Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DO REGO | ||
Descritores: | ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO USUCAPIÃO POSSE NÃO TITULADA POSSE DE MÁ FÉ INTERRUPÇÃO DO PRAZO NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA | ||
Data do Acordão: | 10/27/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Sumário : | 1. Deve qualificar-se como de boa fé, apesar de não titulada, a posse consubstanciada na habitação e reiterado uso de certa edificação, quando as instâncias consideraram provado que os actos de ocupação foram praticados na convicção de que não ocorria prejuízo dos direitos de terceiros, num caso cujas circunstâncias concretas revelam que a utilizadora do imóvel em litigio era filha dos reivindicantes, sendo aquele construído com o consentimento destes, tendo suportado os ocupantes. uma parte do custo da construção e subsistindo, por período prolongado, tal ocupação e utilização permanente sem qualquer oposição dos reivindicantes. 2. Na verdade, perante tal acervo factual, deve ter-se por ilidida a presunção de má fé, associada à posse não titulada – e sendo certo que o que releva decisivamente para efeitos de qualificação da posse é a ignorância do possuidor, ao adquiri-la, de que lesava direitos de terceiros – pelo que a boa ou má fé deve ser apreciada em relação ao momento da aquisição da posse, sendo irrelevantes alterações posteriores quanto à convicção ou ao estado de espírito do possuidor. 3. Não pode atribuir-se efeito interruptivo do prazo de prescrição aquisitiva em curso à notificação judicial avulsa que revela a intenção do pretenso proprietário de exercer o seu direito no confronto dos ocupantes do imóvel quando o tribunal, por decisão definitiva, considerou improcedente o pedido de reivindicação deduzido, tendo por inexistente o direito inicialmente afirmado contra o possuidor. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA e mulher, BB, intentaram acção de condenação, na forma ordinária, contra CC e mulher, DD, pedindo a respectiva condenação no reconhecimento do direito de propriedade dos AA sobre um anexo e garagem que os RR ocupariam ilegitimamente e a sua restituição aos AA.. Contestaram os RR., alegando que o anexo foi construído pela R., filha dos AA., com a autorização destes, deduzindo reconvenção, pedindo que lhes seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade por usucapião ou, subsidiariamente, a aquisição do terreno por acessão imobiliária, em virtude do aumento do valor do prédio trazido pelas obras que executaram. No caso de proceder o pedido formulado pelos autores, pedem ainda a condenação destes na indemnização pelo valor das benfeitorias efectuadas no imóvel, no montante de € 13.312,38, além de juros de mora à taxa legal, bem como no reconhecimento do direito de retenção.
Os autores apresentaram réplica, contestando o pedido reconvencional, fundando-se na qualidade dos RR. de meros detentores do prédio em litígio. Os réus treplicaram, reafirmando as suas posições iniciais. Findos os articulados, os réus foram convidados a corrigir a reconvenção, no que diz respeito às áreas e confrontações do terreno, cuja aquisição pretendem ver declarada, o que fizeram. Foi proferido despacho que: A - considerou como “não escritas” as menções constantes dos artigos 11° 42°, 70° e 75° do articulado de fls. 239 a 260 – contestação/reconvenção -, no que toca à área ocupada pelo anexo e garagem, e que decidiu deverem ser consideradas as áreas inicialmente indicadas; B - não admitiu o articulado-tréplica, por entender não ser o mesmo admissível, atento o disposto no n.° 1 do artigo 503° do Código de Processo Civil, uma vez que não foi apresentada qualquer excepção na defesa deduzida pelos AA.. O pedido reconvencional foi admitido. Do despacho atrás referido. foi interposto agravo, parcialmente reparado, na sequência do que foram aditados novos factos, quer aos já assentes, quer à base instrutória, como consta da acta de fls. 670 e sgs. Procedeu-se a julgamento , no termo do qual foi proferida sentença que julgou a acção nos moldes seguintes: a) Julga-se a acção procedente por provada e condenam-se os réus a reconhecer que os autores são os proprietários do prédio acima identificado sob os nºs 1 e 2, incluindo em relação aos anexos e garagem que os réus aí ocupam, bem como na entrega desses anexos e garagem, sem prejuízo do decidido na alínea c). b) Julga-se a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e condenam-se os autores (réus desse pedido), a pagarem aos réus o montante que se apurar em liquidação ulterior, por benfeitorias realizadas, com o limite do valor apurado sob o n.º 26, com juros de mora à taxa legal desde a data em que tal ocorrer até pagamento. c) Reconhece-se aos réus o direito de retenção sobre o anexo e garagem pelo crédito antes indicado; julgando-se a reconvenção improcedente na parte restante de que absolvem os autores. 2. Desta sentença foi interposto pelos RR. recurso de apelação, a que a Relação concedeu parcial provimento e, em consequência, decidiu a acção nos seguintes termos: - julga-se a acção improcedente, por não provada, absolvendo os RR dos pedidos; - julga-se a reconvenção improcedente, por não provada, absolvendo-se os AA- reconvindos dos pedidos. Começando por apreciar a impugnação deduzida contra a matéria de facto, a Relação introduziu, segundo a sua convicção, algumas alterações na factualidade tida por provada em 1ª instância ( cfr. fls. 927/947). Passando a apreciar a matéria de direito, o acórdão recorrido inflectiu o sentido decisório da sentença recorrida no que respeita ao pedido formulado pelos AA de reivindicação do imóvel, entendendo que a anterioridade da posse dos RR sobre as edificações em litígio e a presunção legal daí emergente preclude a presunção resultante de posterior acto de registo do direito de propriedade, em que se alicerçava o pedido de reivindicação – considerando-se que os factos provados não permitem reconhecer, no confronto dos RR., que os AA eram titulares do direito de propriedade sobre as construções em causa. E daqui resultou que viesse a ser julgado improcedente também o pedido de indemnização por benfeitorias que havia procedido na 1ª instância, no pressuposto de que os AA. seriam proprietários do prédio reivindicado. Por sua vez, o pedido reconvencional foi também julgado improcedente, no que respeita à pretendida aquisição originária por usucapião, confirmando-se, nesta parte, a sentença recorrida. O acórdão recorrido assenta, quanto a esta questão, num duplo fundamento: - por um lado, qualificou a posse exercida pelos RR sobre a parcela do imóvel em litígio como sendo não titulada e de má fé, o que ditaria a aplicação do prazo máximo de 20 anos para a consumação da usucapião, não se mostrando o mesmo verificado; - por outro lado, entendeu que a precedente actuação dos AA., traduzida na notificação judicial avulsa, realizada em 1990, sempre teria interrompido a prescrição aquisitiva em curso, afirmando: Contudo, caso se entendesse terem os RR elidido a presunção da má-fé e que o prazo se completaria após 15 anos de posse, dir-se-ia que à usucapião são aplicáveis as regras relativas à interrupção e suspensão da prescrição, por força do art.º 1292.º Assim, nos termos do art. 323.º CC, a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente a intenção de exercer o direito; ora, tendo os AA notificado judicialmente os RR, em 21-6-1990 solicitando-lhes a entrega do anexo, dúvidas não se suscita que essa notificação teve a virtualidade de interromper o prazo da aquisição por usucapião. Não assiste razão aos recorrentes quando argumentam que a notificação, provinda de quem não demonstra ser proprietário, não poderia interromper o prazo, nem que a notificação “não contém de forma clara e inequívoca a intenção do exercício de um direito por parte dos requerentes dessa notificação, nem tampouco faz qualquer alusão à interrupção do prazo da usucapião.” Quanto à alusão ao prazo, diga-se que não precisavam os requerentes de dizer que queriam interromper qualquer prazo; isso é a relevância que a lei atribui ao acto de alguém dar a conhecer a outrém determinada realidade. Quanto aos termos da notificação, junta a fls. 121: nela os requerentes intitulam-se proprietários de todo o prédio, incluindo o anexo e a garagem, acusam os RR de ocuparam ilicitamente o imóvel e, informando que pretendem vender o prédio, intimam-nos a desocuparem o prédio, no prazo de 15 dias. Ainda os advertem que, caso não cumpram, os requerentes “tomarão a liberdade de proceder de imediato às reparações a custo dos notificandos e à desocupação dos imóveis pela via disponível e legal mais rápida e eficaz”. Com estes termos, é para nós evidente que os AA, através desta notificação judicial, manifestaram aos agora RR, de forma directa (sendo para a lei também releva uma manifestação indirecta), a intenção de reivindicar deles a propriedade em questão. Quanto ao facto dos AA serem ou não os proprietários, não se pode aferir, por aí, a função interruptiva da notificação. A usucapião pode ser invocada após ter decorrido o prazo legal fixado; a lei entendeu que à manifestação de outrem, com vista a impugnar a situação fáctica e jurídica de “posse” que conduz à aquisição do direito, deveria ser dada relevância; e deu-lhe tal relevância considerando que essa manifestação faz interromper o prazo aquisitivo. É que a aquisição por usucapião funda-se na necessidade de consolidar juridicamente situações de posse que vão perdurando no tempo de forma pública e pacífica. Ora, havendo uma oposição a essa situação, cai pela base a necessidade de consolidação do direito, importando antes que o mesmo se consolide só após prévia discussão. Daí a função interruptiva do prazo, dada a oposição manifestada por quem se opõe ao possuidor. A seguir-se a linha dos recorrentes, primeiro ter-se-ia que apurar se o opositor tinha ou não o direito que se arrogava, face aos possuidores e só depois é que se estava em condições de concluir se o prazo se havia ou não interrompido. Trata-se de uma construção ilógica e não compatível com o que atrás se deixou escrito. Temos, pois, por adquirido que a notificação levada acabo interrompeu o prazo aquisitivo em curso. 3. Inconformados com esta decisão, interpuseram os RR. a presente revista, que encerram com as seguintes conclusões: I - O douto acórdão incorreu na nulidade prevista na ai. c) do n° 1 do art° 668° do C.P.C por se verificar uma oposição entre os fundamentos e a decisão, isto é, os factos provados, valorados pelo Tribunal, deviam logicamente, conduzir a uma decisão diferente daquela que o acórdão expressa. II- A fundamentação apresentada pelo Tribunal da Relação para a (justa) alteração da resposta aos art°s 16° a) e 16 b) da base instrutória - cfr. pág. 34 in fine e 35 do acórdão - em conjugação com a fundamentação, quer de facto, quer de direito, plasmada nas páginas 42 e 43 do acórdão, deveria conduzir a uma decisão diferente, ou seja, a posse de boa fé dos RR, e a aquisição do seu direito de propriedade, por usucapião, do anexo e garagem. III - Há uma evidente e clara oposição entre os fundamentos da decisão e esta. Veja-se a titulo exemplificativo os fundamentos do acórdão: - resposta conjunta aos art°s 16° a) e 16° b) - (...) na convicção de que o anexo lhes pertencia e não prejudicavam direitos de terceiros. - (...) não se oferece dúvida que os RR têm sempre actuado convencidos que o anexo e a garagem lhes pertence e de que não estão a prejudicar terceiros, leia-se os AA (...) decorre da lógica das coisas que os RR entendem que não estão a prejudicar os AA., - "Está demonstrado que, desde Fevereiro de 1983, os réus vivem no anexo antes referido, onde dormem, tomam as refeições e recebem os amigos - ponto 17º dos factos supra descritos - na convicção de que o anexo lhes pertence e que não prejudicara direitos de terceiros e que alguns amigos e conhecidos pensam que o anexo é dos réus -pontos 31° e28°. Temos assim por adquirido serem os RR verdadeiros "possuidores" para efeito de posse relevante para aquisição do direito de propriedade, por via da usucapião." IV - Deve, pois, a decisão ser substituída por outra que julgue os RR proprietários do anexo com garagem, por o terem adquirido por usucapião. V - O douto acórdão recorrido incorreu num erro de apreciação da matéria dada por assente e errou na determinação das normas aplicáveis, violando assim os art°s 314°, 1251°, 1260°, 1268°, 1296° 303° e 323° todos do Código Civil e art° 663° do Cód. Processo Civil. VI - Da matéria de facto assente, nomeadamente a constante dos pontos 13°, 14°, 17° a 28° e da resposta conjunta dada pelo Tribunal da Relação aos art°s 16° a) e 16 b) da base instrutória (em alteração ás respostas da Ia instância) resulta a posse de boa fé dos RR, ora recorrentes. VII - A matéria de facto inserta pela Relação na resposta aos art°s 16° a) e 16° b) retrata, sem margem para dúvidas, a posse de boa fé dos, RR, o que quer dizer que é de, apenas, quinze anos, o prazo necessário à verificação da usucapião. A presunção (júris tantum) de que a posse não titulada se presume de má fé fica completamente arredada pela prova (positiva) de que os RR actuaram no convencimento de não prejudicar quem quer qu e sej a, nomeadamente o s AA.. VIII - Contrariamente ao decidido no douto acórdão, os RR elidiram a presunção de má fé, dado que resulta provado nos autos que agiram na convicção de que não lesavam direitos alheios. IX -O conceito de boa é de natureza psicológica, e não ética ou moral, consistindo na simples ignorância de se estar a lesar os direitos de outrem. O prazo de 20 anos só é exigível quando a posse é de má fé, o que não é, manifestamente, o caso dos autos X - A posse (de boa fé) dos RR iniciou-se em Fevereiro de 1983, pelo que à data de entrada da p.i em juízo - Maio de 2002- já há muito que o prazo de 15 anos tinha decorrido, ou seja decorreram 19 anos e 3 meses. XI - Os RR adquiriram o direito de propriedade do anexo e garagem, por usucapião. XII - Não se verificou qualquer interrupção no prazo da usucapião. XIII - A notificação judicial avulsa feita pelos AA aos RR é inválida e ineficaz, por falta de legitimidade dos AA, porquanto estes não provaram ser os donos do anexo com garagem - daí a sábia e justa decisão de improcedência da acção, com a consequente absolvição dos RR.. XIV - Consequentemente, e contrariamente ao decidido, não pode ser atribuída a tal notificação judicial a função interruptiva do prazo da usucapião, uma vez que a mesma é ineficaz para os RR, por falta de legitimidade dos AA. - facto de que o Tribunal da Relação tomou conhecimento nos presentes autos e ao qual devia ter atendido nos termos do art° 663° do C.P.C. NESTES TERMOS, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido, e substituindo-se por outro que julgue os RR proprietários do anexo com garagem, por o terem adquirido por usucapião, assim se fazendo JUSTIÇA Os AA. não contra alegaram, nem recorreram do segmento do acórdão que julgou improcedente a acção de reivindicação, o que naturalmente implica o respectivo trânsito em julgado, nos termos do nº4 do art. 684º do CPC. 4. As instâncias fizeram assentar a decisão do pleito na seguinte matéria de facto ( apurada na 1ª instância, com as alterações introduzidas pelo acórdão recorrido, ao ter por parcialmente procedente a apelação, na parte em que se impugnava a decisão proferida sobre a matéria de facto): 1º - Pela apresentação 03/220877, constante da ficha n.º 01193/210187 da 2ª conservatória do registo predial de Cascais, o imóvel designado por lote 15, sito na Quinta …, limites da freguesia de Cabreiro, Rua …, Alcabideche, encontra-se inscrito a favor dos AA – alínea A) dos factos assentes. 2º - No dia 21.01.1987, foi averbada na descrição predial a menção seguinte: “actualmente urbano – moradia de rés do chão e anexo com garagem – A.C. 196,14 m2 e logradouro com a área de 146,82 m2..” – alínea B) 3º - O imóvel referido na alínea A), está inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Alcabideche sob o artigo n.º 6415, onde o ora autor consta como titular do rendimento – alínea C). 4º - Nesta inscrição matricial consta, em relação à “descrição, composição e aplicação do prédio”, o seguinte: “Prédio urbano composto de moradia com 3 assoalhadas, cozinha, c. banho, vestíbulo, dispensa, varanda, sótão amplo para arrumos, com área de 97,60 m2; anexo de rés do chão com 3 ass., coz., c. banho, vestíbulo e garagem com área de 100,54 m2.” – alínea D) 5º - No logradouro do prédio referido na alínea A), nas traseiras da moradia …, foi construído em 1980 um anexo de 3 assoalhadas com cozinha, casa de banho e dependência destinada a garagem, com a área coberta de 98 m2 – alínea F). 6º - O valor da construção, à data, era superior a € 9.975,95 (2.000.000$00) – alínea Q). 7º - O valor do terreno onde a mesma foi implantada, à mesma data, não era superior a € 49,88 (10.000$00) – alínea R). 8º - O acesso do anexo à via pública faz-se por uma faixa de terreno do logradouro do prédio referido na alínea A) – alínea S). 9º - Os réus têm vindo a impedir o acesso dos autores ao anexo e garagem – resposta ao n.º 1. 10º - Devido à situação referida no n.º anterior, às relações muito tensas existentes e ao comportamento anterior dos réus, os autores não têm ocupado a moradia, esclarecendo-se que, por volta de 1985/1986, os réus já os ameaçaram e causaram danos e ofensas à integridade física – resposta ao n.º 1. 11º - Os autores solicitaram aos réus a entrega do anexo antes indicado, o que fizeram através de notificação judicial avulsa requerida em 21.06.1990, de que os réus foram notificados a 29 do mesmo mês – alíneas O) e P) e resposta ao n.º 6. 12º - [Não provado, por decisão da Relação ( fls. 931)] 13º - O anexo e garagem foram construídos com consentimento dos autores – resposta ao n.º 7. 14º - Os réus suportaram uma parte não apurada do custo da construção do anexo e garagem – resposta ao n.º 8º a). 15º - Foi o autor quem tratou com o construtor do anexo e garagem a quem também entregou o dinheiro do pagamento acordado, através dum seu cunhado, de nome EE – resposta ao n.º 8º b), com a alteração determinada pela Relação, a fls. 940. 16º - Os trabalhos de construção do anexo e garagem custaram uma quantia não apurada, não inferior a € 941,65 (188.783$00) - resposta ao n.º 9. 17º - Desde Fevereiro de 1983 que os réus vivem no anexo antes referido, onde dormem, tomam as refeições e recebem os amigos – alíneas H) e I). 18º - Em 19 de Setembro de 1989, o réu requereu a inscrição do anexo na matriz predial urbana, o que veio a dar lugar à inscrição predial urbana sob o artigo n.º …, da freguesia de Alcabideche, onde o réu consta como titular do rendimento – alíneas L) e M). 19º - Essa matriz predial foi eliminada, em 12.01.2000, “por duplicação com o n.º …”. 20º - No dia 01.02.1992, o réu pagou a instalação de luz eléctrica no anexo – alínea J). 21º - E em Fevereiro de 1991, requisitou o fornecimento de água ao mesmo anexo – alínea K). 22º - Os réus procederam a reparações no telhado, soalho e paredes do anexo, e efectuaram pinturas nas paredes interiores e exteriores – respostas aos nºs 10 e 11. 23º - Altearam o respectivo muro lateral, por razões de segurança, e colocaram portões – resposta ao n.º 12. 24º - Construíram um telheiro na garagem – resposta ao n.º 13. 25º - Bem como outros anexos mais pequenos e forno – resposta ao n.º 14. 27º -“Provado que os R.R praticaram os factos descritos nas al. h), i), j), k) e l) do elenco dos factos assentes e nos pontos 10º a 14º da base instrutória na convicção de que o anexo lhes pertencia e que não prejudicavam direitos de terceiros.”( alteração determinada pela Relação, a fls. 944) 28º - Alguns amigos e conhecidos pensam que o anexo é dos réus – resposta ao n.º 17. 29º - Provado apenas que os RR sabem que ocupam o anexo e garagem contra a vontade dos AA desde, pelo menos, 29 de Junho de 1990 ( alteração determinada pela Relação, a fls. 946). 31º - A área de terreno onde está implantada construção (garagem e anexo) é de cerca de 100,54 m2 – resposta ao n.º 20. 32º Eliminado por decisão da Relação, a fls. 947. Dos docs. juntos a fls. 799 e segs. e dos requerimentos apresentados pelas partes, resultam ainda, por acordo, os seguintes factos: 33º - No ano de 2007, o autor foi ouvido pela CMC sobre o Projecto de Despacho a ordenar a demolição das edificações construídas no prédio dos autos, cuja cópia consta de fls. 816. 34º - O autor, através de requerimento remetido à CMC em 20.04.2007, chegou a requerer que lhes fosse concedido prazo para legalizar a moradia e que, em relação ao anexo ocupado pelos réus, a demolição ficasse suspensa até decisão do presente processo. 35º - Em momento posterior, o autor comunicou à CMC que não pretendia requerer a legalização das construções existentes no prédio. 36º - A CMC, sem a oposição dos autores, veio a ordenar a demolição dessas edificações, na sequência do que, no dia 03.06.2009, teve lugar a demolição da moradia. 37º - Nessa data não teve lugar a demolição dos anexos ocupados pelos réus devido à presença e oposição dos mesmos. 38º - Tendo tomado conhecimento da pendência da presente acção, a CMC decidiu sustar o processo de demolição em curso até à sua decisão, com fundamento em que a eventual procedência da reconvenção conferia aos ora réus a possibilidade de requererem a legalização do anexo. 5. Para compreender adequadamente a substância do presente litígio, importa acentuar que nele confluem, quer um litígio cível atinente à determinação de quem é o verdadeiro proprietário ( os AA, por terem o seu direito inscrito no registo, ou os RR., com base em invocada aquisição por usucapião) de determinada edificação – anexo construído no logradouro de certo prédio urbano, reivindicado pelos AA. - sendo todas as construções clandestinas, situadas em bairro de génese também clandestina; e um litígio administrativo, documentado pelo processo de demolição coerciva de tais construções clandestinas, não licenciadas, que já conduziu à demolição efectiva da moradia principal reivindicada pelos AA., tendo sido sustada pela autarquia a demolição coerciva do anexo possuído pelos RR., até ser dirimida definitivamente a presente acção. Esta situação poderá explicar o desinteresse dos AA. – que se conformaram com o acórdão da Relação, na parte em que julgou improcedente o pedido de reivindicação, por a construção principal ali existente já inexistir materialmente, consumada que foi a respectiva demolição – subsistindo, porém, o interesse dos RR.,expresso na interposição da presente revista: na verdade, se esta proceder e se tiver por adquirida a propriedade sobre as edificações que integram o anexo em litígio, assistirá ainda aos RR./reconvintes uma última possibilidade de eventualmente obstarem ainda à demolição coerciva de tais edificações, por eles habitadas, disponibilizando-se, nomeadamente, para procederem ao licenciamento nos termos exigidos pela autarquia. Ora, como é evidente, a sorte do pedido reconvencional , no segmento respeitante à invocada aquisição originária por usucapião, passa decisivamente pela análise e resolução de duas questões conexionadas: - poderá configurar-se a posse exercida pelos reconvintes, em nome próprio, sobre a edificação - anexo - que ocupam e em que habitam sem qualquer título desde 1983 como posse de boa fé, conduzindo a um prazo de aquisição de 15 anos? - a circunstância de os AA. se terem cabal e expressamente oposto à situação possessória dos RR, através da notificação judicial avulsa, operada em 1990, é susceptível de determinar a interrupção da prescrição aquisitiva em curso, nos termos previstos no art. 1292º, conjugado com o art. 323º do CC? Na sua alegação, imputam os recorrentes ao acórdão recorrido o vício de contradição entre os fundamentos e a decisão, sustentando ser contraditória e incongruente a alteração determinada quanto a determinado ponto da matéria de facto, acentuando que os RR. exerceram os seus poderes fácticos de gozo e fruição do imóvel na convicção de que este lhes pertencia e que não prejudicavam direitos de terceiros com a qualificação de tal posse como de má fé, por não ter sido ilidida a presunção emergente da falta de título.
Parece-nos, contudo, que esta situação não deve ser configurada no plano das nulidades da sentença, decorrentes da sua incongruência estrutural, mas antes no de um eventual erro na subsunção normativa da factualidade tida por assente às normas aplicáveis – no caso, à constante do art. 1260º do CC, com reflexos decisivos ao nível do prazo relevante para efeitos de usucapião. E, tratando-se, como é óbvio, de uma questão de direito, cumpre apreciá-la no âmbito da presente revista.
Ora, tendo em conta a convicção formada pela Relação no exercício do seu poder-dever de reapreciação da matéria de facto impugnada, parece-nos que terá de considerar-se – como pretendem os recorrentes – que o quadro factual aponta para uma situação configurável como sendo de posse de boa fé : ao dar-se como assente que os actos de utilização do anexo foram praticados na convicção de que não ocorria prejuízo dos direitos de terceiros, estará efectivamente preenchida a norma constante do nº1 do art. 1260º do CC – conclusão, aliás, perfeitamente congruente com as circunstâncias concretas do caso, já que: - a utilizadora do anexo era uma filha dos AA; - o anexo foi construído com o consentimento destes, suportando os RR. uma parte do custo da construção; - durante cerca de 7 anos – até ser realizada a notificação judicial avulsa documentada nos autos – tal ocupação e utilização permanente não teve qualquer oposição dos AA.
É certo que, a partir de 29/6/1990, os RR passaram a ter conhecimento de que a sua ocupação contrariava a vontade dos AA, o que poderia naturalmente ter abalado a originária convicção de que nenhum prejuízo resultaria para direitos de terceiro: ou seja, a partir da referida notificação judicial avulsa, ter-se-á tornado perceptível para os RR a existência de uma controvérsia sobre a legitimidade da ocupação que inicialmente se revelara pacífica, da qual poderiam razoavelmente inferir que a sua actuação poderia estar a lesar o direito de propriedade invocado pelos AA. Importa, todavia, realçar que – face ao estatuído no referido preceito legal - o que releva decisivamente para efeitos de qualificação da posse é a ignorância do possuidor, ao adquiri-la, de que lesava direitos de terceiros: a boa ou má fé deve, pois, ser apreciada em relação ao momento da aquisição da posse, sendo irrelevantes alterações posteriores quanto à convicção ou ao estado de espírito do possuidor. Ora, valorando tal convicção ou estado de espírito, tal como existiria em 1983, data em que se iniciou a posse, não se vê qualquer razão para – perante o quadro factual fixado – pôr em causa a seriedade e consistência de convicção dos RR de que a ocupação – claramente consentida pelos pais da R. – não lesava os direitos de propriedade que estes pudessem ter sobre o imóvel; a ponderação de toda a situação factual afasta, aliás, qualquer especial censurabilidade ética para a conduta dos RR, sendo perfeitamente compatível com a adopção de um critério também ético de boa fé, que vise afastar os casos de conduta manifestamente reprovável ou a relevância de um erro grosseiro na formação da convicção do possuidor: na verdade – e como atrás se realçou – as relações de proximidade familiar entre as partes actualmente em conflito, a circunstância de a construção das edificações em litígio ter sido comparticipada pelos litigantes e o longo período em que se não vislumbrou qualquer oposição séria à ocupação e fruição do imóvel pelos RR justificam e legitimam a seriedade da convicção de que estes não estariam, com a sua conduta, a lesar direitos dos AA.
E daqui decorre que – como sustentam os recorrentes – terá efectivamente de se ter por ilidida – perante o quadro factual efectivamente provado - a presunção de má fé que emergia da inexistência de título para a ocupação do imóvel – com a consequência de o prazo de usucapião passar a ser de 15 anos, nos termos do art. 1296º do CC.
6. Sucede, porém, que – muito antes de consumado tal prazo -ocorreu a notificação judicial avulsa através da qual se pôs inquestionavelmente em causa a licitude da ocupação do imóvel pelos RR., manifestando os AA., de forma expressa e directa, a sua oposição à ocupação e a vontade de afirmarem e efectivarem, no confronto dos RR., o invocado direito de propriedade sobre as referidas edificações. Terá tal notificação eficácia interruptiva da prescrição aquisitiva em curso? Na verdade, o art. 1292º do CC manda aplicar à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição – em que obviamente se situa o art. 323º, determinando o efeito interruptivo da citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito. Note-se que as instâncias entenderam ser aplicável este regime normativo à situação dos autos, embora em circunstâncias processuais profundamente diferenciadas: na verdade, a sentença proferida em 1ª instância começou por julgar procedente a acção de reivindicação, reconhecendo, desse modo, o direito de propriedade que os AA manifestavam intenção de efectivar através da notificação judicial avulsa que fizeram aos RR.. Pelo contrário, a Relação revogou tal segmento decisório, julgando, em consequência, improcedente o pedido de reivindicação – e negando, por essa via, a existência do direito de propriedade, afirmado pelos AA. no confronto dos RR., sobre as edificações em litígio – e tendo tal decisão, por não impugnada pela parte vencida, transitado em julgado. Ora, fará sentido reconhecer eficácia interruptiva a um acto de afirmação de um direito que, jurisdicionalmente apreciado no âmbito do próprio processo, vem a ser julgado inexistente, por improcedência da acção que visava precisamente efectivá-lo no confronto da contraparte? Saliente-se que, no caso dos autos, não se trata de «obrigar» o pretenso proprietário a demonstrar, no momento da notificação judicial avulsa ,a sua efectiva qualidade de proprietário do bem em litígio, sob pena de não operar o efeito interruptivo ali previsto: o que ocorre é a superveniente prolação de uma decisão judicial que considera inexistente o direito que o A. manifestara intenção de exercer no confronto dos notificandos – não podendo, naturalmente, tal apreciação jurisdicional, superveniente e definitiva, deixar de se reflectir e repercutir decisivamente na susceptibilidade e idoneidade da notificação avulsa ( feita, afinal, por um «não proprietário») para produzir o dito efeito interruptivo em discussão. Ou seja: o acto de manifestação pelos reivindicantes (em determinado momento, anterior à propositura da acção) da intenção de reivindicarem dos ocupantes de um imóvel a respectiva propriedade fica naturalmente esvaziado ou exaurido quando, na própria acção, se considera, por decisão definitiva, inexistente o direito de propriedade – por traduzir tal acto de manifestação da vontade de exercício de um direito que o próprio tribunal vem a considerar, a final, inexistente um «golpe no ar», insusceptível de produzir o efeito interruptivo previsto no art. 323º do CC. E, deste modo, afastada, face ao teor do acórdão proferido sobre o pedido de reivindicação, a eficácia interruptiva de um acto de vontade proveniente de quem o próprio tribunal, por decisão definitiva, considerou desprovido da titularidade do direito de propriedade afirmado, nada obsta à consumação do prazo prescricional de 15 anos, iniciado em 1983 e plenamente verificado na data em que foi proposta a presente acção de reivindicação. 7. Nestes termos e pelos fundamentos apontados concede-se provimento à revista e., em consequência: - revoga-se o segmento do acórdão recorrido que se pronunciou sobre o pedido reconvencional de reconhecimento da aquisição da propriedade por usucapião, tendo-o por improcedente; - julga-se procedente o pedido reconvencional , na parte referente à aquisição pelos RR.,por usucapião, da propriedade do anexo de 3 assoalhadas, com cozinha, casa de banho e dependência destinada a garagem, integrado e construído no logradouro do prédio designado por lote …, sito na Quinta …, limites da freguesia de Cabreiro, rua …, Alcabideche (descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº…), condenando-se os AA. a reconhecer tal propriedade. Custas pelos recorridos.
Lisboa, 27 de Outubro de 2011
Lopes do Rego (Relator) Orlando Afonso Távora Victor |