Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1253/14.2TACBR.C3.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
TEMPESTIVIDADE
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE.
Sumário :
I - A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo uniformemente que as exceções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em matéria penal estão expressamente previstas no CPP, não existindo margem para convocar a aplicabilidade da norma do art. 672.º do CPC, por a este respeito não existir qualquer lacuna.
II - A arguida/demandada ao referir que recorre de revista excecional, em matéria cível, quando efetivamente visa naquela parte a reapreciação de matéria penal, procede a uma troca de etiquetas para franquear o acesso ao STJ a matéria penal, que sabe ser inadmissível por força do disposto dos arts. 432.º, n.º 1, al. a) e 400.º, n.º 1, al. d), do CPP.
III - Deve ser rejeitado, por inadmissível, o recurso de revista excecional interposto, na parte em que visa a aclaração da distinção entre os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art. 152.º-B, n.os 1, 2 e 4 do CP, e os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art. 277.º, n.os 1, al. a) e 2, conjugado com o art. 285.º do mesmo CP, bem como o conhecimento da insuficiência da matéria de facto para a condenação da aqui recorrente se considerado o preenchimento do crime p. e p. pelo art. 152.º-B do CP, por corresponder a matéria penal.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 1253/14.2TACBR.C3.S1


Recurso Penal


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Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório


1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção de Tribunal Coletivo, que correram termos pelo Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., foram submetidos a julgamento, os arguidos Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, AA e BB, todos devidamente identificados nos autos, e realizada audiência de julgamento, na sequência de reenvio do processo, foi decidido, em novo acórdão de 18 de fevereiro de 2022, o seguinte (transcrição):


Por todo o exposto, julgando-se a pronúncia provada e procedente:


- Condena-se a arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, como responsável pela prática de um crime de infracção de regras de construção, agravado pelo resultado, p. e p., conjugadamente, nos arts. 11º/n.º 2-a), 47º, 90º-B/n.ºs 1, 2, 4 e 5, 277º/n.ºs 1-a) e 2 e 285º, todos C.P., na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 130 (cento e trinta euros), ou seja, na multa de € 39.000 (trinta e nove mil euros);


- Condena-se o arguido AA, como autor material de um crime de infracção de regras de construção, agravado pelo resultado, p. e p., conjugadamente, nos arts. 277º/n.ºs 1-a) e 2 e 285º, ambos C.P., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;


- Condena-se o arguido BB, como autor material de um crime de infracção de regras de construção, agravado pelo resultado, p. e p., conjugadamente, nos arts. 277º/n.ºs 1-a) e 2 e 285º, ambos C.P., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;


- Condenam-se os arguidos nas custas do processo (presente parte-crime), com 3 U.C. a título de taxa de justiça.


Ao abrigo do disposto nos arts. 50º e 53º C.P., e esperando-se (pelos motivos acima expostos) que a ameaça de prisão o afaste da prática de novos ilícitos criminais, decide-se suspender a execução da pena de prisão definida ao arguido AA pelo respectivo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, acompanhada cumulativamente de um regime de prova assente em plano individual de reinserção social [e nos moldes a definir oportunamente mediante plano a elaborar pelos serviços de reinserção social e a aprovar pelo Tribunal; para tais efeitos, deve ainda o arguido apresentar-se e(ou) responder a todas as convocatórias que lhe venham a ser dirigidas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social, e sem prejuízo de o apontado plano poder vir a ser completado posteriormente pelos aludidos serviços].


Igualmente nos termos dos arts. 50º e 53º C.P., e esperando-se (pelos fundamentos antes alinhados) que a ameaça de prisão o afaste da prática de novos ilícitos criminais, decide-se suspender a execução da pena de prisão definida ao arguido BB pelo respectivo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, acompanhada cumulativamente de um regime de prova assente em plano individual de reinserção social [e nos moldes a definir oportunamente mediante plano a elaborar pelos serviços de reinserção social e a aprovar pelo Tribunal; para tais efeitos, deve ainda o arguido apresentar-se e(ou) responder a todas as convocatórias que lhe venham a ser dirigidas pelo Tribunal e pelos técnicos de reinserção social, e sem prejuízo de o apontado plano poder vir a ser completado posteriormente pelos aludidos serviços].


(…)


Por todo o exposto, julgando-se o pedido cível formulado pela demandante CC parcialmente provado e procedente, condenam-se solidariamente os demandados Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, AA e BB a pagarem àquela demandante a quantia total de € 120.000 (cento e vinte mil euros), a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, contados da data do presente acórdão, até efectivo e integral pagamento, no mais se absolvendo os demandados do contra eles peticionado nos autos.


Custas, quanto ao pedido cível, por demandante e demandados, na proporção dos respectivos decaimentos.”.


2. Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os arguidos Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, AA e BB para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual por acórdão de 13 de dezembro de 2022, decidiu negar provimento ao recurso e manter o acórdão recorrido.


3. Irresignada, ainda, a arguida/demandada Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, vem interpor recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13 de dezembro de 2022, para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):


“1. O presente recurso, de Revista Excepcional, vem interposto da Douta Decisão da Relação de Coimbra (leia-se da 2.ª, após reenvio) e expressamente invocado ao abrigo da alínea a) do artigo 672.º, n.º 1 do CPC, justificando-se a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, face a tal decisão, de que se discorda, no sentido de uma aclaração da distinção entre os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito previsto no artigo 152.º-B, n.º 1, 2 e 4 do CP, e os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito previsto no artigo 277.º, n.º 1, alínea a) e 2, conjugado com o artigo 285.º do mesmo CP, de molde a evitar dissonâncias interpretativas dos respectivos sujeitos por eles protegidos, a fim de se acautelar uma melhor aplicação das regras quanto ao ónus da prova, mormente quando os factos que, preenchendo ora um, ora outro desses ilícitos, servem de base, em processo penal, para um pedido de indemnização pela sua violação (como serviram, no caso em apreço, e considerando erradamente o segundo dos crimes, para invocar a responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo dano morte).


2. Na realidade, porque o Tribunal circunscreveu análise da prova considerando aquele segundo crime, similar, mas com diferentes pressupostos, a matéria de facto provada e não provada vem a revelar-se insuficiente para a condenação da aqui recorrente se considerado o artigo 152.º-B do CP, pois que, sendo os factos que respaldam a indemnização peticionada constitutivos desse direito, recai sobre o MP e a demandante (e não sobre o arguido demandado) o ónus da prova, em especial do nexo causal, para mais num pedido de indemnização feito em processo penal fundado na prática de um crime, onde a eventual falta de contestação, em respeito ao princípio in dubio pro reo, não tem efeitos cominatórios.


3. Ora, se se demonstra, da matéria de facto provada e não provada que houve dois momentos distintos nos autos (um período da manhã e outro da tarde), e que resultaram dúvidas sobre as razões pelas quais o falecido se encontrava (depois de almoço), naquele local (no telhado), sem se saber se, nessas concretas circunstâncias (depois de almoço), estava ou não ao serviço da entidade patronal (portanto se foi sujeito, com ordens a esse perigo, como havia sido de manhã), e considerando que o malogrado faleceu em consequência de uma queda na parte da tarde, tal dúvida não pode senão resolver-se a favor da arguida demandada, e não a favor da parte a quem esse facto aproveita, como efectivamente veio a ter lugar.


4. De resto, acrescendo que resultou provado que o falecido tinha ordens da entidade empregadora, para, da parte da tarde, pintar um gradeamento (ponto 13), tal facto (ainda que dele não se possa extrair o corolário de que este tinha expressas ordens para não subir ao telhado) só reforça essa dúvida. Seja como for, como já se conclui, não caberia à recorrida essa prova, errando a decisão recorrida ao condená-la, ou pelo menos ao não considerar que a conduta do falecido foi largamente concorrente do dano, com os devidos reflexos na indemnização concedida.


5. Foram, com a decisão em apreço, violados os artigos do Código Penal acima mencionados, os artigos 71.º e 78.º, n.º 3 do CPP, e bem assim o disposto nos artigos 342.º e ss. do CC e 414.º do CPC.


Nestes termos, vem requerer a admissão do recurso ora interposto, por via do qual se deverá revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que, distinguindo com precisão jurídica os pressupostos dos crimes previstos no artigo 152.º- B e 277.º do CP, decida no sentido imposto pela correcta aplicação das regras relativas ao ónus probatório; ou seja, porque sustentada erradamente no segundo daqueles crimes, e consequentemente errando na prova de suficientes factos constitutivos do nexo de causalidade, absolva a recorrente do pagamento da indemnização pelo dano morte em que vem condenada ou subsidiariamente, caso assim não se entenda, reduza tal indemnização.”.


4. A assistente/demandante CC respondeu ao recurso interposto pela arguida/demandada Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, pugnando, pela inadmissibilidade do recurso, porquanto o regime processual penal não permite o recurso de revista excecional em matéria penal e a recorrente pretende que o S.T.J. se pronuncie quanto a uma questão penal e não quanto a uma questão cível; pela inexistência de qualquer questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; e, por fim, pela intempestividade do recurso, pois os arguidos foram notificados do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 14-12-2022 e dele recorreram apenas em 3-7-2023.


5. Também o Ministério Público no Tribunal da Relação de Coimbra respondeu ao recurso interposto pela arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, concluindo que está verificada a dupla conforme, quer na parte criminal, quer na parte civil e não existe fundamento para o recurso de revista excecional, visando a arguida, por vias travessas, a reapreciação da questão penal. Sem prejuízo da questão penal, que deve ser julgada improcedente, se o recurso não for rejeitado, não sendo o Ministério Público parte civil escusa-se a responder à parte da condenação da arguida em indemnização civil.


6. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser rejeitado, por legalmente inadmissível, o recurso de revista excecional interposto para este Supremo Tribunal por Santa Casa da Misericórdia da Pampilhosa da Serra, pois não existe lacuna de regulamentação a tornar justificado que se lance mão do disposto no art.672.º do C.P.C., por força do disposto no art.4.º do C.P.P..


7. Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2 do C.P.P., respondeu a recorrente no sentido de que o recurso de revista excecional deve ser admitido, por se encontrar claramente circunscrito à condenação civil e , consequentemente, ser julgado procedente, por se verificarem os demais pressupostos do recurso.


8. Colhidos os vistos, cumpre decidir.


II - Fundamentação


9. Os factos dados como provados no acórdão recorrido são os seguintes (transcrição parcial):


1 – DD era trabalhador da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra desde 30 de Novembro de 2011;


2 – antes do acidente, ocorrido em 5 de Agosto de 2014, iniciaram-se trabalhos de intervenção no telhado do edifício da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, que consistiam na limpeza, lavagem e substituição de telhas partidas;


3 – estes trabalhos estavam a cargo da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra e foram efectuados por ordem do seu provedor e aqui também arguido AA, bem como do director de serviços e igualmente arguido BB, e ainda de EE;


4 – tais trabalhos estavam a ser efectuados por FF e pelo acima aludido DD;


5 – o mesmo DD procedeu à execução dos trabalhos de limpeza do telhado sob ordens e instruções do director de serviços e aqui arguido BB, o qual, por sua vez, obedecia a ordens e instruções do aqui também arguido AA, provedor da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra;


6 – por força estatutária, ao arguido AA, enquanto provedor da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, incumbia, além do mais, superintender na administração desta arguida, orientando e fiscalizando os seus serviços, despachando também os assuntos normais de expediente;


7 – na manhã do dia 5 de Agosto de 2014, o dito DD andou, juntamente com FF, a trabalhar no telhado, mais concretamente a lavar e a apanhar os cacos das telhas do lado sul do telhado;


8 – os trabalhos consistiam na lavagem das telhas, com uma mangueira e com uma máquina de pressão com jacto de água, e na limpeza dos cacos de telhas, com uma vassoura e baldes, que eram despejados na parte de trás do edifício;


9 – cerca das 13 horas do referido dia 5 de Agosto de 2014, o DD e o FF desceram do telhado e foram almoçar com os colegas;


10 – os mencionados FF e o DD, enquanto foram almoçar, deixaram no telhado todos os equipamentos e utensílios que estavam a utilizar, a saber: máquina de pressão a jacto de água, mangueira ligada à rede de água pública, extensão eléctrica, escova de arame, colher de pedreiro, vassoura de cabo curto e duas latas de 25 litros onde era colocado o lixo;


11 – após o almoço, os mesmos FF e o DD foram descarregar um móvel de um veículo ligeiro de mercadorias (uma carrinha) da arguida Santa Casa da Misericórdia, tendo o FF ficado a aparafusar o banco do apontado veículo que tinha sido retirado para o transporte poder ser efectuado;


12 – enquanto o FF ficou a apertar o banco à viatura, o DD, por razões não concretamente apuradas, voltou ao telhado, mas para o lado norte, de onde caiu entre as 14 horas e 10 minutos e as 14 horas e 15 minutos;


13 – naquela tarde, o DD havia recebido ordens para pintar um gradeamento;


14 – ao cair, o DD embateu primeiro no beirado do telhado do edifício da Junta de Freguesia e daí caiu para o terraço do edifício da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra;


15 – na sequência da queda e do acidente referidos, o DD foi transportado, pelas 16 horas e 15 minutos, de helicóptero, para o Centro Hospitalar da Universidade ..., E.P.E.;


16 – o DD veio a falecer no dia 6 de Agosto de 2014, em consequência da queda e do acidente descritos, no Centro Hospitalar da Universidade ..., E.P.E.;


17 – o telhado do edifício onde o DD se encontrava dista cerca de 3 metros de altura do telhado do edifício da Junta de Freguesia e este dista cerca de 4 metros em altura do terraço para onde o trabalhador caiu, tendo, portanto, a vítima sofrido uma queda em altura de cerca de 7 metros;


18 – os telhados dos dois edifícios (da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra e da Junta de Freguesia) estão distanciados entre si cerca de 1,75 metros;


19 – no telhado de onde o DD caiu não foi montado ou instalado qualquer sistema de segurança, não foi instalada qualquer protecção colectiva (guarda-corpos ou andaimes periféricos), e também não foi montada nenhuma “linha de vida” ancorada a um ponto fixo de construção e à qual os trabalhadores pudessem amarrar um arnês;


20 – a arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra e os seus responsáveis não forneceram aos trabalhadores envolvidos no trabalho de limpeza e reparação do telhado equipamento de protecção individual, nomeadamente arnês, nem ministrou formação em segurança, higiene e saúde ao sinistrado DD;


21 – a arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, na qualidade de directora dos trabalhos de limpeza e lavagem do telhado, não assegurou aos funcionários envolvidos nos trabalhos as condições de segurança e saúde, porquanto não procedeu à prévia identificação e avaliação dos riscos profissionais associados à execução do trabalho;


22 – também não definiu nem adoptou medidas de prevenção adequadas à eliminação e ao controlo desses riscos, tendo em conta os princípios gerais de prevenção aplicáveis, mobilizando os meios necessários no domínio da prevenção técnica, da formação e da informação, e os serviços de segurança e saúde da empresa;


23 – a omissão das diligências identificadas nos pontos 19 a 22 (dos presentes factos assentes) foi a causa da morte do DD;


24 – em consequência, a Autoridade para as Condições do Trabalho aplicou uma coima à arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, no valor de € 3.264;


25 – a arguida Santa Casa da Misericórdia, bem como os arguidos AA (provedor da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra) e BB (director de serviços da arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra), responsáveis pela execução da obra e pelo cumprimento das medidas de segurança, deveriam ter avaliado os riscos associados à sua execução e definido as medidas de prevenção adequadas a acautelar a segurança dos trabalhadores, o que não fizeram;


26 – deveriam ter instalado, na zona sul do telhado, uma protecção colectiva – guarda-corpos ou andaimes periféricos –, o que não fizeram;


27 – deveriam ter montado, na mesma zona, uma “linha de vida” ancorada a um ponto fixo de construção e à qual os trabalhadores pudessem amarrar um arnês, o que não fizeram;


28 – deveriam ter fornecido aos trabalhadores envolvidos no trabalho de limpeza e reparação do telhado equipamento de protecção individual, nomeadamente arnês, calçado de segurança e capacete, o que não fizeram;


29 – deveriam ter ministrado formação em segurança aos funcionários, nomeadamente ao sinistrado DD, o que não fizeram;


30 – ao agirem da forma descrita, a arguida Santa Casa da Misericórdia de Misericórdia de Pampilhosa da Serra, bem como os arguidos AA e BB, violaram o princípio geral de prevenção de combate e de eliminação do risco na origem, o qual tinham obrigação de conhecer e adoptar;


31 – deveriam ter assegurado, no local, que se mostravam reunidas as condições de segurança para a execução dos trabalhos, o que não sucedeu;


32 – deveriam ter diligenciado e verificado pelo cumprimento das necessárias medidas de segurança dos trabalhos que sabiam envolver um risco acrescido e, bem assim, garantir o cumprimento das normas legais, o que não sucedeu;


33 – violaram, assim, a sua obrigação de assegurar aos trabalhadores, durante a execução da obra, condições de segurança, não observando as obrigações gerais do regime aplicável em matéria de segurança e saúde no trabalho, não adoptando as prescrições mínimas previstas em regulamentação específica;


34 – nenhum dos arguidos agiu com o cuidado que o dever geral de providência aconselhava, omitindo as precauções de segurança que lhes eram exigíveis no exercício das respectivas funções, que eram capaz de adoptar e que podiam e deviam ter adoptado, para evitar a criação do perigo;


35 – a arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, bem como os arguidos AA e BB, sabiam que violavam as disposições legais aplicáveis e tinham liberdade para se motivar de acordo com esse conhecimento;


36 – a arguida Santa Casa da Misericórdia, bem como os arguidos AA e BB, com a conduta atrás descrita, quiseram violar as regras legais, regulamentares e técnicas que deveriam ter observado no planeamento, direcção e execução dos trabalhos;


37 – bem sabiam que violavam as disposições legais aplicáveis e nada fizeram para evitar tal violação, pelo que quiseram inobservar as regras legais, regulamentares e técnicas que deveriam ter respeitado no planeamento, direcção e execução dos trabalhos;


38 – os arguidos agiram representando como possível a criação de perigo;


39 – os três arguidos não actuaram com os cuidados que a situação exigia e de que eram capazes;


40 – podiam e deviam ter previsto a possibilidade de ocorrência do resultado que veio a ocorrer;


41 – sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e que, ao agir como descrito, incorriam em responsabilidade criminal;


42 – a arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra goza (e gozava, à época dos factos atrás descritos) do estatuto de Instituição Particular de Solidariedade Social (I.P.S.S.);


43 – em 30 de Setembro de 2021, a arguida Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra dispunha de um total, em meios financeiros líquidos, de € 876.468,40;


44 – à mesma data, tinha contraído compromissos a curto prazo (em termos de pagamentos a efectuar a fornecedores, ao Estado, a fornecedores de investimentos, a pessoal, e ainda outras contas a pagar) em um valor global de € 1.048.405,93;


45 – em compromissos assumidos a médio e longo prazo (no que toca a dívidas bancárias), era devedora de um valor global de € 1.607.207,23;


46 – à aludida data, dispunha, como activos fixos tangíveis (terrenos e recursos naturais, edifícios e outras construções, equipamento básico, equipamento de transporte, equipamento administrativo e ainda outros bens), de um valor global de € 5.134.966,51;


47 – tinha, ainda, um montante total de € 155.021,59 de investimentos em curso;


(…)


100 – o acima referido DD faleceu sem testamento nem disposição de última vontade, não tinha cônjuge nem vivia em união de facto, e o seu pai havia já falecido em 29 de Junho de 2011, deixando apenas como única herdeira a sua mãe, aqui assistente e demandante CC;


101 – à data da sua morte, o DD contava 28 anos de idade e era uma pessoa saudável;


102 – entre a assistente e o falecido DD existia uma relação de amizade, amor e companheirismo;


103 – o DD vivia em família com a assistente de modo harmonioso, unido e feliz;


104 – sofreu a assistente um profundo desgosto, uma profunda dor e mágoa com a perda do filho;


105 – ficou triste, deprimida e angustiada por ter perdido o ente familiar que para ela é insubstituível;


106 – o DD sempre foi um filho carinhoso e preocupado com a mãe;


107 – a assistente teve conhecimento do acidente que causou a morte do seu filho no dia em que o mesmo aconteceu, tendo sofrido a angústia e o choque profundos da situação irreversível de nunca mais poder estar com ele;


108 – restou, por isso, em um estado de profunda prostração e frustração ao ser confrontada com a morte do seu ente querido;


109 – em consequência do seu estado emocional e físico, a assistente, desde o dia do acidente do filho, passou a sentir dificuldades em dormir, dorme e acorda com sobressaltos, suores frios e pesadelos, sente irritabilidade e redução do apetite;


110 – razão pela qual a assistente decidiu ir viver para ... com a sua filha e genro, onde se mantém desde então;


111 – nos meses que se seguiram ao falecimento do DD, a assistente viu-se obrigada a tomar medicamentos para dormir e se tranquilizar, medicamentos que não tomava antes daquele falecimento;


112 – com o falecimento do filho, a assistente nunca mais foi a mesma, deixou de sair e de receber familiares;


113 – ainda hoje a assistente continua a tomar ansiolíticos.


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10. O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal).


São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.1


Como bem esclarecem Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art.684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]».2


No caso dos autos, face às conclusões da motivação da recorrente Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra as questões a decidir em sede de revista excecional são as seguintes:


- aclaração da distinção entre os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art.152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4 do C.P., e os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art.277.º, n.º 1, alínea a) e 2, conjugado com o artigo 285.º do mesmo C.P.;


- insuficiência da matéria de facto para a condenação da aqui recorrente se considerado o preenchimento do crime p. e p. pelo art.152.º-B do C.P.; e


- caso não seja absolvida do pagamento da indemnização, seja reduzida a indemnização pelo dano morte em que foi condenada.


*


Previamente ao conhecimento das questões colocadas pela recorrente Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, impõe-se decidir, como questões prévias, a inadmissibilidade do recurso de revista excecional interposto do acórdão da Relação, suscitada pela assistente CC e pelo Ministério Público, bem como a “intempestividade do recurso”, suscitada pela assistente CC.


Alega para o efeito a assistente, em síntese: os recorrentes pretendem a intervenção do S.T.J. para se pronunciar quanto a uma questão penal, ou seja, sobre os pressupostos dos elementos do tipo objetivo de ilícito, e não quanto a uma questão cível. Pautando-se o regime jurídico-processual dos recursos e respetivas espécies consagrado no Código de Processo Penal pela autossuficiência, não é admissível o recurso de revista excecional em matéria penal. Por outro lado, tendo os arguidos sido notificados em 14 de dezembro de 2022 do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, e tendo dele recorrido em 3 de julho de 2023, foi ultrapassado o prazo de 30 dias que resulta dos artigos 411.º do C.P.P. e 638.º, n.º1 do C.P.C., razão pela qual se impõe a sua rejeição nos termos do n.º2 do art.414.º do C.P.P..


O Ministério Público argumenta, por sua vez, que a recorrente, alegando que o recurso de revista excecional tem como objeto a questão cível, o que efetivamente pretende é que seja reapreciada a questão criminal, base da condenação na indemnização cível, pelo que não sendo admissível recurso de revista excecional em matéria penal, deve o mesmo ser rejeitado.


Vejamos


O art.432.º, do Código de Processo Penal, dispõe, com interesse para a presente questão:


«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:


(…)


a) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art.400º.».


Por seu turno determina o art.400.º, do mesmo Código:


«1 - Não é admissível recurso:


(…)


e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.


(…).».


Os pressupostos de irrecorribilidade enunciados na alínea e) são delimitados pela espécie e medida da pena aplicadas pelo Tribunal da Relação: aplicação de pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, salvo se tiver havido decisão absolutória em 1.ª instância.


No presente caso, a ora recorrente viu confirmada pela Relação a sua condenação, em 1.ª instância, numa pena de 300 dias de multa, à taxa diária de €130,00, ou seja, numa multa de € 39.000,00, pelo que o acórdão recorrido, ao abrigo do disposto dos artigos 432.º, n.º1, alínea a) e 400.º, n.º1, alínea d), do Código de Processo Penal, não admite recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça.


Quando a sentença não é recorrível ao abrigo do disposto no Código de Processo Penal, a arguição de nulidades deve ser efetuada perante o Tribunal que proferiu a decisão ( n.º 2 do art.379.º do C.P.P.).


No caso, a arguida/demandada, por requerimento de 11 de janeiro de 2023, arguiu a nulidade do acórdão da Relação de 13 de dezembro de 2022, ao abrigo do disposto no art.379.º, n.º1, al. c), do C.P.P..


Por acórdão do Tribunal da Relação de 24 de maio de 2023, foi decidido julgar improcedente a arguição de nulidade do acórdão.


Nos termos conjugados dos artigos 638.º, n.º1 e 672.º do C.P.P. é de 30 dias o prazo para interposição do recurso de revista excecional.


Uma vez que a arguida/demandada Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra foi notificada do acórdão que indeferiu a nulidade do acórdão da Relação, via citius, em 25 de maio de 2023 e a recorrente interpôs o recurso de revista excecional em 3 de julho de 2023 (com pagamento da multa do art.139.º do C.P.C.), entendemos que o mesmo está em tempo, ou seja, não é nem intempestivo (caso em que teria sido interposto antes do tempo), nem extemporâneo (caso em que teria sido interposto após o decurso do prazo).


Questão é saber se o mesmo é admissível ou não.


Para franquear o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça em casos de inadmissibilidade de recurso ordinário do acórdão da Relação proferido, há sujeitos processuais que interpõem o recurso cível de revista excecional previsto no art.672.º do C.P.P., ex vi do art.4.º do C.P.P..


O art.672.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Revista excecional», estabelece, com interesse para a decisão:


«1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:


a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;


(…).


2. O requerente deve indicar, na sua alegação, sob pena de rejeição:


a) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;


(…)


3. A decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no n.º1 compete ao Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis.


(…)».


A revista excecional está prevista para situações de dupla conforme, nos termos em que esta está delimitada pelo n.º3 do art.671.º do C.P.C., desde que se verifiquem os demais requisitos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição, ao abrigo do seu n.º 1. Ou seja, a invocação dos fundamentos excecionais do art.671.º, n.º1, está limitada aos casos em que, sendo admissível, em tese, recurso de revista, nos termos do n.º1, se verifica o impedimento decorrente da dupla conforme desenhado pelo n.º3.3


O art.4.º do Código de Processo Penal, estabelece, por sua vez, a propósito da integração de «lacunas da lei» processual penal, que «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.».


A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo uniformemente que as exceções ao princípio geral da recorribilidade das decisões em matéria penal estão expressamente previstas no Código de Processo Penal, não existindo margem para convocar a aplicabilidade da norma do art.672.º, do Código de Processo Civil, por a este respeito não existir qualquer lacuna.4


Neste sentido argumenta-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 9 de março de 2023, além do mais, o seguinte5:


“ quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm negando a aplicabilidade ao processo penal do recurso de revista excecional prevista no art.672.º, n.º1 do Código de Processo Civil, por considerarem, no essencial, que o regime estabelecido neste Código é autónomo e completo, não havendo qualquer lacuna a integrar por força do art.4.º do Código de Processo Penal.


Assim, Helena Moniz, em recente artigo (“A autonomia dos recursos em processo penal (a revista excecional e outros institutos do processo civil”), defende que não deverá admitir-se (por aplicação analógica, nos termos do art.4.º do C.P.P.) um recurso interposto com base nos casos integrados na revista excecional prevista no art.672.º, n.º1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil, quando esteja em causa um recurso em processo (penal) da parte da decisão relativa à matéria criminal.


Fundamenta esta sua posição, logo à partida, com “a autossuficiência do regime processual penal, e a intenção expressa e clara do legislador no sentido da autonomização dos recursos em processo penal” e depois porque se as questões, somente de direito, relativas à “relevância jurídica”, à “relevância social” ou à “identidade da questão fundamental de direito”, não são casos previstos no C.P.P. e, podiam ser, é porque não existe lacuna a preencher. 6


Também Nuno Brandão, no seu artigo “Recursos penais para o STJ e processo civil”, publicado na mesma Revista do Supremo Tribunal de Justiça, entende que a admissibilidade no processo penal do recurso de revista excecional previsto no art.672.º, n.º1 do C.P.C., permitindo a abertura de um terceiro grau de jurisdição para discussão de uma questão de direito, “ é manifestamente indevida” e que, “como tem sido reiteradamente entendido pelas Secções Criminais do Supremo, cobra aqui aplicação, uma vez mais, a ideia da autonomia do regime dos recursos penais e a clara inexistência de lacuna que precise de ser suprida.”7.


Acompanhamos e subscrevemos a lógica argumentativa desta doutrina, seguida também uniformemente pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.


São exemplos desta jurisprudência, entre outros, os acórdãos do S.T.J., assim sumariados:


- Acórdão de 12-01-2022 (proc. n.º3519/16.8T8LLE. E1.S1):


« I - O regime processual dos recursos penais foi autonomizado no CPP de 1987, que passou a regular de modo auto-suficiente, taxativo, exaustivo e completo os casos de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça: o art.432.º do CPP delimita o recurso ordinário; os art.ºs 437.º, 446.º e 449.º do CPP, contemplam os recursos extraordinários.


II - A revista excepcional não tem aplicação nos processos penais, relativamente a matéria penal, pois só em caso de lacuna do regime processual penal poderia o intérprete socorrer-se de normas processuais civis, situação que não ocorre aqui.»;


- acórdão do S.T.J. de 06-10-2016 (proc. n.º 535/13.5JACBR.C1.S1):


«III - Não é aplicável ao processo penal, como excepção à regra da dupla conforme, o regime processual civil da revista excepcional, previsto no art. 671.º, n.º 3 e 672.º, do CPC). A arquitectura dos recursos no processo penal não foi influenciada – e podia tê-lo sido – com qualquer das alterações introduzidas no processo civil. Não quer isto dizer que ao nível de específicos detalhes não sirva o regime processual civil para conferir espessura às soluções adoptadas mercê da sua intervenção subsidiária sufragada pelo art. 4.º, do CPP. Mas não é certamente ao nível categorial-classificatório dos recursos que essa subsidiariedade se repercute de modo a permitir que seja de admitir no regime dos recursos ordinários do processo penal essa outra espécie de “revisão excepcional”.»; e


- Acórdão deste Supremo Tribunal de 08-11- 2012 (proc. n.º 712/00.9 JFLSB-U.L1.S1):


«I - O sistema da admissibilidade dos recursos ordinários em processo civil assenta nos critérios do valor da causa e da sucumbência. A regra base é, por esta via, a da limitação, que é feita de princípio (arts. 678.º, n.º 1, e 679.º do CPC), para depois se estabelecerem exceções àquele condicionamento (n.º 2 do citado art. 678.º do CPC). II - Diversamente, em processo penal, o art.399.º do CPP estabelece uma cláusula geral de admissibilidade, sendo excecionais os casos pontuais de irrecorribilidade (situações dos arts. 400.º, 310.º, n.º 1, e 86.º, n.º 5, do CPP). Mas a partir do momento em que se estabelecem as exceções àquela regra de recorribilidade, que são taxativas, não faz sentido introduzir, por analogia, uma exceção da exceção, que desvirtua a lógica do sistema de recorribilidade próprio do processo penal. III - Se a regra geral da recorribilidade é contrariada no caso da al. c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP (acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam a final do objecto do processo), essa limitação tem que se impor, sob pena de se tornar inoperante, contra a argumentação de que, à luz do processo civil, o recurso, seria de admitir.».8


O legislador ao erigir um novo sistema de recursos no atual Código de Processo Penal, que leva em linha de conta as especificidades do sistema penal, carecidas de um tratamento que melhor se lhes afeiçoasse, deixou claro o recurso, cível, de revisão excecional, não resulta de uma “incompletude contrária a um plano” no âmbito do sistema de admissibilidade de recursos em processo penal.”.


Aderindo inteiramente a esta fundamentação, que secundamos, deixa este Supremo Tribunal claro que não é admissível recurso de revista excecional, em matéria penal, ao abrigo do disposto nos artigos 672.º do C.P.C. e 4.º do C.P.P..


No presente caso, a recorrente Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra ao consignar, no art1.º das conclusões da motivação do seu recurso, que vem interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de revista excecional da “Douta Decisão da Relação de Coimbra (leia-se da 2.ª, após reenvio”, invocando o disposto na alínea a), n.º1, do art.672.º do Código de Processo Civil, não é claro se pretende abranger toda a matéria da decisão (matéria penal e matéria civil) ou se o recurso é limitado a uma parte da decisão.


Porém, quando no introito da motivação, a recorrente refere que vem interpor recurso para o S.T.J., de revista excecional, ao abrigo dos artigos 629.º, n.º1, 672.º, n.º1, al. a) e 674.º, n.º1, alíneas a) e b), do C.P.C. , todos aplicáveis ex vi do art.4.º do C.P.P., por não se conformar com a decisão da Relação que “veio confirmar a sua condenação de 1.ª instância, além do mais, no pagamento de uma indemnização no valor de € 120.000,00 (aqui autonomamente considerada nos termos do art.403, n.º1 e n.º 2, alínea b) do C.PP)”, deixa medianamente claro que o recurso de revista excecional é limitado à matéria civil.


Senão vejamos.


O art.403.º, do Código de Processo Penal, formula, no seu n.º1, a possibilidade de limitação do recurso em processo penal a uma parte da decisão sempre que seja possível apreciar autonomamente a parte de que se recorreu. E n.º2, alínea b), especifica que, para efeitos do número anterior, é autónoma, entre outros casos, a parte da decisão que se referir «A matéria civil».


A recorrente ao referir que decisão recorrida, com que não se conforma é “aqui autonomamente considerada nos termos do art.403, n.º1 e n.º 2, alínea b) do CPP”, só pode estar a limitar o recurso de revista excecional à matéria civil.


Se dúvidas houvesse, a recorrente clarificou-as na resposta ao parecer do Ministério Público, neste Supremo Tribunal, ao aceitar que não dispunha já de recurso ordinário quanto à matéria penal, e daí que o circunscreveu à condenação civil, razão pela qual “foi expressamente invocado o disposto no art.403.º, n.º 1 e n.º2, alínea b) do CPP”.


Posto isto.


É matéria penal, a matéria relativa à determinação da existência de um facto ilícito típico punível, ou seja, a verificação da existência dos elementos constitutivos de um crime, bem como a determinação das sanções aplicáveis, em caso de resposta positiva.


Já da conjugação do disposto nos artigos 29.º do Código Penal e 71.º do Código de Processo Penal, resulta constituir matéria cível, a conhecer em processo penal, a matéria relativa à determinação da existência dos pressupostos de indemnização de perdas e danos emergente de crime, regulados pela lei civil.


No presente caso, a recorrente Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra, ao interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do disposto no art.672.º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.4.º do C.P.P. , visando a aclaração da distinção entre os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art.152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4 do C.P., e os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art.277.º, n.º 1, alínea a) e 2, conjugado com o artigo 285.º do mesmo C.P., bem como o conhecimento da insuficiência da matéria de facto para a condenação da aqui recorrente se considerado o preenchimento do crime p. e p. pelo art.152.º-B do C.P., mais não faz que, nesta parte, recorrer de revista excecional, em matéria penal.


A alteração da qualificação jurídica de um tipo penal pelo qual veio acusada e veio a ser condenada, por um outro tipo penal – que nem sequer constituiu objeto do recurso interposto do acórdão proferido pela 1.ª instância –, constitui manifesta matéria penal.


A Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra ao referir que recorre de revista excecional, em matéria cível, quando efetivamente visa naquela parte a reapreciação de matéria penal, procede a uma troca de etiquetas para franquear o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça a matéria penal, que sabe ser inadmissível por força do disposto dos artigos 432.º, n.º1, alínea a) e 400.º, n.º1, alínea d), do Código de Processo Penal.


Não sendo admissível recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, em matéria penal, impõe-se julgar procedente, nesta parte, a questão prévia suscitada pela assistente e pelo Ministério Público.


O recurso de revista excecional, interposto pela Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra ao abrigo do disposto no art.672.º, n.º1, alínea a), do C.P.C., aplicável por força do art.4.º do C.P.P., respeita já a matéria cível, na parte em visa a sua absolvição do pedido de indemnização em que foi condenada - com o argumento essencial de que deveria ter sido resolvido a seu favor o ónus sobre a existência de nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano - ou, quando assim não se entenda, a redução da indemnização em que foi condenada - com o argumento de que não foi refletida na indemnização a circunstância da conduta da vítima ter sido largamente concorrente do dano.


A verificação das razões indicadas pela recorrente na sua alegação, pelas quais a apreciação da questão em matéria civil é, ou não, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito nos termos do art.672.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Civil, é da competência da formação, a que alude o n.º3, deste mesmo preceito.


III – Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em:


Rejeitar, por inadmissível, o recurso de revista excecional interposto pela Santa Casa da Misericórdia de Pampilhosa da Serra para o Supremo Tribunal de Justiça, na parte em que visa a aclaração da distinção entre os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art.152.º-B, n.ºs 1, 2 e 4 do C.P., e os pressupostos do preenchimento dos elementos do tipo objetivo de ilícito previsto no art.277.º, n.º 1, alínea a) e 2, conjugado com o artigo 285.º do mesmo C.P., bem como o conhecimento da insuficiência da matéria de facto para a condenação da aqui recorrente se considerado o preenchimento do crime p. e p. pelo art.152.º-B do C.P., por corresponder a matéria penal; e


Remeter à formação a que alude o n.º3 do art.672.º do Código de Processo Civil, para apreciação preliminar sumária, o recurso de revista excecional do acórdão da Relação na parte da matéria cível, em que a recorrente visa a absolvição do pedido de indemnização civil ou, quando assim não se entenda, a redução da indemnização em que foi condenada, nos termos supra descritos.


*


(Texto processado em computador, revisto e assinado eletronicamente pelo signatário – art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.)

Lisboa, 21 de março de 2024

Orlando Gonçalves (Relator)


Jorge Gonçalves (1.º Adjunto)


João Rato (Juiz Conselheiro Adjunto)


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1. Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.)↩︎

2. Cf. “Código de Processo Penal anotado”, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801.↩︎

3. Cf. António S. Abrantes Geraldes, in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 6.ª edição, pág. 431.↩︎

4. Apenas quando o fundamento do recurso do acórdão da Relação para o S.T.J. é a ofensa ou violação do caso julgado é que não tem havido unanimidade, pois há quem admita a aplicação subsidiária das regras do art.629.º, n.º 2, al. a) do C.P.C., ex vi do art.4.º do C.P.P.. Ainda assim, não deixa de se anotar que por acórdão de 31 de janeiro de 2024, foi já fixada jurisprudência pelo pleno das Secções Criminais, do S.T.J. (proc. n.º 266/07.5TATNV-D.S1), no sentido de que «Em processo penal, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que confirma, em recurso, decisão que julgou não verificada a ofensa de caso julgado em matéria penal, com esse único fundamento e por aplicação do art.629.º, n.º 2, al. a), do CPC».↩︎

5. Cf. proc. n.º2386/20.1T9OER.L1.S1 ( relatado pelo ora relator), in www.dgsi.pt.↩︎

6. Cf. “a Revista”, edição do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 2 (julho a dez.2022), págs.128 a 131.↩︎

7. Cf. Obra citada, pág.158.↩︎

8. Todos publicados in, www.dgsi.pt.↩︎