Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1126/19.2T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
CONHECIMENTO OFICIOSO
OBJETO DO PROCESSO
RECURSO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ORDENAR A REMESSA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
Sumário :
I. O acórdão da Relação que, violando o disposto no art.º 3.º n.º 3 do CPC, aprecia questão de conhecimento oficioso sem que previamente tenha sido concedido às partes o contraditório, é impugnável por meio de recurso.

II. A procedência do recurso referido em I acarreta a baixa do processo à Relação, a fim de que aí seja cumprido o contraditório.

Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA e marido BB, CC e marido DD instauraram ação declarativa de condenação, com processo comum, contra EE e mulher FF e GG.

Em síntese, os AA. alegaram que as AA. celebraram com os RR. um contrato mediante o qual as AA. cederam aos RR. as suas quotas numa sociedade que era proprietária de uma farmácia, pelo preço de € 1 149 940,23. Ficou acordado (cláusulas 4.ª e 11.ª) que os RR. se obrigavam a pagar todas as dívidas da dita sociedade, incluindo as que estavam avalisadas pelos AA., bem como a substituírem-se nas obrigações de garantia prestadas junto dos credores (aval prestado pelos AA.). Ora, os RR. não liquidaram qualquer das obrigações avalisadas pelos AA. nem substituíram os avalistas, contrariamente ao contratado. Tal originou a denúncia dos contratos de crédito e a subsequente instauração de processos executivos, nos quais todo o património e todos os rendimentos dos AA. foram penhorados. Estes factos causaram nos AA. humilhação e angústia, para além de prejuízos patrimoniais. Os valores correspondentes também estão a ser peticionados na ação comum n.º 3246/13.8... do Juízo Central Cível (J...) de .... Com efeito, em tal processo está também reclamada uma indemnização, a liquidar, pela não libertação das responsabilidades. Porém, não há litispendência entre as duas ações porque AA. e RR. não se esgotam na primeira ação e também não se verifica repetição da causa de pedir e do pedido.

Os AA. terminaram formulando o seguinte petitório:

Nestes termos e nos melhores de Direito, dever a presente acção ser Julgada procedente por provada e por via dela serem TODOS os RR condenados, solidária ou individualmente:

a) A pagarem à Autora CC a quantia de 75.000,00€ a titulo de danos não patrimoniais consequente à violação dos deveres contratuais assumidos, causadores da penhora sobre todos os seus bens e rendimentos.

b) A pagarem ao Autor DD a quantia de 75.000,00€ a titulo de danos não patrimoniais consequente à violação dos deveres contratuais assumidos, causadores da penhora sobre todos os seus bens e rendimentos.

c) A pagarem à Autora HH a quantia de 50.000,00€ a titulo de danos não patrimoniais consequente à violação dos deveres contratuais assumidos, causadores da penhora sobre todos os seus bens e rendimentos.

d) A pagarem ao Autor BB a quantia de 50.000,00€ a titulo de danos não patrimoniais consequente à violação dos deveres contratuais assumidos, causadores da penhora sobre todos os seus bens e rendimentos.

e) A pagarem à Autora CC o valor correspondente a todas as quantias que lhe foram penhoradas do seu rendimento mensal por causa de dividas à sociedade N..., Lda., acrescidas dos juros compensatórios desde a efectiva penhora até integral reembolso.

f) A pagarem à Autora HH o valor correspondente a todas as quantias que lhe foram penhoradas do seu rendimento mensal por causa de dividas à sociedade N..., Lda., acrescidas dos juros compensatórios desde a efectiva penhora até integral reembolso.

g) A pagarem ao Autor BB o valor correspondente a todas as quantias que lhe foram penhoradas do seu rendimento mensal por causa de dividas à sociedade N..., Lda., acrescidas dos juros compensatórios desde a efectiva penhora até integral reembolso.

h) A pagarem ao Autor DD o valor correspondente a todas as quantias que lhe foram penhoradas do seu rendimento mensal por causa de dividas à sociedade N..., Lda., acrescidas dos juros compensatórios desde a efectiva penhora até integral reembolso.

i) A pagarem aos AA todos os encargos efectivos com processos Judiciais causados pelo incumprimento no montante de 50.000,00 €

j) Nas custas e procuradoria legais.”

2. Os RR. contestaram, afirmando terem cumprido as suas obrigações e que os AA. haviam ocultado a verdadeira situação da sociedade transmitida – concluindo pela sua absolvição do pedido.

3. Em 30.4.2020 foi proferido o seguinte despacho:

Compulsados os autos, verifica-se que os autores solicitam a condenação dos réus no pagamento de determinadas quantias pecuniárias, tendo por base a violação de determinadas cláusulas de contrato promessa de cessão de quotas mencionado no respetivo articulado. Efetivamente, os autores invocam a violação das cláusulas 6ª (pagamento do preço da cessão) e 11ª (libertação de avais e responsabilidades bancárias).

Porém, tal matéria foi, pelo menos, parcialmente, objeto de apreciação na ação 3246/13.8... que correu termos neste Juízo Central.

Assim, suscitando oficiosamente tal exceção, determino que se proceda à notificação das partes para que, em 10 dias, se pronunciem quanto à eventual existência de exceção de caso julgado (na vertente positiva, enquanto autoridade de caso julgado) formado com a decisão proferida na referida ação.

4. Os RR. pronunciaram-se no sentido de que se verificava a suscitada exceção de caso julgado, o que devia ser declarado, com “as legais consequências”.

5. Os AA. pronunciaram-se no sentido da inexistência de caso julgado.

6. Em 01.6.2020 foi proferido despacho de que se transcrevem os trechos mais relevantes:

“1.1 - Na presente ação de processo comum, instaurada pelos autores AA, e marido BB, CC e marido DD contra os réus EE e esposa FF, II, e GG, alegaram os autores que, em consequência do incumprimento pelos réus de contrato promessa de cessão de quotas, sofreram inúmeros prejuízos de que pretendem ser ressarcidos por via da presente ação. Assim, os autores suportaram o pedido indemnizatório deduzido nestes autos na violação das cláusulas 6ª e 11ª do referido contrato, relativas ao pagamento do preço da cessão e à libertação de avais e responsabilidades bancárias ali previstos.

1.2 – Sucede que tal relação contratual foi também objeto da ação 3246/13.8... que correu termos neste mesmo Juízo Central Cível, o que determinou que fosse oficiosamente suscitada a exceção de caso julgado (na modalidade de autoridade de caso julgado), sobre a qual ambas as partes foram convidadas a pronunciarem-se.

(…)

Os factos a ponderar na decisão da referida exceção que já se encontram assentes por acordo ou tendo por base a prova documental junta aos autos, são os seguintes:

2.1– No âmbito da ação comum nº 3246/13.8..., instaurada pelas autoras CC e AA contra os aí réus EE e FF foi proferida em 23 de abril de 2019 a decisão cuja certidão consta de fls 379 e ss, confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra por decisão transitada em julgado em 27/11/2019, conforme certidão de fls 391 e ss;

2.2 – Na referida ação 3246/13.8..., as autoras alegaram que eram as únicas sócias e gerentes da sociedade “N..., Lda.”, titular de um estabelecimento de farmácia e ainda que tinham celebrado com os réus um contrato de cessão das suas quotas, não tendo os réus liquidado o remanescente do preço no valor de € 181.336,85, nem cumprido a obrigação de as libertarem das responsabilidades bancárias, além de que usaram indevidamente o nome da segunda autora enquanto diretora técnica da farmácia e recusaram entregar-lhe correspondência;

2.3 – Na referida ação, as autoras formularam os pedidos de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 181.336,85, de lhes restituírem correspondência pessoal, de se absterem de usar o nome da primeira como diretora técnica da farmácia e de pagamento de uma indemnização a liquidar em execução de sentença, decorrente do não cumprimento da obrigação de as libertar das responsabilidades bancárias;

2.4 – Em tal decisão foram enunciadas como questões a resolver: “Contrato de cessão de quotas e seu cumprimento, designadamente quanto aos seguintes aspetos:- Montante do preço mencionado nos factos provados ainda não liquidado (…); Incumprimento pelos réus da obrigação contratualmente assumida de libertarem as autoras de responsabilidades bancárias”;

2.5 – No ponto 8.3 de tal decisão ficou consignado que, do preço da cessão de quotas, os réus deviam às autoras o valor de € 155.513,08;

2.6 – No ponto 8.6 de tal decisão consignou-se que: “Por fim, a factualidade apurada também não permite concluir que as autoras tenham sofrido prejuízos por os réus não as terem libertado das responsabilidades bancárias inerentes ao contrato de locação financeira celebrado com a Caixa Leasing. Assim, por não se terem provado os factos constitutivos de tal pretensão indemnizatória, a mesma será igualmente julgada improcedente”;

2.7 – Na motivação dos factos provados, no que se reporta à análise da documentação ali junta, ficou consignado: “documentação de fls 187 e ss, evidenciando que a autora AA entrou em incumprimento de responsabilidades bancárias não permitindo, contudo, concluir que tal incumprimento se tenha verificado no âmbito das responsabilidades assumidas pelos réus no âmbito do contrato de cessão de quotas em causa. A este propósito, interessa salientar que, independentemente do que possa ter sido verbalmente acordado entre as partes, e que não resultou esclarecido da audiência de julgamento, o passivo assumido pelos réus foi o mencionado no Anexo IV do contrato (conforme cláusula terceira), assim como o passivo resultante do contrato de locação financeira mencionado nos factos provados e referido na cláusula décima primeira do contrato (e também no Anexo IV)”;

2.8 – Na motivação dos factos não provados, consignou-se nessa decisão: “Reitera-se que independentemente das negociações que possam ter sido estabelecidas entre as partes, do contrato celebrado não resulta que os réus tenham assumido a obrigação de libertarem as autoras de quaisquer outras obrigações bancárias para além das inerentes ao contrato de locação financeira mencionado nos factos provados (para além do demais discriminado no Anexo IV). Consequentemente, na ausência de qualquer outro meio de prova que comprovasse a factualidade alegada a tal propósito, a mesma foi considerada não apurada”;

2.9 – Na parte decisória da sentença ali proferida, os réus foram condenados a pagar às autoras a quantia de € 155.513,08, acrescidos de juros de mora, a título da parte do preço da cessão de quotas que ainda não haviam liquidado, e foram absolvidos dos demais pedidos deduzidos pelas autoras;

(…)

No caso presente haverá que ponderar que os réus EE e FF foram demandados pelas aqui autoras AA e CC na ação 3246/13.8..., na qual, a título principal, era requerida a respetiva condenação no pagamento do remanescente do preço do negócio de cessão que está em causa nestes autos e ainda uma indemnização a liquidar em execução de sentença, decorrente do não cumprimento da obrigação de libertarem as autoras das responsabilidades bancárias.

Tais obrigações encontravam-se previstas, na tese das autoras, nas cláusulas 6ª e 11º do contrato promessa de cessão de quotas que também está em discussão nestes autos.

Efetivamente, é o incumprimento das referidas cláusulas que constitui a causa de pedir destes autos, como se alcança do alegado no artigo 92º da petição com o seguinte teor: “Tanto pelo valor contratualmente em dívida nos termos da cláusula sexta, mas também em particular pelos valores referidos na cláusula 11ª que ascende a mais de 750.000,00 € e que os requeridos, a avaliar pelo comportamento que têm tido, tudo irão fazer para não pagar”.

Analisado o contrato em questão que, reitera-se é o mesmo em discussão em ambas as ações, verifica-se que a cláusula 11ª é relativa à obrigação de desobrigar os fiadores e avalistas de quaisquer pagamentos e responsabilidades emergentes do contrato de locação financeira. Já a cláusula 6ª reporta-se ao pagamento do preço da cessão.

Porém, da decisão da ação 3246/13.8... resultou não provado que os ali réus tenham assumido a obrigação de libertação das autoras de quaisquer avais ou responsabilidades bancarias, para além das relativas ao contrato de locação financeira.

Efetivamente, como se mencionou supra em 2.8, na motivação dos factos não provados, consignou-se na decisão da ação 3246/13.8...: “Reitera-se que independentemente das negociações que possam ter sido estabelecidas entre as partes, do contrato celebrado não resulta que os réus tenham assumido a obrigação de libertarem as autoras de quaisquer outras obrigações bancárias para além das inerentes ao contrato de locação financeira mencionado nos factos provados (para além do demais discriminado no Anexo IV). Consequentemente, na ausência de qualquer outro meio de prova que comprovasse a factualidade alegada a tal propósito, a mesma foi considerada não apurada”. Por outro lado, também ali se consignou, como se refere supra em 2.6 que: “Por fim, a factualidade apurada também não permite concluir que as autoras tenham sofrido prejuízos por os réus não as terem libertado das responsabilidades bancárias inerentes ao contrato de locação financeira celebrado com a Caixa Leasing. Assim, por não se terem provado os factos constitutivos de tal pretensão indemnizatória, a mesma será igualmente julgada improcedente”.

E o certo é que a indemnização ali peticionada radica, além do mais, na “não libertação das responsabilidades” que, como os autores reconhecem no artigo 120º da petição inicial apresentada nestes autos, também fundamenta os pedidos deduzidos nestes autos. E, em rigor, embora na ação 3246/13 se suporte o pedido indemnizatório também na recusa de crédito para mestrado, nas preocupações e humilhações geradas pelo incumprimento do contrato, na retenção de correspondência, no uso indevido do nome da diretora técnica, o certo é que em parte, tal indemnização radica na não libertação das responsabilidades bancárias. E, nessa parte, quanto à violação da obrigação de libertação das responsabilidades bancárias, o pedido foi objeto de decisão que considerou não provado que as mesmas tivessem sido assumidas (para além das decorrentes do contrato de locação financeira celebrado prante a CGD e do passivo previsto no já aludido Anexo IV) e que o incumprimento das decorrentes desta locação financeira tivessem gerado quaisquer prejuízos. Ou seja, em tal decisão considerou-se não provado que os réus tivessem que libertar as autoras de quaisquer responsabilidades bancárias, para além das inerentes ao contrato de locação financeira, assim como não se provaram quaisquer danos decorrentes do incumprimento de libertação das obrigações da locação financeira. Por esse motivo, os correspondentes pedidos indemnizatórios foram julgados improcedentes.

Julgamos, por isso que as causas de pedir inerentes a ambas as ações são coincidentes, em parte, revelando-se inadmissível a renovação da discussão quanto ao âmbito da cláusula 11ª, dado que o decidido na ação 3246/13.8... quanto ao seu conteúdo e quanto ao seu incumprimento não poderá deixar de ser ponderado nestes autos, por força da autoridade de caso julgado da mesma decorrente.

(…)

Consequentemente, as obrigações assumidas quanto à libertação de responsabilidades bancárias no contrato em questão, e a indemnização devida pelo seu incumprimento, por já terem sido objeto de decisão judicial (que, nessa parte, concluiu pela sua improcedência) não podem ser renovadas nestes autos.

O mesmo se dirá quanto à obrigação de pagamento do preço devido por tal cessão dado que na referida ação 3246/13.8... ficou definido que faltava pagar € 155.513,08, decisão essa que não pode deixar de se impor nestes autos.

Tratam-se, pois de questões que foram apreciadas por decisão transitada em julgado e que não podem ser renovadas, sob pena de “esvaziamento” do decidido na ação 3246/13.8..., ou seja de ofensa do caso julgado na sua vertente positiva.”

(…)

Conclui-se que quanto ao incumprimento da obrigação de libertação de responsabilidades bancárias (e obviamente danos daí emergentes) e quanto ao valor do preço em dívida, opera a exceção de caso julgado, na sua vertente positiva, impondo-se, quanto à primeira, a decisão de improcedência ali proferida nestes autos.

Porém, os danos emergentes para os autores da falta de pagamento do remanescente do preço, assim como de outros atos e negócios, e a indemnização daí decorrente, constitui pretensão que naqueles autos não foi apreciada, pelo que o caso julgado formado com a decisão proferida não impede a sua apreciação nestes autos.

Pelo exposto: - no que se reporta aos pedidos condenatórios formulados com base na violação da obrigação de libertação de responsabilidades bancárias, por procedência da exceção de autoridade de caso julgado formada com a decisão proferida na ação 3246/13.8... que correu termos neste Juízo Central Cível (J...), na sua vertente positiva, julgo improcedentes tais pedidos.

Custas, nesta parte, que se fixa em 50% do valor global da causa, pelos autores – cfr. artigo 527º, CPC.

Notifique e registe.

Relativamente às demais pretensões deduzidas nos autos, por a tal nada obstar, determino que os autos prossigam os seus termos”.

7. Os autos prosseguiram os seus termos, tendo sido realizada audiência final, e em 29.11.2021 foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:

Julgo a presente acção parcialmente procedente, pelo que

a) Condeno os réus EE, FF e II, no pagamento, aos autores AA, BB, CC e DD, pela falta de cumprimento pontual da quantia arbitrada no processo 3246/13.8..., da quantia de vinte mil euros a cada um, a título de danos não patrimoniais, e da quantia que, a título de danos patrimoniais, vier a liquidar-se ulteriormente.

b) Absolvo do pedido a ré GG.

c) Absolvo os réus referidos em “a)” de tudo o mais contra eles pedido.

d) Custas por autores e réus condenados, proporcionais”.

8. Os RR. apelaram da sentença e em 12.7.2023 a Relação de Coimbra proferiu acórdão em que foi emitido o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelos Réus e, em consequência:

- revoga-se a sentença recorrida;

- absolvem-se os Réus dos pedidos formulados na parte que ainda não havia sido objeto de decisão no despacho saneador.

*

Custas do recurso e da ação pelos Autores”.

9. Os AA. interpuseram revista desse acórdão, tendo formulado as seguintes conclusões:

“a) O presente recurso de revista vem interposto do Acórdão recorrido que julgou a apelação procedente e revogou a sentença recorrida, por entender que da leitura da matéria de facto apurada resulta que os danos sofridos pelos Autores resultaram da não liquidação pelos Réus das dívidas da sociedade e subsequentes penhoras e não do incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço da cessão de quotas.

b) Independentemente de apurar se esse incumprimento era suscetível de justificar as indemnizações peticionadas, como submetido a apreciação do Tribunal pelos Réus recorrentes, o Tribunal a quo entendeu não ser de responsabilizar os Réus por tais prejuízos com fundamento no incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço da cessão de quotas pelos Réus cessionários, sendo que quando ao incumprimento de pagamento das dívidas da sociedade havia já sido decidido no despacho saneador que o caso julgado formado na ação n.º 3426/13.8..., impedia o conhecimento do mérito dos pedidos formulados, o que configura uma “nova questão”.

c) Designadamente, fê-lo com o fundamento de que “A suposta causa de pedir que justificou o prosseguimento dos autos não era discernível nos factos alegados na petição inicial, uma vez que as penhoras efetuadas aos Autores, resultavam da não liquidação das dívidas da sociedade e os danos patrimoniais e não patrimoniais invocados tinham a sua causa nessas penhoras e não na falta de pagamento de parte do preço da cessão de quotas.”.

d) Ao ter decidido nos termos sobreditos, o Tribunal recorrido cometeu excesso de pronúncia, por tal se reconduzir a uma “nova questão”, carreada aos autos não pelas partes, porquanto não constituía tal matéria objeto de recurso, mas antes pelo Tribunal, e sem que fosse facultado o exercício do contraditório.

e) Mais que, os RR. interpuseram recurso bem sabendo que o processo havia prosseguido “relativamente às demais pretensões deduzidas nos autos”, plenamente cientes (sem deduzir oposição) de que o incumprimento parcial da obrigação do preço da cessão de quotas pelos RR. cessionários que originou para os AA. os prejuízos apurados nos autos, interpretando convenientemente quer a petição inicial quer a sentença proferida, e submetendo à apreciação do tribunal, em instância recursiva, somente e apenas a inexistência da responsabilidade dos RR. recorrentes na falta de cumprimento do decidido no outro processo (condenação ao pagamento do remanescente do valor do negócio de cessão de quotas no Proc. n.º 3426/13.8..., do Juízo Central Cível de... – Juiz ...).

f) Na verdade, os RR. não arguiram qualquer ininteligibilidade entre a causa de pedir que justificou o prosseguimento dos autos, com fundamento em não ser discernível dos factos alegados na petição inicial, ou ainda, que a causa de pedir estivesse em contradição com o pedido formulado, prosseguindo, os autos os seus termos. De igual modo, não arguiram qualquer exceção/ violação reportada ao caso julgado foi arguida pelos RR., nomeadamente, para efeitos de recurso.

g) Já em sede de despacho saneador, determinando-se o prosseguimento dos autos atenta a causa de pedir reportada ao incumprimento do pagamento do preço, os Réus nada disseram ou fizeram.

h) Termos em que, o Acórdão recorrido é nulo, por excesso de pronúncia (cfr. arts. 674.º, n.º 1, al. c), 666.º e 615.º, n.º 1, al. d) todos do CPC), impondo-se a sua substituição por outro que reponha a decisão proferida em 1.ª instância, e que condene os RR. nos pedidos formulados na parte que ainda não havia sido objeto de decisão no despacho saneador.

i) Ao ter decidido nos termos supra, o Tribunal recorrido violou e fez errada interpretação das normas vertidas nos artigos 3.º, n.º 3, 6.º, n.º 2, 581.º, n.º 4, 590.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 e 608.º, n.º 2 todos do Cód. Proc. Civil.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele, ser revogado o Acórdão recorrido e repristinada a Sentença proferida em 1.ª instância, condenatória dos RR., tudo com as devidas e legais consequências”.

10. Não houve contra-alegações.

11. A Relação pronunciou-se acerca das nulidades imputadas ao acórdão recorrido, pugnando pela inexistência de tais nulidades.

12. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A revista tem por objeto a seguinte questão: nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia, ao decidir-se com base em questão sobre a qual as partes não foram previamente ouvidas, constituindo a decisão recorrida uma decisão-surpresa.

2.1. As instâncias deram como provada a seguinte

Matéria de facto

Petição

1 - As Autoras foram até Abril de 2013 únicas Sócias, da sociedade Comercial por quotas denominada N..., Lda., NIPC ...17, com o capital social realizado de 24.939,89€ com sede na Rua ..., freguesia de ..., em ....

2 - Sociedade que tinha por objeto social a exploração de farmácias, nomeadamente, comércio de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, cosméticos e de higiene, prestação de serviços farmacêuticos de promoção da saúde e do bem-estar, preparação de medicamentos manipulados e sua dispensa, administração de medicamentos e utilização de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica.

3 - E que à data explorava a Farmácia N... em ..., titular do Alvará nº ...11 emitido em 26 de Janeiro de 2010 pelo INFARMED.

4 - A A. AA era a Diretora Técnica da farmácia, estabelecimento que estava na posse da família há mais de 30 anos.

5 - Explorada através da referida sociedade, que era também detentora do Imóvel sito na morada indicada.

6 - No final do Ano de 2012 as AA fizeram anunciar publicamente do seu interesse em vender a farmácia juntamente com o Imóvel, ou eventualmente sem ele.

7 - Foram contactados por diversos potenciais compradores, sendo a proposta de preço de aquisição mais vantajosa foi a dos RR.

10 - Depois de breve negociação, foi então acordado entre as AA e os RR (em especial o R II) que o preço do negócio de cifrava em cerca de 1.075.000,00€ (Ou de 1.700.000,00€ se considerado o Imóvel)

11 - Para titular o negócio, foi outorgado um documento, que as partes intitularam de contrato promessa de cessão de quotas.

13 - Contrato Promessa que veio a ser cumprido da parte das AA a 1 de Maio de 2013, por deliberação de Assembleia Geral Extraordinária.

33 - Foram instaurados processos executivos contra os autores, nos quais todo o seu património e todos os seus rendimentos foram penhorados.

34 - Nomeadamente o Processo 43/17.5... Secção de Execução J... do Tribunal de ..., no qual o Novo Banco acionou os AA para cobrança da divida na qual são avalistas no montante de mais de 302.000,00€

35 - Também a Caixa Geral de Depósitos S.A. acionou já os AA tendo promovido a sua Insolvência.

44 - No dia anterior à celebração do contrato de cessão das quotas, os RR constituíram uma sociedade nova, denominada Co..., Lda., para quem, menos de um mês após a cessão de quotas, transferiram o Alvará da Farmácia.

52 - Foi qualificada como culposa a insolvência da sociedade N..., Lda.

53 - Declarando afetados pela qualificação os RR EE, FF, II e JJ, fixando o respetivo grau de culpa dos três primeiros em ¾ e do último em ¼.

54 - Em consequência foi decretada a inibição de EE, FF, II e JJ para administrarem patrimónios de terceiros pelo Período os três primeiros de cinco anos e o último de dois anos e seis meses.

55 - Foram declarados EE, FF, II e JJ inibidos para o exercício do comércio pelo período os três primeiros de cinco anos e o último de dois anos e seis meses, bem como para ocuparem qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.

56 - Foi determinada a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por EE, FF, II e JJ.

59 - A sociedade Co..., Lda. em 2013, 2014 e 2015 apresentou os seguintes resultados:

a. 2013 não teve rendimentos e apresentou o montante de €10,00 como gastos;

b.2014 não apresentou qualquer valor de vendas e serviços prestados e apresentou o resultado líquido do período de €672,93;

c.2015 não apresentou qualquer valor de vendas e serviços prestados e apresentou um resultado líquido negativo do período de -€10.635,53.

60 - II e GG casaram entre si 9 de Novembro de 2002 e o primeiro é filho de EE e FF.

61 - Em 7 de Abril de 2016, II, na qualidade de procurador e em representação da sociedade N..., Lda. conforme procuração e acta número trinta da Assembleia Geral que reuniu em sete de Abril de dois mil e dezasseis, e, bem assim, na qualidade de sócio gerente da sociedade comercial por quotas Co..., Lda., declarou perante Notária, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de “compra e venda, declaração unilateral de hipoteca e mandato” que: a. Na qualidade de procurador e em representação da sociedade N..., Lda., por aquela escritura e pelo preço de €336.000,00 (trezentos e sessenta e seis mil euros), que para a sua representada declarou ter recebido, vendia à sua representa da Co..., Lda. o prédio urbano composto por edifício de dois pisos, denominado "Vale ...", sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 5249 (cinco mil duzentos e quarenta e nove), descrito na Conservatória do Registo Predial, Comercial e Automóveis de ... sob o n.º ...48 (...quarenta e oito), tendo ainda declarado que para a sua representada Co..., Lda. aceitava a venda.

62 - Na qualidade de sócio gerente e em representação da Co..., Lda., pela mesma escritura, constituía hipoteca, em paridade e na proporção dos respectivos créditos, sobre aquele prédio urbano, a favor de Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do... e ..., CRL e N..., S.A., destinada a garantir o bom e integral pagamento das obrigações e responsabilidades daquela representada, emergentes do contrato de empréstimo de quinhentos e cinquenta mil euros concedido naquela data pela Caixa Agrícola e da garantia autónoma no montante máximo de capital de trezentos e oitenta e cinco mil euros também emitida na mesma data pela N..., S.A., a benefício da Caixa Agrícola.

63 - Em 7 de Abril de 2016, II, na qualidade de procurador e em representação da sociedade N..., Lda. conforme procuração e acta número trinta da Assembleia Geral que reuniu em sete de Abril de dois mil e dezasseis, e, bem assim, na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial por quotas Co..., Lda., declarou perante Notária, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de “trespasse” que:

a. A sociedade N..., Lda. era dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial composto por uma farmácia com o alvará número...11(... onze), emitido pelo Infarmed –Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., em 26-01- 2010, para o exercício da actividade farmacêutica propriedade da sociedade ora insolvente, cuja instalação foi autorizada por deliberação de 04-01-1980, denominado "Farmácia N...", instalado no prédio urbano, composto por dois pisos, denominado "...", sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 5249;

b. Por aquela escritura e pelo preço de dez mil euros, que para a sua representada N..., Lda. declarou ter já recebido, trespassava à sua representada Co..., Lda. o mencionado estabelecimento;

c. O trespasse envolvia a transferência dos móveis, utensílios, mercadorias, licenças, alvará e todos os demais direitos que integram o dito estabelecimento, livre de qualquer passivo, ónus ou encargos, não sendo o referido alvará de farmácia dissociável do estabelecimento comercial "Farmácia N...";

d. Para a sua representada Co..., Lda. aceitava o contrato nos termos exarados.

64 - À data do trespasse mencionado no artigo anterior o valor do estabelecimento de farmácia, com o respectivo alvará, não era inferior a €750.000,00 (setecentos e cinquenta mil euros).

65 - No dia 7 de Abril de 2016, II, na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial por quotas Co..., Lda. e, bem assim, de procurador e em representação da sociedade N..., Lda. Conforme procuração e ata número trinta da Assembleia Geral que reuniu em sete de Abril de dois mil e dezasseis -, declarou perante Notária, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de “cessão de exploração” que:

a. A sua representada Co..., Lda. era dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial composto por uma farmácia com o alvará número três mil quatrocentos e onze, emitido pelo Infarmed -Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., em 26- 01-2010, para o exercício da actividade farmacêutica propriedade desta, denominado "Farmácia N...", instalado no prédio urbano, composto por dois pisos, -...", sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 5249, por o ter adquirido por escritura de trespasse celebrada no mesmo dia e cartório exarada a folhas imediatamente antecedentes;

b. Por aquela escritura e pelo preço de €336.000,00 (trezentos e trinta e seis mil euros), que para a sua representada Co..., Lda. declarou ter recebido, cedia à sua representada N..., Lda. a exploração do mencionado estabelecimento comercial, com todos os elementos que o integram, designadamente móveis, utensílios, mercadorias, licenças, alvará e todos os demais direitos que integram o estabelecimento, cessão essa regida pelas cláusulas constantes da escritura, designadamente as seguintes:

i. O estabelecimento comercial objecto da cessão destina-se exclusivamente à actividade de farmácia, venda a retalho de medicamentos e de outros produtos de saúde, acessórios e matérias-primas a ela associadas [cl.ª 1.ª];

ii. A cessão tem a duração de 120 (cento e vinte) meses, com início no dia 7 de abril de 2016 e termo em 7 de abril de 2026 [cl.ª 3.ª, 1.];

iii. Findo o prazo do número anterior, a cessão de exploração renova-se por mais um período de cinco anos, por acordo de todos os intervenientes, salvo denúncia de qualquer das partes, que deverá ser feita por carta registada com aviso de recepção e com uma antecedência mínima de 90 dias [cl.ª 3.ª, 2.];

iv. O valor acordado pela cessão diz respeito ao prazo inicial de cento e vinte meses pelo que para a renovação prevista no número anterior ocorra deverá ser acordado um novo valor a pagar pela representada do segundo outorgante (N..., Lda.) [cl.ª 3.ª, 3.];

v. Por imperativos de gestão, exploração ou motivos de interesse público, pode a representada do primeiro outorgante, sem que tenha de justificar a sua decisão, rescindir a cessão de exploração, a todo o tempo, sem pré- aviso [cl.ª 3.ª, 4.];

vi. No caso do número anterior, a representada do segundo outorgante (N..., Lda.) terá direito a ser indemnizada no valor correspondente às despesas realizadas que ainda não estejam amortizadas, que representem investimentos em bens inseparáveis do estabelecimento, considerando o método de quotas constantes [cl.ª 3.ª, 5.];

vii. Pela presente cessão a representada do segundo outorgante pagará a importância de €336.000,00 (trezentos e trinta e seis mil euros), valor pago nesta data e do qual dá quitação [cl.ª 4.ª, 1.];

c. Para a sua representada N..., Lda. aceitava o contrato nos termos exarados.

66 - Datada de 07 de abril de 2016, foi elaborada ata da assembleia geral extraordinária da sociedade “N..., Lda.”, com o número trinta e um, da qual consta que estiveram representados os sócios, EE e FF, “pelo seu bastante procurador II (...) deliberou-se, por unanimidade, nomear como gerente da sociedade o Sr. JJ (...), com efeito a partir desta data, auferindo um vencimento mensal enquadrado através de contrato de trabalho, o qual declarou aceitar a nomeação de gerente da sociedade, assinando a presente ata deliberativa”.

67 - Em 20 de Abril de 2016 foi averbado ao alvará da “Farmácia N...” aquele trespasse, em 18 de Julho de 2016 foi cancelado o averbamento no alvará da “Farmácia N...” da cessão de exploração pela ora insolvente, e, em 13 de Março de 2017, encontrava-se pendente pedido de averbamento de cessão de exploração a favor da sociedade “M..., Lda.”, pessoa colectiva n.º ...39, por contrato de cessão de exploração celebrado com aquela sociedade datado de 01 de Dezembro de 2016, que deu entrada na Direção de Licenciamentos e Inspecção do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. em 30 de Dezembro de 2016.

68 - Em 12 de maio de 2016 foi registada na matrícula comercial da insolvente a transmissão das quotas dos requeridos EE e FF a favor do requerido JJ;

69 - Desde 12 de Maio de 2016 que se mostra registada a deliberação de 7 de Abril de 2016 de designação de JJ como gerente da sociedade N..., Lda., com a menção de que a deliberação foi tomada em 07 de abril de 2016.

70 - No dia 12 de maio de 2016, o referenciado JJ, declarou perante notária, que consignou a escrito as suas declarações em procuração, que “por si e na qualidade de único sócio da sociedade comercial por quotas que usa a firma N..., Lda.» (...) cessionária de um Estabelecimento de farmácia, denominado Farmácia N...” que:

a. Em seu nome e em nome da sociedade comercial por quotas que representa, nomeia seus bastantes procuradores, com a maior amplitude legal e sem qualquer observância de consentimento de terceiros, os requeridos II e mulher GG, a quem confere os poderes necessários e especiais designadamente para:

i. Cederem a eles próprios, ou para quem eles indicarem, pelo preço e nas condições que entenderem, a totalidade ou parte, e na proporção que entenderem, as quotas tituladas em seu nome, pelo valor nominal que possui na sociedade comercial por quotas sob a firma N..., Lda. que já recebeu e de que dá quitação, assinarem o contrato de promessa de cessão de quotas, bem como outorgarem e assinarem a respectiva escritura, nos termos, cláusulas e condições que entenderem convenientes, requererem quaisquer actos de registo comercial, representá-lo nas assembleias-gerais da mencionada sociedade, decidindo e votando como melhor entenderem, assinando as respectivas atas e renunciar à gerência que exerce na sociedade;

ii. Gerirem e administrarem o estabelecimento comercial da sociedade do mandante acima identificado e intervirem e obrigarem a sociedade em todos os actos e contratos, independentemente da sua origem, natureza ou objectivo, exercendo o comércio em seu nome e, por conseguinte, praticarem todos os atos comerciais inerentes;

iii. Abrirem, gerirem e encerrarem contas em nome da sociedade;

iv. Contraírem e concederem empréstimos, e à segurança de tais empréstimos constituírem hipotecas, penhores e outras garantias;

v. Os poderes outorgados através da procuração podem ser utilizados na celebração de negócio com eles mesmos, sendo conferida no interesse dos mandatários e que a procuração é irrevogável e irreversível, nos termos do n.º 3 do artigo 265, do n.º 2 do artigo 1170.º e do artigo 1175.º do Código Civil, em virtude de a mesma ser conferida, também no interesse dos mandatários; a procuração é também conferida no interesse dos procuradores ou de terceiros, é irrevogável e não caduca por morte do mandante nos termos do n.º 3 do artigo 265.º e do artigo 1175.º do Código Civil.

71 - Em 16-05-2016 foi registada na matrícula comercial da sociedade N..., Lda. a renúncia com datada de 29 de Março de 2016, de EE e FF às funções de gerentes.

72 - Em 16 de Junho de 2016, foi elaborada acta da assembleia geral extraordinária da sociedade N..., Lda., com a menção de que esteve presente o único sócio e gerente, o requerido JJ, e que foi deliberado submeter e apresentar a sociedade a Processo Especial de Revitalização, “por a mesma se encontrar em situação económica difícil, que suscita sérias dificuldades para cumprir as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez e porque não consegue apoio de nenhuma instituição bancária que lhe permita solver compromissos”.

73 - Em 06 de Julho de 2016 a sociedade N..., Lda. instaurou o processo especial de revitalização que constitui o apenso A. ao Processo de Insolvência.

74 - Em 23 de Novembro de 2016, por força da rejeição do plano de revitalização da sociedade N..., Lda. por 100% dos credores votantes, foi considerado encerrado o processo negocial sem aprovação do plano.

75 - Em 05 de Dezembro de 2016 foi determinada a extração de certidão do parecer do administrador judicial provisório, no sentido de a devedora se encontrar em situação de insolvência, e foi determinada a remessa à distribuição como processo de insolvência, dando origem aos autos principais.

76 - No PER, após ter sido julgada procedente a exclusão dos créditos de Co..., Lda. (€556.146,08), GG (€18.613,33) e EE (€166.962,39) a lista definitiva de créditos totalizava a importância de €957.185,95.

77 - No apenso da reclamação de créditos a lista de créditos reconhecidos totaliza a importância de €1.297.423,90, tendo sido impugnado o reconhecimento do crédito de M..., Lda. no montante de €132.500,00 e, bem assim, o não reconhecimento do crédito da sociedade Co..., Lda. no valor de € 543.441,68.

78 - Na contabilidade da insolvente não foi incluído qualquer valor relativo ao trespasse.

79 - Com exceção da posição que decorria do contrato de cessão de exploração antes mencionado, após a celebração da escritura de trepasse a sociedade N..., Lda. ficou sem qualquer activo.

81 - À data da apresentação da sociedade ao PER a sociedade N..., Lda. estava inactiva.

82 - A R. GG desempenhou as funções de diretora técnica da “Farmácia N...” desde Maio de 2013 até, pelo menos, Junho de 2016.

83 - O indicado JJ acedeu a pedido de II para ficar, temporariamente, como sócio e gerente da sociedade N..., Lda.

84 - O requerido JJ não dirigia os negócios da sociedade N..., Lda., não determinava nem formava a vontade da sociedade, nada tinha a ver com o seu giro comercial, nomeadamente na prática de qualquer ato, não adquiriu matéria-prima, não vendeu mercadorias, não admitiu pessoal, nem recebeu créditos, sendo tais funções desempenhadas apenas pelo requerido II, pelo menos, no período de 01 de Maio de 2013 a 30 de Junho de 2016.

87 - Os RR EE e mulher FF dedicavam-se à gestão da “Farmácia M...” sita em ....

98 - Se os RR tivessem cumprido no prazo, os AA não teriam sofrido todos os constrangimentos patrimoniais que sofreram.

103 - O R. II, atuou sempre com o intuito do benefício pessoal, o que logrou obter, com a intervenção factual nas diversas entidades que foram sendo formalmente proprietárias do estabelecimento comercial, com o valor comercial superior a Um Milhão de Euros.

105 - O simples facto de todos os Autores terem os seus meios de subsistência afetados por penhoras promovidas pelo BES, faz com que mensalmente disponham de menos dinheiro para satisfazer as suas necessidades diárias de comer, vestir-se, divertir-se, proporcionar aos filhos melhor escola, melhor formação, viagens e oportunidades que teriam se pudessem dispor na íntegra do seu salário ou pensão.

107 - Todos os autores são licenciados.

108 - A situação causada aos AA é do conhecimento público e causa constrangimento e humilhação ter que explicar a quem lhes pergunta toda a situação com o intuito de diluírem a imagem publica de “caloteiros”.

109 - Os AA sempre foram, até ao conhecimento público desta situação, pessoas conceituadas e consideradas moral e socialmente, nomeadamente como pessoas abastadas.

110 - Os AA DD e Conceição tinham em curso um projeto de instalação de um Hotel Rural em ..., que tiveram que abandonar porque não só não receberam os valores devidos pelos RR mas porque passaram a ficar impedidos de recorrer a crédito bancários e deixaram de poder dispor de mais de 800,00€ todos os meses das suas reformas.

111 - Limitando decisivamente a sua qualidade de vida, depois de mais de 40 anos de trabalho.

112 - E obrigando-os a ter encargos, sofrer angústias e passar por dificuldades superiores às que teriam passado se os AA, individualmente ou em conjunto, tivessem cumprido as suas obrigações contratuais.

116 - Os AA sofreram penhoras sobre os seus salários e pensões, que à presente data ascendem a mais de 90.000,00€

117 - Igualmente se verifica que devido ao incumprimento contratual dos RR foram os AA obrigados a intervir em pelo menos 6 processos Judiciais, que ocasionaram despesas que, em concreto, não foi possível apurar.

Contestação EE e FF

2 - Com data de 22.04.2013 foi redigida uma acta onde foi feito constar que as promitentes cedentes das quotas da sociedade “N..., Lda.” realizaram uma assembleia geral extraordinária da sociedade, onde deliberaram proceder ao aumento do capital social, passando o mesmo de 25.000€ para 750.000€, correspondendo a um aumento de 725.000€, realizado em numerário.

5 - Os RR. EE e FF foram cessionários da sociedade por pedido do seu filho II, não tendo participado em qualquer negociação com as AA., nem qualquer convivência anterior ou posterior com as mesmas, à excepção da data da outorga do Contrato Promessa.

6 - Nem intervieram posteriormente na gestão ou representação da sociedade, antes emitindo procuração a favor do já mencionado filho, sendo este quem sempre conduziu os destinos da sociedade.

7 - A cessão das quotas da sociedade, a favor de EE e de FF, ocorreu em 01.05.2013, formalizada pelas deliberações da acta número vinte e sete, tendo por base o “Contrato Promessa de Cessão de Quotas”.

22 - A insolvente N..., Lda., pessoa coletiva n.º ...17, com sede em Rua..., ... encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número.

23 - Tem por objeto social a exploração de farmácia, nomeadamente comércio de produtos farmacêuticos, médicos, ortopédicos, cosméticos e de higiene, prestação de serviços farmacêuticos de promoção da saúde e do bem-estar, preparação de medicamentos manipulados e sua dispensa, administração de medicamentos e utilização de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica.

24 - O registo do contrato de sociedade da insolvente foi efetuado pela inscrição 1, apresentação 27 de 11 de março de 1991 com o capital social de €24.939,89, divido em três quotas, uma de €8.828,72, outra de €14.864,16 e uma última de €1.246,99, pertencentes as duas primeiras a AA, no estado de solteira, e a última a CC, no estado de casada sob o regime da comunhão de adquiridos com DD, estando ainda registada a gerência a cargo de ambas as sócias, que cessaram funções por renúncia em 1 de maio de 2013, registada em 14 de maio de 2013.

25 - O registo do contrato de sociedade da insolvente foi efetuado pela inscrição 1, apresentação 27 de 11 de março de 1991 com o capital social de €24.939,89, divido em três quotas, uma de €8.828,72, outra de €14.864,16 e uma última de €1.246,99, pertencentes as duas primeiras a AA, no estado de solteira, e a última a CC, no estado de casada sob o regime da comunhão de adquiridos com DD, estando ainda registada a gerência a cargo de ambas as sócias, que cessaram funções, por renúncia em 01-05-2013, registada em 14 de maio de 2013.

26 - Datado de 10 de abril de 2013, CC e marido DD, AA, ambos como promitentes cedentes, EE e mulher FF, como promitentes cessionários, BB que interveio para prestar consentimento à sua mulher AA, subscreveram o documento intitulado contrato promessa de cessão de quotas, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos do qual CC e AA, na qualidade de únicas sócias e gerentes da sociedade N..., Lda., com o capital social realizado de €24.939,89, proprietária e titular de um estabelecimento de farmácia, denominado “Farmácia N...”, licenciado e titulado pelo alvará n.º ...11, emitido em 26 de janeiro de 2010 pelo Infarmed, prometeram transmitir e ceder onerosamente aos RR. EE e mulher FF, ou a quem eles indicassem até à data do contrato prometido, e estes prometeram adquirir as quotas que cada uma delas detinha na sociedade, subordinado, entre outros, aos considerandos e cláusula seguintes:

a. Todos de cada um dos trabalhadores da sociedade resolveram, com fundamento em justa causa, por falta de pagamento de remunerações e subsídios, os respetivos contratos de trabalho no dia 29 de março de 2013 [D)];

b. Assim a sociedade não tinha quaisquer trabalhadores ao seu serviço ou vínculos laborais constituídos [E)];

c. Os promitentes cedentes assumiram solidariamente para si a responsabilidade integral, única e exclusiva dos créditos laborais, no valor global e total de €126.469,82 dos trabalhadores, que estes aceitaram a assunção de dívida, exonerando, expressa e irrevogavelmente, a sociedade de toda e qualquer responsabilidade pela mesma [F)];

d. Os promitentes cedentes declararam que estão devidamente evidenciados na certidão da matrícula todos os factos e actos sujeitos a registo comercial e que o capital da sociedade está totalmente subscrito e realizado, estando as quotas de que são titulares totalmente livres de ónus, encargos ou responsabilidades de qualquer natureza [G)];

e. O preço único, global e total das cessões das três quotas é de um milhão e setenta e quatro mil novecentos e quarenta euros e quarenta e quatro cêntimos (€1.074.940,44), no preço fixado e a abater ao mesmo inclui-se o valor do passivo da sociedade, limitado aos credores e respetivos montantes constantes do anexo 4 no valor total de €731.358,55 e que os promitentes cessionários irão suportar ou fazer introduzir na sociedade, após as cessões e pelas formas que mais lhes convierem [cl.ª 3.ª];

f. As rendas vincendas, o valor residual e todos os direitos e obrigações da sociedade emergentes do Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...73, celebrado com a Caixa Geral de Depósitos e Caixa Leasing, junto como anexo 3 e que incide sobre o imóvel no qual se encontra instalado e funciona o identificado estabelecimento de farmácia, que corresponde ao descrito na Conservatória do Registo Predial de... sob o n.º ...48, constituem obrigação da sociedade, com vínculo dos terceiros outorgantes (promitentes cessionários) ao cumprimento da obrigação prevista na cláusula décima primeira [Cl.ª 4.ª];

g. As prometidas cessões das quotas incluem todos e quaisquer créditos ou direitos referentes à sua qualidade de sócios, designadamente suprimentos, prestações suplementares, prestações acessórias, resultados a distribuir ou não distribuídos [cl.ª 5.ª];~

h. Por razões de conveniência e a pedido dos promitentes cedentes o preço a declarar nos contratos definitivos de transmissão de quotas será o correspondente aos dos seus valores nominais [cl.ª 7.ª];

i. A primeira e segunda outorgantes obrigam-se a renunciar às funções de gerência da sociedade no dia da outorga dos contratos prometidos de cessão de quotas, assim como a não contratarem, até lá e a qualquer título, quaisquer trabalhadores [cl.ª 9.ª].

28 - Em 24 de abril de 2013 foi registado o aumento de capital de €725.060,11, passando as quotas para as importâncias de €703.671,28, €37.500,00 e €8.828,72, pertencendo a primeira e a última a AA, no estado de casada com BB, no regime da comunhão de adquiridos, e a segunda a CC, no estado de casada com DD, no regime da comunhão de adquiridos.

29 - Não deu entrada na sociedade N..., Lda. o montante correspondente ao aumento de capital social mencionado nos artigos anteriores.

30 - No dia 01 de maio de 2013, reuniu na sua sede social a Assembleia Geral Extraordinária da sociedade N..., Lda., com a presença das sócias CC e AA, cuja soma das quotas perfazia a totalidade do capital social na importância de €750.000,00, já totalmente realizado, estiveram também presentes os RR. EE e mulher FF, na qual foram tomadas as seguintes deliberações:

a. As sócias CC e AA renunciaram à gerência, com efeitos imediatos;

b. Foram nomeados como gerentes da sociedade com efeitos imediatos os RR. EE e FF;

c. Foi deliberado ceder a totalidade do capital social aos RR. EE e FF, ficando os mesmos na posse das seguintes quotas:

i. O R. EE ficou detentor de duas quotas, uma no valor de €8.828,72 e outra no valor de €703.671,28;

ii. A R. FF ficou detentora de uma quota no valor de €37.500,00, todas adquiridas pelo seu valor nominal.

31 - A sociedade Co..., Lda., pessoa coletiva n.º ...18, com sede no Bairro ..., em ..., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercia sob o mesmo número.

32 - Tem por objeto social a atividade farmacêutica através da exploração de farmácia ou posto de farmácia, designadamente comercialização a retalho de produtos farmacêuticos e de veterinária, cosméticos, de perfumaria, homeopáticos, de higiene, ortopédicos, de puericultura e óticos.

33 - O registo do contrato de sociedade da Co..., Lda. foi efetuado pela inscrição 1, apresentação 2 de 30 de abril de 2013 com o capital social de €5.000,00, divido em duas quotas de €2.500,00 cada, pertencentes uma delas ao requerido EE e a outra à requerida FF, tendo ainda sido registada a gerência a cargo do requerido EE, que cessou as funções de gerente por renúncia datada de 06-09-2015, registada em 09-09-2015.

34 - Em 14 de maio de 2013, foi registada na matrícula comercial da insolvente a transmissão das quotas de AA e CC a favor de EE das quotas de €8.828,72 e €703.671,28 e a favor de FF a quota de €37.500,00, casados entre si sob o regime da separação de bens.

35 - Foi ainda registada a deliberação de 01 de maio de 2013 de nomeação de EE e FF como gerentes.

36 - Em 9 de setembro de 2015, foi registada na matrícula comercial da Co..., Lda. a transmissão das quotas dos RR. EE e FF respetivamente a favor do R. II e sua mulher GG, casados entre si sob o regime da comunhão de adquiridos, tendo ainda na mesma data sido registada a nomeação do R. II e GG como gerentes da sociedade que se obriga com a intervenção de um gerente.

37 - Nos anos de 2009 a 2015 a sociedade N..., Lda. apresentou os seguintes resultados:

a. 2009 – Passivo €1.315.803,52, vendas e serviços prestados €1.504.893,64resultado líquido do período €2.838,49;

b. 2010 – Passivo €1.132.526,51, vendas e serviços prestados €1.605.086,30, resultado líquido do período €16.051,82;

c. 2011 – Passivo €1.093.196,77, vendas e serviços prestados €1.439.699,00, resultado líquido do período €790,57;

d. 2012 – Passivo 1.507.182,65, vendas e serviços prestados €1.290.946,50, resultado líquido do período €1.042,22;

e. 2013 – Passivo €1.467.662,75, venda e serviços prestados €1.038.473,60, resultado líquido do período €7.625,57;

f. 2014 – Passivo €1.442.867,00, vendas e serviços prestados €1.165.453,30, resultado líquido do período €16.397,55;

g. 2015 – Passivo €1.308.739,46, venda e serviços prestados €1.265.846,55, resultado líquido do período €87.245,16.

38 - Em 7 de abril de 2016, II, na qualidade de procurador e em representação da sociedade N..., Lda. - conforme procuração e ata número trinta da Assembleia Geral que reuniu em sete de abril de dois mil e dezasseis, e, bem assim, na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial por quotas Co..., Lda., declarou perante Notária, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de “compra e venda, declaração unilateral de hipoteca e mandato” que:

a. Na qualidade de procurador e em representação da sociedade N..., Lda., por aquela escritura e pelo preço de €336.000,00 (trezentos e sessenta e seis mil euros), que para a sua representada declarou ter recebido, vendia à sua representada - Co..., Lda. - o prédio urbano composto por edifício de dois pisos, denominado "Vale ...", sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 5249 (cinco mil duzentos e quarenta e nove), descrito na ... sob o n.º ...48 (...quarenta e oito), tendo ainda declarado que para a sua representada Co..., Lda. aceitava a venda;

b. Na qualidade de sócio gerente e em representação da Co..., Lda., pela mesma escritura, constituía hipoteca, em paridade e na proporção dos respetivos créditos, sobre aquele prédio urbano, a favor de Caixa de Crédito Agrícola Mútuo ... e ..., CRL e N..., S.A., destinada a garantir o bom e integral pagamento das obrigações e responsabilidades daquela representada, emergentes do contrato de empréstimo de quinhentos e cinquenta mil euros concedido naquela data pela Caixa Agrícola e da garantia autónoma no montante máximo de capital de trezentos e oitenta e cinco mil euros também emitida na mesma data pela N..., S.A., a benefício da Caixa Agrícola.

39 - Em 7 de abril de 2016, II, na qualidade de procurador e em representação da sociedade N..., Lda. - conforme procuração e ata número trinta da Assembleia Geral que reuniu em sete de abril de dois mil e dezasseis, e, bem assim, na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial por quotas Co..., Lda., declarou perante Notária, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de “trespasse” que:

a. A sociedade N..., Lda. era dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial composto por uma farmácia com o alvará número ...11 (... onze), emitido pelo Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., em 26-01- 2010, para o exercício da atividade farmacêutica propriedade da sociedade ora insolvente, cuja instalação foi autorizada por deliberação de 04-01-1980, denominado "Farmácia N...", instalado no prédio urbano, composto por dois pisos, denominado "Vale ...", sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 5249;

b. Por aquela escritura e pelo preço de dez mil euros, que para a sua representada N..., Lda. declarou ter já recebido, trespassava à sua representada Co..., Lda. o mencionado estabelecimento;

c. O trespasse envolvia a transferência dos móveis, utensílios, mercadorias, licenças, alvará e todos os demais direitos que integram o dito estabelecimento, livre de qualquer passivo, ónus ou encargos, não sendo o referido alvará de farmácia dissociável do estabelecimento comercial "Farmácia N...";

d. Para a sua representada Co..., Lda. aceitava o contrato nos termos exarados.

40 - No dia 7 de abril de 2016, II, na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial por quotas Co..., Lda. e, bem assim, de procurador e em representação da sociedade N..., Lda. - conforme procuração e ata número trinta da Assembleia Geral que reuniu em sete de abril de dois mil e dezasseis, declarou perante Notária, que consignou a escrito as suas declarações em escritura intitulada de “cessão de exploração” que:

a. A sua representada Co..., Lda. era dona e legítima possuidora de um estabelecimento comercial composto por uma farmácia com o alvará número três mil quatrocentos e onze, emitido pelo Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., em 26- 01-2010, para o exercício da atividade farmacêutica propriedade desta, denominado "Farmácia N...", instalado no prédio urbano, composto por dois pisos, denominado "Vale ...", sito em ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 5249, por o ter adquirido por escritura de trespasse celebrada no mesmo dia e cartório exarada a folhas imediatamente antecedentes;

b. Por aquela escritura e pelo preço de €336.000,00 (trezentos e trinta e seis mil euros), que para a sua representada Co..., Lda. declarou ter recebido, cedia à sua representada N..., Lda. a exploração do mencionado estabelecimento comercial, com todos os elementos que o integram, designadamente móveis, utensílios, mercadorias, licenças, alvará e todos os demais direitos que integram o estabelecimento, cessão essa regida pelas cláusulas constantes da escritura, designadamente as seguintes:

i. O estabelecimento comercial objeto da cessão destina-se exclusivamente à atividade de farmácia, venda a retalho de medicamentos e de outros produtos de saúde, acessórios e matérias primas a ela associadas [cl.ª 1.ª];

ii. A cessão tem a duração de 120 (cento e vinte) meses, com início no dia 7 de abril de 2016 e termo em 7 de abril de 2026 [cl.ª 3.ª, 1.];

iii. Findo o prazo do número anterior, a cessão de exploração renova-se por mais um período de cinco anos, por acordo de todos os intervenientes, salvo denúncia de qualquer das partes, que deverá ser feita por carta registada com aviso de receção e com uma antecedência mínima de 90 dias [cl.ª 3.ª, 2.];

iv. O valor acordado pela cessão diz respeito ao prazo inicial de cento e vinte meses pelo que para a renovação prevista no número anterior ocorra deverá ser acordado um novo valor a pagar pela representada do segundo outorgante (N..., Lda.) [cl.ª 3.ª, 3.];

v. Por imperativos de gestão, exploração ou motivos de interesse público, pode a representada do primeiro outorgante, sem que tenha de justificar a sua decisão, rescindir a cessão de exploração, a todo o tempo, sem pré-aviso [cl.ª 3.ª, 4.];

vi. No caso do número anterior, a representada do segundo outorgante (N..., Lda.) terá direito a ser indemnizada no valor correspondente às despesas realizadas que ainda não estejam amortizadas, que representem investimentos em bens inseparáveis do estabelecimento, considerando o método de quotas constantes [cl.ª 3.ª, 5.];

vii. Pela presente cessão a representada do segundo outorgante pagará a importância de €336.000,00 (trezentos e trinta e seis mil euros), valor pago nesta data e do qual dá quitação [cl.ª 4.ª, 1.];

c. Para a sua representada N..., Lda. aceitava o contrato nos termos exarados.

41 - Datada de 07 de abril de 2016, foi elaborada ata da assembleia geral extraordinária da sociedade “N..., Lda.”, com o número trinta e um, da qual consta que estiveram representados os sócios, EE e FF, “pelo seu bastante procurador II (...) deliberou-se, por unanimidade, nomear como gerente da sociedade o Sr. JJ (...), com efeito a partir desta data, auferindo um vencimento mensal enquadrado através de contrato de trabalho, o qual declarou aceitar a nomeação de gerente da sociedade, assinando a presente ata deliberativa”.

42 - Em 20 de abril de 2016 foi averbado ao alvará da “Farmácia N...” aquele trespasse, em 18 de julho de 2016 foi cancelado o averbamento no alvará da “Farmácia N...” da cessão de exploração pela insolvente, e, em 13 de março de 2017, encontrava-se pendente pedido de averbamento de cessão de exploração a favor da sociedade “M..., Lda.”, pessoa coletiva n.º ...39, por contrato de cessão de exploração celebrado com aquela sociedade datado de 01 de dezembro de 2016, que deu entrada na Direção de Licenciamentos e Inspeção do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. em 30 de dezembro de 2016.

43 - Em 12 de maio de 2016 foi registada na matrícula comercial da insolvente a transmissão das quotas dos RR. EE e FF a favor de JJ.

44 - Desde 12 de maio de 2016 que se mostra registada a deliberação de 7 de abril de 2016 de designação de JJ como gerente da sociedade N..., Lda., com a menção de que a deliberação foi tomada em 07 de abril de 2016.

45 - Os RR. renunciaram à gerência da sociedade em 29/03/2016, tendo o R. II ficado com a responsabilidade de proceder ao registo imediato de tal renúncia.

46 - No dia 12 de maio de 2016, JJ, declarou perante notária, que consignou a escrito as suas declarações em procuração, que “por si e na qualidade de único sócio da sociedade comercial por quotas que usa a firma «N..., Lda..» (...) cessionária de um estabelecimento de farmácia, denominado Farmácia N...” que:

a. Em seu nome e em nome da sociedade comercial por quotas que representa, nomeia seus bastantes procuradores, com a maior amplitude legal e sem qualquer observância de consentimento de terceiros, os requeridos II e mulher GG, a quem confere os poderes necessários e especiais designadamente para:

i. Cederem a eles próprios, ou para quem eles indicarem, pelo preço e nas condições que entenderem, a totalidade ou parte, e na proporção que entenderem, as quotas tituladas em seu nome, pelo valor nominal que possui na sociedade comercial por quotas sob a firma N..., Lda. que já recebeu e de que dá quitação, assinarem o contrato de promessa de cessão de quotas, bem como outorgarem e assinarem a respetiva escritura, nos termos, cláusulas e condições que entenderem convenientes, requererem quaisquer atos de registo comercial, representá-lo nas assembleias-gerais da mencionada sociedade, decidindo e votando como melhor entenderem, assinando as respetivas atas e renunciar à gerência que exerce na sociedade;

ii. Gerirem e administrarem o estabelecimento comercial da sociedade do mandante acima identificado e intervirem e obrigarem a sociedade em todos os atos e contratos, independentemente da sua origem, natureza ou objetivo, exercendo o comércio em seu nome e, por conseguinte, praticarem todos os atos comerciais inerentes;

iii. Abrirem, gerirem e encerrarem contas em nome da sociedade;

iv. Contraírem e concederem empréstimos, e à segurança de tais empréstimos constituírem hipotecas, penhores e outras garantias;

v. Os poderes outorgados através da procuração podem ser utilizados na celebração de negócio com eles mesmos, sendo conferida no interesse dos mandatários e que a procuração é irrevogável e irreversível, nos termos do n.º 3 do artigo 265, do n.º 2 do artigo 1170.º e do artigo 1175.º do Código Civil, em virtude de a mesma ser conferida, também no interesse dos mandatários; a procuração é também conferida no interesse dos procuradores ou de terceiros, é irrevogável e não caduca por morte do mandante nos termos do n.º 3 do artigo 265.º e do artigo 1175.º do Código Civil.

47 - Em 16 de junho de 2016, foi elaborada ata da assembleia geral extraordinária da sociedade N..., Lda., com a menção de que esteve presente o único sócio e gerente, JJ, e que foi deliberado submeter e apresentar a sociedade a Processo Especial de Revitalização, “por a mesma se encontrar em situação económica difícil, que suscita sérias dificuldades para cumprir as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez e porque não consegue apoio de nenhuma instituição bancária que lhe permita solver compromissos”.

48 - Em 06 de julho de 2016 a sociedade N..., Lda. instaurou o processo especial de revitalização que constitui o apenso A.

49 - Os RR. EE e FF, apenas intervieram na compra das quotas que representavam o capital social da insolvente, assumindo a gerência de direito e a constituição da sociedade Co..., Lda., como “testas de ferro” do seu filho II, por este estar proibido de o fazer.

52 - Foi o R. II que contratou os serviços de contabilidade; que efectuava os pagamentos; que dava ordens aos funcionários da farmácia; que se deslocava e negociava com os bancos.

2.2. O Direito

Os recorrentes invocam a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia. Segundo os recorrentes, a Relação julgou a apelação com base em questão sobre a qual as partes não foram previamente ouvidas, constituindo a decisão recorrida uma decisão-surpresa.

A nulidade da decisão por excesso de pronúncia está prevista no art.º 615.º n.º 1 alínea d) do CPC: a sentença é nula quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

O art.º 608.º n.º 2 do CPC estipula que “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”

O juiz deve conhecer de todas as questões que lhe sejam submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir e de todas as exceções invocadas, assim como de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (cfr. José Lebre Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, p. 737).

Por outro lado, no respeito pelo princípio do dispositivo, ressalvadas as questões que sejam de conhecimento oficioso, o tribunal apenas deve conhecer das questões que lhe sejam postas pelas partes, não podendo dirimir litígios sem que tal lhe seja pedido por uma das partes (cfr. art.º 3.º n.º 1 e o já citado art.º 608.º n.º 2).

A ação a que este recurso se refere tem como causa de pedir o alegado incumprimento, pelos RR., de um contrato de cessão de quotas de uma sociedade comercial, incumprimento esse do qual teriam resultado para os AA. danos patrimoniais e não patrimoniais.

Após audiência prévia das partes, por despacho saneador proferido em 01.6.2020 os RR. foram absolvidos em parte do peticionado, com base em autoridade de caso julgado emanado de sentença proferida numa outra ação (processo n.º 3246/13.8...), da qual resultara a desresponsabilização dos RR. pelo alegado incumprimento do contrato no que concerne à obrigação de libertação dos AA. de responsabilidades bancárias – sendo certo que, nessa sentença, apenas se condenou os RR. a pagarem às AA. a quantia global de € 155 513,08, acrescida de juros de mora, a título de preço em falta decorrente da cessão de quotas.

Realizado o julgamento, foi proferida a sentença, na qual os RR. foram condenados a pagarem aos AA. a indemnização de € 20 000,00 por danos não patrimoniais emergentes da falta de cumprimento pontual da quantia arbitrada no mencionado processo n.º 3246/13.8..., e, bem assim, nos danos patrimoniais decorrentes desse mesmo incumprimento, a liquidar em execução de sentença.

Contra essa condenação apelaram os RR. EE e FF, alegando não estar demonstrado serem responsáveis pela alegada falta de cumprimento pontual da decisão do processo n.º 3246/13.8..., não ter sido avaliada a gravidade dos danos de molde a atingirem a seriedade necessária à atribuição de compensação e, bem assim, reputando exagerado o valor indemnizatório fixado. Concluem pela improcedência da ação e sua consequente absolvição do pagamento aos AA. de qualquer quantia.

O acórdão recorrido, após explanar o teor da petição inicial, do saneador que estabeleceu os efeitos da autoridade do caso julgado dimanado da sentença proferida no processo n.º 3246/13.8..., e, bem assim, da sentença recorrida, discorreu da seguinte forma:

“Lendo com toda a atenção a petição inicial constata-se que os Autores fundamentaram estes pedidos no facto dos Réus cessionários, em colaboração com os demais Réus, terem incumprido a obrigação assumida, aquando da cessão de quotas daquela sociedade, de liquidarem as dívidas da sociedade N..., Lda..

(…)

Após ter sido proferido o despacho saneador que verificou a existência de caso julgado, declarou-se, no entanto, que o processo prosseguia “relativamente às demais pretensões deduzidas nos autos”.

Conforme resulta da fundamentação da decisão tomada no despacho saneador a referência “às demais pretensões”, não se reportava a pedidos distintos dos já julgados improcedentes, mas sim a uma distinta causa de pedir para todos esses pedidos – o incumprimento parcial pelos Réus da obrigação de pagar o preço da cessão de quotas – a qual, na tese daquela decisão, não teria sido abrangida pelo caso julgado na ação n.º 3426/13.8..., do Juízo Central Cível de ... – Juiz ....

Contudo, conforme já acima se referiu, da leitura atenta da petição inicial resulta que a única causa de pedir que foi alegada pelos Autores foi o facto dos Réus cessionários, em colaboração com os demais Réus, terem incumprido a obrigação assumida, aquando da cessão de quotas daquela sociedade, de liquidarem as dívidas da sociedade, a qual foi totalmente abrangida pela decisão de verificação do caso julgado constante do despacho saneador.

A suposta causa de pedir que justificou o prosseguimento dos autos não era discernível nos factos alegados na petição inicial, uma vez que as penhoras efetuadas aos Autores, resultavam da não liquidação das dívidas da sociedade e os danos patrimoniais e não patrimoniais invocados tinham a sua causa nessas penhoras e não na falta de pagamento de parte do preço da cessão de quotas.

Daí que da leitura da matéria de facto apurada resulte que os danos sofridos pelos Autores resultaram da não liquidação pelos Réus das dívidas da sociedade e subsequentes penhoras e não do incumprimento parcial da obrigação de pagamento do preço da cessão de quotas.

Quando no ponto 98 da matéria de facto se considerou provado que se os RR tivessem cumprido no prazo, os AA não teriam sofrido todos os constrangimentos patrimoniais que sofreram, esse cumprimento não se reporta ao pagamento do preço da cessão, mas sim ao cumprimento das obrigações da sociedade. Na verdade, este facto reporta-se ao alegado no artigo 98.º da petição inicial, o qual, lido conjuntamente com o redigido no artigo 97.º da mesma peça – a responsabilidade dos Réus EE e mulher mostra-se objetivada no contrato que firmaram, ao assumirem a obrigação de pagar as dividas aos credores da sociedade, incluídas as que os Autores eram avalistas – revela, sem margem para dúvidas que esse incumprimento não se referia à obrigação do pagamento do preço da cessão de quotas, mas sim à de os Réus cessionários liquidarem a dívida sociedade.

No ponto 110 da matéria de facto provada - Os AA DD e CC tinham em curso um projeto de instalação de um Hotel Rural em ..., que tiveram que abandonar porque não só não receberam os valores devidos pelos RR mas porque passaram a ficar impedidos de recorrer a crédito bancários e deixaram de poder dispor de mais de 800,00€ todos os meses das suas reformas – apesar da referência aos valores não recebidos pela Ré aparentar reportar-se aos valores do preço da cessão de quotas, as concausas que são aí referidas, como causa de pedir da indemnização pelos prejuízos que resultaram do abandono do referido projeto, são o impedimento do recurso ao crédito e a penhora das reformas dos Autores, as quais justificam a responsabilidade imputada aos Réus.

No ponto 117 da matéria de facto provada - Igualmente se verifica que devido ao incumprimento contratual dos RR foram os AA obrigados a intervir em pelo menos 6 processos Judiciais, que ocasionaram despesas que, em concreto, não foi possível apurar – o incumprimento contratual referido é o da não liquidação das dívidas da sociedade e não o do pagamento do preço da cessão de quotas, pois só aquele é que justificou a intervenção dos Autores nos processos em que os credores da sociedade pretenderam o pagamento das dívidas desta.

Não há qualquer outro ponto da matéria de facto provada de onde se possa retirar que foi o incumprimento parcial da obrigação do pagamento do preço da cessão de quotas pelos Réus cessionários que originou para os Autores os prejuízos apurados na presente ação.

Assim, independentemente de se saber se esse incumprimento era suscetível de justificar as indemnizações peticionadas, não podem os Réus serem responsabilizados por tais prejuízos com esse fundamento, sendo certo que quanto ao incumprimento da alegada obrigação dos Réus cessionários pagarem as dívidas da sociedade, nomeadamente as “avalizadas “ pelos Autores, já foi decidido definitivamente no despacho saneador que o caso julgado formado na ação n.º 3426/13.8..., do Juízo Central Cível de ... – Juiz ..., impede o conhecimento do mérito dos pedidos formulados.

Por esta razão, o recurso deve ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados, na parte não abrangida pela decisão proferida no despacho saneador”.

Lida a fundamentação do acórdão recorrido, afigura-se-nos que este se cinge ao objeto da causa e da apelação. Com efeito, o acórdão procede à interpretação da causa de pedir elaborada na petição inicial e aos factos dados como provados, para considerar que nem na petição inicial se invocaram prejuízos decorrentes do atraso no pagamento do preço (mas, isso sim, invocaram-se prejuízos decorrentes do alegado incumprimento da obrigação de satisfação das responsabilidades bancárias da sociedade e dos AA.), nem dos factos provados decorre que resultaram, para os AA., prejuízos emergentes do alegado atraso no pagamento da totalidade do preço decorrente da cessão das quotas societárias.

Assim, nesta perspetiva, a Relação não incorreu em excesso de pronúncia.

Questão diversa será aquilatar se a Relação, ao abordar a causa pela forma como o fez, emitiu uma decisão surpresa, proferiu um julgamento sem respeito pelo contraditório.

Tradicionalmente, o contraditório referia-se à audição prévia, pelo juiz, da parte contrária, em relação a um pedido, tomada de posição ou prova, apresentados pela contraparte.

Atualmente existe uma noção mais lata de contrariedade, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão (cfr. José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 4.ª edição, pp. 125 a 138; Rita Lobo Xavier, Elementos de direito processual civil, 2.ª edição, pp. 135 e 136).

O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.

Veja-se o teor do art.º 3.º n.º 3 do CPC:

O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

No plano do direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.

Assim, o acórdão que aprecia questão – ainda que de conhecimento oficioso - sem que previamente tenha sido concedido às partes o contraditório, viola o disposto no art.º 3.º n.º 3 do CPC.

No mencionado despacho saneador proferido em 01.6.2020 a 1.ª instância ajuizou expressamente que “os danos emergentes para os autores da falta de pagamento do remanescente do preço, assim como de outros atos e negócios, e a indemnização daí decorrentes, constitui pretensão que naqueles autos [o processo n.º 3426/13.8...] não foi apreciada, pelo que o caso julgado formado com a decisão proferida não impede a sua apreciação nestes autos”. E subsequentemente, na enunciação dos temas da prova, expressamente neles se incluiu os “prejuízos sofridos pelos autores em consequência da referida conduta dos réus, bem como do não pagamento da parte do preço da cessão ainda em dívida”.

Na apelação os RR. rejeitaram a sua responsabilidade pelo atraso no cumprimento do preço da cessão de quotas, mas não arguiram que essa matéria não fazia parte da causa de pedir, nem que dos factos provados não resultava a conexão entre o incumprimento e os danos declarados provados.

No acórdão em que a Relação apreciou a nulidade invocada na revista exarou-se o seguinte:

O acórdão recorrido limitou-se a constatar que a autoridade do caso julgado formado pela decisão proferida na ação n.º 3426/13.8..., do Juízo Central Cível de ..., que já havia sido reconhecida e aplicada no despacho saneador, abrangia na sua totalidade a causa de pedir que fundamentava os pedidos formulados na presente ação.

A força da autoridade do caso julgado, é do conhecimento oficioso do tribunal, não necessitando, por isso, de ser invocada pelas partes, pelo que o Tribunal da Relação pode conhecer dessa questão, mesmo que quando ela não é invocada nas alegações de recurso.

Tendo a fundamentação do acórdão agora recorrido se limitado a aplicar a autoridade do caso julgado, não se verifica qualquer excesso de pronúncia, não se registando, pois, a invocada nulidade.

Assim, entendemos não se verificar a nulidade apontada”.

Não se questiona o poder de o tribunal conhecer de questões que sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º n.º 2, in fine, do CPC).

Porém, a apreciação dessas questões não foge às exigências do contraditório.

Nos termos do n.º 3 do art.º 3.º do CPC, “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Ao julgar a apelação sem ter confrontado as partes, máxime os recorridos, com a questão da exclusão do atraso no pagamento do preço da cessão de quotas enquanto fundamento da pretensão indemnizatória deduzida na ação, e com a questão do alargamento do efeito do caso julgado da sentença proferida no processo n.º 3426/13.8... à totalidade da pretensão indemnizatória deduzida nesta ação, o tribunal a quo violou o contraditório (art.º 3.º n.º 3 do CPC).

Contra a prolação de acórdão que viola o disposto no art.º 3.º n.º 3 do CPC reagiu-se pelo meio adequado, que é o recurso.

Segundo a tese tradicional (cfr. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 183; Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, pp. 507 e 508; acórdão do STJ, de 30.3.2017, processo n.º 135/11.4TTCSC.L1.S1), sendo a decisão-surpresa contrária à lei processual (neste caso contrária ao disposto no art.º 3.º n.º 3 do CPC), deve ser atacada por meio de recurso, que não por meio de reclamação de nulidade para o tribunal que a proferiu.

Ou, na linha de uma nova perspetiva que atualmente se tem evidenciado, o tribunal, ao proferir decisão sem ter previamente ouvido as partes, incorre em excesso de pronúncia, enfermando a decisão da nulidade prevista no art.º 615.º n.º 1 al. d), parte final, do CPC, também ela atacável por via de recurso (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, v.g., posts de 21/12/2015, Jurisprudência (250); de 28/01/2019, Jurisprudência 2018 (163) e de 07/06/2021, Jurisprudência 2020 (227), todos in Blog do IPPC; na jurisprudência, cfr, v.g., STJ, 31.01.2024, processo 1195/22.8YRLSB.S1).

A violação do art.º 3.º n.º 3 do CPC pela Relação acarreta a baixa do processo, a fim de que seja cumprido o contraditório (cfr., v.g., acórdão do STJ de 19.10.2022, processo n.º 13358/20.6T8LSB.S1). Trata-se da solução prevista no art.º 684.º n.º 2 do CPC.

Em suma, a revista é procedente.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se a baixa do processo para que a Relação, antes de julgar a apelação, ouça as partes sobre a matéria em que veio a fundamentar o acórdão ora revogado (exclusão do atraso no pagamento do preço da cessão de quotas enquanto fundamento da pretensão indemnizatória deduzida na ação e alargamento da autoridade de caso julgado da sentença proferida no processo n.º 3426/13.8TBVIS à totalidade da pretensão indemnizatória deduzida nesta ação).

As custas da revista são a cargo dos recorridos.

Lx, 10.4.2024

Jorge Leal (Relator)

Jorge Arcanjo

Pedro de Lima Gonçalves