Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
294/11.6T2ILH.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESSUPOSTOS
AUDIÊNCIA PRÉVIA DAS PARTES
NULIDADE PROCESSUAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ACTO INÚTIL
ATO INÚTIL
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
RÉPLICA
RECONVENÇÃO
DECISÃO LIMINAR DO OBJECTO DO RECURSO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 10/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 473.º, N.º2, 475.º, 795.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 656.º EX VI ART. 679.º.
Sumário :
I - É de excluir do âmbito da apreciação de um recurso de revista uma questão que foi já definitivamente resolvida em precedente aresto deste STJ proferido nos autos, bem como outras questões que, em devido tempo e apesar de ter tido oportunidade para o efeito, o recorrente não trouxe ao processo.

II - A invocação de que a Relação deveria ter convidado o recorrente a tomar posição sobre a verificação dos pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa corresponde à arguição de uma nulidade processual a qual deveria ter sido protagonizada na 2.ª Instância e no prazo de 10 dias.

III - Tendo o recorrente expresso o seu entendimento em contra-alegações antes apresentadas, a Relação pôde conhecê-la, pelo que constituiria um acto inútil anular o acórdão recorrido para que aquele exprimisse novamente a sua posição, a qual, em todo o caso, jamais poderia, em virtude da preclusão, contemplar a defesa que, por opção, não foi, na réplica, oposta à reconvenção fundada naquele instituto.

IV - Mostrando-se provado que as quantias entregues pela ré ao autor tinham em vista o pagamento de um empréstimo bancário por este contraído para aquisição de uma casa e que essas entregas tinham como contrapartida a venda desta à ré, há que ter como verificado a perda da causa dessas transferências patrimoniais se a casa se encontrava no património do autor.

V - Posto que as transferências mencionadas em IV foram, a título subsidiário, enquadradas pela ré no instituto do enriquecimento sem causa, é de considerar que foi alegado e demonstrado o facto que espoleta aquele instituto, não tendo, ao invés, sido provados quaisquer factos que integrem a previsão do art. 475.º do CC.

VI - Não tendo o autor feito prova da sua versão dos factos e não tendo, na altura própria, alegado a factualidade que justificaria a posição agora adoptada, há que concluir pela inexistência de abuso do direito.

VII - Perante o exposto nos pontos precedentes, é de concluir pela manifesta improcedência da revista, o que legitima a prolação de decisão sumária (art. 656.º ex vi art. 679.º, ambos do NCPC (2013)).

VIII - Não tendo sido apresentadas, na reclamação para a conferência, questões ou argumentos novos, resta confirmar a decisão de improcedência, reiterando a respectiva fundamentação.

Decisão Texto Integral:

I. Notificado da decisão individual de fls. 692, que negou provimento ao recurso que interpôs do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 542, AA veio reclamar para a conferência, a fls. 721, pretendendo que sobre a mesma decisão recaia acórdão e concluindo “como nas alegações apresentadas”.

A parte contrária pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.


II. Não havendo questões ou argumentos novos a apreciar, transcreve-se o que consta da decisão agora sob reclamação, que se confirma, nos termos e pelas razões dela constantes:


“1. No âmbito da acção que propôs contra BB - Indústria de Mobiliários, SA, AA veio recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 542, aprovado na sequência da anulação do acórdão do mesmo Tribunal de fls. 393, pelo acórdão deste Supremo Tribunal de fls. 517. Transcreve-se, assim, parte do relatório deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, na qual se descreve o litígio:


«1. Em 29 de Abril de 2011, AA intentou uma acção contra BB – Indústria de Mobiliários. SA, de quem foi trabalhador e gerente, pedindo: a declaração de nulidade, por falta de forma, do contrato de mútuo entre ambos celebrado em 1997, no montante de € 17.457,93; a restituição dessa quantia; a condenação da ré no pagamento de € 12.220,59 de juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até integral restituição.

A ré contestou, em 23 de Maio de 2001. Invocou ter já pago parte da dívida, € 2.628,69, negou serem devidos juros até à citação, por se encontrar de boa fé, invocou a prescrição dos juros vencidos “para além dos últimos cinco anos” e opôs a compensação com um crédito sobre o autor, no montante de € 42.845,78, “soma de vários empréstimos que a ré efectuou ao autor entre Fevereiro de 1995 e Março de 2003, inclusive”, correspondentes ao pagamento das prestações mensais de um empréstimo contraído juntos da Caixa Geral de Depósitos, para aquisição de uma fracção autónoma de um determinado prédio, identificado nos autos. Disse ainda que em 10 de Novembro de 1995 acordaram que a restituição se faria através da transmissão da titularidade da referida fracção; mas que o autor nada cumpriu, apesar de interpelado por carta de 15 de Abril de 2003. Subsidiariamente, a ré pediu que “mesmo que a título de enriquecimento sem causa, o que se invoca, sempre estaria o autor obrigado a restituir à ré as quantias” que somam € 42.845,78, que discrimina. Diz ainda que o autor lhe deve € 13.856,21 de juros de mora vencidos.

Em reconvenção, pediu a condenação do autor no pagamento do excesso do seu contra-crédito.

Em 16 de Junho de 2011, o autor replicou. Interessa agora especialmente ter em conta que veio alegar que a fracção autónoma em causa fora comprada em seu nome (à data, era administrador da ré) e de sua mulher, que contraíram empréstimo junto da Caixa Geral de Depósitos para o efeito, garantido por hipoteca, porque a ré não conseguiu obter o empréstimo que solicitou; que ficou acordado que as prestações do empréstimo seriam pagas pela ré; que assim sucedeu entre Fevereiro de 1995 e Março de 2003; que efectivamente acordaram que o autor “se prontificava a vender à ré”, ou a quem esta indicasse, a fracção, passando o então adquirente a pagar as prestações, junto da Caixa Geral de Depósitos; que, portanto, nunca se obrigou a restituir quaisquer quantias; que “está, como sempre esteve, disposto” a “vender à R. ou a quem ela indicasse o apartamento referido (…)”, mas que “nunca foi para tal interpelado”, pois “recebeu uma carta da ré, datada de 15/04/2003 (…), não para proceder à transmissão do referido imóvel, como falsamente alega, mas sim para outorgar (a favor de …) uma procuração para vender o mesmo”. Disse ainda que o depósito das quantias que a ré entregou para pagamento das prestações do empréstimo correspondeu ao cumprimento de uma obrigação natural, não podendo ser repetido; que não deve juros nenhuns; mas que, à cautela, invocava a respectiva prescrição. Referiu ainda uma reunião de 21 de Junho de 2000, na qual se acordou no valor em dívida nesse momento; afirmou que a ré litigava de má fé e pediu a sua condenação em multa e indemnização, concluindo que deve ser absolvido do pedido reconvencional e que a acção deve proceder.

Houve tréplica.

No saneador, julgaram-se prescritos “os juros anteriores aos 5 anos que precederam a citação, isto é, os juros anteriores a 4.5.06, de cujo pedido a ré é absolvida (…)”; e igualmente “prescritos os juros anteriores aos 5 anos que precederam a notificação do pedido reconvencional, isto é, os juros anteriores a 27.5.06, sendo o A./reconvindo absolvido do pedido reconvenional nesta parte (…).

A acção e a reconvenção foram julgadas parcialmente procedentes, pela sentença de fls. 305, de 17 de Abril de 2013:

– O autor foi condenado “a pagar/restituir à ré a importância de 25.387,85 € (…), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do pedido reconvenional até integral pagamento”;

– A ré foi condenada no pagamento de “juros moratórios ao autor, à taxa legal, vencidos sobre” € 17.457,93 “no período que medeia entre a citação da ré e a notificação ao autor da contestação”.

Para o efeito, entendeu-se na sentença que as partes tinham celebrado entre si vários contratos de mútuo inválidos por falta de forma, salvo, no que respeita aos mútuos concedidos ao autor, quanto aos que são posteriores à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 343/98, de 6 de Novembro e cujo valor não excede os € 2.000,00; que, sejam nulos, sejam válidos os mútuos, sempre existirá a obrigação de restituição; que procedem a compensação oposta pela ré e o pedido de condenação do autor no excesso; que os juros devidos em consequência da declaração de nulidade se contam apenas, quanto aos que são devidos pela ré, pelo “período que medeia entre a citação da ré – data em que ocorre a interpelação – e a notificação da contestação”.

A sentença, todavia, acrescentou a seguinte consideração, a propósito dos “vários empréstimos”: que eles “surgem num contexto muito específico, pois o que estava em causa, inicialmente, era uma operação de financiamento, intervindo o autor e outro membro da empresa ora ré na aquisição dos imóveis que se destinavam a saldar um crédito sobre a sociedade que os construiu. Certo é que a situação foi-se consolidando ao longo do tempo, não tendo sido transferida a propriedade do imóvel – que permanece na titularidade do autor – nem satisfeito o débito que esteve na origem da referida operação, não existindo, por isso, razões justificativas para que as verbas adiantadas não sejam devolvidas por parte de quem as recebeu – o autor – sob pena de enriquecimento sem causa – art. 473º do Código Civil – dado que o património do mesmo foi aumentado à custa do empobrecimento (diminuição) do património da ré, que satisfez as respectivas prestações decorrentes da concessão de crédito solicitada pelo autor na Caixa Geral de Depósitos”.

Rejeitou, ainda, que estivesse em causa qualquer obrigação natural, por parte da ré; e observou que a prova de que as partes acordaram em que a restituição à ré das quantias por esta emprestadas “seria efectuada através da transmissão da titularidade (…) da fracção (…) “faz(…) inculcar a ideia que as partes tiveram em vista ou uma promessa de dação em cumprimento (… ) ou uma novação (…), sendo certo, no entanto, que em nenhuma dos casos o negócio se mostra cumprido, pelo que permanece incólume a obrigação inicial – restituição decorrente do mútuo ou da nulidade do mesmo –, quanto mais não seja por perda do interesse do credor – neste caso a ré – na respectiva prestação – artº 808º, nº 1, do Código Civil”.


2. Em 28 de Maio de 2013, o autor recorreu para a Relação e apresentou alegações nas quais, por entre o mais, insistiu em que nunca a ré lhe tinha emprestado dinheiro, “ficando ele obrigado a restituir outro tanto” (fls 336): “Em suma, não pode ser considerado um contrato de mútuo, aquele contrato mediante o qual uma das partes se obriga a liquidar as amortizações de um empréstimo bancário contraído para aquisição de um imóvel, obrigando-se a outra parte a vender-lhe ou a quem ela indicar o imóvel objecto do referido empréstimo” fls. 337). Vir a parte que se obrigou a liquidar as referidas amortizações, mais tarde exigir de outra a restituição dos montantes prestados, sem que nunca interpele a mesma para proceder à venda do imóvel como havia ficado acordado, constitui litigância de má-fé por parte daquela”

Pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de fls. 393, de 14 de Janeiro de 2014, a sentença foi revogada. O autor foi absolvido do pedido reconvencional e a ré foi condenada a pagar-lhe a quantia de € 17.457,93, com juros contados desde a citação.

Em síntese, a Relação, alterando alguns pontos da decisão de facto, considerou que a ré não tinha conseguido fazer prova do contrato de mútuo que invocara:

«Ora, vista a factualidade apurada nos autos (…), facilmente se conclui que a reconvinte não logrou fazer prova da existência do invocado vínculo contratual. Com efeito, independentemente da qualificação jurídica do acordo celebrado entre a reconvinte e o autor reconvindo, tal como emerge da factualidade apurada – afigurando-se ter aquele actuado como “figura de palha” em negócio simulado também por interposição de pessoa – a verdade é que a obrigação por si assumida foi a de transmitir o direito de propriedade da fracção para a reconvinte ou a favor de quem esta indicasse, quando para tal interpelado. Admite-se que o reconvindo tenha incorrido em mora quanto ao cumprimento de tal obrigação e não se encontre sequer em condições de a cumprir no imediato, dado que onerou a fracção através da constituição de hipoteca que garante um empréstimo pessoal. Todavia, o que não pode é transformar-se tal obrigação, sem mais, numa obrigação de restituir as quantias pagas pela ré a título de amortização do empréstimo contraído junto da CGD, de que apenas esta beneficiou, ao abrigo de um invocado, mas de modo nenhum demonstrado, contrato de mútuo.

Ponderou o Mm.º juiz “a quo”, ainda que lateralmente, que “estando em causa inicialmente uma operação de financiamento, intervindo o autor e outro elemento da sociedade ré na aquisição dos imóveis que se destinavam a saldar um crédito sobre a sociedade que os construiu, certo é que a situação foi-se consolidando ao longo do tempo, não tendo sido transferida a propriedade do imóvel – que permanece na titularidade do autor – nem satisfeito o débito que esteve na origem da referida operação, não existindo, por isso, razões justificativas para que as verbas adiantadas não sejam devolvidas por parte de quem as recebeu – o autor -sob pena de enriquecimento sem causa – art. 473º do Código Civil – dado que o património do mesmo foi aumentado à custa do empobrecimento (diminuição) do património da ré, que satisfez as respectivas prestações decorrentes da concessão de crédito solicitada pelo autor na Caixa Geral de Depósitos”.

Tais considerando, porém, não os podemos subscrever. Com efeito, tendo o autor assumido, nos termos do acordo celebrado, e conforme se deixou já referido, a obrigação de transmitir para a ré ou para quem esta indicasse, o direito de propriedade sobre a fracção em causa, sobre a ré/reconvinte recaía inequivocamente o ónus da alegação e prova de que aquele incorreu em incumprimento definitivo, em ordem a ser ressarcida dos prejuízos sofridos, aí podendo ser considerados os valores aqui reclamados e até eventual perda de chance de uma venda vantajosa. O que não pode é tal efeito ser decretado ao abrigo de uma obrigação de restituir com origem num indemonstrado contrato de mútuo – sendo certo que sobre a reconvinte recaía, também aqui, o ónus da respectiva prova, consoante dispõe o n.º 1 do art.º 342.º – ou ininvocado instituto do enriquecimento sem causa, mesmo desconsiderando o seu carácter residual.

O que vem de se dizer conduz à conclusão de que o recurso interposto merece procedência, devendo ser revogada a sentença proferida no segmento impugnado, sendo substituída por decisão que absolva o autor reconvindo do pedido reconvencional formulado. Consequentemente, e por não haver lugar à operada compensação, subsiste a condenação da ré no pagamento ao autor da quantia por este peticionada, acrescida dos juros de mora contados da data da citação.»


3. A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, que, pelo acórdão de fls. 517, e para o que agora releva, deliberou “Anular o acórdão recorrido e determinar o envio do processo ao Tribunal da Relação de Coimbra para que aprecie a questão do enriquecimento sem causa, pelos mesmos juízes, se possível”.

Interessa especialmente recordar o que este acórdão anulatório considerou, perante as seguintes afirmações do autor, ora recorrente, então recorrido, nas contra-alegações de revista:

– de que a (então) recorrente não tinha invocado «“um único facto consubstanciador” do enriquecimento sem causa; que só pod[iam] considerar-se, para o efeito, os que alegou na contestação, os factos que então utilizou, em primeiro lugar, para pedir a restituição com fundamento na nulidade dos mútuos que invocou e, subsidiariamente, para pedir essa restituição com fundamento em enriquecimento sem causa», o Supremo Tribunal de Justiça observou que “é certo que não poderão ser considerados, em recurso, factos relativos à contestação da ré, que não pudessem ter sido conhecidos em 1º Instância”;

– de “que foi a recorrente quem primeiro entrou em incumprimento, e que não lhe é possível vir agora, no recurso de revista, algar factos consubstanciadores de enriquecimento sem causa, deixando-o a ele, recorrido, sem possibilidade de defesa, impedido de exercer o contraditório, e justificando a hipoteca de 2009, a execução e a aquisição pela Caixa Geral de Depósitos, por entre o mais”. O Supremo Tribunal de Justiça considerou que “a verdade é que a recorrente [ora recorrida] invocou ter interpelado o recorrido [ora recorrente] para lhe passar uma procuração para vender, sem êxito; e invocou o enriquecimento sem causa. O que significa que o recorrido [ora recorrente] teve a oportunidade de se opor, na réplica, justificando a nova hipoteca (tenha-se em conta que, o que ficou provado, foi que a hipoteca de 2009 se destinou a garantir um crédito pessoal do autor e de sua mulher) e apresentando toda a defesa que entendesse quanto à alegação de enriquecimento sem causa. Nomeadamente, teve toda a oportunidade de justificar a aquisição pela Caixa Geral de Depósitos. Não procede, portanto, a alegação de que não houve nos autos a oportunidade de discutir se houve incumprimento definitivo da sua parte. Acresce que o princípio da concentração valia para a réplica; a omissão da defesa à excepção e à reconvenção, com a extensão que agora invoca, ficou precludida, salvo quanto à alegação de factos supervenientes (artigo 506º do Código de Processo Civil, na versão aplicável à data dos articulados da presente acção)”;

– de «que nunca foi interpelado para “ceder o apartamento à ré ou a quem ela indicasse” (ponto 22 das alegações de revista), remetendo para o demonstrar para a resposta ao quesito 18º (“Por diversas vezes a Ré interpelou o A. para esse efeito? Resposta: não provado).» Mas o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que «só se compreende o significado deste quesito descobrindo a sua origem no artigo 24º da contestação, como referido ao acordo mediante o qual o autor se obrigou a vender a fracção à ré ou a quem esta indicar; ora, para além de ter conteúdo de direito – o que significa ter interpelado o autor? –, a verdade é que foi dado como provado o envio da carta de fls. 98, cujo conteúdo está acima transcrito. Essa carta contém uma interpelação para o autor cumprir a obrigação que assumiu; poder-se-á discutir se interpelar para passar uma procuração para venda equivale, ou não, a interpelar para vender; o que implicaria interpretar o compromisso assumido. Mas a carta contém uma interpelação para cumprir».

E o mesmo acórdão de fls. 517 concluiu nestes termos:

«10. Está apenas em causa saber se pode considerar-se que o réu invocou ou não oportuna e suficientemente o enriquecimento sem causa e, em caso afirmativo, se o autor está ou não obrigado a restituir à recorrente as quantias enumeradas nos pontos 19 a 27 da lista dos factos provados, por não existir causa que justifique a sua retenção. Da resposta a esta questão depende saber se é fundada a compensação oposta pela ré, bem como a condenação do autor no pagamento da diferença.

Cumpre, todavia, começar por verificar se é fundada a oposição do recorrido à utilização do documento junto pela recorrente, nestes termos: “… a apresentação do documento junto com as alegações, podendo embora ser considerada tempestiva, não poderá nunca ser considerada relevante para a boa decisão da causa, porquanto, só por si, não demonstra que tenha havido incumprimento do autor ou prejuízo para a ré, não devendo por isso ser aceite e/ou considerado relevante”.

No entanto, a obrigação de restituir, com fundamento em enriquecimento sem causa, pode ocorrer, nomeadamente, quando o objecto de que se trate (aqui, as quantias referidas de 19 a 27 da lista dos factos provados) “for indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (nº 2 do artigo 473º do Código Civil). Ora, independentemente de saber quem incumpriu primeiro o contratado, a saída da fracção da titularidade do autor faz objectivamente desaparecer a causa que justificava que as quantias tivessem sido pagas pela ré.

Não pode assim excluir-se liminarmente a utilização do documento.

11. O acórdão recorrido não apreciou a eventualidade de se verificar enriquecimento sem causa, não obstante ter sido efectivamente invocado, a título subsidiário, quer como excepção, quer como causa de pedir da reconvenção.

Não deve ser o Supremo Tribunal de Justiça a conhecer de tal questão, em substituição do Tribunal da Relação. Com efeito, o disposto no artigo 665º. nº 2 do Código de Processo Civil, para a apelação, não é aplicável no recurso de revista (artigo 679º do Código de Processo Civil).

O processo deve assim ser remetido ao Tribunal da Relação para que conheça da eventualidade de enriquecimento sem causa, que se tem como oportunamente invocado e que, eventualmente, merecerá ser apreciado em conjunto com o documento junto pela recorrente com as alegações da revista.»


4. Na sequência deste acórdão, o Tribunal da Relação de Coimbra proferiu o acórdão de fls. 542, que concedeu provimento à apelação e manteve a sentença da 1ª Instância.

Considerando – “nos termos do aresto do STJ – como “suficiente e oportuna – a alegação de enriquecimento sem causa, e tendo “por admitido” o documento junto com as alegações de revista, uma vez que a condenação do ora recorrente como litigante de má fé pelo Supremo Tribunal de Justiça assentou no facto nele documentado e, portanto, considerando-o em conjunto com o eventual enriquecimento sem causa, a Relação decidiu:

 – que o caso dos autos  se podia enquadrar no nº1 do artigo 795º do Código Civil, “uma vez que a prestação a que o autor (…) se vinculou nos termos do acordo celebrado com a ré se tornou impossível. É certo ter aquele invocado, nas contra alegações que apresentou no âmbito do recurso de revista, factos tendentes a demonstrar a culpa desta, a dar lugar à aplicação do regime do n.º 2 do citado normativo. Todavia, e conforme se alcança dos termos do acórdão do STJ proferido nos autos, aqui foi entendido que ao recorrido foi concedida a possibilidade de, na réplica, justificar o novo empréstimo (na base da instauração da execução e subsequente alienação da fracção) e o que tivesse por pertinente quanto ao enriquecimento sem causa, mostrando-se agora precludida tal faculdade.

Aceite pois, que a ré reconvinte realizou prestações, conforme se havia vinculado, consubstanciadas na entrega das apuradas quantias, e tendo presente que, “independentemente de saber quem cumpriu primeiro o contratado, a saída da fracção da titularidade do autor faz objectivamente desaparecer a causa que justificava que [tais] quantias tivessem sido pagas pela ré” [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 517[, é de reconhecer a obrigação do autor proceder à restituição da prestação recepcionada, mas apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa (cf. n.º 2 do art.º 795.º)”;

– quanto à prova do enriquecimento  e à determinação da medida  em que se verificou, a Relação, observando que “caba à reconvinte a prova do enriquecimento e a medida deste”, decidiu, em aplicação do critério definido pelo artigo 479º do Código Civil, que “não há dúvida que as assinaladas quantias ingressaram na conta bancária titulada” pelo autor “e, assim, no seu património. Acresce que se é verdade que os referidos montantes foram afectados à satisfação das prestações relativas à amortização do empréstimo contraído junto da CGD, não é menos certo que foram o autor e mulher quem pelo mesmo se vinculou, donde, a não ter sido o pagamento efectuado com as quantias entregues pela ré reconvinte, e teriam de o ser por outras, à custa portanto do património do casal. Demonstrados deste modo os pressupostos do enriquecimento sem causa, meramente consequente é o reconhecimento da obrigação de restituição das quantias recebidas. Sendo assim a ré reconvinte detentora de um crédito sobre o reconvindo, o qual excede aquele que a este foi reconhecido, operou-se, por efeito da oportunamente invocada excepção da compensação, o crédito do autor, que é devedor do remanescente, conforme declarado na decisão da 1.ª instância, que desta feita se confirma.”


5. AA, autor, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:

1 - Apesar de o instituto do enriquecimento sem causa ter sido mencionado da contestação/reconvenção, não foram pela ré/reconvinte alegados factos, como lhe competia, alegados factos consubstanciadores de tal alegação, o que só em sede de recurso de revista para este Venerando Tribunal veio fazer, sendo ainda de referir que não tendo o autor sido notificado pelo tribunal recorrido para se pronunciar quanto ao alegado pela ré, foi violado o princípio do contraditório, previsto e consagrado no artigo 3º do Código de Processo Civil.

2 - Com efeito, ainda que se tenha considerado por invocado oportunamente aquele instituto, fê-lo de forma insuficiente, não resultado dos factos provados constantes do douto acórdão recorrido, factos concretos e suficiente que nos permitam, desde logo concluir que se verificou o enriquecimento do autor, não tendo a ré sequer invocado tal instituto aquando da resposta às alegações de recurso do autor.

3 - Ora, a fracção autónoma descrita e em causa nos presentes autos, foi adjudicada pela Caixa Geral de Depósitos em processo de execução, instaurado contra o autor/reconvindo e a mulher, no âmbito da reclamação de créditos apresentada por aquela instituição bancária na sequência do incumprimento do pagamento das prestações referentes ao empréstimo contraído, tendo o referido banco denunciado os dois contrato de mútuo celebrados com o autor, executando assim as duas hipotecas que pendiam sobre o imóvel (cfr, doc. 1 que se junta e que traduz a realidade registral completa, histórica e temporal do prédio dos autos, cuja admissão se requer sem condenação em multa, pois visa apenas dar a este Venerando Tribunal um conhecimento mais completo acerca das hipotecas que existiam;

4 - Recorde-se a este respeito que, conforme ficou demonstrado em sede de julgamento, a ré, desde Abril de 2003, que deixou de providenciar pelo provisionamento da conta bancária referida em 16 dos factos provados, por sua livre vontade, entrando primeiro em incumprimento em relação ao que havia sido acordado e a que se havia obrigado, conforme ponto 11 dos factos provados, tendo dado causa ao incumprimento do pagamento das prestações do empréstimo, o que por sua vez deu causa incumprimento por parte do autor, no que concerne à obrigação de restituição, mediante a venda do imóvel à ré ou a quem ela indicasse.

4 - Pelo que, a fracção autónoma em causa nos presentes autos já não é propriedade do autor/reconvindo, por culpa exclusiva da ré/reconvinte que desde Abril de 2003 deixou de proceder ao depósito das quantias referentes à amortização do empréstimo junto da Caixa Geral de Depósitos, o que afasta a obrigatoriedade de restituição por força da aplicação do artigo 475º do Código Civil.

5 - O autor/reconvindo adquiriu o imóvel em causa, contraindo uma dívida em seu nome junto da Caixa Geral de Depósitos, dívida que durante algum tempo pagou a expensas suas, dívida essa por si contraída apenas e só no interesse e a solicitação da ré/reconvinte, para que esta recuperasse parte do seu crédito mal parado junto da sociedade "CC. Lda.", dívida essa que aquando da celebração do contrato de mútuo em 1995 foi garantida com hipoteca voluntária sobre o imóvel, reforçada em 2009 por nova hipoteca na sequencia do novo empréstimo contraído pelo autor para consolidar o débito junto do banco.

6 - Pelo que não se verificou o enriquecimento do autor, pressuposto essencial para a verificação da obrigação de restituir com base naquele instituto. Com efeito, para se verificar um enriquecimento, deverá verificar-se urna melhoria da situação patrimonial, o que não se verificou, e tão pouco a ré alegou factos que nos levassem a concluir nesse sentido, cabendo apenas à ré a prova do enriquecimento do autor e a medida do mesmo, sendo certo que, não obstante as quantias entregues tenham ingressado na conta bancária do autor, as mesmas nunca foram utilizadas para proveito próprio (fazendo face a necessidades pessoais) mas apenas, e como ficou amplamente demonstrado, se destinaram a pagar as prestações referentes à amortização do empréstimo contraído a pedido e no interesse da ré. Aliás, o autor não teria dificuldade em demonstrar que houve sim um empobrecimento do seu património.

7 - Na verdade, o autor/reconvindo nunca recebeu, para si, quaisquer quantias por parte da ré/reconvinte, as quais foram sempre entregues directamente à instituição bancária CGD, para amortização do empréstimo contraído.

8 - Quanto à subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa, ou falta de causa justificativa, existe e existia outro meio de a ré/reconvinte fazer valer os seus direitos, assim queira sujeitar-se às normais regras do exercício do contraditório por parte do autor/reconvindo e bem assim dar cumprimento ao ónus da prova, como lhe cabe.

9 - Tendo o Tribunal recorrido no primeiro acórdão proferido dado cabal cumprimento e feito a mais correcta das interpretações ao disposto no art. 473º do Código Civil, cabendo à ré/reconvinte ter alegado na sede própria as razões de facto que sustentavam a sua alegação no artigo 30º da contestação (e não petição inicial, como certamente por lapso refere nas suas alegações).

10 - Na verdade, os termos do acordo (ou contrato) feito pelas partes consta expressamente da declaração junta a fls. 97 dos autos que aqui se dá como integralmente reproduzida.

11 - Existindo pois o compromisso da ré/reconvinte em provisionar a conta da Caixa Geral de Depósitos titulada pelo autor onde era descontada a prestação referente ao empréstimo para habitação, o qual, como resulta do teor do depoimento da supra referida testemunha DD, foi contraído no interesse da própria ré, tendo-se o autor obrigado a, quando para tal fosse interpelado, vender a fracção em causa à ré ou a quem ela indicasse.

12 - Na verdade, as partes celebraram entre si um contrato atípico, o que fizeram ao abrigo do princípio da liberdade contratual, mediante a qual são as partes que determinam o conteúdo e os efeitos dos negócios jurídicos. As partes são livres de fixar o conteúdo dos contratos, de celebrar contratos diferentes dos previstos na lei ou de incluir, nos que aí estão previstos, as cláusulas que entenderem, desde que utilizem essa liberdade dentro dos limites que a lei lhes impõe.

13 - Pelo que. a R. ao alegar que o A. lhe deve as quantias que agora veio reclamar vem deduzir pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, agindo com manifesto abuso de direito, alterando a verdade dos factos e omitindo outros relevantes para a decisão da causa,

14 - Ademais, o douto acórdão ora recorrido, veio subsumir o presente caso à hipóteses prevista no nº 2 do artigo 473º do Código Civil, fundamentando a sua decisão na existência de enriquecimento por falta do resultado previsto (o que não obsta a que tenha que ficar suficientemente demonstrado que se verificou um efectivo enriquecimento), entendendo-se como resultado previsto a transferência futura da propriedade do imóvel para a ré ou para quem esta indicasse, não é menos verdade que foi a ré quem impediu, conscientemente e de má-fé, a verificação daquele resultado. Pelo que, é nosso entendimento que esta realidade de forma alguma poderá vir a constituir enriquecimento sem causa do autor às custas da ré, porquanto aquele sempre esteve disponível a ceder o apartamento à ré ou a quem ela indicasse, nunca tendo sido para tal interpelado e não obstante a ré ter entrado em incumprimento com a prestação obrigacional que lhe cabia desde Abril de 2003, inclusive.

15 - Acresce que, o artigo 475º do Código Civil exclui a obrigação de restituição com base no enriquecimento sem causa por falta de verificação do resultado previsto, a saber;

a) Se ao efectuar a prestação o autor sabia que o efeito com ela previsto era impossível;

b) Se o autor da prestação impediu de má-fé a verificação do resultado, o que no caso que agora tratamos ficou amplamente demonstrado, porquanto foi a ré quem primeiro entrou em incumprimento com a sua prestação (em Abril de 2003), deixando propositadamente de proceder aos depósitos bancários necessários para provisionar a conta referida em 16 de modo a garantir o pagamento das prestações referentes ao empréstimo que o autor havia contraído em seu nome, mas a pedido e no interesse da ré.

16 - Ora, Atendendo ao quadro negocial dos autos, e bem assim ao teor da declaração junta (doc. 2 e ponto 11 dos factos provados) não é exigível ao autor e mulher a obrigação de, face ao incumprimento da ré, providenciar às custas dos seu património comum pela provisão da referida conta (não obstante o tenham feito durante algum tempo), como surpreendentemente defende o douto acórdão de que agora recorremos, o que a nosso ver ultrapasse os limites impostos pela boa-fé, bem como pelos bons costumes e fim económico e social do direito, constituindo tal exigência por parte da ré manifesto abuso de direito nos termos e para os efeitos do artigo 334º do Código Civil.

17 - Assim sendo, desde o inicio que o autor entende constituir manifesto abuso de direito a pretensão da ré em que lhe sejam restituídas as quantias reclamadas nos presentes autos, ainda que tendo por base o instituto do enriquecimento sem causa, quando foi a própria ré quem, por força do seu incumprimento da obrigação assumida perante o autor, o colocou numa situação de impossibilidade de cumprimento da sua prestação (venda do imóvel) circunstância que a nosso ver afasta a obrigação do autor de restituir as quantias que foram depositadas na sua conta entre 1995 e 2003 e que sempre se destinaram exclusivamente ao pagamento das prestações referentes ao empréstimo que havia contraído em seu nome, mas a solicitação e no interesse da ré.

 Termos em que, se requer muito respeitosamente a V. Exas se dignem dar provimento à Revista ora apresentada pela ré, e em conformidade revogar a decisão ora recorrida, substituindo-a por outra que julgue improcedente a reconvenção deduzida pela ré contra o autor, absolvendo-o assim do pedido contra si formulado, designadamente com base no instituto do enriquecimento se causa, com as legais consequências, assim se fazendo, JUSTIÇA!


A ré contra-alegou, sustentando a manutenção do que foi decidido.

O recurso foi admitido, como revista e com efeito devolutivo.


6. Mantêm.se provados os seguintes factos:

1. O autor trabalhou por conta e no interesse da ré entre 1983 e 1990 (alínea A) dos factos assentes).

2. Data em que adquiriu uma quota equivalente a 10% do capital social, tendo sido designado sócio gerente da mesma, cessando assim funções como trabalhador nesse ano (alínea B) dos factos assentes).

3. Tendo sido readmitido ao serviço da ré em 2 de Novembro de 1995, novamente como trabalhador, após a venda da sua participação social (alínea C) dos factos assentes).

4. Aí permanecendo, exercendo funções de director comercial, até 31 de Dezembro de 2000 (alínea D) dos factos assentes).

5. Durante o ano de 1997, foi celebrado entre o autor e a ré um contrato mediante o qual o autor emprestou à ré a quantia de 3.500.000$00, não tido tal negócio sido reduzido a escrito (alínea E) dos factos assentes).

6. Em data anterior a Janeiro de 1998, a Ré forneceu mobiliário, designadamente cozinhas, a “Construções CC, Ldª, sociedade que, nessa data, atravessava um difícil período económico-financeiro, evidenciado dificuldades em cumprir as suas obrigações para com a ré, sua credora (alínea I) dos factos assentes).

7. Para saldar esses débitos, a ré decidiu ficar com dois apartamentos que as Construções CC construíram no Vale das Cerejeiras ou Monte Belo, Lote 42, S. Sebastião, Setúbal (alínea J) dos factos assentes).

8. A ré não tinha à época disponibilidade financeiras suficientes para proceder ao distrate da hipoteca que onerava as fracções, em ordem a permitir a transmissão do direito de propriedade a seu favor, tendo tido necessidade de recorrer a financiamento junto da CGD, que se negou a conceder-lho (alínea L) dos factos assentes).

9. Para ultrapassar este impedimento na concessão do financiamento bancário, foi acordado entre ré e autor que o empréstimo para aquisição de um dos apartamentos seria contraído em nome do autor (art. 19º da base instrutória).

10. O qual se obrigou a mais tarde fazer a cedência do mesmo à ré (art. 20º da base instrutória).

11. Foi acordado entre o autor e a ré que esta pagaria sempre as prestações referentes ao empréstimo contraído pelo autor junto da CGD, prontificando-se ele a vender o apartamento em causa à ré ou quem esta indicasse (art. 21º da base instrutória).

12. Ficou ainda acordado que a ré pagaria todos os impostos inerentes ao imóvel, designadamente a contribuição autárquica e o IMI (art. 22º da base instrutória).

13. Por escritura de 25.1.95, o autor e sua mulher adquiriram a Construções CC, Ldª, por dez milhões de escudos, a fracção AH, do prédio urbano sito no … ou …, lote …, freguesia de S. Sebastião, Setúbal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº … – AH (doc. de fls. 82 e ss.) (alínea F) dos factos assentes).

14. Em 10.11.95, autor e ré acordaram por escrito que o autor se prontificava a vender à ré, ou a quem esta indicasse, a fracção AH do 9.º andar do Lote … da Urbanização …, em Setúbal, ficando o novo adquirente obrigado a proceder ao pagamento das prestações em falta para a completa liquidação do empréstimo contraído junto da CGD (alínea N) dos factos assentes e resposta aos artigos 15.º e 16.º).

15. Pela mesma escritura, o autor e mulher constituíram-se devedores à CGD da quantia de dez milhões e oitocentos mil escudos que aquela emprestou para aquisição do imóvel, valor que se obrigaram a pagar no prazo de 25 anos a contar daquela data, nas condições de fls. 88 e ss. (alínea G) dos factos assentes).

16. Todos os pagamentos do empréstimo referido no ponto anterior deveriam ser efectuados através de débitos na conta de depósito à ordem titulada pelo autor e mulher na CGD com o nº … - …, do balcão de Águeda (alínea H) dos factos assentes).

17. Foi acordado entre autor e ré que seria a ré a providenciar pela provisão da conta referida em 16., procedendo para o efeito a depósitos mensais da quantia equivalente à prestação do empréstimo (alínea M) dos factos assentes e resposta ao art.º 17.º).

18. Nos meses compreendidos entre Fevereiro de 1995 (inclusive) e Março de 2003 (inclusive), e nos termos do acordo celebrado, a ré, através de cheques que emitiu, procedeu ao depósito na conta referenciada em 16. das quantias necessárias à satisfação das prestações mencionadas em 15. (resposta ao art.º 5.º).

19. No ano de 1995 tais depósitos atingiram a quantia de 6.452,05€ (resposta ao art.º 6.º).

20. No ano de 1996 os depósitos em causa atingiram o montante de 6.517,16€ (resposta ao art.º 7.º).

21. E no ano de 1997 a quantia de 6.160,15€ (resposta ao art.º 8.º).

22. E no ano de 1998, a quantia de 4.984,09€ (resposta ao art.º 9.º).

23. E no ano de 1999, a quantia de 3.723,23€ (resposta ao art.º 10.º).

24. E no ano de 2000, a quantia de 4.549,48€ (resposta ao art.º 11.º).

25. E no ano de 2001, a quantia de 4.704,81€ (resposta ao art.º 12.º).

26. E no ano de 2002, a quantia de 4.704,81€ (resposta ao art.º 13.º).

27. E no ano de 2003, a quantia de 1.050,00€ (resposta ao art.º 14.º).

28. Foi remetida ao autor a carta de fls. 98, datada de 15.4.03, que aqui se dá por reproduzida (alínea O) dos factos assentes).

29. O autor e sua mulher, EE, constituíram em /29/6/2009, a favor da Caixa Geral de Depósitos S.A., hipoteca voluntária sobre o imóvel identificado em F), para garantia do capital de 30 000,00 €, com montante máximo assegurado de 47.355,00 € hipoteca essa para garantia de um crédito pessoal (alínea P) dos factos assentes).

A estes factos há que acrescentar a aquisição, pela Caixa Geral de Depósitos, no processo executivo que moveu contra AA e mulher, EE, do imóvel descrito em F, sendo que data de 24 de Fevereiro de 2013 a apresentação a registo dessa aquisição.


7. O recorrente coloca neste recurso as seguintes questões:

– Falta de alegação oportuna de factos consubstanciadores de enriquecimento sem causa e violação do princípio do contraditório;

– Não verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa;

– Abuso de direito.


8. Cumpre antes do mais recordar que o recorrente volta a suscitar questões que se encontram já decididas pelo acórdão de fls. 517, por então terem sido colocadas nas suas contra-alegações:

– A questão da oportunidade de invocação e da falta oportuna de alegação de factos consubstanciadores de enriquecimento sem causa está definitivamente resolvida no acórdão de fls. 571. Acrescenta-se agora que, como então se disse, não poderiam ser considerados factos não alegados na (…) contestação, “que não pudessem ter sido conhecidos em 1ª Instância”(ponto 7), e não foram, salvo quanto à aquisição da fracção pela Caixa Geral de Depósitos, pelas razões já conhecidas.

Merece todavia ser considerada a afirmação de que o autor não se viu na necessidade de responder a eventual enriquecimento sem causa “porquanto até então apenas estava em causa a existência ou não de um contrato de mútuo”. No entanto, na contestação, o réu observou que, a não proceder o pedido de restituição das quantias alegava terem sido mutuadas, então a mesma restituição deveria proceder por enriquecimento sem causa.

O recorrente não aponta, aliás, factos que tenham sido indevidamente utilizados no acórdão agora recorrido;

– a questão de ter sido a recorrida quem entrou “primeiro em incumprimento em relação ao que havia sido acordado e a que se havia obrigado, conforme ponto 11 dos factos provados, tendo dado causa ao incumprimento do pagamento das prestações do empréstimo, o que por sua vez deu causa ao incumprimento por parte do autor, no que concerne à obrigação de restituição, mediante a venda do imóvel à ré ou a quem ela indicasse” (concl. 4).

Esclareça-se antes de mais que não está assente nesta acção que foi a recorrida que entrou em incumprimento em primeiro lugar, e que teria sido esse incumprimento que provocou o incumprimento do autor, quanto à obrigação de venda do imóvel à ré ou a quem ela indicasse. Trata-se de questões que não foram oportunamente trazidas ao processo e que o recorrente teve a oportunidade de trazer, de modo a serem devidamente apreciadas; recorde-se que o ora recorrente sempre defendeu dizendo que nunca tinha sido interpelada para cumprir e que estava disposta a cumprir.

Transcreve-se o que se decidiu já no acórdão de fls. 517 e, portanto, está definitivamente assente:

«– [O autor vinha então sustentar] que foi a recorrente quem primeiro entrou em incumprimento, e que não lhe é possível vir agora, no recurso de revista, algar factos consubstanciadores de enriquecimento sem causa, deixando-o a ele, recorrido, sem possibilidade de defesa, impedido de exercer o contraditório, e justificando a hipoteca de 2009, a execução e a aquisição pela Caixa Geral de Depósitos, por entre o mais. Mas a verdade é que a recorrente invocou ter interpelado o recorrido para lhe passar uma procuração para vender, sem êxito; e invocou o enriquecimento sem causa. O que significa que o recorrido teve a oportunidade de se opor, na réplica, justificando a nova hipoteca (tenha-se em conta que, o que ficou provado, foi que a hipoteca de 2009 se destinou a garantir um crédito pessoal do autor e de sua mulher) e apresentando toda a defesa que entendesse quanto à alegação de enriquecimento sem causa. Nomeadamente, teve toda a oportunidade de justificar a aquisição pela Caixa Geral de Depósitos. Não procede, portanto, a alegação de que não houve nos autos a oportunidade de discutir se houve incumprimento definitivo da sua parte. Acresce que o princípio da concentração valia para a réplica; a omissão da defesa à excepção e à reconvenção, com a extensão que agora invoca, ficou precludida, salvo quanto à alegação de factos supervenientes (artigo 506º do Código de Processo Civil, na versão aplicável à data dos articulados da presente acção);

– [O autor vinha então sustentar] que nunca foi interpelado para “ceder o apartamento à ré ou a quem ela indicasse” (ponto 22 das alegações de revista), remetendo para o demonstrar para a resposta ao quesito 18º (“Por diversas vezes a Ré interpelou o A. para esse efeito? Resposta: não provado). Mas só se compreende o significado deste quesito descobrindo a sua origem no artigo 24º da contestação, como referido ao acordo mediante o qual o autor se obrigou a vender a fracção à ré ou a quem esta indicar; ora, para além de ter conteúdo de direito – o que significa ter interpelado o autor? –, a verdade é que foi dado como provado o envio da carta de fls. 98, cujo conteúdo está acima transcrito. Essa carta contém uma interpelação para o autor cumprir a obrigação que assumiu; poder-se-á discutir se interpelar para passar uma procuração para venda equivale, ou não, a interpelar para vender; o que implicaria interpretar o compromisso assumido. Mas a carta contém uma interpelação para cumprir”.

Recorda-se agora que a carta tem a data de 14 de Abril de 2003 e que vem provado que, entre Fevereiro de 1995 e Março de 2003, a ré depositou as quantias necessárias ao pagamento das prestações correspondentes ao “empréstimo para aquisição do imóvel” (pontos 15 e 19 dos factos provados).         


9. É dentro dos limites assim traçados que será apreciado o presente recurso. Assim:

O recorrente vem sustentar que a Relação, após ter sido proferido o primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o deveria ter convidado a pronunciar-se “quanto à alegada verificação do instituto do enriquecimento sem causa, e entendemos que o devia ter sido, não obstante se ter já pronunciado aquando da resposta às alegações apresentadas pela ré, mas dirigidas ao Supremo Tribunal de Justiça” (ponto 14 das alegações) e que foi assim violado o princípio do contraditório (artigo 3º do Código Civil).

Para além de se tratar da alegação de uma nulidade de processo, que deveria ter sido arguida no prazo correspondente (10 dias, artigo 149º do Código de Processo Civil) e perante a Relação, esta arguição não tem fundamento; desde logo, porque o recorrente pronunciou-se sobre a matéria, justamente nas contra-alegações apresentadas na primeira revista. A sua posição está, pois, expressa no processo; a Relação pôde conhecê-la quando proferiu o acórdão agora sob recurso. Seria um acto manifestamente inútil anular o acórdão recorrido, para que o recorrente pudesse, de novo, pronunciar-se.

Repare-se, aliás, que essa pronúncia nunca poderia incluir defesa contra a reconvenção, que tivesse ficado precludida com a opção de, na réplica, não desenvolver a questão do enriquecimento sem causa (cfr. artigos 59º , 60º e 61º da réplica) ou do eventual incumprimento da ré, optando por se opor ao pedido de restituição das quantias por se tratar de dinheiro entregue em cumprimento de uma obrigação natural (artigos 62º e 63º da réplica).

Apenas se observa que não tem nenhum fundamento a afirmação feita no final do ponto 35 das alegações, no sentido de que, a pretender-se discutir o enriquecimento sem causa, então deveriam ser anuladas “todas as decisões proferidas”, ordenando-se a repetição do julgamento. Na verdade, sempre estariam precludidas as questões não oportunamente alegadas em 1ª Instância.


10. O recorrente sustenta ainda que, contrariamente ao que decidiu o acórdão agora recorrido, não estão verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa.

Esta alegação assenta fundamentalmente nestes argumentos:– Não está provado nenhum enriquecimento do autor. No entanto, o que o recorrente alega para sustentar esta afirmação está manifestamente precludido, por não ter sido alegado oportunamente em 1ª instância (conclusões 3, segunda com o nº 4, 5, 6 e pontos 30 e segs. das alegações, no que contêm de matéria de facto). Quanto ao que consta da primeira conclusão com o nº 4, já foi observado que não estão assentes as conclusões que o recorrente retira do ponto 11 dos factos provados, desde logo, repete-se de novo, porque o recorrente não colocou oportunamente as questões em primeira instância, de forma a que tivessem sido apreciadas;

– Cabe à recorrida o ónus da prova dos factos constitutivos do enriquecimento sem causa; o que é incontestável, nos termos gerais (nº 1 do artigo 342º do Código Civil). Mas é igualmente certo que vem provado que a recorrida fez diversas entregas de dinheiro ao autor, tendo a Relação concluído que, ao tornar-se impossível o cumprimento do acordo, traduzido na venda à ré, ou a quem ela indicasse, do imóvel adjudicado à Caixa Geral de Depósitos, ficou assente ter havido deslocações patrimoniais por conta de uma causa que se tornou impossível, nº 1 do artigo 795º 2 também nº 2 do artigo 473º do Código Civil.

Recorde-se mais uma vez que o recorrente não invocou oportunamente a defesa que poderia ter oposto ao enriquecimento sem causa; e que o primeiro acórdão da Relação julgou no pressuposto errado de que o ora recorrente podia ainda cumprir a obrigação que assumira.

O acórdão recorrido não merece qualquer censura, quando dá como provada a perda de causa das transferências patrimoniais e como verificado o enriquecimento sem causa. Se é verdade que as quantias entregues se destinaram a pagar as prestações correspondentes ao empréstimo (cfr. pontos 15, 18, 24), o que o recorrente invoca para mostrar que não enriqueceu, não menos verdade é que a propriedade da fracção se encontrava, entretanto, no seu património, e que as referidas entregas tinham como contrapartida a venda da mesma fracção.

Não procede em particular a afirmação de que nunca foi alegado nem provado o facto que deu origem ao enriquecimento (ponto 37 das alegações). A ré assentou-o nas transferências patrimoniais, enquadradas a título principal em mútuos e, subsidiariamente, em enriquecimento sem causa;

Não há nada a restituir, nos termos do artigo 475º do Código Civil. No entanto, não está de forma nenhuma assente no presente processo que o réu agiu de acordo com o que a recorrente descreve na conclusão 15.


11. O recorrente invoca ainda abuso de direito:

 – Porque o réu pede a restituição de quantias a que sabe não ter direito, altera “a verdade dos factos” e omite “outros relevantes para a decisão da causa”,

– porque foi a ré que impediu “a verificação daquele resultado”, isto é, “a transferência futura da propriedade do imóvel para a ré ou para quem esta indicasse”,

– porque o autor “sempre esteve disponível a ceder o apartamento à ré ou a quem ela indicasse, nunca tendo sido para tal interpelado e não obstante ter a ré entrado em incumprimento com a prestação obrigacional que lhe cabia desde Abril de 2003, inclusive”.

Estas afirmações não têm correspondência com o que foi oportunamente alegado e provado; não há assim qualquer base para concluir no sentido do abuso de direito.

Como também não têm suporte no processo as afirmações feitas nas conclusões 16 e 17: o autor não trouxe oportunamente ao processo o incumprimento que atribui à ré; a versão dos factos que traz para justificar a sua posição não foi discutida e provada porque a matéria de facto que a suporta não foi alegada na altura própria. Não pode afirmar-se que houve incumprimento da ré e que esse incumprimento, para o qual o autor não terá contribuído, desencadeou a impossibilidade do autor de cumprir a sua parte do acordo.

Certo e seguro, como vem já assente, é que a aquisição da fracção em venda executiva foi omitida quando ocorreu e de novo omitida perante a Relação, não podendo o autor ignorá-la, nem sustentar que o primeiro acórdão da Relação é que julgou correctamente. Foi omitido o processo executivo que corria e não se discutiram, nem os efeitos da cessação das transferências, em Abril de 2003, nem o significado da carta de dia 15 desse mesmo mês, nem a responsabilidade quanto a um hipotético incumprimento do acordo. Trata-se evidentemente de questões que careciam de ser alegadas, para poderem ser conhecidas.

Mas ficou manifestamente assente que, uma vez adquirida a fracção por terceiro, tornou-se impossível o respectivo cumprimento. Devem pois ser restituídas as quantias entregues pela ré, sem que seja admissível, em recurso, vir a apreciar questões que, podendo ter sido colocadas pelas partes em 1ª Instância, não o foram.

Aqui chegados, resta confirmar o acórdão recorrido, em particular quanto aos termos em que declara a compensação e condena no excesso, por confirmação da sentença proferida em 1º Instância.

12. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, que é manifestamente infundado, por assentar fundamentalmente em questões insusceptíveis de apreciação neste recurso de revista, pelas razões apontadas.

Sendo manifestamente infundado, pode ser julgado nos termos previstos no artigo 656º do Código de Processo Civil, aplicável à revista (artigo 679º do mesmo Código).

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 24 de Junho de 2015”



III. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando a decisão de negar provimento ao recurso de revista, por ser manifestamente infundado.


Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 ucs.


Lisboa, 01 de Outubro de 2015


Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

Salazar Casanova

Lopes do Rego