Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2362/21.7T8BCL.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: LEGITIMIDADE ATIVA
CONDOMÍNIO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
COMPROPRIEDADE
DIREITOS DO CONSUMIDOR
VENDEDOR
DEFEITOS
SUBSTITUIÇÃO
DIREITO A REPARAÇÃO
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTAS DOS AUTORES PROCEDENTES.
REVISTA DA RÉ IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- Qualquer condómino é isoladamente parte legítima para defender os seus direitos derivados da propriedade horizontal, tanto no que respeita à sua fracção, como às partes comuns.

II- A propriedade horizontal funde, num todo incindível, dois direitos do comprador: o direito de propriedade e o direito de compropriedade.

III- Numa venda de consumo não podem ser invocadas pelo vendedor de uma fracção autónoma quaisquer limitações que o regime da propriedade horizontal imponha às decisões que afectem partes comuns, para se exonerar, perante o comprador, da responsabilidade pela existência de defeitos na coisa vendida.

IV- Perante a natureza e dimensão dos defeitos e o montante da compra de um imóvel para habitação permanente, não se mostra abusivo o exercício dos direitos de reparação e substituição por parte do consumidor, quando tal actuação não resulta em desvantagem intolerável para o vendedor.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2362/21.7T8BCL.G1.S1

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA e BB, instauraram acção declarativa, com processo comum, contra CENÁRIO PACÍFICO, UNIPESSOAL, LDA., pedindo a condenação desta:

i) A pagar aos AA. a substituição, por via de aplicação de materiais novos e de qualidade média, dos equipamentos referidos no art.º 45.º da petição inicial;

ii) A pagar aos AA. a reparação, segundo as legis artis, dos equipamentos referidos no art.º 46.º do petitório;

e cumulativamente

iii) A pagar aos AA. uma indemnização no valor de EUR 1 500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de juros legais vincendos, contados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento.

Alegam que celebraram com terceiro, contrato de compra e venda do prédio que identificam, prédio que fora vendido anteriormente a esse terceiro pela ré.

Após a compra, começaram a aparecer patologias no imóvel, que a ré, apesar de interpelada, se recusa a reparar, alegando não ser responsável pela garantia do imóvel.

Diante da recusa da ré a reparar o imóvel, os autores perderam o interesse em que seja esta a proceder à reparação dos defeitos. Além disso, sofreram danos não patrimoniais decorrentes quer das patologias do imóvel, quer da actuação da ré, que devem ser valorizados em montante não inferior a € 1.500,00.

A ré contestou por impugnação e por excepção, alegando não ter sido a construtora nem a empreiteira do imóvel em causa, tendo adquirido a fracção já no estado de concluída. Esse imóvel corresponde a uma fracção que integra um prédio constituído em propriedade horizontal, pelo que os defeitos reclamados, a existirem, referindo-se às partes comuns, só podem ser reclamados pelo condomínio.

Os autores responderam à matéria da excepção.

Foi proferida sentença que:

a) condenou a ré a pagar aos autores a quantia que vier a apurar-se em incidente de liquidação, correspondente ao custo da reparação/substituição dos defeitos constantes do facto provado 7. b) a bb) e até ao limite máximo do capital de € 42.750,00 (quarenta e dois mil setecentos e cinquenta euros)acrescido de IVA;

b) condenou a ré a pagar aos autores a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por aqueles sofridos, acrescida de juros, vencidos desde a presente data, à taxa civil, até efetivo e integral pagamento.

Inconformada, a ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, o qual julgou a apelação parcialmente procedente e em consequência condenou a ré a pagar aos autores a quantia que se liquidar em incidente de liquidação, relativo ao custo da reparação dos defeitos referidos no ponto sob o n.º 7, b) a bb) à excepção dos referidos na alíneas d), j), w) e z), mantendo-se, no mais, a sentença recorrida.

Inconformados, a ré e os autores interpuseram recurso de revista, cuja minuta concluíram da seguinte forma:

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Minuta da ré:

A. “CENÁRIO PACIFICO UNIPESSOAL, LDA.”, Ré/Recorrente nos presentes autos, não concordando com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, dele vem interpor Recurso de Revista, nos termos do nº1 do artigo 629º, nº 1, 674º, nº1 alíneas a) e c) e 2 e 676º, nº 1 do CPC, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.

B. O Acórdão proferido pela Tribunal da Relação de Guimarães padece de contradição entre a fundamentação e a decisão ao ter julgado a apelação parcialmente procedente e, ainda assim, mantido a condenação da Ré a pagar aos Autores a quantia que se liquidar em incidente de liquidação, relativo ao custo da reparação dos defeitos referidos no ponto sob o nº 7 b) a bb) à exceção dos referidos nas alíneas d), j), w), e z), mantendo-se no mais a sentença recorrida, sem que, contudo, aludisse ao montante máximo que veio fixado em sede de primeira instância, podendo subentender-se que se mantém inalterado.

C. O desfecho alcançado no Acórdão Recorrido, poderá, pois, significar que, não obstante o ganho obtido em sede de apelação, em posterior liquidação de sentença venha a Ré a ser condenada ao pagamento do montante que ali veio fixado como limite máximo.

D. De acordo com o disposto na al. c), do n.º 1, do citado art. 615º, do C. P. Civil, a sentença/acórdão será nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

E. Quanto à hipótese de contradição entre os fundamentos e a decisão, ela bem se compreende, pois os fundamentos de facto e de direito, que fundamentam ou justificam a decisão, funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a mesma, como premissas lógicas necessárias para a formação do denominado silogismo judiciário. Trata-se, pois, de a conclusão decisória decorrer logicamente das respetivas premissas argumentativas, portanto, de um vício lógico, de uma contradição lógica entre a fundamentação convocada e o sentido decisório.

F. Compulsado o Acórdão Recorrido resulta, a nosso ver, evidente que ocorre a alegada contradição, pois que a argumentação de facto e de direito nele convocada, impõe redução (significativa) do montante máximo em que poderá vir a Ré condenada a pagamento em sede de incidente de liquidação, contradição que importa a sua nulidade nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC e que desde já se argui, com as necessárias consequências legais.

G. Por outra via, salvo melhor entendimento, o Acórdão Recorrido padece de errada aplicação/interpretação de Direito ao concluir pela improcedência da apelação na parte em que defende a ilegitimidade ativa dos Autores quanto aos defeitos/danos verificados nas alienas a), b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb) do ponto nº 7 dos factos provados.

H. E, isto porquanto, não obstante os danos/problemas elencados nas alíneas b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb), se localizarem no interior da fração dos AA., dúvidas não podem existir que em causa estão danos provenientes da humidade ao nível das paredes exteriores e cobertura, da deficiente aplicação e/ou inexistência de isolamento térmico entre a estrutura de betão e alvenarias, assim como entre as caixilharias de alumínio e a estrutura, pelo que, são, pois, provenientes das partes comuns do prédio.

I. Na propriedade horizontal a legitimidade (activa) para o exercício (perante o construtor/vendedor) dos direitos decorrentes da construção do edifício/imóvel com defeitos não é sempre das mesmas pessoas/condóminos, ou seja, tal legitimidade depende do local em que se situam os defeitos, sendo conferida a quem tem o poder de administração do concreto local em que se situam os defeitos.

J. A jurisprudência tem vindo a distinguir três situações: (1) Se os defeitos se situam nas frações autónomas, será apenas o seu proprietário quem terá legitimidade para exercer junto do construtor qualquer um dos direitos referidos nos art.º 1221º e seguintes, do CC (entre os quais, o de exigir a eliminação dos defeitos); (2) Se o defeito se situar numa parte comum do edifício, o exercício dos direitos de eliminação dos defeitos (e/ou de realização de nova obra), caberá apenas ao administrador do condomínio, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos, na medida em que compete exclusivamente a estes órgãos do condomínio proceder à administração das partes comuns (artºs 1430º, 1436º e 1437º, do CC); (3) POR FIM, quando o defeito se verifica numa parte comum do edifício, mas já causou danos em frações autónomas (por exemplo, se existirem infiltrações de águas da chuvas em frações autónomas, resultantes duma deficiente impermeabilização de um terraço comum), quanto ao defeito apenas o administrador do condomínio, em regra, após deliberação da assembleia de condóminos, poderá exercer os direitos descritos nos artºs 1221º e seguintes, do CC; por sua vez, no que concerne aos danos causados nas frações autónomas, poderá, ainda, o administrador do condomínio reclamar o pagamento duma indemnização, nos termos do art.º 1223º, do CC, pelas despesas que suportou ou que irá suportar (dano futuro previsível indemnizável, nos termos do art.º 564º, n.º 2, do CC), com as reparações das frações danificadas; por sua vez, os condóminos proprietários dessas frações, poderão reclamar do administrador do condomínio (art.º 1437º, n.º 2, do CC) a reparação dos estragos ocorridos nessas frações; OU, atenta a identidade da causa de pedir e/ou relação de prejudicialidade/dependência de pedidos, o administrador do condomínio e os condóminos, cujas frações autónomas foram danificadas, poderão agir em coligação (ativa), nos termos do art.º 36º, n.º 2, do CPC, pedindo o primeiro, por exemplo, a reparação do defeito existente na parte comum, e os condóminos a reparação das suas frações.

K. Adotando-se devido raciocínio lógico hermenêutico das normas supra citadas em correlação com os entendimentos sufragados pela doutrina e jurisprudência, o resultado pretendido pelos Autores com a presente lide, designadamente a reparação dos danos verificados no interior da sua fração - elencados nas b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb) do ponto 7.,- sempre dependerá da resolução das anomalias que lhes dão causa, situadas nas partes comuns e, cuja legitimidade para exigir a reparação incumbe ao condomínio, representado pelo administrador.

L. Pelo que, também quanto aos defeitos referidos nas alíneas b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb) do ponto 7., por provenientes das partes comuns, deverão considerar-se os Autores, isoladamente, partes ilegítimas para exigir a sua reparação, exceção dilatória que implica a absolvição da instância, como decorre da alínea d) do n.º 1 do artº 278º e com os efeitos previstos no artº 279º (cfr., ainda, art.º 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea e CPC).

M. Por fim, entende a Ré/Recorrente que o Tribunal da Relação incorreu ainda em errada apreciação/interpretação dos artigos 334º do Código Civil e 4º, nº 5 do DL n.º 67/2003 de 08 de abril- abuso de direito como limite do exercício do direito-, adotando, em nosso ver, entendimento alheio à factualidade/circunstâncias dos presentes autos

N. Apesar da indeterminação dos conceitos, o instituto do abuso do direito, trata-se na prática, de assegurar que subjacente à aplicação do Direito, das normas positivas, deve encontrar-se uma ideia de justiça, que deve observar-se sempre em função das concretas circunstâncias de cada caso, observadas as especificidades da vida, sem que, porém, se entre numa ideia de discricionariedade; a aplicação da figura do abuso de Direito deve orientar-se por um critério objetivo, pela aplicação dos princípios gerais de direito, em especial o princípio geral da boa-fé, para que o resultado ou solução a que se chega possa servir melhor esse ideal de justiça.

O. Seguindo os ensinamentos de Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, Almedina, edição, 2015, págs. 372-381, é possível observar diversos comportamentos típicos abusivos, importando ao presente caso analisar a vertente do desequilíbrio no exercício do direito.

“I. O desequilíbrio no exercício das posições jurídicas constitui um tipo extenso e residual de actuações contrárias à boa fé.

Ele comporta diversos subtipos; podemos apontar três:

o exercício danoso inútil;

dolo agit qui petit quod statim redditurus est;

— desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem.

II. Em todas estas hipóteses, podemos considerar que o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema, com relevo para a materialidade subjacente.

II- No tratamento do abuso do direito, devemos manter claro e sempre presente que se trata de um instituto surgido em diversas manifestações periféricas, para resolver problemas concretos.

O abuso não deriva de considerações racionais de tipo central.

P. No caso concreto, está em causa o último “sub-tipo” mencionado: a desproporção grave entre o benefício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem, sendo ostensiva a desproporção grave entre o benefício obtida pelos Autores e o sacrifico imposto à Ré, que mero vendedor e não construtor, obteve uma vantagem patrimonial de €28.420,00 vendo-se condenada ao pagamento de reparação de danos cujo montante poderá ascender a €42.750,00.

Q. Conforme resulta da matéria de facto provada, a adquiriu a fração autónoma designada ela letra “C”, com o VPT de 81.580,99 (Cfr. Factos Provados em 2. E 3.)

R. A referida fração autónoma foi adquirida no estado de concluída, não tendo a Ré qualquer interferência direta ou indireta na sua construção ou conhecimento dos materiais e obras realizadas, nem a tendo habitado.

S. Posteriormente, em 15/02/2017 a Ré vendeu a referida fração a CC, pelo preço de €110.000,00, obtendo para si proveito de cerca de €28.420,00;

T. Por sua vez, CC, que residiu na fração cerca de 18 meses, em 07/11/2018, vendeu-a aos Autores pelo preço de €182.500,00 (Cfr. Factos Provados em 4. e 5.), obtendo uma vantagem de cerca de €72.500,00;

U. Em virtude da situação de insolvência da construtora “S........... – Construções, Lda.”, a Ré está impossibilitada de exercer direito de regresso, ainda assim, bem sabendo os AA. ser a Ré profissional e, por isso, poderem beneficiar de um regime de garantia mais favorável, demandaram-na, imputando-lhe EXCLUSIVAMENTE, todas e quaisquer desconformidades, que alegadamente verificadas no imóvel, já após a utilização durante mais 18 meses pela anterior proprietária e vendedora.

V. Perante esta factualidade, afigura-se que a procedência da pretensão dos AA. e, consequente condenação da Ré ao pagamento da quantia que se liquidar em incidente de liquidação, relativo ao custo de reparação dos defeitos referidos no ponto sob o n º 7. b) a bb), à exceção dos referidos nas alíneas d), j), w) e z, mantendo-se o limite máximo o valor de €42.750,00 e, bem assim, ao pagamento de indemnização no valor de €1.500,00 a título de danos morais, é sinónimo inequívoco de uma gritante desproporção entre a vantagem obtida pelos Autores e o sacrifício por eles imposto à Ré, mero vendedor, com completo desconhecimento dos factos e sem que nunca tenha obtido vantagem patrimonial de valor tão elevado- configurando abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil- máxime na modalidade de desequilíbrio.

W.Portanto, deverá (também) nesta parte o Acórdão Recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue procedente por provada exceção de abuso de direito ser, julgada e, consequentemente, ser a Ré absolvida do pedido (artº 576º, nºs 1 e 3 CPC). TERMOS EM QUE,

Deverá o presente Recurso de Revista ser julgado procedente e, em consequência, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que,

A. Julgue procedente a arguida nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. c) e, consequentemente determine a redução (significativa) do montante máximo em que poderá vir a Ré condenada a pagamento em sede de incidente de liquidação;

B. Julgue procedente a suscitada ilegitimidade ativa dos Autores quanto aos defeitos referidos nas alíneas b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb) do ponto 7., por provenientes das partes comuns, exceção dilatória que implica a absolvição da Ré da instância, como decorre da alínea d) do n.º 1 do artº 278º e com os efeitos previstos no artº 279º (cfr., ainda, art.º 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea e CPC);

C. Julgue procedente a suscitada exceção de abuso de direito e, consequentemente, absolva a Ré do pedido (artº 576º, nºs 1 e 3 CPC).

FAZENDO-SE ASSIM INTEIRA E COSTUMADA JUSTIÇA!».

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Minuta dos autores

I. A sentença a quo fez uma errada interpretação e aplicação do regime jurídico da propriedade horizontal, quanto às alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 da decisão recorrenda [art. 674.º, n.º 1, a) do CPC], tornando a composição do litígio injusta e prejudicial aos Autores/Recorrentes.

II.A melhor doutrina portuguesa considera que o regime jurídico da propriedade horizontal não está isento de dúvidas e controvérsias – e que não resolve todos os problemas que a riqueza da vida em sociedade origina.

III. Os melhores académicos civilistas consideram que os elementos descritos nas alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 da decisão recorrida, porque estão afectados à utilização exclusiva e específica da fracção, são partes não comuns do imóvel, razão pela qual quem tem legitimidade processual sobre tais partes são os condóminos isoladamente considerados.

IV. Todos os elementos construtivos referidos d), j), w) e z) do n.º 7 da decisão recorrenda são partes não comuns, por serem partes exclusivas, objectiva e exclusivamente utilizadas apenas pelos Autores/Recorrentes, pelo que só estes têm legitimidade para demandar a R., como efectivamente o fizeram.

V. Os Autores/Recorrentes não podem concordar com o enquadramento realizado pelo TRG, sob o ponto de vista das alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 da matéria de facto, por este se mostrar absolutamente desadequado com a realidade e a essência das coisas.

VI. O TRG não escalpelizou e ajuizou separadamente cada um dos elementos constantes da alínea d) do n.º 7 dos factos provados, fazendo tábua rasa das suas naturais diversidades e múltiplas proveniências.

VII. As fissuras no muro perimetral, que é o muro que delimita a moradia e “o logradouro de uso exclusivo” (cfr. facto provado n.º 2), é uma parte não comum, com uma destinação objectivamente não comum e que serve apenas, e com exclusão de outrem, os Autores/Recorrentes.

VIII. As fissuras nas paredes das escadas de acesso à entrada principal são uma parte/componente da habitação (escadas de acesso à moradia) que está dentro do muro perimetral e que serve única e exclusivamente os Autores/Recorrentes. Apenas estes utilizam as referidas escadas, com exclusão de qualquer outro condomínio, razão pela qual não poderão ser consideradas como parte comum do edifício.

IX. As fissuras na garagem, que está inserida no 1.º piso da moradia, e é o local de estacionamento exclusivo, individual e autónomo dos Autores/Recorrentes, com saída única, directa e exclusiva para a via pública, é uma parte não comum. Os Autores/Recorrentes são os únicos utilizadores da garagem, com exclusão de todos os outros condóminos.

X. As fissuras na caixa de escadas interior, que pertencem ao conjunto da caixa de escadas (degraus, corrimão, soleira, etc.) e se situam no interior da habitação, sendo usadas exclusivamente, com exclusão de quaisquer outros, são parte não comuns da fracção.

XI. As fissuras na sala, na suite, nos quartos sul e norte, que entre si têm naturalmente diversas paredes divisórias e, por outro lado, não têm nenhuma ligação com a ossatura do imóvel, são partes não comuns da habitação, com destinações objectivamente exclusivas dos Autores/Recorrentes. Para além disso, a sala, a suite e os quartos sul e norte possuem janelas, varandas, balcões, sacadas que naturalmente, conforme foi já adiantado acima, não se consideram partes comuns.

XII. Com todo o respeito, o tribunal a quo andou mal quando considerou de uma assentada só que todos os elementos integrantes da alínea d) do n.º 7 das partes comuns, quando tais partes beneficiam e são usufruídas apenas pelos Autores/Recorrentes, logo deverão ser consideradas partes não comuns.

XIII. Relativamente à alínea j) do n.º 7, trata-se de uma parte não comum, com afectação exclusiva aos Autores/Recorrentes, nos termos do art.1421,n.º 1, c) do CC. É absolutamente indesmentível que os únicos utilizadores são os Autores/Recorrentes, pelo que será absolutamente irrazoável e desadequado considerar-se tal elemento como sendo uma parte comum do imóvel.

XIV. Relativamente à alínea w) do n.º 7, e fazendo uso dos doutos ensinamentos de RUI PINTO DUARTE, que afirma que “[r]igorosamente falando, certos revestimentos exteriores não são paredes mestras nem integram, a estrutura do prédio”. Pois bem, é disto que aqui se trata, o revestimento da fracção dos Autores/Recorrentes é composto por placas de revestimento exterior (amovíveis), que se (des)aparafusam ao exterior do imóvel. Com efeito, os danos existentes encontram-se nessas precisas placas – que nada têm que ver com as paredes mestras, ossatura, alicerces, pilares, etc. do imóvel –, pelo que são partes não comuns do imóvel. Com efeito, não podemos concordar com a decisão do TRG, pois trata-se de coisas compostas (na acepção do art. 206.º, n.º 2 do CC) – de má qualidade, diga-se – aplicados ao exterior do imóvel e, nessa medida, são partes não comuns, pelo que quem tem legitimidade para reclamar danos sobre essas coisas são os Autores/Recorrentes, razão pela qual deverá ser revogada a alínea w) do n.º 7, substituindo-se-lhe a alínea w) do n.º 7 dos factos provados na 1.ª instância.

XV. Relativamente à alínea z) do n.º 7, e fazendo uso dos ensinamentos de ABILIO NETO, os ramais de escoamento de águas individualizados para cada fração autónoma são elementos privativos da própria fracção e, como tal, propriedade exclusiva do respectivo condómino.

XVI. Assim, tudo somado e sopesado, e com o merecido respeito, o tribunal a quo errou na interpretação e aplicação do regime da propriedade horizontal quando qualificou erradamente e por atacado todos os elementos inseridos nas alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 dos factos provados como sendo elementos pertencentes às partes comuns do imóvel, quando, como já ficou demonstrado, tais elementos são partes não comuns e de uso exclusivo dos Autores/Recorrentes.

XVII. O tribunal a quo, em face dos vários elementos, que são de várias naturezas e proveniências, elencados nas alíneas d), j), w) e z) do n.º 7, deveria ter especificado os fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida (art. 607, n.º 3), quando decidiu subsumir, por atacado, todos elementos como sendo partes comuns do imóvel.

XVIII. O tribunal a quo deveria ter individualizado cada um dos elementos, designadamente os constantes da alínea d), e, sobre eles, fundamentado de facto e de direito. Ora, não o tendo feito, permita-se-nos o coloquialismo,enfioutudonomesmosacocom orótulodepartes comuns, quando na verdade estamos na presença de elementos com características e proveniências diversas, o que importa a nulidade da decisão recorrenda nos termos do art. 615.º, n.º 1, b) ex vi 674.º, n.º 1, c) do CPC.

XIX. Em consequência do que veio dito, deve o tribunal ad quem revogar as alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 dos factos provados pelo TRG, por ter sido feita uma errada aplicação da lei substantiva ao caso, bem como por ter havido falta de fundamentação sobre a subsunção desses vários e diversos elementos ao regime a propriedade horizontal, repristinando-se a douta decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Nestes termos, e nos mais de Direito, doutamente suprimidos por V. Exas., Colendos Conselheiros do STJ, deve o presente recurso de revisão ser admitido e ser julgado procedente, e, em consequência, ser revogada a decisão do tribunal a quo relativamente às alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 da matéria de facto assente, repristinando-se, assim, in totum a decisão proferida em 1.ª instância, com o que se fará a acostumada JUSTIÇA!».

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São as seguintes as questões decidendas:

1. Da nulidade do acórdão ex artigo 615.º, 1, als. b) e c) CPC.

2. Da ilegitimidade dos autores ad causam.

3. Do direito dos autores à reparação dos defeitos e substituição dos equipamentos.

4. Do abuso do direito.

5. Do direito dos autores quanto aos defeitos das alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 dos factos provados.

***

São os seguintes os factos dados como provados nas instâncias:

É a seguinte a matéria de facto provada e não provada :

1. A ré dedica-se à atividade de construção civil e obras públicas, compra e venda de imóveis e mediação imobiliária;

2. Por escritura pública outorgada em 23/05/2016 no Cartório Notarial do Dr. DD, o Dr. EE, na qualidade de Administrador de Insolvência no processo judicial que sob o nº 1145/12.0... corre seus termos na ... Secção de Comércio – J..., de ..., Instância Central, no qual é insolvente “S........... – Construções, Lda.”, declarou vender, no âmbito da liquidação da respetiva massa insolvente, a fração autónoma designada pela letra “C”, destinada a habitação, tipo T-três, na cave, rés-do-chão e andar, a terceira a contar do lado norte, com entrada pela frente do edifício virada a poente e logradouro de uso exclusivo, inscrita na matriz sob o artigo 1083, com o VPT de 81.580,99€ e o atribuído de sessenta e sete mil duzentos e cinquenta euros, (…) que faz parte do prédio urbano situado em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 199/..., sujeito ao regime da propriedade horizontal”, à ré, que aceitou comprar, destinando o imóvel a revenda;

3. Da escritura referida em 2. consta a seguinte menção: «Que efectivamente a única fracção que está concluída é a identificada com a letra “C”»;

4. Por escritura pública outorgada em 15/02/2017 no Cartório Notarial do Dr. DD, a ré declarou vender a fração referida em 2. a CC, que a aceitou comprar, destinando-se a habitação própria e permanente;

5. Em 07/11/2018, por documento particular autenticado intitulado de “Contrato de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca e Fiança”, CC vendeu aos autores a fração referida em 2., que a destinaram a habitação própria e permanente, pelo preço de € 182.500,00 (cento e oitenta e dois mil e quinhentos euros), tendo havido intervenção da mediadora imobiliária C... ...... Mediação Imobiliária, Lda.;

6. A mediadora imobiliária referida em 5. decorou os interiores da fração referida em 2., nela tendo procedido à colocação de papel de parede;

7. Em janeiro de 2019, na fração referida em 2. começaram a aparecer as seguintes desconformidades, que atualmente se mantêm:

a) descolamento do papel de parede de todos os quartos;

b) descolamento do rodapé em todas a divisões e em todas as escadas; c) descolamento do rodapé dos armários da cozinha;

d) fissuras nas paredes, concretamente no muro perimetral, na parede das escadas de acesso à entrada principal, na garagem, na caixa das escadas, na sala, na suite e nos quartos norte e sul;

e) oxidação do espelho da casa de banho da suite;

f) canalização de água quente/água fria trocados no lavatório da casa de banho de serviço;

g) calhas do blackout descoladas e desaprumadas;

h) degradação do material do blackout de todas as divisões;

i) fraturas no vidro exterior da janela da sala, junto aos fixadores;

j) soleira do primeiro piso, no cimo das escadas, deformada e descolada;

k) laje (com j e não com o g) de um dos degraus das escadas descolada;

l) proteção de caixas elétricas da sala solta;

m) criptoflorescências e/ou manchas nas paredes da garagem, da caixa das escadas, da cozinha, da suite, do quarto de banho da suite e dos quartos de hóspedes norte e sul;

n) crescimento de bolor associado à humidade nas paredes da caixa das escadas, da cozinha, da suite, de acesso à garagem;

o) crescimento de bolor como consequência da humidade nas cortinas da suite, quartos de hóspedes, norte e sul, e sala;

p) deformação do pavimento flutuante da suite e da sala, pela acumulação de humidades;

q) remates da fixação das caixas das tomadas elétricas da sala, cozinha e casas de banho deformados;

r) grelha de arejamento da cozinha colocada em posição invertida; s) torneira do bidé da casa de banho da suite mal fixada;

t) abatimento do piso de acesso à garagem;

u) soleira da porta da cozinha fixada em sentido contrário; v) abaulamento do portão de acesso à garagem;

w) deterioração das juntas do revestimento exterior e crescimento de musgos;

x) formação de cristalizações nas zonas de escorrimento de águas;

y) oxidação da chaminé;

z) escoamento das águas do piso de cobertura insuficiente;

aa) colector de águas residuais desalinhado e inclinação de escoamento insuficiente;

bb) ausência de canalete de recolha de águas superficiais, junto à soleira do portão da garagem;

8. Logo após o aparecimento do descrito em 7., os autores contactaram o mediador imobiliário, solicitando que este contactasse o legal representante da ré com vista a verificar as desconformidades descritas e a proceder à respetiva reparação;

9. Nessa sequência, os autores solicitaram ao legal representante da ré que se deslocasse à fração referida em 2., o que nunca veio a suceder, tendo o legal representante da ré comunicado que não assumiria qualquer reparação, por não ser responsável pela mesma;

10. Em julho, agosto e novembro de 2019, os autores enviaram ainda mais três interpelações escritas com aviso de receção à ré, relatando e expondo as diversas anomalias e desconformidades de que a fração referida em 2. vinha padecendo;

11. A ré nunca respondeu às referidas interpelações;

12. Nessa sequência, o autor deslocou-se ao escritório da ré para confirmar se a morada estava correta e se, de facto, tinham recebido as cartas, o que foi confirmado por FF, filha do legal representante da ré, que lhe transmitiu ainda que não iriam responder nem verificar o estado da fração referida em 2., por considerarem que o imóvel não teria garantia e que a melhor solução era os autores recorrerem a tribunal;

13. A reabilitação total da fração referida em 2., incluindo das desconformidades elencadas em 7., foi orçamentada, em 01/09/2021, em cerca de € 42.750,00 (quarenta e dois mil setecentos e cinquenta euros), acrescido de IVA;

14. Em consequência do descrito em 7. e 9., 11. e 12., os autores sentem-se angustiados, ansiosos e desconsiderados;

15. CC comprou a fração referida em 2. mobilada e decorada e residiu lá cerca de 18 meses, não tendo nela realizado qualquer alteração em relação ao estado em que a recebeu;

16. Pelo menos as desconformidades referidas nas alíneas referidas em d), j), w) e z) verificam-se nas partes comuns do prédio.

***

1, Da nulidade do acórdão ex artigo 615.º, 1, als. b) e c)

Tanto a ré como os autores arguiram a nulidade do acórdão. Vejamos cada um dos vícios invocados.

Diz a ré que «o Acórdão proferido pela Tribunal da Relação de Guimarães padece de contradição entre a fundamentação e a decisão ao ter julgado a apelação parcialmente procedente e, ainda assim, mantido a condenação da Ré a pagar aos Autores a quantia que se liquidar em incidente de liquidação, relativo ao custo da reparação dos defeitos referidos no ponto sob o nº 7 b) a bb) à exceção dos referidos nas alíneas d), j), w), e z), mantendo-se no mais a sentença recorrida, sem que, contudo, aludisse ao montante máximo que veio fixado em sede de primeira instância, podendo subentender-se que se mantém inalterado».

Como é sabido, os vícios do artigo 615.º do Código de Processo Civil (serão deste código os artigos ulteriormente citados, sem diferente menção), ergo o invocado, são vícios de actividade e não de julgamento.

De acordo com a opinião de José Alberto dos Reis, «o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional» («Vícios da sentença e sua correcção», RLJ, Ano 84 (1951):200).

Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando na motivação o juiz envereda por determinado caminho jurídico e depois, abruptamente, alcança uma meta que não pode ser a fim lógico da via encetada, antes a contradiz. Ou dito de outro modo: há oposição entre os fundamentos e a decisão quando a fundamentação segue determinada linha de argumentação e a decisão resulta de uma outra linha de argumentação oposta ou totalmente desconforme com as premissas de partida.

Ora no caso, o que a recorrente imputa ao acórdão impugnado é um erro de carácter substancial, o qual afecta o mérito ou o fundo da decisão.

A arguição deve ser indeferida.

Vejamos agora a arguição dos autores: «o tribunal a quo deveria ter individualizado cada um dos elementos, designadamente os constantes da alínea d), e, sobre eles, fundamentado de facto e de direito. Ora, não o tendo feito, permita-se-nos o coloquialismo, enfiou tudonomesmosacocom orótulodepartes comuns, quando na verdade estamos na presença de elementos com características e proveniências diversas, o que importa a nulidade da decisão recorrenda nos termos do art. 615.º, n.º 1, b) ex vi 674.º, n.º 1, c) do CPC».

Não têm razão os recorrentes. Mais uma vez se confundem defeitos jurídicos da sentença diferentes: vícios formais (erros de actividade) e vícios substanciais (erros de julgaamentoo ou de juízo).

A opinio iuris distingue a falta de fundamentação da fundamentação insuficiente, incorrecta, desordenada. Só a primeira cai no domínio dos vícios da sentença.


A circunstância de o acórdão não ter «escalpelizado e ajuizado separadamente cada um dos elementos constantes da alínea d) do n.º 7 dos factos provados» não acarreta vício de forma, mas, a existir, de juízo.


***

2. Do mérito do recurso da ré.

2.1. Da ilegitimidade dos autores ad causam

Alega a ré que «o Acórdão Recorrido padece de errada aplicação/interpretação de Direito ao concluir pela improcedência da apelação na parte em que defende a ilegitimidade ativa dos Autores quanto aos defeitos/danos verificados nas alienas a), b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb) do ponto nº 7 dos factos provados.

Em consequência, pediu que se «julgue procedente a suscitada ilegitimidade ativa dos Autores quanto aos defeitos referidos nas alíneas b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb) do ponto 7., por provenientes das partes comuns, exceção dilatória que implica a absolvição da Ré da instância, como decorre da alínea d) do n.º 1 do artº 278º e com os efeitos previstos no artº 279º (cfr., ainda, art.º 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea e CPC)».

A ré confunde, ou pelo menos é ambíguo, no manejo do conceito de legitimidade.

Uma coisa é saber se as partes que estão em juízo podem considerar-se certas, do ponto de vista processual, para deduzirem o pedido formulado contra a ré (legitimidade processual), outra coisa é saber se as partes que se apresentam em juízo, julgadas certas, têm o direito substantivo que reivindicam com a sua pretensão (legitimidade material).

O acórdão do STJ 12.10.2023, 731/224T8PRL.A.T1.S1, dá bem conta desta diferença ao destacar o conceito de legitimidade como pressuposto processual, que «exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo», por contraponto à legitimidade substantiva ou material que «reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do acto jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo» (cfr. também, entre muitos outros, ac. STJ 28.1.2021, 164/15.9T8VNF.P1.S2; na doutrina, Magalhães Collaço, «Da legitimidade no acto jurídico», BMJ, 10: 63 ss; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985:132, José Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, Anotado, Volume 1.º, Coimbra Editora, Coimbra, 2014: 70-71).

Ora, dizer-se, como faz a recorrente no artigo 7.º da contestação, que «uma vez que a fracção em causa faz parte de um prédio constituído em propriedade horizontal, quaisquer defeitos ou patologias –a estrutura- que se reportem a partes comuns do edifício (como as paredes, estruturas e cave) só podem ser reclamados pelo condomínio, por ser quem detém legitimidade para o fazer» faz suscitar a referida ambiguidade, quanto à especifica legitimidade a que a recorrente se está a referir.

Neste capítulo, debrucemo-nos apenas sobre eventual ilegitimidade processual dos autores.

Preceitua o artigo 30.º, 1, que o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

Acrescenta que (2) o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha e que (3) na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Este n.º 3, reportando a legitimidade da parte à qualidade de sujeito da relação controvertida, continuou a consagrar a conhecida tese de Barbosa de Magalhães (introduzida pelo efémero a Decreto-Lei n.º 224/82, de 8 de Junho e, depois, pela Reforma de 95/96 -Decretos-lei n.º 329-A/95, de 12 de Setembro, e n.º 180/96, de 25 de Setembro), com a especificação que essa relação se afere pela configuração que dela é dada pelo autor.


A ilegitimidade singular directa, como já notava Castro Mendes, parece ter ficado reduzida “a um vício raríssimo, de só académica configuração» (João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol II, Lisboa, 1974:171); ou, nas palavras de Rodrigues Bastos, “actualmente o pressuposto [legitimidade] funciona como um teste destinado a aferir o grau de imaginação do autor ao vir a juízo” (Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, 3.ª ed., Lisboa, 1999:74).


No caso sujeito, os autores alegaram, como causa da acção, a aquisição a terceira pessoa de uma determinada fracção autónoma do prédio que identificam, a qual, por sua vez, a tinha adquirido à ré, construtora do imóvel, bem como a promotora da venda, sendo responsável pela garantia legal do mesmo. Ora, decorrido pouco tempo após a aquisição do imóvel, começaram a notar-se algumas patologias e desconformidades na fracção, da responsabilidade da ré, cuja reparação esta se recusou, apesar de para tal ter sido, várias vezes, interpelada. Os autores encontram-se impossibilitados de utilizar conveniente e plenamente o imóvel, pelo que pretendem que a ré pague a substituição (ou a colocação quando inexistam), por via de aplicação de materiais novos e de qualidade média, dos pontos que indicam, além de uma indemnização por danos não patrimoniais nunca inferior EUR 1.500,00.

Diante desta causa de pedir, os autores são titulares da relação controvertida, ergo parte certa na acção, pelo lado activo. A questão de saber se os demandantes têm ou não legitimidade material para obterem ganho de causa é questão material ou substantiva que deve ser analisada ao nível de mérito.

Em idêntico sentido se pronunciou o TRC, em acórdão de 4.5.1999, CJ, T3:10, quando sustenta que os autores, condóminos de um prédio, desacompanhados dos outros condóminos, são partes legítimas para defender os seus direitos derivados da propriedade horizontal, tanto no que respeita a sua fracção, como às partes comuns.

De resto, acrescenta o aresto, «mal se compreenderia que, podendo cada consorte reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que esta não lhe pertence por inteiro (n.º 2 do artigo 1405.º do código Civil) não pudesse pedir a reparação dos defeitos na parte comum»

***

2.2. Dos direitos dos autores à reparação dos defeitos e substituição dos equipamentos

Diz a recorrente que, «não obstante os danos/problemas elencados nas alíneas b), c), k), m), n), o), p), t), x), y), aa), bb), se localizarem no interior da fração dos AA., dúvidas não podem existir que em causa estão danos provenientes da humidade ao nível das paredes exteriores e cobertura, da deficiente aplicação e/ou inexistência de isolamento térmico entre a estrutura de betão e alvenarias, assim como entre as caixilharias de alumínio e a estrutura, pelo que, são, pois, provenientes das partes comuns do prédio», daí decorrendo que não podem os autores reivindicar quaisquer direitos a esses danos referentes.

Recorde-se que o segundo grau tinha argumentado, a propósito da impugnação da matéria de facto feita pela apelante, o seguinte:

«Efectivamemte e conforme resulta dos factos provados e mormente da perícia designadamente do facto sob o n.º 7, no que respeita pelo menos às alíneas d) , j) , w) e z) anomalias dizem respeito às partes comuns do prédio.

Também resulta dos depoimentos das testemunhas GG e HH, engenheiros que o maior problema da fracção são as humidades, e que as fissuras no exterior (nas paredes exteriores) e mau isolamento térmico advêm das pontes térmicas entre as paredes exteriores sendo que é aí que está o principal problema. Segundo a testemunha HH para solucionar o problema deveriam as fachadas ser revestidas com um sistema de isolamento térmico pelo exterior tipo “capoto”, o que também é referido no documento de fls. 49..


Assim, a alínea d) dos factos provados deve ser eliminada e acrescentado um ponto com a seguinte redacção. Pelo menos as desconformidades referidas nas alíneas referidas em d), j), w) e z) verificam-se nas partes comuns do prédio.


Deste modo, embora não se possa concluir que todas as anomalias verificadas na fracção resultem de defeitos nas partes comuns, pelo menos em relação àqueles defeitos os mesmos verificam-se nas partes comuns do edifício.


Deste modo e atendendo a que as paredes estruturais e a cave são partes comuns, apenas o condomínio tem legitimidade para reclamar da reparação dos defeitos. Pois a correcção de defeitos nas partes comuns de um edifício constituído em propriedade horizontal só pode ser requerida pelo condomínio».


Vejamos, então, se assiste razão à recorrente, sendo certo que o facto de a Relação ter dado parcial razão à apelante quanto aos defeitos das alíneas d), j),w) e z), não significa que a contrario todas as restantes desconformidades tenham de ser consideradas afectarem a propriedade própria dos autores.

Comecemos por recordar a matéria de facto posta em causa pela ré:

7. Em janeiro de 2019, na fração referida em 2. começaram a aparecer as seguintes desconformidades, que atualmente se mantêm:

b) descolamento do rodapé em todas a divisões e em todas as escadas;

c) descolamento do rodapé dos armários da cozinha;

k) laje de um dos degraus das escadas descolada;

m) criptoflorescências e/ou manchas nas paredes da garagem, da caixa das escadas, da cozinha, da suite, do quarto de banho da suite e dos quartos de hóspedes norte e sul;

n) crescimento de bolor associado à humidade nas paredes da caixa das escadas, da cozinha, da suite, de acesso à garagem;

o) crescimento de bolor como consequência da humidade nas cortinas da suite, quartos de hóspedes, norte e sul, e sala;

p) deformação do pavimento flutuante da suite e da sala, pela acumulação de humidades;

t) abatimento do piso de acesso à garagem;

x) formação de cristalizações nas zonas de escorrimento de águas;

y) oxidação da chaminé.

aa) colector de águas residuais desalinhado e inclinação de escoamento insuficiente;

bb) ausência de canalete de recolha de águas superficiais, junto à soleira do portão da garagem;
Preceitua o artigo 1421.º CC:

1. São comuns as seguintes partes do edifício:
a) O solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio;
b) O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção;
c) As entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos;
d) As instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.
2. Presumem-se ainda comuns:
a) Os pátios e jardins anexos ao edifício;
b) Os ascensores;
c) As dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro;
d) As garagens e outros lugares de estacionamento;
e) Em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.
3 - O título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns.

A opinio iuris costuma distinguir duas espécies de partes comuns, objecto da propriedade horizontal: partes necessariamente comuns (solo, alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e as restantes partes que constituem a estrutura do edifício, o telhado ou terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso do último pavimento, as entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos, e as instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado e semelhantes) e partes presuntivamente comuns (pátios e jardins anexos ao edifício, ascensores, dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro, garagens, e, em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos) (Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 1996:311 ss., A.Santos Justo, Direitos Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 2007:320 ss., Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, 4.ª Ed., Ediforum, Lisboa, 2015:333 ss).

No número 2 do preceito importa destacar a alínea e) que fixa um critério geral de orientação: consideram-se propriedade de todos os condóminos, as coisas que não estejam afectadas ao uso exclusivo de um deles.

Porque neste caso não temos ao dispor elementos relativos ao projecto de construção, ao título constitutivo da propriedade horizontal ou ao regulamento do condomínio, que porventura disponham em contrário, para que se ilidissem as presunções resultantes das alíneas d) e e) do n.º 2 do artigo citado, necessário seria que os interessados tivessem feito a prova de que as referidas zonas e locais não estão funcionalmente ligadas à comunhão ou estão afectadas ao uso exclusivo de determinado condómino (Ac. STJ de 20.1.1994, Proc. 085738), ónus cuja satisfação também lhe caberia se tivessem querido afastar os pressupostos de aplicação das regras imperativas do n.º 1, do artigo 1421.º CC (Ac. STJ de 6.5.1986, BMJ, 357:428 e de 9.6.1987, Proc. 074769, www.dgsi.pt), designadamente das alíneas c) e d) do n.º1, do artigo 1421.º, quanto às escadas e instalações de água.

Essa prova não está feita no processo. Sendo assim as coisas, parece-nos que, além da aplicação das regras do ónus da prova, a distinção, no caso sujeito, entre o que é objecto da propriedade exclusiva de cada condómino e o que pertence a todos em compropriedade, deverá assentar num critério que leve em consideração a própria natureza e função dos espaços e das coisas em questão.

Sabemos que na fracção C apareceram descolamentos do rodapé em todas escadas e da laje de um dos degraus também das escadas, bem como criptoflorescências e/ou manchas nas paredes da caixa das escadas, sem sabermos, porém, se são escadas interiores ao serviço da própria fracção ou de utilização comum dos condóminos, e se estamos, quando falamos de escadas, a referir-nos à mesma realidade.

Por outro lado, no que se refere à garagem, não se sabem as suas características nem o modo de acesso.

A conclusão, de acordo com o enunciado critério, será atribuir o carácter de partes comuns a estas coisas.

De acordo com igual critério, as restantes desconformidades, podem, com facilidade, agrupar-se em dois grupos: um grupo, relativo a coisas pertencente a todos os condóminos (colector de águas residuais desalinhado e inclinação de escoamento insuficiente; ausência de canalete de recolha de águas superficiais, junto à soleira do portão da garagem); outro grupo, de uso exclusivo dos autores (descolamento do rodapé em todas a divisões; oxidação do espelho da casa de banho da suite; criptoflorescências e/ou manchas nas paredes da cozinha, da suite, do quarto de banho da suite e dos quartos de hóspedes norte e sul; crescimento de bolor associado à humidade nas paredes da cozinha, da suite; crescimento de bolor como consequência da humidade nas cortinas da suite, quartos de hóspedes, norte e sul, e sala; deformação do pavimento flutuante da suite e da sala, pela acumulação de humidades; formação de cristalizações nas zonas de escorrimento de águas; oxidação da chaminé).

Se esta distinção pudesse ser invocada pela vendedora de um bem de consumo –a recorrente- no confronto com os autores/consumidores, então teria em parte razão nos seus argumentos.

Acontece que esta separação não tem relevância para a resolução justa da causa.

Como foi sustentado no primeiro grau, sem qualquer questionamento ulterior, a regulação do presente litígio obedece essencialmente ao regime do DL nº 67/03, de 8 de Abril, entretanto revogado pelo DL n.º 84/2021, de 18 de Outubro, embora se continue a aplicar aos contratos celebrados durante a sua vigência (cfr. artigo 53.º deste último diolima).

No caso vertente, a sujeição ao referido regime jurídico resulta do facto de se tratar de um contrato de compra e venda de bens de consumo, considerando que os autores, os quais compraram a fracção para sua habitação própria e permanente, são consumidores, ex artigo 2.º, 2 da Lei de Defesa do Consumidor, que a ré fez a aquisição do mesmo imóvel para revenda, o que foi feito a a terceira pessoa, no âmbito da respectiva actividade económica.


Como é sabido, o DL 67/03 transpôs para o Direito interno a directiva comunitária 1999/44/CE relativa a «alguns aspectos da venda e das garantias dos bens de consumo», inovando a matéria e ampliando o campo de aplicação, além do instituto da compra e venda.

À luz deste regime especial, presume-se desconforme um bem que não é idóneo para o uso para que devia servir, se quantitativamente insuficiente ou se qualitativamente não conforme a quanto tenha sido pactuado.

Não suscitam dúvidas que as deformidades apuradas, elencadas no facto n.º 7, desvalorizam significativamente o direito exclusivo de uso da fracção.

Preceitua o artigo 3.º, 1 do referido DL que o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue


Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato (artigo 4.º, 1). Tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou a substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, tendo em conta a natureza do defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave inconveniente para o consumidor» (artigo 4.º, 2). Os direitos atribuídos por este artigo transmitem-se a terceiro adquirente do bem (artigo 4.º, 6).


Feito este enquadramento, é agora preciso saber se o vendedor de um bem de consumo pode defender-se diante de um condóminos do prédio adquirido àquele, argumentando que parte dos defeitos ocorreram em zonas ou coisas comuns dos condóminos, e que, por conseguinte, não têm legitimidade substantiva para pedir a sua reparação/substituição.


A resposta a este quesito, passa pela análise da natureza da propriedade horizontal, que aqui só pode ser feita em modo sucinto.


Partamos da tese consagrada entre nós, na base dos textos legais e defendida, entre outros, por Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1984:397, Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, Lisboa, 1996:335-337, Rui Vieira Miller, A Propriedade Horizontal no Código Civil, Almedina, Coimbra, 1998:59 e Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, 1967:294-305 e «A propriedade horizontal no Código Civil português», Revista de Direito e de Estudos Sociais, 1976 (n.ºs 1,2,3,4):142-152 que sustenta que a propriedade horizontal é «um direito real novo, um novo tipo introduzido no direito das coisas».


Diz o código que cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício (artigo 1420.º, 1 CC).


No condomínio «congregam-se dois direitos reais distintos: um de propriedade singular, no que respeita às fracções autónomas do edifício (andares, apartamentos, etc.); e outro de compropriedade, cujo objecto é constituído pelas partes comuns referidas no artigo 1421.º» (M.H.Mesquita, Direitos Reais, op. cit:295).


A propriedade horizontal não se reduz a uma mera justaposição dos direitos de propriedade do andar e compropriedade das partes comuns, dado que os dois direitos reais se fundiram para constituir uma unidade nova (Oliveira Ascensão, Direito Civil, Reais, Coimbra Editora, Coimbra, 1983:408).


Desta união resulta que o conjunto dos dois direitos é incindível (artigo 1420.º, 2 CC). Apesar de o direito sobre a fracção autónoma ser a parte nuclear da propriedade horizontal, tendo o direito sobre as partes comuns uma natureza instrumental, deve entender-se que os dois direitos estão associados, fundidos…de modo incindível.


Explica M. Henrique Mesquita que «o que caracteriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respectivo regime é o facto de as fracções interdependentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária»; «o conjunto dos direitos de cada condómino sobre as partes comuns e sobre a fracção que exclusivamente lhe pertença é incindível: nenhum destes direitos pode ser alienado, onerado ou penhorado separadamente» («A propriedade horizontal…», cit: 84,129, 146).


Pode falar-se, a propósito, em concurso de direitos sobre as partes comuns do prédio, que cada condómino isoladamente pode exercer perante terceiros, sem necessidade de fazer intervir outros condóminos (Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., Principia, Estoril, 113 e 115).

Isto mesmo se afirma no citado Ac. TRC de 4.5.99: «sendo cada condómino proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e proprietário das partes conexas do edifício, nos termos do artigo 1420.º do CC, não se lhe pode negar o direito de defender, sem qualquer restrição especial derivada do regime jurídico da propriedade horizontal, qualquer ofensa a esse direito e nem o direito defender a propriedade singular ou comum, nos termos do artigo 1311 pois goza dos direitos conferidos pelo artigo 1305.º todos do CC».

Deste regime se deduz que «não podem ser invocadas pelo vendedor de uma fracção autónoma quaisquer limitações que o regime da propriedade horizontal imponha às decisões que afectem partes comuns, ou à execução de obras nas mesmas, para se exonerar, perante o comprador, da responsabilidade pela existência de defeitos na coisa vendida.

A coisa vendida, em tal caso, é manifestamente constituída pelo todo incindível que foi alienado, não tendo cabimento a separação entre a fracção autónoma e a quota nas partes comuns. Neste contexto, coisa sem defeitos significa coisa apta a desempenhar a sua função; e é em função desse todo que a aptidão tem de ser aferida» (Ac. STJ de 24.9.2009, Proc. 09B0368).

Improcede, nesta parte, o recurso da ré.

***

2.3. Do abuso do direito

A recorrente invoca ainda a figura do abuso do direito. Alega que é ostensiva a desproporção grave entre o benefício obtido pelos Autores e o sacrifico imposto à Ré, que mero vendedor e não construtor, obteve uma vantagem patrimonial de €28.420,00 vendo-se condenada ao pagamento de reparação de danos cujo montante poderá ascender a €42.750,00.

Que dizer?

É verdade que a Ré adquiriu a fracção autónoma por € 81.580,99, a qual vendeu depois a terceira pessoa por €110.000,00, obtendo para si um proveito de cerca de €28.420,00, ao passo que a segunda compradora vendeu a fracção aos Autores pelo preço de €182.500,00, obtendo um vantagem de cerca de €72.500,00.

Entende a recorrente que, a procedência da pretensão dos AA. e consequente condenação da Ré ao pagamento da quantia que se liquidar em incidente de liquidação, relativo ao custo de reparação dos defeitos referidos no ponto sob o n º 7. b) a bb), à exceção dos referidos nas alíneas d), j), w) e z, mantendo-se como limite máximo o valor de €42.750,00 e, bem assim, ao pagamento de indemnização no valor de €1.500,00, a título de danos morais, é sinónimo inequívoco de uma gritante desproporção entre a vantagem obtida pelos Autores e o sacrifício por eles imposto à Ré, mero vendedor, com completo desconhecimento dos factos e sem que tenha obtido vantagem patrimonial de valor tão elevado- configurando abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil. Acresce que estando a construtora insolvente não poderá exercer direito de regresso.

Terá razão?

O artigo 4.º, 5 do DL 67/03 dispõe que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.

Prevalece a ideia que, na transposição da directiva 1999/44/CE, o legislador optou por não estabelecer qualquer tipo de hierarquia para o exercício de quatros direitos que protegem o consumidor, perante uma desconformidade do bem: substituição, reparação, redução do preço, resolução do contrato.

O consumidor tem assim ao seu dispor um «concurso electivo de pretensões». Porém, com os limites decorrentes da última parte daquele número 5.

Agora interessa-nos apenas o limite do abuso de direito, o qual sempre decorreria dos artigos 334.º e 762.º, 2 CC.

A clausula geral da boa fé, como qualquer cláusula geral, consiste «em permitir -no decurso do tempo e a um tecido normativo escrito estável- uma evolução, uma adaptação, uma adequação do sistema jurídico à mudança da realidade económico-social». Esta cláusula não pode deixar de se conformar às especificidades dos casos que de certo modo lhe servem de conteúdo. Não surpreende que seja difícil encontrar um critério seguro que sirva para dizer que num caso concreto o consumidor exerceu de forma abusiva algum dos enunciados direitos. Prova disso, as variadas análises, quase sempre inconcludentes, que se encontram v.g. em Miguel Diogo da Rocha e Cunha Rodrigues Machado, Direitos dos consumidores face à desconformidade do bem . hierarquia ou alternatividade?, Universidade do Minho, 2015, Ana Marques Florença, O abuso do direito do consumo, Universidade Nova, Lisboa, 2015 e Joana Teixeira da Silva, A (possível) hirarquia entre os direitos dos consumidores em caso de conformidade do bem, Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2016, todas acessíveis on-line.

Abreviando razões, podemos (apenas) dizer que haverá abuso de direito quando se verifique uma desproporção acentuada entre o direito exercido pelo consumidor e a extensão dos defeitos que o fundamentam, ou, visto de outro modo, «quando as vantagens do titular de crédito têm como consequência um sacrifício intolerável ao vendedor».

No caso sujeito -note-se-, os autores não estão a exercer um direito de resolução nem de redução do preço, mas de reparação e substituição, após terem solicitado por várias, e em vão, à ré, a verificação dos defeitos e a sua reparação. Como afirma o primeiro grau, «atenta a natureza dos defeitos, sendo parte deles relativa a infiltrações de água e consequentes humidades e bolores, consabidamente prejudiciais à saúde, aquela inércia da ré, isto é, a não realização da reparação dentro de um prazo razoável (considerando a data atual), fez, naturalmente, com que se agravassem tais danos».

Não pode a recorrente opor aos autores os ganhos de quem lhe comprou o imóvel e depois o vendeu numa normal e legítima operação de mercado.

Diante da natureza e dimensão dos defeitos e montantes em presença, da reparação e substituição exigidas versus valor da venda do imóvel, queda perfeitamente tolerável para o vendedor suportar as desvantagens do exercício dos direitos pelos autores, derivados de operação que a ré, com o inerente risco económico, quis realizar.

Também nesta parte a ré não tem razão.

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3. Do direito dos autores quanto aos defeitos das alíneas d), j), w) e z) do número 7 dos factos provados


Os autores pretendem a revogação da decisão da relação relativamente às alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 da matéria de facto assente, com repristinação da decisão proferida em 1.ª instância.

Alegam que o TRG não escalpelizou e ajuizou separadamente cada um dos elementos constantes das referidas alíneas, tendo «posto tudo no mesmo saco» das partes comuns, assim inviabilizando erradamente a pretensão por eles formulada.

Os recorrentes têm razão, mas não pelas motivos que invocam. É sabido que o Supremo não é uma terceira instância, não conhecendo das questões de facto, salvo casos excepcionais, que aqui não se verificam (artigos 674.º e 682.º).

As conclusões dos autores aludem a factualidade que não está provada, não podendo ser levada em conta neste grau.

Nos factos provados não existe qualquer menção a uma moradia, mas à fracção C, não se especifica o que quer que seja sobre o muro perimetral, não se esclarece onde se situam, para que servem e quem utiliza as escadas, qual a função da garagem e quem dela faz uso ou ainda qual a composição das sala, da suite, quartos e do revestimento exterior.

A circunstância de a fracção C, quando foi vendida, ser a única concluída, argumento de resto não usado pelos recorrentes, não constitui base para qualquer dedução forte quanto á exclusividade dos direitos invocados.

Às alíneas d), j) w) e z) são aplicáveis as mesmas considerações gerais que fizemos acima em relação às restantes alíneas impugnadas pela ré.

Não vemos por isso obstáculo em aceitar que, por exemplo, as fissuras na sala, na suite e nos quartos norte e sul, possam considerar-se pertencendo em exclusivo aos autores.

Já quanto às restantes alíneas é duvidoso que possamos chegar a idêntica conclusão.

Todavia, não é neste plano argumentativo, que devemos sindicar a razão do recurso ou a falta dela.

Como explicámos acima no ponto 2.2, os dois direitos que se identificam na propriedade horizontal fundem-se numa unidade incindível, podendo falar-se em concurso de direitos sobre as partes comuns do prédio e admitir que cada condómino isoladamente pode exercer perante terceiros os poderes incluídos no estado de comunhão.

Em conclusão: o recurso da ré não procede, mas procede o dos autores, ainda que por motivos diversos dos alegados.

Tendo ficado vencida, suportará a ré a totalidade das custas (artigo 527.º, 1 e 2).

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Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso da ré e procedente o recurso dos autores e, consequentemente, em revogar parcialmente o acórdão recorrido na parte em que absolveu a ré do pedido dos autores quanto às alíneas d), j), w) e z) do n.º 7 dos factos provados, repristinando-se o teor da decisão do primeiro grau.

Custas pela ré.

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31.1.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia