dinheiros provenientes da venda de um imóvel seu (por o ter adquirido antes do casamento) e, logo, seria um bem próprio dela, por sub-rogação indirecta.

Todavia, como se disse, nem logrou provar a alegada venda do imóvel nem a proveniência dos fundos que custearam a construção.

Não vemos, portanto, quer na matéria de facto alegada, quer na que resultou provada, qualquer complexidade determinativa da inconveniência de decisão da questão no incidente próprio do processo de inventário.

Tal inconveniência deve resultar da complexidade e profundidade das indagações da matéria de facto – pois é a complexidade da questão de facto e não da questão de direito - e da necessidade de assegurar aos interessados a garantia dos seus direitos (vertente esta que nem sequer está em causa no recurso).

Ora, se em sede de dedução do incidente e da respectiva resposta, os factos alegados eram simples e a respectiva indagação dispensava diligências de prova profundas, dificilmente se poderá afirmar que a questão de facto e a respectiva decisão fossem “complexas”.

Mais: o reconhecimento da inconveniência de decidir a questão no próprio processo de inventário deve ter lugar na sequência da reclamação e das respostas e antes da produção de provas; é nesse momento que o tribunal deve ponderar essa inconveniência, porque é então que “a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas” e a dirimir se lhe apresenta, tornando “a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes” (art. 1336º nº2 ex vi do art. 1350º nº1 CPC); note-se, a lei fala em questão a dirimir e em inconveniência da decisão do incidente no inventário por implicar redução das garantias das partes, sendo certo que é, desde logo, no plano probatório que se asseguram as garantias das partes (designadamente pelas limitações de prova impostas nos incidentes – art. 304º nº1 CPC).

Não custa aceitar que o apuramento da sub-rogação de bens próprios seja susceptível de implicar complexidade e inconveniência de decisão em incidente.

Mas o certo é que na 1ª instância, não teve lugar tal ponderação e teve lugar a produção das provas no incidente sem que a ora recorrente suscitasse tal questão.

Quer dizer, a actuação do tribunal poderá configurar nulidade (art. 201º nº1 CPC), mas a mesma está tacitamente sanada por falta de tempestiva arguição (art. 205º nº1 e 2 CPC).

Daí a improcedência do recurso.

Concluindo:

I – No regime de comunhão de adquiridos, a regra de que os bens adquiridos na constância do casamento são comuns pode ser afastada, entre outros casos, demonstrando-se a sub-rogação indirecta nesses bens de bens próprios de qualquer dos cônjuges, desde que a proveniência dos bens e valores utilizados na aquisição seja mencionada no documento que titula o acto aquisitivo ou em documento com intervenção de ambos os cônjuges.

II – Inexistindo estes requisitos, o bem deve ser havido como comum.

III – Relacionando-se, num inventário de partilha subsequente a divórcio de casamento celebrado em comunhão de adquiridos, um prédio rústico como bem comum e consignando a cabeça de casal que nesse prédio foi construída uma casa de habitação com dinheiros provenientes da venda de um imóvel, bem próprio seu, para fazer valer a natureza de bem próprio daquela casa por via da sub-rogação indirecta, pode ser questionada tal natureza de bem próprio através de reclamação por falta de relacionação de bens comuns.

IV – Competirá então à cabeça de casal provar a alienação onerosa de bens próprios seus e a aplicação do preço assim conseguido nessa construção, exigindo a lei para o funcionamento da sub-rogação indirecta a menção da proveniência desses valores no documento que titula o negócio jurídico ao abrigo do qual teve lugar a construção e a intervenção de ambos os cônjuges nesse documento.

V – Inexistindo esta prova documental, os bens são havidos como comuns.

VI – A complexidade justificativa da abstenção de decisão do incidente da falta de relacionação de bens no inventário restringe-se à matéria de facto e não à questão de direito e pressupõe alegações de facto cuja demonstração assenta em indagações extensas e profundas incompatíveis com a sumariedade do incidente enxertado em processo de inventário.

VII – Assim, se os factos alegados forem simples e se não forem requeridas diligências de prova demoradas e controversas, não há qualquer inconveniente na decisão no processo de inventário, não se justificando a abstenção de decidir e a remessa dos interessados para os meios comuns.

VIII – Não usando o juiz desta faculdade de, abstendo-se de decidir, remeter os interessados para os meios comuns e ordenando o prosseguimento do incidente com produção de provas e decisão, sem que qualquer dos interessados contra isso reaja, não pode, uma vez decidido o incidente, a questão da conveniência da decisão da questão em sede incidental ser posteriormente suscitada em recurso.


ACÓRDÃO

Pelo exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa e STJ, 29-05-2014

Os Conselheiros


Fernando Bento (Relator)

João Trindade

Tavares de Paiva