Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RIJO FERREIRA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE BANCÁRIA INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA INTERMEDIÁRIO BANCO DEVER DE INFORMAÇÃO NEXO DE CAUSALIDADE PRESUNÇÃO DE CULPA INCUMPRIMENTO CUMPRIMENTO DEFEITUOSO ÓNUS DA PROVA OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR APLICAÇÃO FINANCEIRA VALORES MOBILIÁRIOS ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 03/30/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | Em resultado da aplicação ao caso dos autos dos pontos 1. e 2. da decisão uniformizadora proferida pelo Pleno das Secções Cíveis do STJ (AUJ n.º 8/2022), considera-se ilícita a conduta do réu intermediário financeiro por violação dos deveres de informação a que se encontrava adstrito. | ||
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Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARARTIVA ENTRE AA (aqui patrocinado por ..., adv.)
Autor / Apelado / Recorrido
CONTRA
BANCO BIC PORTUGUÊS, SA (aqui patrocinado por ..., adv.)
Réu / Apelante / Recorrente
O Autor intentou a presente acção pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 200.000,00 €, a título de reembolso do capital, subsidiariamente de garante desse reembolso, acrescida de 15.000,00 € de juros já vencidos e dos vincendos), e ainda de 5.000,00 €, a título de danos não patrimoniais. Para fundamentar a sua pretensão alega que enquanto cliente do BPN foi abordado pelo gerente do seu balcão sugerindo-lhe que aplicasse os capitais que tinha em depósito numa aplicação em tudo igual a um depósito a prazo, com rentabilidade assegurada, com a mesma garantia desse tipo de depósito, sendo o reembolso do capital garantido sem qualquer risco associado. Foi fundado nessa informação que autorizou a aplicação de 250.000,00 € na aquisição de cinco obrigações SLN 2006, convicto de que estava a subscrever uma aplicação com as características constantanes da informação que lhe fora dada; sendo que nunca foi sua intenção subscrever aplicação financeira com as características das obrigações SLN 2006 e, se lhe tivesse sido prestada informação fidedigna as não teria adquirido. Endossou a terceiro uma daquelas obrigações. Em 2015 deixaram de ser pagos juros e em 2016 o correspondente capital não lhe foi reembolsado. Tendo sofrido desde então, e na perspectiva de ver perdidas as suas economias, preocupação, ansiedade, tristeza e falta de perspectivas de futuro. O Réu contestou excepcionando a incompetência material, a ineptidão da petição inicial e a prescrição, e impugnou a versão factual do Autor invocando ter cumprido integralmente os deveres de informação a que estava adstrito (sendo prova disso mesmo o facto de o Autor ter utilizado, em NOV2010, o mecanismo do endosso de obrigações). No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções de incompetência territorial e ineptidão da petição inicial. O Réu deduziu reclamação quanto à improcedência da excepção de incompetência territorial, a qual foi desatendida. A final foi proferida sentença que, considerando que o Réu não só incumpriu o seu dever contratual de informação como não logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia, estabelecida a existência de dano (no caso um ‘dano da confiança’ indemnizável pelo interesse contratual negativo) e de nexo de causalidade (na medida em que se o Réu houvesse cumprido a sua obrigação informativa a escolha do Autor teria sido outra), estar-se perante meros incómodos não indemnizáveis a título de danos patrimoniais e não ser ao caso aplicável o prazo prescricional de dois anos estabelecido no CVM mas o prazo geral de vinte anos, condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de 150.000,00 € acrescida de juros de mora à taxa legal desde JUN2016 até integral pagamento, absolvendo do demais pedido. Inconformado, apelou o Réu concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, ter cumprido o dever de informação, inexistir nexo de causalidade e, a ocorrer, dever a sua culpa ser considerada leve. A Relação, depois de alterações mínimas da matéria de facto, e considerando ocorrer por banda do Réu uma violação do dever de informação com culpa grave determinante de responsabilidade pré-contratual e de não estar decorrido o prazo prescricional de três anos estabelecido no nº 2 do artigo 227º do CCiv, porquanto o mesmo só se iniciaria em 2016, julgou parcialmente procedente a apelação, condenando o Réu a pagar ao Autor a quantia a liquidar resultante da dedução ao montante determinado na sentença recorrida dos valores recebidos pelo Autor desde o início da subscrição até NOV2015. Irresignado veio o Réu interpor recurso de revista excepcional, nos termos do artigo 672º, nº1, alíneas a) e b), do CPC, concluindo, em síntese, não ter violado o dever de informação, em particular ao fazer referência a ‘capital garantido’. O Autor respondeu invocando a inadmissibilidade da revista extraordinária por não ocorrer ‘dupla conforme’, nem se verificarem os pressupostos estabelecidos nas invocadas alíneas do artigo 672º do CPC; propugnando, subsidiariamente, pela improcedência do recurso. Concomitantemente interpôs recurso subordinado concluindo, em síntese, por erro de julgamento ao decretar-se a dedução dos valores recebidos pelo Autor. O mesmo Autor veio a desistir do recurso subordinado
A situação tributária mostra-se regularizada. O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC), bem como, formalmente, mostram-se satisfeitos os ónus de indicação dos elementos específicos de recorribilidade (artigos 637º e 672º, nº 2, do CPC).
Vejamos se se verifica a circunstância impeditiva da revista nos termos gerais que pode fundamentar o acesso à revista excepcional, a ‘dupla conforme’ (artigo 671º, nº 3 do CPC). Nesse conspecto haverá desde logo de ter em consideração o AUJ 7/2022, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 18OUT2022 (Proc. 545/13.2 TBLSD.P1.S1-A), que uniformizou jurisprudência no sentido de que o conceito de ‘dupla conforme’ engloba as situações de ‘reformatio in mellius’ e de que a verificação da dupla conformidade é apreciada separadamente relativamente a cada segmento decisório autónomo e cindível. No entanto não cabe aqui discorrer sobre a verificação ou não de alguma dessas circunstâncias porquanto não se verifica um outro requisito da ‘dupla conforme’ que é o de essa conformidade decisória não se baseie em fundamentação essencialmente diferente. Com efeito, enquanto a 1ª instância condenou o Réu no pagamento de uma quantia indemnizatória por incumprimento contratual do contrato de intermediação financeira, afastando a aplicação da prescrição prevista no CVM por ser aplicável o prazo geral de 20 anos, a Relação condenou o Réu no pagamento de uma quantia indemnizatória por responsabilidade pré-contratual na subscrição das obrigações, afastando a prescrição prevista no artigo 227º, nº 2, do CCiv por não estar decorrido o respectivo prazo. Ou seja, são distintas, em aspectos essenciais (tipo de responsabilidade e prazo prescricional), as fundamentações avançadas naquelas instâncias. Do que se conclui que não ocorre a limitação prevista no nº 3 do artigo 671º do CPC ao recurso de revista nos termos gerais, pelo que não cabe ao caso revista excepcional. Mas tal não implica a rejeição do recurso porquanto se entende que a interposição de revista excepcional (ainda que desacompanha de expressa interposição subsidiária de revista nos termos gerais) tem sempre implícita a interposição de revista nos termos gerais; isso mesmo resulta do disposto no nº 5 do artigo 672º do CPC. Por conseguinte o acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º, 671º e 672º do CPC). Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).
Destarte, o recurso independente merece conhecimento. Vejamos se merece provimento. Igualmente se mostram preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso subordinado, sujeito embora às condicionalidades da sua subordinação. -*-
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio. De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo. Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece. Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver resume-se a verificar se ao Réu é imputável ilicitude decorrente da violação do dever de informação.
Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:
Factos provados:
1º O A. era cliente do R., na sua agência de ..., com a conta à ordem nº ...01, onde movimentava parte dos dinheiros, realizava pagamentos e efectuava poupanças. 2º Em Maio de 2006 o gerente do Banco Réu da agência de ... disse ao autor, que tinha uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo e com capital garantido e com rentabilidade assegurada, com juros a 4,5% e prazo de 10 anos. 3º O funcionário do Banco sabia que o autor tinha um perfil conservador no que respeitava ao investimento do seu dinheiro, sendo que até essa data, sempre o aplicou em depósitos a prazo. 4º O dinheiro do autor no valor de 150.000,00€, foi colocado em obrigações SLN 2006, sem que o A. soubesse em concreto o que era, desconhecendo inclusivamente que a SLN era uma empresa. 5.º O A. não sabia o que era a SLN. Pensava que era uma mera denominação de conta a prazo, que o Banco Réu utilizava. 6º O autor autorizou a subscrição, por lhe ter sido dito pelo gerente que o capital era garantido, com juros semestrais e que poderia levantar o capital e respectivos juros quando assim o entendesse, bastando avisar a agência com a antecedência. 7º O autor actuou convicto de que estava a colocar o seu dinheiro numa aplicação segura e com as características de um depósito a prazo, num produto do Banco. 8º Se o A. tivesse percebido que poderia estar a dar ordem de compra de obrigações SLN 2006, produto de risco e que o capital não era garantido, não o autorizaria. 9º Nunca foi intenção do A. investir em produtos de risco, o que era do conhecimento do gerente e funcionários do Réu, e o A. sempre esteve convencido que o Réu lhe restituiria o capital e os juros, quando os solicitasse. 10º A convicção do autor foi reforçada com o pagamento dos juros semestralmente pagos, o que lhe transmitiu segurança e nunca o alertou para qualquer irregularidade, face ao que lhe tinha sido dito, pelo referido gerente da agência de ...; 11º E que manteve até Novembro de 2015, data em que o Banco Réu deixou de pagar os juros respectivos. 12º Nunca o gerente ou funcionários do R., nem ninguém, leu ou explicou ao A. o que eram obrigações, em concreto, o que eram obrigações SLN 2006. 13º A aplicação no valor de 100.000,00€ não foi reembolsada. 14º O A. nunca assinou qualquer ordem de compra de obrigações SLN. 15º Nunca qualquer contrato lhe foi lido nem explicado, nem entregue cópia que contivesse cláusulas sobre obrigações subordinadas SLN, nem que contivesse prazos de resolução unilateral pelo A; e nem nunca conheceu o A. qualquer título demonstrativo de que possuía obrigações SLN, não lhe tendo sido entregue documento correspondente. 16º O Réu foi apresentado pelo seu gerente como garante da aplicação financeira em causa. 17º O que constava da própria documentação interna criada, veiculada e distribuída pelo Réu aos seus funcionários. 18º Um dos argumentos invocados pela Direcção Comercial do BPN e que os funcionários da rede de balcões do banco R. repetiam junto dos seus clientes, como o fez com o A., era o de que se tratava de um investimento seguro e, por isso, com o reembolso do capital investido e juros assegurado. 19º As orientações e comunicações internas existentes no BPN e que este transmitia aos seus comerciais nos respectivos balcões consistiam em afirmar a segurança da aplicação financeira em causa, a sua solidez, a boa rentabilidade e assegurar que era garantido o capital investido 20.º Por força da impossibilidade em reaver o dinheiro aplicado o autor tem-se sentido preocupado e ansioso, com o receio de não reaver, ou de não saber quando ia reaver o seu dinheiro; 21º E tem provocado no autor ansiedade, tristeza; 22.º O autor recebia extractos periódicos onde apareciam as obrigações como integrando carteiras de títulos;
Factos não provados:
Petição inicial:
- O funcionário do banco sabia que o A. não possuía qualificação, ou formação técnica que lhe permitisse à data conhecer os diversos tipos de produtos financeiros e avaliar, por isso, os riscos de cada um deles, a não ser que lhos explicassem devidamente. - O autor tem sentido dificuldades financeiras para gerir a sua vida; - Anda em permanente estado de “stress”, doente e sem alegria de viver, por ter sido desapossado das suas economias de uma vida, e sem perspectivas de futuro;
Contestação:
- 102º, 104º, 107º, 108º, 111º; - 113º: provado o que consta do facto 10º; - 117º, 119º, 120º; - 123º e 124º: provado a apenas o que consta dos factos provados em 4º a 7º dos factos provados; - 125º, 126º, 127º.
E ainda:
- O BPN tenha sido apresentado pelo gerente da agência de ... como garante da aplicação financeira em causa; - O BPN através do seu gerente da agência de ... tenha mencionado ao Autor que iria reembolsar o capital e juros.
Resulta da matéria de facto apurada que o Banco Réu tratou da comercialização, aos seus balcões, das Obrigações SLN, executando ordens de subscrição (em particular do Autor) das obrigações emitidas por uma terceira entidade - a SLN-Sociedade Lusa de Negócios, S.A. [artigos 289.°, n.ºl, 290.°, n.º1, al. b) e 293.°, n.º l , al. a), todos do Código dos Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 486/99, de 13 de novembro], ou seja, que actuou como intermediário financeiro.
Segundo o AUJ 8/2022 (Diário da República, 1ª Série, de 03NOV23022) « os intermediários financeiros na qualidade de agentes económicos especialmente qualificados que, no mercado de valores mobiliários, prestam, simultaneamente, aos emitentes e aos investidores, contra remuneração, os serviços de realização das transações por sua conta (ou seja, propiciam o encontro entre os investidores/aforradores e os emitentes/captadores de fundos) e estão obrigados a providenciar ao investidor todos os elementos necessários à tomada de decisões esclarecidas de investimento» pelo que «enquanto intermediário financeiro
[cf. artigos 289.º, n.º1, al. a) e 290.º, n.º 1, al. c) do CVM] o banco estava obrigado ao cumprimento dos princípios ou regras de conduta estabelecidas nos artigos 304.º a 342.º do CVM».
Concluindo, na sua parte dispositiva, que «se o Banco, intermediário financeiro - que sugeriu a subscrição de obrigações subordinadas pelo prazo de maturidade de 10 anos a um cliente que não tinha conhecimentos para avaliar o risco daquele produto financeiro nem pretendia aplicar o seu dinheiro em "produtos de risco" - informou apenas o cliente, relativamente ao risco do produto, que o "reembolso do capital era garantido (porquanto não era produto de risco"), sem outras explicações, nomeadamente, o que eram obrigações subordinadas, não cumpre o dever de informação aludido no artigo 7.°, n.º1, do CVM».
Conclusão essa que se aplica por inteiro ao caso dos autos porquanto o Banco Réu sugeriu ao Autor a subscrição das obrigações SLN 2006 (facto 1), sabendo estar perante um cliente sem habilitação para avaliar o risco do produto financeiro em causa (facto 3) sem propensão para investir em produtos de risco (factos 8 e 9), afirmando que o capital estava garantido (factos 2 e 6) e sem especificar as características o produto, designadamente a sua subordinação (factos 12 e 15).
E do que resulta, sem necessidade de ulteriores considerações, a improcedência da pretensão recursiva do Réu no sentido de não ter o mesmo violado o seu dever de informação. Termos em que, sem necessidade de mais considerações, se nega a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 30MAR2023
Rijo Ferreira (Relator) Cura Mariano Fernando Baptista |