Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
338/20.0T8ESP.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
DECISÕES CONTRADITÓRIAS
DIREITO À IMAGEM
DIREITO AO BOM NOME
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
PESSOA COLETIVA
TUTELA DA PERSONALIDADE
Data do Acordão: 09/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. — O recurso de revista de acórdãos proferidos pela Relação no âmbito de procedimentos cautelares só é admissível nos casos previstos no art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

II. — O art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil exige que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão anteriormente proferido pela Relação, denominado de acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito.

III. — A contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes em face das situações de facto consideradas.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA




I. — RELATÓRIO


1. Servilusa – Agências Funerárias, S.A., pessoa colectiva n.º 500...12, com sede na Rua ..., n.º ..., Edifício .... ..., ... veio, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 391.º ss. do Código de Processo Civil, intentar procedimento cautelar não especificado sem audição prévia do requerido contra AA, contribuinte número ..., residente na Rua …., em …, pedindo:

— que seja determinado, sem audição prévia do Requerido, que o mesmo se encontra impossibilitado de fazer declarações públicas, designadamente através de publicações (texto e imagem) na rede social Facebook ou em qualquer outra rede social de natureza semelhante, sobre a Requerente e o negócio celebrado entre o Requerido e a Requerente:

— que seja condenado o Requerido no pagamento da quantia de € 250,00 por cada publicação ou comentário que venha a fazer na rede social Facebook ou em qualquer outra rede social de natureza semelhante que denigra a imagem da Requerente, a título de sanção pecuniária compulsória.


2. Em 26 de Outubro de 2020 foi proferida sentença, por que se deferiu a providência cautelar requerida.


3. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância é do seguinte teor:

1º Determino que o requerido AA se abstenha de fazer declarações públicas, designadamente através de publicações (texto e imagem) na rede social Facebook ou em qualquer outra rede social de natureza semelhante, sobre o mesmo e a Requerente SERVILUSA – AGÊNCIAS FUNERÁRIAS, S.A e o negócio celebrado entre ambos.

2º Fixo a título de sanção pecuniária compulsória a pagar pelo requerido a quantia de € 250,00 [duzentos e cinquenta euros] por cada publicação ou comentário que venha a fazer na rede social Facebook ou em qualquer outra rede social de natureza semelhante que denigra a imagem da Requerente.


4. Inconformado, o Requerido AA interpôs recurso de apelação.


5. A Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A., contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.


6. O Tribunal da Relação …. julgou totalmente procedente o recurso de apelação e revogou a sentença recorrida.


7. Inconformada, a Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A., interpôs recurso de revista.


8. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.ª O presente procedimento cautelar teve em vista impossibilitar o Requerido de fazer declarações públicas em redes sociais que ofendam o direito ao bom nome da Requerente, relativamente ao negócio que as partes realizaram.

2.ª O Tribunal de primeira instância deu provimento ao pedido da Requerente, tendo determinado que o Requerido ficaria impossibilitado de “fazer declarações públicas, designadamente através de publicações (texto e imagem) na rede social Facebook ou em qualquer outrarede social de natureza semelhante, sobre o mesmo e a Requerente SERVILUSA –AGÊNCIAS FUNERÁRIAS, S.A e o negócio celebrado entre ambos”.

3.ª O Requerido, não concordando com a decisão, dela interpôs recurso de alegação para o Tribunal da Relação ……, que decidiu revogar a sentença.

4.ª No que respeita ao mérito da causa, o Tribunal da Relação …. entendeu que não se encontrava preenchido o requisito da possibilidade séria da existência do direito.

5.ª Com efeito, este Tribunal entendeu que a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade coletiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado.

6.ª No nosso entendimento, tal decisão é oposta àquela que foi proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com data de 27.04.2017, no âmbito do processo n.º 289/14.8T8FND.C1, relativamente à mesma questão fundamental de direito: como se pode materializar a lesão do direito à imagem e à honra de uma pessoa coletiva.

7.ª Nos termos da alínea d), do n-º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, cabe recurso da revista excecional do “acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”

8.ª Com efeito, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, com data de 27.04.20217 decidiu da seguinte maneira: “Quando se afirma que a afixação de um placard foi objeto de falatório, o que denegriu a imagem, a credibilidade e o prestígio da autora”, encontramo-nos ainda no âmbito da ofensa do bem jurídico, integrando a ilicitude do comportamento dos réus.”

9.ª Por outro lado, no acórdão recorrido decidiu-se nos seguintes termos: “Assim, resulta para nós que no caso presente o exercício pelo recorrente-requerido da liberdade de expressão através das duas publicações no facebook se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os aludidos critérios de ponderação e o referido princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra da recorrida-requerente.”

10.ª Resulta do confronto entre as duas decisões que ambas versam sobre a aplicação do mesmo instituto – direitos de personalidade da pessoa coletiva e violação, em concreto, do direito à imagem e honra da pessoa coletiva – e sobre a mesma questão fundamental de direito que é o que poderá ou não ser considerado como uma ofensa ao direito ao bom nome e imagem de uma pessoa coletiva e quais as condutas que constituem uma violação deste direito.

11.ª Por outro lado, entendemos que a questão em causa é fundamental para a tomada de decisão no seu todo.

12.ª As duas decisões que indicámos são, em si, contraditórias, pois caso no Acórdão recorrido se tivesse o mesmo entendimento plasmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.04.2017, sobre a questão fundamental de direito traduzida na forma como se pode materializar a violação do direito à imagem e à honra de pessoa coletiva, então teria necessariamente de se concluir que as condutas perpetradas pelo Requerido e dadas como indiciariamente provadas nos presentes autos, ainda que vagas e não concretamente imputadas à Requerente, consubstanciam uma violação do seu direito à imagem e bom nome.

13.ª Assim, estamos perante um motivo de admissibilidade de recurso de revista excecional, nos termos da alínea d), do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil.

14.ª No que respeita ao objeto do presente recurso, o Tribunal a quo considerou que não estava em causa uma violação do direito de imagem da Requerente atendendo a que as publicações feitas pelo Requerido consubstanciavam meros desabafos ou afirmações de juízos de valores não dirigidos a pessoa concreta.

15.ª Salvo melhor opinião, entende a Recorrente que a decisão tem por base uma errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 70.º do Código Civil e é contraditória no âmbito da mesma questão fundamental de direito com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 27.04.2017, no âmbito do processo n.º 289/14.8T8FND.C1.

16.ª Importa salientar que o Tribunal de primeira instância deu como indiciariamente provado que a publicação feita pelo Requerido em 26.06.2020 obteve, em 3 dias, 207 reações e 101 comentários (ponto 18.º da matéria de facto indiciariamente provada), que a publicação feita em 29.06.2020 é acompanhada por uma imagem de um cheque emitido pela Requerente (ponto 19.º da matéria de facto indiciariamente provada), que esta publicação recolheu, em apenas 3 horas, 81 reações e 37 comentários (ponto 27.º da matéria de facto indiciariamente provada) e, por último, que BB foi o consultor e intermediário no contrato de cessão de quotas (ponto 26.º da matéria de facto indiciariamente provada).

17.ª Por outro lado, no âmbito do acórdão fundamento de objeto do presente recurso, ficou dado como provado que os Requeridos/Réus proferiram, em forma escrita, acusações difusas e não dirigidas especificamente aos visados, mas num contexto que permitia a terceiros compreender a quem tais expressões são dirigidas.

18.ª Ora, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que essas ofensas, ainda que difusas e sem nomeação dos visados, consubstanciavam uma ofensa ao direito ao bom nome e imagem da pessoa coletiva a quem as mesmas eram dirigidas.

19.ª Ou seja, o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão fundamento, ao interpretar e aplicar o instituto dos direitos de personalidade das pessoas coletivas, na sua vertente de direito à imagem e bom nome, considerou que consubstanciava a materialização da sua lesão a simples afirmação pública, genérica e não concretamente identificada de factos dirigidos a uma determinada pessoa coletiva.

20.ª Por sua vez, o Tribunal a quo valorizou o facto de na referida publicação o Requerido não identificar a Requerente, esquecendo assim que foi dado como indiciariamente provado que essa identificação foi feita por publicação de dia 23.01.2020, publicação essa que obteve, em menos de 24 horas, 161 reações, 100 comentários e uma partilha (pontos 12.º e 13.º da matéria de facto dada como provada).

21.ª Sendo de salientar que o Requerido não tinha várias agências funerárias para vender, referindo-se sempre à Agência Funerária ….., adquirida pela Requerente, não sendo assim crível que mesmo o utilizador mais desatento que visse a publicação feita pelo Requerido em 26.06.2020 não soubesse que o mesmo se estava a referir à Requerente.

22.ª No nosso entendimento, na interpretação e aplicação do instituto dos direitos de personalidade da pessoa coletiva, ao materializar o conceito de lesão desse mesmo direito, devem ser consideradas como lesivas as afirmações públicas e genéricas, mesmo que sem identificação do visado.

23.ª Interpretação e aplicação essas consonantes com o decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão fundamento e completamente dissidentes da interpretação e aplicação deste mesmo instituto que foi feita no Acórdão recorrido.

24.ª Com efeito, o Tribunal de primeira instância considerou o seguinte: “Acresce referir que, tendo a requerente afirmado que são falsas as afirmações feitas pelo requerido, que sempre agiu em concordância com o contratado e que o requerido, convidado a exercer o contraditório, não o fez por forma a impugnar e demonstrar indiciariamente que as suas afirmações eram indiciariamente verdadeiras e que também dava publicidade de tais afirmações para fins legítimos não apenas com o objetivo de denegrir a imagem e bom nome da sociedade requerente.”

25.ª Deste trecho da decisão proferida em primeira instância resulta que ainda poderia admitir-se que estas afirmações fossem feitas caso o Requerido as pudesse reputar como verdadeiras e demonstrasse que as fazia de forma pública com vista a salvaguardar algum interesse legítimo, o que também não fez.

26.ª Ou seja, na interpretação do que deve considerar-se uma lesão do direito ao bom nome e imagem de uma pessoa coletiva, o Tribunal de primeira instância considerou que a divulgação de afirmações, quando o agente as possa reputar como verdadeiras, exclui a ilicitude da lesão

27.ª Como o Tribunal de primeira instância reconheceu, não é possível descortinar qual seria o interesse para proferir aquelas declarações numa rede social, em que os destinatários são apenas os amigos do Requerido e residentes em ……..

28.ª Por outro lado, tal como aconteceu no caso sujeito à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, as partes tinham outro diferendo judicial em curso entre si, o que significa que o Requerido apenas proferiu aquelas declarações para denegrir a imagem e o bom nome da Requerente junto do público.

29.ª O mesmo raciocínio aplica-se à publicação feita pelo Requerido em 29.06.2020.

30.ª Também quanto a esta publicação, o Tribunal a quo entendeu novamente que se tratava de um mero desabafo e que o Requerido não cita o nome da Requerente, esquecendo-se, mais uma vez, que esta publicação surge num encadeamento de publicações em que a Requerente já tinha sido perfeitamente identificada e que esta publicação foi acompanhada da imagem do já mencionado cheque da qual consta, de forma bem visível, o nome da Requerente com uma publicação da qual constam expressões claramente ofensivas.

31.ª Desta forma, conclui-se que esta publicação tinha como objetivo apenas e só denegrir o bom nome da Requerente, até porque, como se sabe, existia um diferendo em Tribunal.

32.ª Esta é, aliás, uma situação idêntica à que aconteceu no acórdão fundamento, em que também havia um diferendo judicial entre as partes e em que os Réus afixaram publicamente uma mensagem difusa não identificando o destinatário.

33.ª Ora, nesta situação, o Tribunal da Relação de Coimbra concluiu, ao contrário do Tribunal da Relação ….. que tal mensagem consubstanciava uma lesão ao direito à imagem e ao bom nome.

34.ª Significa isto que os dois Tribunais, perante a mesma questão fundamental de direito, decidiram de maneira completamente diferente.

35.ª O Tribunal a quo, quanto às duas publicações, entende que, nos termos do disposto no artigo 236.º do Código Civil, um declaratário normal não poderia entender as mesmas como lesivas da imagem e bom nome da Requerente.

36.ª O que é até contraditório com a matéria de facto dada como indiciariamente provada que sob o ponto 27.º, estabeleceu que as publicações do Requerido foram comentadas por pessoas dizendo que aquelas questões não deveriam ser expostas nas redes sociais e, bem assim, sob o ponto 28.º, ficou ainda provado que foram feitos comentários indicando que o Requerido não tinha negociado com gente séria, o que se consubstancia num reconhecimento claro e inequívoco de que os leitores daquelas publicações entenderam perfeitamente como as mesmas atentaram ao bom nome e à honra da Requerente.

37.ª Nestes termos, impõe-se a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por outro que reponha a decisão proferida em primeira instância, em consonância com a interpretação que foi feita pelo Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão fundamento.

38.ª Relativamente ao e-mail enviado ao Dr. BB, o Tribunal a quo entendeu que estaria em causa uma imputação descontextualizada e, por isso, insuscetível de ofender o bom nome da Requerente.

39.ª No entanto, esta decisão desconsidera que o Tribunal de primeira instância deu como indiciariamente provado, sob o ponto 26.º, que o Dr. BB foi consultor e intermediário no contrato de cessão de quotas celebrado entre a Requerente e o Requerido e, por isso, seria-lhe assim perfeitamente identificável quem seriam os “ladrões, vigaristas e escumalha” a que o Requerido se referia.

40.ª E este tipo de comentários, absolutamente desacompanhados de qualquer pedido de explicações, por parte do Requerido, a quem até os poderia fornecer porque intermediou o negócio, é ilustrativo da intenção do Requerido de simplesmente denegrir a imagem e bom nome da Requerente e aqui Recorrente.

41.ª Pelo que o Tribunal da Relação ….., no Acórdão recorrido, fez uma interpretação e aplicação do instituto do direito de personalidade da pessoa coletiva, designadamente no que concerne à questão de saber como se materializa uma violação ou lesão do direito à imagem ou bom nome, absolutamente oposta à que foi feita no Acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra

42.ª Devendo, por essa razão, e em consonância com o Acórdão fundamento, ser revogado o Acórdão recorrido e substituído por outro que reconheça que o Requerido ofendeu o direito à imagem e bom nome da Requerente e que deverá abster-se de fazer mais publicações em qualquer rede social a propósito do negócio celebrado entre ambas as partes.

Termos em que a douta decisão recorrida não deverá manter-se, devendo o presente recurso merecer integral provimento, alterando-se a decisão proferida em matéria de facto e de Direito e substituindo-se por outra que considere o presente incidente procedente e, consequentemente, declare a insolvência como culposa, só assim se fazendo inteira JUSTIÇA!!


9. O Requerido AA não contra-alegou.


10. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir, in casu, é tão-só a de determinar se estão preenchidos os pressupostos do decretamento da providência cautelar requerida.


II. — FUNDAMENTAÇÃO


      OS FACTOS


11. O acórdão recorrido deu como indiciariamente provados os factos seguintes:

1º - A Requerente é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de agência funerária, com implementação no mercado português há cerca de 20 anos.

2º-O Requerido era titular do capital social da sociedade AGÊNCIA FUNERÁRIA N…….., LDA., pessoa coletiva com o número …., com sede e estabelecimento em ….., sendo uma das duas únicas agências funerárias existentes nesta cidade.

3º - Por contrato de cessão de quotas celebrado entre a Requerente, por um lado, e o Requerido, por outro lado, em 31/10/2018, este transmitiu à Requerente a integralidade do capital social da mencionada sociedade.

4º - O mencionado contrato previa que o preço a pagar pela cessão de quotas seria composto por uma parte fixa e uma parte variável, consoante os resultados que a sociedade vendida viesse a apresentar.

5º - Mais se previa, na Cláusula Sétima do contrato outorgado, uma obrigação de não concorrência por parte do Requerido por um período de 5 anos.

6º - Em complemento desta obrigação de não concorrência, foi estabelecida uma obrigação de permanência do Requerido pelo prazo de 3 (três) anos, obrigação esta definida e concretizada no contrato de consultoria celebrado entre as partes, onde foi estabelecida entre as partes uma relação de colaboração comercial mútua, que decorreu de forma tranquila e pacífica até agosto do ano passado.

7º - Nessa altura, o Requerido começou a suscitar questões referentes aos pagamentos que foram efetuados e retidos pela Requerente em cumprimento do contrato de cessão de quotas, inclusivamente devolvendo pagamentos que lhe foram feitos pela Requerente no âmbito do contrato de consultoria.

8º - Não obstante as diversas explicações que lhe foram transmitidas, o Requerido reportou a diversos colaboradores da Servilusa que achava que estava a ser enganado.

9º - O requerido enviou à requerente e-mails ameaçando com ações judiciais e participações criminais.

10º - A queixa crime cuja minuta foi enviada à Requerente em anexo ao email de 18 de janeiro de 2020, deu efetivamente entrada no Departamento de Investigação e Ação Penal ……, tendo dado origem ao processo nº 1206/20……, a correr termos na ….. Secção.

11º - Os juízos, imputações e acusações do Requerido contra a Servilusa, alegando ter sido enganado, passaram a ser por si difundidas junto do público em geral no mês de janeiro.

12º-Nomeadamente no passado dia 23/01/2020, o Requerido fez uma publicação na sua página pessoal da rede social Facebook, com o seguinte teor:

“Sirvo-me deste meio para informar que já nada me liga à Funerária N….. (SERVIILUSA). A Servilusa não passa de uma associação criminosa! Se assim entender, e para justificar as minhas palavras, lançarei aqui certos documentos, que já se encontram na posse do Ministério Público! Perdoe-se-me o excesso de linguagem!”.

13º - Não obstante o perfil do Requerido ser privado, a mencionada publicação, menos de 24 horas após ter sido colocada na mencionada rede social, contava já com 161 reações, 100 comentários e uma partilha.

14º - Ao tomar conhecimento desta publicação, a Requerente apresentou de imediato procedimento cautelar contra o Requerido pedindo que fosse determinado que o mesmo se encontrava impossibilitado de proferir outros comentários semelhantes ao que havia publicado.

15º - Requerimento que deu origem ao procedimento cautelar nº 57/20……, o qual veio a ser considerado improcedente por o Tribunal ter entendido que inexistia periculum in mora por se tratar de uma situação isolada.

16º - A mencionada publicação acabou por não ser um caso isolado, tendo o Requerido persistido na publicação de comentários depreciativos da honra e do bom nome da Requerente e dos seus responsáveis naquela rede social, numa conta que, apesar de privada, tem um enorme alcance já que o Requerido é bastante conhecido na cidade ……, nomeadamente:

17º - No passado dia 26 de junho, o Requerido fez nova publicação no Facebook, com o seguinte teor:

“Em tom de desabafo: porque a Agência Funerária …., que eu criei com tanto amor, me foi tomada de assalto, bastaria que a justiça fosse célere para que já estivesse fechada a cadeado e as suas linhas telefônicas desativadas. É desumano!”.

18º - A mencionada publicação, cerca de 3 dias após ter sido feita, contava com 207 reações e 101 comentários

19º - Três dias após a mencionada publicação, o Requerido fez nova publicação, desta vez acompanhada de uma fotografia, sendo que, nessa mesma publicação podia ler-se o seguinte:

“Eis o mote da discórdia! Este cheque, tal como consta do contrato de cessão de quotas, tinha de ser depositado numa conta da Agência Funerária N……, pois o mesmo visava regularizar o caixa (que, premeditadamente, foi empolado!) Agora, e tendo em conta as diligências levadas a cabo pelo Ministério Público, sabe-se que o cheque não foi depositado numa conta da Agência Funerária N……, que fui burlado! Acresce (pasmem-se) que para o Ministério Público, este cheque teria que ter dado entrada na minha esfera patrimonial, pois o mesmo serviria para pagar a Agência Funerária N.……, que era só minha!

Mas há mais maroscas!

Muito gostaria de ter cumprido com o prazo de exclusividade, pois fui sempre escravo da minha palavra, mas para tal impunha-se honestidade!

Acreditei que ao vender, passaria a ter vida própria, pois a minha liberdade, derivado à minha profissão, foi sempre muito condicionada e que sempre me iria reformar a trabalhar para a Agência Funerária  N……., mas estava enganado! Estragaram a minha vida!

Só Deus sabe o quanto me custa expor-me desta forma, pois vais literalmente contra os meus princípios!”.

20º - A referida publicação é acompanhada de uma imagem do cheque emitido pela ora Requerente, em cumprimento do acordado no contrato de cessão de quotas, constando da imagem do cheque a identificação do número de conta da Requerente junto do Banco BPI, e, bem assim, as assinaturas dos seus dois procuradores, que por esta forma foram publicitadas.

21º - Foi o próprio Requerido que alertou a Requerente, no momento da aquisição, de que haveria uma falha de caixa na sociedade Agência Funerária N……, e que o mesmo sabe que lhe foi explicado que contabilisticamente o cheque a que alude não tinha que ser depositado na conta da Agência Funerária N……. em face da posterior fusão, por incorporação, desta na Requerente.

22º - Sabe o requerido que o Ministério Público não fez (nem podia fazer pois o processo encontra-se a correr os seus termos), qualquer afirmação no sentido de que o Requerido havia sido enganado pela Requerente ou que o cheque deveria ter sido incorporado no património do Requerido, sendo que até ao presente não foi deduzida pelo Ministério Público proferido despacho final.

23º - A queixa crime referida em 10º, para além de ser sido deduzida contra Requerente, foi também deduzida contra o Senhor Dr. CC, Diretor Financeiro da Requerente.

24º - O Requerido e a própria Requerente e os seus responsáveis ainda não foram ouvidos no referido inquérito.

25º - A publicação referida em 19 recolheu 81 reações e 37 comentários em cerca de apenas 3 horas após a publicação.

26º - No passado dia 21 de julho, o Requerido dirigiu uma mensagem de correio eletrónico a BB, que foi consultor e intermediário no contrato de cessão de quotas celebrado com a Requerida, com o seguinte teor:

“O dr BB pecou por não me ter dito que eu estava a lidar com os melhores ladrões com vigaristas e com a mais pura escumalha que existe à superfície da terra. Os senhores estragaram a minha vida. Malditos.”.

27º - Alguns dos comentários às publicações descritas em 17º e 19º aconselhavam o Requerido a não expor estas situações nas redes sociais, num reconhecimento de que se tratam de elementos que não podem ser divulgados, a não ser nos meios judiciais

28º-Mas também comentários afirmando que o Requerido não terá negociado com gente séria.


12. Em complemento dos factos transcritos, o acórdão recorrido deu como indiciariamente provados, “com fundamento nos elementos constantes do processo nº 57/20……”, os factos seguintes:

1. No dia 3 de Fevereiro de 2020 a ora recorrida e aí requerente instaurou providência cautelar não especificada contra AA, peticionando que seja determinado que o mesmo se encontra impossibilitado de fazer declarações públicas – seja de viva voz ou através de meios de publicidade ou de redes sociais – sobre a requerente, designadamente comunicações depreciativas sobre a conduta ética e profissional da requerente; e, bem assim, a condenação do requerido no pagamento da quantia de € 250,00, por cada publicação ou comentário que venha a fazer na rede social facebook que denigra a imagem da requerente a titulo de sanção pecuniária compulsória.

Para tanto, alegou, em síntese, que é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de agencia funerária com implementação no mercado português há cerca de 20 anos, e que o requerido, tendo sido titular de capital social da sociedade, cedeu as suas quotas em 31.10.2018, tendo previsto o referido contrato que o preço a pagar pela cessão de quotas seria composto por uma parte fixa e uma parte variável, consoante os resultados que a sociedade vendida viesse a apresentar, e bem assim, um acordo de obrigação de não concorrência.

Alegou que em 23.01.2020 o requerido fez uma publicação na sua página pessoal da rede social Facebook, a qual gerou uma sucessão de reações que denigrem o bom nome e imagem da requerente, lesando o seu direito a esse mesmo bom nome e à sua imagem. Entende, pois, que o requerido deve ser proibido de tecer tais comentários sobre pena de a requerente sofrer elevados prejuízos, pois que só existem duas funerárias na cidade ……, sendo imprescindível manter uma boa imagem que obste a um desvio de clientela para a outra agência, direta concorrente, o que, a acontecer poderá levar a um manifesto rombo nos proveitos da requerente.

Juntou prova documental e arrolou testemunhas.

Pediu ainda que fosse decretada a providência sem audição prévia do requerido, o que foi indeferido por despacho proferido a 04.02.2020.

2. Devidamente citado, o requerido não deduziu oposição.

3. Nesses autos de providência cautelar não especificada foram julgados indiciariamente provados, com fundamento na falta de contestação do requerido, os seguintes fatos:

1. A Requerente SERVILUSA – Agências Funerárias SA, é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de agência funerária, com implementação no mercado português há cerca de 20 anos.

2. O Requerido era titular do capital social da sociedade AGÊNCIA FUNERÁRIAN….., pessoa coletiva com o número .......

3. Sociedade com sede e estabelecimento em ….., sendo uma das duas únicas agências funerárias existentes nesta cidade.

4. Por contrato de cessão de quotas celebrado, em 31.10.2018, entre a Requerente e o Requerido, este transmitiu à Requerente a integralidade do capital social da mencionada sociedade.

5. O contrato de cessão de quotas referido em 4. previa que o preço a pagar pela cessão de quotas seria composto por uma parte fixa e uma parte variável, consoante os resultados que a sociedade vendida viesse a apresentar.

6. Mais se previa, na Cláusula Sétima do contrato outorgado, uma obrigação de não concorrência por parte do Requerido por um período de 5 anos, assim como, na Cláusula Oitava do mencionado contrato, foi estabelecida uma obrigação de permanência do Requerido pelo prazo de 3 (três) anos, obrigação esta definida e concretizada no contrato de consultoria celebrado entre as partes.

7. A partir de agosto de 2019 o requerido começou a suscitar questões referentes aos pagamentos que foram efetuados e retidos pela Requerente em cumprimento do contrato de cessão de quotas.

8. Inclusivamente devolvendo pagamentos que lhe foram feitos pela Requerente no âmbito do contrato de consultoria.

9. E, não obstante as diversas explicações que lhe foram transmitidas, reportou a diversos colaboradores da Servilusa que achava que estava a ser enganado.

10. Tendo inclusivamente enviado e-mails declarando o seu descontentamento e referido que iria propor ações judiciais e participações criminais.

11. Sendo certo que a queixa crime cuja minuta foi enviada à Requerente em anexo ao email de 18 de janeiro de 2020, já deu entrada no Departamento de Investigação e Ação Penal ……, tendo dado origem ao processo n.º 1206/20……, a correr termos na …...ª Secção.

12. No dia 23.01.2020, o Requerido fez uma publicação na sua página pessoal da rede social Facebook, com o seguinte teor:

“Sirvo-me deste meio para informar que já nada me liga à Funerária N…. (SERVIILUSA). A Servilusa não passa de uma associação criminosa! Se assim entender, e para justificar as minhas palavras, lançarei aqui certos documentos, que já se encontram na posse do Ministério Público! Perdoe-se-me o excesso de linguagem!.”.

13. O perfil do Requerido é privado.

14. A publicação referida em 12., menos de 24 horas após ter sido colocada na rede social, contava já com 161 reações, 100 comentários e uma partilha.

15. Tendo sido objeto de comentários como:

- “Estou admirado! O meu amigo não merece o mal que pelos vistos de que foi alvo…”;

- “Abraço AA. Tudo se vai resolver. O seu bom nome e profissionalismo não o vão abandonar. Força.”;

- “Há muito que tinha um ‘bad feeling’sobre a idoneidade dessa empresa por outros casos de que ouvi falar casualmente. Foi uma lástima o amigo ter sido pelos vistos, mais uma ‘vítima’. Que se faça justiça e força para um novo projecto. Grande abraço.”;

-“Então andaste a vender roeram a corda”;

- “Algo de grave se terá passado. O AA homem sensato e sério pode estar tranquilo pois as pessoas que o conhecem vão poder continuar a contar com ele. Dos fracos não reza a história.”;

-“Boa noite AA força vá enfrente os seus clientes estarão com sigo! O meu irmão faleceu e fomos bem explorados por essa empresa a nossa s.da ajuda vai ajudar vos muita força bjs

16. O requerido respondeu aos comentários, afirmando que: “Só Deus sabe o quanto me custa expor-me desta forma, pois busquei sempre a discrição, todavia senti que tinha de agir que tinha de fazer algo, não só pela fraude que o negócio da venda da funerária, mas também pelo quão destratado fui!”.

17. Revela-se imprescindível manter uma boa imagem que obste a um desvio de clientela para a outra agência, direta concorrente, desvio esse que, considerando o público alvo e a área geográfica que o mesmo abrange – apenas o concelho …. – pode levar a um manifesto rombo nos proveitos da Funerária N…….., adquirida pela Requerente.

Consigna-se que não se dá resposta ao demais alegado por ser irrelevante e/ou consubstanciar matéria de direito e/ou conclusiva.

4. Nesses autos foi proferida sentença cujo teor se reproduz:

Em face do exposto, por não se verificarem os respetivos pressupostos legais, julga-se improcedente a presente providência cautelar comum intentada por SERVILUSA – Agências Funerárias SA contra AA.

5. Em sede de fundamentos jurídicos, no essencial, o tribunal entendeu:

“Ora, salvo devido respeito por opinião contrária, o pedido formulado nos autos é vago e impreciso, na medida em que proibir-se de fazer declarações públicas – seja de viva voz, ou através de meios de publicidade ou redes sociais, sobre a requerente, designadamente comunicações depreciativas sobre a conduta ética e profissional da requerente, é manifestamente indefinido, desconhecendo-se o que poderá caber, em concreto, dentro de tal pedido, sendo um conceito indeterminado e suscetível de várias interpretações.

Em segundo lugar, afigura-se-nos que inexiste perigo in mora porquanto compulsados os factos dados como suficientemente indiciados resulta que o requerido apenas fez (1) uma única publicação de no seu facebook, (2) numa conta que é privada e não pública e ainda (3) que não foi, em última instância tal publicação que causou ou pode causar prejuízo à requerente na medida em que, compulsadas as alegadas reações que tal publicação teve, nas mesmas já resultava opiniões que a requerente pretende evitar, mormente, “Há muito que tinha um ‘bad feeling’sobre a idoneidade dessa empresa por outros casos de que ouvi falar casualmente. Foi uma lástima o amigo ter sido pelos vistos, mais uma ‘vítima’, (…)”, e, “Boa noite AA força vá enfrente os seus clientes estarão com sigo! O meu irmão faleceu e fomos bem explorados por essa empresa a nossa s.da ajuda vai ajudar vos muita força bjs”.

Ou seja, não é por ter feito uma única publicação no seu facebook, numa conta que não é pública, que não se pode concluir que o requerido manterá igual conduta, tanto mais que até já o poderia ter feito anteriormente, (a relação terá começado a deteriorar-se há já mais de meio ano, (cfr. facto alegado no artigo 9.º da petição inicial)) e não o fez.

Mais, a única publicação que fez, não se tratou de uma pura e gratuita “depreciação da imagem da requerente”, antes pelo contrário, insere-se numa publicação em que o próprio requerido se visa proteger do que o julga ser uma má imagem para si, na medida em que começa por afirmar que a publicação serve para informar que já nada o liga à requerente, e é nesse contexto que profere a única expressão que poderá afetar a requerente.

É, ainda, de referir, que o próprio requerido já intentou a respetiva queixa crime, tendo dado origem ao processo n.º 1206/20……, a correr termos na ….ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal …...

Em terceiro e último lugar, julgar procedente a presente providencia cautelar, tal como pretendido pela requerente seria limitar, de forma injustificada e ilegal a liberdade de expressão, constitucionalmente consagrada.

Na verdade, não se olvida, como se disse, que as pessoas coletivas têm direito á honra e ao bom nome.

Sucede, porém, que existe igualmente o direito à liberdade de expressão, opinião.

Sobre tais questões, foram já vários os arestos dos tribunais superiores que se pronunciaram. (…)

E, nesta busca de realização de uma satisfatória concordância prática entre os direitos, atenta a matéria de facto apurada, verifica-se que o exercício da liberdade de expressão se conteve dentro dos limites que se devem ter por admissíveis numa sociedade democrática hodierna, aberta e plural, atentos os aludidos critérios de ponderação e o referido princípio da proporcionalidade, o que exclui a ilicitude da lesão da honra do requerente, tanto mais que o requerido, apenas fez uma única pública; limitou-a ao seu facebook que é uma conta privada; e ainda apresentou a respetiva queixa crime contra a requerente, pelos factos que publicitou, não resultando que tal facto isolado qualquer perigo concreto de que o volte a fazer e em que termos.

Mais, a única ameaça que fez aos funcionários da requerente é que irá apresentar as respetivas queixas/processos e não que continuará a fazer publicações.

Ou seja, não se verifica ser legalmente admissível a limitação do direito de expressão do requerido, nos termos requeridos e conforme supra explanamos.

A providência cautelar é assim, julgada improcedente.”


   O DIREITO


13. A questão da admissibilidade do recurso é uma questão prévia.


14. O art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.


15. O art. 671.º, n.º 1, é correntemente interpretado no sentido de que “o âmbito do recurso de revista […] não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares” [1] — e, ainda que o art. 671.º, n.º 1, não fosse correntemente interpretado no sentido de que o âmbito do recurso de revista não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito de procedimentos cautelares, sempre a admissibilidade do recurso deveria confrontar-se com o art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cujo teor é o seguinte:

“Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”[2].


16. Os casos em que o recurso é sempre admissível encontram-se no art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil:

“Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;

b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;

c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.


17. A Requerente, agora Recorrente, Servilusa – Agências Funerárias, S.A., invoca como fundamento específico de recurso o art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.


18. Esclarecido que o motivo por que não cabe recurso ordinário é o art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e, por consequência, é um motivo estranho à alçada do tribunal recorrido, o art. 629.º, n.º 2, alínea d), decompõe o fundamento da recorribilidade em três requisitos: que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão anteriormente proferido pela Relação, denominado de acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; e que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito[3].


19. A Requerente, agora Recorrente, Servilusa – Agências Funerárias, S.A., alega que há uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 27 de Abril de 2017 — processo n.º 289/14.8T8FND.C1 — quanto à seguinte questão fundamental de direito — “se a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade coletiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado” [cf. conclusões 5.ª e 6.ª das alegações de recurso].


20. A contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes em face das situações de facto consideradas.


21. Em sumário do acórdão do STJ de 20 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 7382/07.1TBVNG.P1.S1, diz-se que “a oposição de acórdãos, quanto à mesma questão fundamental de direito, verifica-se quando, perante uma idêntica situação de facto, a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos”, e em sumário do acórdão do STJ de 2 de Março de 2017, proferido no processo n.º 488/14.2TVPRT-B.P1.S1, diz-se que

“A oposição de dois acórdãos da Relação sobre a mesma questão fundamental de direito verifica-se quando o essencial da situação de facto, à luz da norma aplicável, é idêntico nos dois acórdãos”.


22. Entre as situações de facto subjacentes ao acórdão fundamento e ao acórdão recorrido há diferenças fundamentais: — no acórdão fundamento, estava em causa o bom nome de uma sociedade comercial que tinha por objecto a actividade de construção civil e de comercialização de construções; — os Requeridos afixaram na varanda do 1º andar da moradia que compraram à Autora, virado para a via pública, um placar com cerca de 1,30 mt. de largura e 0,90 mt. de altura, pintado de branco, com os seguintes dizeres escritos a preto: “Humidade / Paredes Rachadas / Pinturas Deficientes / Garantia = ZERO” [cf. facto dado como indiciariamente provado sob o n.º 7]; — no acórdão recorrido, está em causa o bom nome de uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade de uma agência funerária; — o Requerido fez duas publicações na sua página pessoal da rede social Facebook, em 23 de Janeiro e em 26 de Junho de 2020, cujo perfil é privado [cf. factos dados como indiciariamente provados sob os n.ºs 12, 17 e 19], e enviou uma mensagem de correio electrónico ao consultor e intermediário no contrato de cessão de quotas celebrado com a Requerente [cf. facto dado como indiciariamente provado sob o n.º 26].


23. Ora, a afixação de um placard numa varanda é uma afirmação pública, apta para atingir um conjunto indeterminado de pessoas, logo um conjunto consideravelmente maior que uma publicação numa página pessoal da rede Facebook, cujo perfil seja privado.

Independentemente do seu maior ou menor grau de publicidade, a afixação de um placard relativo aos defeitos de construção de um edifício e tenderá a tornar mais fácil a identificação da pessoa colectiva visada — só poderá ser a construtora —, dispensando as “imputações directas e concretas”.


24. Em todo o caso, ainda que porventura estivesse preenchido o requisito da semelhança das situações de facto, não estaria preenchido o requisito da dissemelhança entre os resultados da interpretação e/ou da integração das disposições legais relevantes.


25. O acórdão recorrido não afirma, em abstracto, que “a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade colectiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”.


 26. Em contraste com uma afirmação em abstracto, o Tribunal da Relação ……. começa por afirmar o princípio de que a decisão deve decorrer de uma ponderação e de uma valoração globais dos direitos e dos interesses conflituantes da Requerente e do Requerido, para chegar à conclusão de que “as excepções ao direito de liberdade de expressão — consagrado no artigo 10.º, n.º 1 do CEDH — têm de ser interpretadas muito restritamente e sempre atendendo à existência de uma ‘necessidade social imperiosa’” e de que, “recorrendo às regras da experiência, neste momento não se vislumbra no caso a ‘necessidade social imperiosa’ a que se refere o TEDH, justificativa da derrogação da liberdade de expressão”.


27. O facto de o Requerido AA não identificar expressamente a Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A., nem nas publicações na sua página pessoal da rede social Facebook de 26 e de 29 de Junho de 2020 nem no e-mail de 21 de Julho de 2020, relevaria por significar que as afirmações feitas não podem ou não devem, sem mais, interpretar-se como referidas  à Requerente, e só por significar que as afirmações feitas não podem ou não devem, sem mais, interpretar-se como referidas à Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A. — não relevaria no sentido de excluir, automática e necessariamente, a lesão do bom nome ou do crédito da Requerente.


28. Em lugar da afirmação de que, em abstracto, “a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade coletiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”, o acórdão recorrido contém, tão-só, a afirmação de que, em concreto, a ausência de imputações directas e concretas, ou de uma identificação expressa do visado, contribui para que o resultado de uma ponderação e de uma valoração globais seja no sentido de dar prioridade à liberdade de expressão do Requerido.


29. Finalmente, o Supremo Tribunal de Justiça tem exigido, constantemente, que a questão, sobre que a contradição recai, seja uma questão fundamental ou essencial para a decisão do caso[4]:

“A contradição de julgados relevante para a aplicação do art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil […]”, diz-se, p. ex., em acórdão de 2 de Maio de 2019, “tem de referir-se a questões que se tenham revelado essenciais para a sorte do litígio em ambos os processos, desinteressando para o efeito questões marginais ou que respeitem a argumentos sem valor determinante para a decisão emitida”.


30. Ora, ainda que houvesse alguma contradição entre o acórdão recorrido e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de Abril de 2017 — processo n.º 289/14.8T8FND.C1 — quanto à questão fundamental de direito concretizada em averiguar “se a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade colectiva, pressupõe a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”, a questão não seria essencial ou fundamental para a decisão do caso.


31. O acórdão recorrido alega expressamente que, ainda que as afirmações feitas nas publicações de 26 e de 29 de Junho de 2020 ou no e-mail de 21 de Julho de 2020 pudessem e devessem interpretar-se como referidas à Requerente Servilusa – Agências Funerárias, S.A., não estaria provado um perigo concreto de que o Requerido AA praticasse no futuro comportamentos lesivos do bom nome ou do crédito da Requerente:

“… ainda que objectivamente, o uso dessas palavras [contidas no e-mail de 21 de Julho de 2020] possa ser considerado ofensivo da honra e da consideração devidas à requerente-recorrida, no pressuposto do recorrente se referir à requerente-recorrida, independentemente da veracidade dos fatos nos quais se sustenta esse uso, certo é que no caso dos autos, não resulta em termos indiciários que tal facto isolado constitua qualquer perigo concreto de que o recorrente vai repetir essa conduta e em que termos. […]

Apesar de a mensagem privada de 21/07/2020 poder ser difamatória da imagem da requerente atento o uso de termos ofensivos, não é causal da proibição pretendida por não faz supor que possa vir a existir igual atuação em termos públicos e nos meios sociais”.


Em coerência, o acórdão recorrido conclui que, ainda que “a violação do direito à imagem, enquanto direito de personalidade colectiva, não pressuponha a necessidade de imputações diretas e concretas com identificação expressa do visado”, sempre a providência cautelar requerida pela Servilusa – Agências Funerárias, S.A., deveria ser indeferida.


32. O facto de não estarem preenchidos os pressupostos do art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil determina que do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação …… não caiba recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cf. art. 370.º, n.º 2, em ligação com o art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).


III. — DECISÃO


   Face ao exposto, não se toma conhecimento do objecto do presente recurso.

    Custas pela Recorrente Servilusa – Agências Funerárias, S.A.



Lisboa, 14 de Setembro de 2021


Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

     Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.

_________

[1] Cf. António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 370.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 434-436 (435).

[2] Sobre a interpretação do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, vide por todos António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 370.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), cit., pág. 435, ou José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 370.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 361.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 48-51 (50).

[3] Como se diz, p. ex., no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2015 — processo n.º 9088/05.7TBMTS.P1.S1 —, “[só ocorre] oposição relevante, para efeitos de admissibilidade de revista com o fundamento específico previsto no art.º 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil, quando a mesma questão de direito fundamental sobre idêntico núcleo factual tenha sido objecto de análise interpretativa desenvolvida do segmento normativo convocado pelo acórdão-fundamento e, suscitada pelas partes noutro processo, tenha sido decidida em sentido contrário pelo acórdão recorrido, ainda que mediante aplicação quase tabelar do mesmo normativo”.

[4] Cf. designadamente os acórdãos do STJ de 7 de Março de 2017 — processo n.º 1512/07.0TBLSD.P2.S1 — e de 2 de Maio de 2019 — processo n.º 1650/06.7TBLLE.E2.S1.