Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
084118
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARDONA FERREIRA
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DIVÓRCIO
ÓNUS DA PROVA
DEVER DE COABITAÇÃO
Nº do Documento: SJ199401260841181
Data do Acordão: 01/26/1994
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: ASSENTO 5/94 DR 70/94 Iª SERIE A DE 24-03-1994, PÁG. 1467 A 1473
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO TRIBUNAL PLENO
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :
No âmbito e para efeitos do n.º 1 do artigo 1779.º do Código Civil, o autor tem ónus da prova de culpa do cônjuge infractor do dever conjugal de coabitação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em sessão plenária, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - AA recorre, com base no artigo 763.º do Código de Processo Civil, para o pleno deste Supremo do Acórdão deste mesmo Tribunal de 10 de Novembro de 1992, proferido no processo n.º 82295, em recurso de revista, em que era recorrido BB.

A recorrente invoca, como fundamento, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Fevereiro de 1983, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 324, pp. 584 e seguintes, e Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117.º, pp. 61 e seguintes, e baseia-se em que, no domínio da mesma legislação, acerca da mesma questão fundamental de direito este Supremo assumiu soluções opostas: tratar-se-ia de saber, a propósito e no âmbito da acção de divórcio, se, saindo um dos cônjuges de casa onde ambos habitavam, o que fica e propõe acção de divórcio tem, para além daquele facto, ónus de prova de culpa do réu, ou se, pelo contrário, o que saiu tem ónus de prova de que agiu sem culpa.
Em 15 de Junho, próximo passado, a 1.ª Secção deste Supremo proferiu, por unanimidade, o Acórdão a fls. 35 e 36, nos termos do artigo 766.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no sentido de que existe a oposição que serve de base a este recurso, que, assim, mandou prosseguir.
A recorrente apresentou subsequentes alegações, concluindo (fls. 39 e seguintes):
A) Ao contraírem casamento entre si, com vista à formação de uma comunhão plena da vida, nos termos do artigo 1577.º do Código Civil, os cônjuges ficam reciprocamente vinculados aos deveres conjugais, designadamente ao de coabitação, sendo normal que os cônjuges vivam um com o outro, adoptando a residência de família previamente fixada;
B) Nos presentes autos, foi dado como provado que, após o casamento, autora e réu foram viver com os pais da primeira para Taboeira, Cantanhede, ou seja, que o lar conjugal foi fixado em casa dos sogros do recorrido, nada permitindo contrariar tal conclusão;
C) O pedido de divórcio só pode proceder se se verificarem os diferentes requisitos do artigo 1799.º, n.º 1, do Código Civil, isto é: violação dos deveres conjugais culposa grave ou reiterada que comprometa a possibilidade de vida em comum;
D) Foi dado como provado que o réu saiu, no dia de Páscoa de 1989, de casa dos sogros, onde vivia com a autora, e que, após essa data, lá não voltou;
E) Assim, ao sair da residência previamente fixada, o recorrido não só violou o dever conjugal de coabitação como comprometeu definitivamente, a possibilidade de vida em comum, dado que não voltou àquela residência decorridos que estão mais de quatro anos, tendo, assim, eliminado qualquer convivência em comum;
F) Antes de analisarmos a problemática da culpa importa, enquanto questão prévia, assentar que o casamento assume a natureza de contrato, pois resulta de duas declarações de vontade livremente expressas, contrapostas mas harmonizáveis, emitidas pelos nubentes, de quererem casar um com o outro;
G) Nem a intervenção do Estado na respectiva celebração através da figura do oficial público, à semelhança do que acontece com o notário na outorga de escritura pública, afasta tal natureza jurídica do casamento, de acordo com o artigo 189.º, n.º 2, do Código do Registo Civil, o Estado não é parte no acto matrimonial, sendo testemunhal e proclamatória a intervenção do oficial público na sua realização;
H) Nem a pré-fixação legal dos efeitos fundamentais do casamento altera tal natureza contratual, pois a sujeição a efeitos previamente fixados na lei verifica-se nos mais diversos tipos de contratos, designadamente o arrendamento, cujos direitos e obrigações dos contraentes, à semelhança do que acontece com o casamento, se prolongam e sofrem mutações legais no tempo sem que, por isso, deixe o mesmo de assumir natureza contratual;
I) Ora, sendo o casamento um contrato, encontra-se sujeito ao regime jurídico do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil, relativamente à prova da culpa no incumprimento contratual;
J) Assim, é ao cônjuge infractor do dever conjugal, designadamente de coabitação, que cabe o ónus de demonstrar que agiu sem culpa, sob pena de, verificando-se os demais requisitos exigidos pelo artigo 1779.º, n.º 1, do Código Civil, dados como provados nos autos, se ter de dar como assente a culpa e, dessa forma, por reunião de todos os pressupostos, decretar-se o divórcio peticionado;
L) Nem este entendimento comporta qualquer desrespeito pelo artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, cuja aplicação é aqui afastada pelo artigo 344.º, n.º 1, do mesmo diploma, já que, havendo presunção de culpa, esta tem de ser acatada;
M) Mas ainda por outro fundamento, designadamente o artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, o divórcio deveria ter sido concedido;
N) Na verdade, da aplicação desta norma resulta que é ao cônjuge que sai de casa que incumbe fazer a prova de circunstâncias justificativas da sua conduta violadora dos deveres conjugais, tornando este insusceptível de qualquer censura ou reprovação, na medida em tal facto é impeditivo do direito ao divórcio por parte do outro cônjuge, demonstração que, não logrando ser feita, deverá ter como consequência o divórcio peticionado;
O) E a conclusão é ainda esta se atentarmos em que a prova de que o cônjuge infractor dos deveres conjugais actuou sem culpa se apresenta como demonstração da realidade de facto negativo, cuja prova é de muito maior dificuldade do que a de factos positivos, o que decorre do artigo 343.º, n.º 1, do Código Civil no que respeita às acções de declaração negativa, devendo assim, também sob esta perspectiva, o ónus da prova de inexistência de culpa por parte do cônjuge infractor recair sobre este e não sobre o outro;
P) Assim, não tendo o recorrido, cônjuge infractor do dever conjugal de coabitação, ilidido a presunção de culpa que sobre ele legalmente recaía, nem tão-pouco provado factos impeditivos do direito ao divórcio da requerente, que, por seu lado, provou todos os demais requisitos do mesmo direito, previstos no artigo 1779.º, n.º 1, do Código Civil, o douto acórdão recorrido deveria ter declarado dissolvido, por divórcio, o casamento entre a recorrente e o recorrido, pelo que deve o mesmo ser revogado e substituído por decisão nesse sentido, dado encontrarem-se violados, entre outros, os artigos 1577.º, 799.º, n.º 1, 342.º, n.º 2, e 344.º, n.º 1, do Código Civil, fixando-se, para tanto, assento que fixe a seguinte doutrina: o casamento não deixa de ser um contrato, à luz do artigo 1577.º do Código Civil; sendo um contrato, deve considerar-se submetido ao regime do artigo 799.º do Código Civil relativamente à prova da culpa; dado tratar-se de facto impeditivo do direito ao divórcio, é ao réu que incumbe fazer a prova de que, em face das circunstâncias verificadas, a sua conduta não é reprovável; porque a prova de factos negativos reveste sérias dificuldades, é mais curial que se faça incidir sobre o cônjuge infractor o ónus da prova da inexistência de culpa da sua parte.
Não houve contra-alegações.

O Ministério Público apresentou o douto parecer a fls. 47 e seguintes, terminando por propor a confirmação do acórdão recorrido e a formulação de assento onde se diga:

O abandono do lar conjugal só fundamenta o divórcio quando não seja imputável ao abandonado, competindo a este, quando o invoca, a prova da exclusão de culpa sua.
Foram proporcionados vistos a todos os Exmos. Conselheiros deste Supremo.
II - Visto o disposto no artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, ao tribunal pleno compete reapreciar, sendo caso disso, oficiosamente, a questão prévia da existência da oposição de acórdãos.

Contudo, não valerá a pena dizer muito acerca desta questão.
Em rigor e ao contrário do que uma leitura apressada da lei poderia fazer crer, nem seria indispensável que, aqui e agora, algo explicitássemos sobre a existência de oposição de acórdãos.

Com efeito, o que a lei (n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil) diz é que o acórdão da Secção a tal respeito não impede que o pleno decida em sentido contrário; o que vale por dizer que pode não fazer, necessariamente, caso julgado sequer formal.
Mas isto só significa que o pleno pode pronunciar-se em sentido contrário e fazê-lo oficiosamente; não significativa que o pleno tenha de abordar a questão para dizer o mesmo que a Secção.
Ou seja: o pleno pode nada dizer, explicitamente, sobre a existência da oposição de acórdãos e, sim, entrar a decidir tal oposição, assumindo, natural e implicitamente, que ela existe.
Já o Prof. A. Reis, há meio século, ensinava isto (Anotado, VI, p. 311).
E tanto, afinal, significa que o Prof. A. Reis era mais simplificador do que pode parecer ou às vezes ainda pretende ver-se no que o eminente processualista legou à processualística deste país.

O que é tão mais certo quanto confrontarmos o que o Prof. A. Reis inovou face à legislação que o precedeu.
Só que os tempos mudaram e não surgiu outro reformador processual como aquele mestre, com as possibilidades - também há que reconhecê-lo - que o Prof. A. Reis teve há mais de 50 anos.
E a prática acabou por tornar a dita questão prévia, ainda que concordante com a Secção, usual tema de acórdãos do pleno.
Mas, há sempre um mas...

Claro que há que entrar na questão prévia da oposição quando o pleno entenda diferentemente da Secção.

E cremos que também convirá reflecti-la, ainda que brevemente, mesmo que em consonância com a Secção, quando algum aspecto do recurso justifique essa abordagem.
Poderá ser o caso, pelo que diremos adiante.

III - Decerto - já La Palice o diria - cada caso é um caso.


Logo, por mais semelhantes que as problemáticas processuais se apresentem, de processo para processo há, sempre, nuances.

E, portanto, é sempre possível encontrarem-se pontos de diferenciação entre dois casos, por mais sintonias que apresentem.
Daí que relevem, para efeitos de oposição de acórdãos, não os aspectos marginais ou as «roupagens» casuísticas mas sim o entendimento - divergente - acerca da «mesma questão fundamental de direito», o que implica, como corolário natural, que o direito aplicado tenha sido, sobre essa «questão fundamental», nuclearmente o mesmo: artigo 763.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Isto explica e é conditio sine qua non do recurso para o pleno, que é um recurso atípico, ainda que, literalmente, referenciado como ordinário. E é atípico porque tem essa causa final específica e própria que é, na base do conflito da jurisprudência, a circunstância de se destinar à clarificação da jurisprudência, isto é, da interpretação jurisprudencial correcta de certa normatividade, com ou sem influência no caso concreto donde o recurso promana: artigo 768.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
IV - Este traço fundamental do que é um recurso para o pleno parece não ter sido apreendido pela recorrente, face à prolixidade das suas conclusões, basicamente viradas para a solução casuística do processo base, e não tanto para a clarificação da orientação jurisprudencial adequada.
Claro que de um recurso para o pleno pode surgir uma orientação que leve a alterar o que in casu o próprio Supremo Tribunal de Justiça decidira. Mas quando issso aconteça, tal é apenas um corolário da opção jurídica assumida.
O que está verdadeiramente em causa num recurso para o pleno é a definição da orientação interpretativa da lei vigente; não é a revisão do acórdão que constitui o suporte formal do recurso para o pleno, ainda que, repete-se, o assento possa repercutir-se no acórdão recorrido.
Mas já não no acórdão fundamento, cujo trânsito se presume: artigo 763.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
E, a não ser assim, isto é, se os recursos para o pleno não tivessem como causa final a definição de orientação jurisprudencial firme, com algum grau de vinculação, constituiriam, absurdamente e apenas, mais um grau de jurisdição de certo caso, arrastando-o às vezes anos, em oposição àquilo que hoje é um desiderato claro da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a saber, a prolação da decisão, logo, a finalização processual «num prazo razoável» - artigo 6.º, n.º 1.
Logo, a não ser assim, mais valia, pura e simplesmente, acabar, legislativamente, com todos os recursos para o pleno.
V - Dir-se-ia que, afinal, estamos a perder tempo e espaço com estas considerações.
E isso não seria verdade, pelo menos, por dois motivos.
Em primeiro lugar, limitamo-nos a clarificar a linha de rumo tão brevemente quanto possível.

E, em segundo lugar, tudo isto explica que, sem ignorar, não vamos, todavia, discutir toda a problemática casuística que a recorrente inseriu nas suas conclusões, porque não estamos de jure, simplesmente, em mais um grau de jurisdição para revermos o acórdão recorrido.
A linha de orientação é apenas esta:

1.º Assumirmos que existem, ou não, em acórdãos deste Supremo decisões divergentes, no âmbito da mesma legislação, «relativamente à mesma questão fundamental de direito»;

2.º Se tal existe, definirmos, em termos claros de assento, qual é a interpretação da lei aplicável ao tipo concreto da situação controvertida;
3.º Verificarmos se, face a tal assento e nessa medida exclusiva, o acórdão recorrido está em consonância.
É face a isto que in casu convém clarificar, havendo oposição, qual é ela.
Face a isto e ao douto parecer do Ministério Público, clarifiquemos um pouco mais, procurando que dúvida não fique.

VI - Quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento, aquele de 10 de Novembro de 1992 (recurso n.º 82295, da 1.ª Secção) e este de 17 de Fevereiro de 1983 (publicado no Boletim do Ministério de Justiça, n.º 324, p. 584, e na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.º, p. 61), estavam em causa pedidos de divórcio; em ambos os casos um dos cônjuges deixou a casa onde vivia com quem casara; num e noutro caso pôs-se o problema nuclear de saber se o cônjuge que ficou e pediu o divórcio tinha ónus de prova de culpa do que saíra ou se, pelo contrário, o que saíra tinha ónus de prova de que o fizera sem culpa sua.
No Acórdão de 17 de Fevereiro de 1983 entendeu-se que o cônjuge, digamos, abandonante tinha ónus de prova de ausência de sua culpa; no Acórdão de 10 de Novembro de 1992, partiu-se do entendimento de que o autor do pedido, na qualidade formal do abandonado, tinha ónus de prova de culpa do abandonante.
A oposição é incontroversa, conforme, por unanimidade, decidiu a 1.ª Secção deste Supremo, pelo seu Acórdão de 15 de Junho próximo passado (fls. 35 e 36).
Mas, nuclearmente, o problema não se põe em termos de ónus de prova ou de exclusão de culpa do formalmente abandonado como, literalmente e salvo o devido respeito, se poderia perspectivar face à proposta do Ministério Público (fl. 57).
A culpa, ou exclusão de culpa, que se discute não é a, eventualmente, do abandonado - continuamos a dizer assim, para facilidade de expressão, embora, face à carga jurídica que o termo «abandono» e, portanto, os seus derivados podem ter, melhor fosse dizer «cônjuge que não deixa a casa onde o casal morava»; a culpa, ou exclusão da culpa, que se discute (e, portanto, o ónus da respectica prova) é a do abandonante.
E, consequentemente, assumida a referenciada oposição de orientações jurisprudenciais, a pergunta para que temos de encontrar resposta útil é esta: saindo um dos cônjuges do local onde o casal morava e proposta contra ele acção de divórcio, para que a acção proceda, e além do mais que seja caso disso, o autor e abandonado tem ónus de prova de culpa do abandonante ou este tem ónus de prova de que abandonou sem culpa sua?
Deve dizer-se que, não obstante a circunstância de a redacção do assento proposta pelo ilustre magistrado do Ministério Público poder, a nosso ver, desviar-se do ponto essencial do problema, a orientação que lhe subjaz, em termos concretos, não se afasta, na prática, da que entendemos que deve prevalecer.
E, aliás, depois de um período de alguma hesitação, a jurisprudência tem sido suficientemente reflectora, como, aliás, a doutrina, da orientação adequada, que será vertida no assento final deste acórdão. Citamos, a título de exemplos e para além do próprio acórdão recorrido, os Acórdãos deste Supremo de 20 de Fevereiro de 1979 (Boletim do Ministério de Justiça, n.º 284, p. 204), de 7 de Dezembro de 1982 (Boletim do Ministério de Justiça, n.º 322, p. 348), de 3 de Dezembro de 1985 (Boletim do Ministério de Justiça, n.º 352, p. 362), de 10 de Dezembro de 1985 (Boletim do Ministério de Justiça, n.º 352, p. 366), de 10 de Janeiro de 1991 (Boletim do Ministério de Justiça, n.º 403, p. 432), e de 12 de Janeriro de 1993 (Coletânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, t. I, p. 20); bem como Prof. Pereira Coelho, exactamente em anotação ao acórdão fundamento (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117.º, pp. 64 e 91); Prof. Antunes Varela, Direito da Família, 2.ª ed., pp. 475-477; Profs. A. Varela e P. Lima, Anotado, II, 3.ª ed., p. 56.
VII - Embora, naturalmente, nenhuma norma jurídica viva sozinha no mundo do direito e, portanto, haja uma interdisciplinaridade que deve levar a uma visão conjugada do sentido da ordem jurídica (artigo 9.º do Código Civil), a norma basicamente, aqui e agora, em causa é a do artigo 1779.º, n.º 1, do Código Civil;
1 - Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum.
2 -
..
Note-se que o n.º 2 desse mesmo artigo 1779.º manda «tomar em conta», além do mais, «a culpa que possa ser imputada ao requerente», para efeitos do julgamento da «gravidade dos factos invocados», mas isto reporta-se, basicamente, ao comprometimento da possibilidade de vida em comum e ao alcance do artigo 1787.º do Código Civil, não colidindo com os pressupostos essenciais do divórcio litigioso, que se encontram no transcrito n.º 1 do artigo 1779.º

Os deveres estão hoje, no seu núcleo essencial, explicitados pelo artigo 1672.º do Código Civil: respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.
Ora, decerto, um cônjuge que deixe a casa de morada do casal objectivamente não age de acordo com a regra da coabitação.
Só isso e independentemente do mais que o n.º 1 do artigo 1779.º do Código Civil indica como sine qua non para ser decretado o divórcio dispensará o cônjuge que não saiu da casa do casal e propõe contra o outro acção de divórcio de provar culpa do abandonante?
À luz do direito constituído, que nos compete respeitar e interpretar, a resposta é negativa.
VIII - Comecemos por verificar que estamos em pleno campo do divórcio sanção, e não tanto do divórcio remédio, ainda que um certo hibridismo da lei vigente não deixe de reflectir o comprometimento da vida conjugal, em segmento que valora o remédio para uma tal situação. Mas, não obstante isso, a lei vigente é bem clara ao evidenciar, como traço fundamental, nos casos do artigo 1779.º do Código Civil, o divórcio cuja raiz é uma sanção; e, mormente, no artigo 1781.º do mesmo Código situações que privilegiam o divórcio remédio (cf., v. g., Prof. A. Varela, Direito da Família, 2.ª ed., p. 468).
Outrossim e relevantemente para efeitos da hipótese em apreço, a alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil permite fundamentar o divórcio em separação de facto por seis anos consecutivos (embora a culpa possa relevar nos termos e para efeitos dos artigos 1782.º e 1787.º do Código Civil); mas, quando se trata de divórcio na base do artigo 1779.º citado, a lei clarifica que a violação dos deveres conjugais, como o de coabitação, tem de ser culposa, como, aliás, é próprio de uma situação do tipo penalizador, divórcio sanção.
Por outro lado e sendo certo que, para além da distinção que acaba de ser feita, na civilística portuguesa, a regra consiste na inexistência de responsabilidade objectiva (artigo 483.º do Código Civil), natural é que a utilização do termo «culposamente», constante do n.º 1 do artigo 1779.º do Código Civil, justifique uma atenção específica.
Assim, todo o problema ora em apreço radica na culpa, enquanto factor sine qua non, conforme flui do já exposto, nos termos e nos limites do artigo 1779.º do Código Civil, para efeitos de divórcio litigioso na base dos pressupostos desse normativo.
IX - Como se disse, não há que analisar, alínea a alínea, as prolixas conclusões da recorrente, por força do que também já se referenciou, a saber, o thema decidendum próprio deste recurso para o pleno tem como essência uma divergência interpretativa, jurisprudencialmente, da lei constituída acerca da questão fundamental de direito, que há que solucionar, optando pela interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça considera correcta, podendo daí resultar, ou não, alteração do acórdão recorrido.
A construção da recorrente, invocando o acórdão fundamento, baseia-se em que o casamento é um contrato e, como tal, são-lhe aplicáveis as respectivas normas, designadamente a da presunção de culpa de quem cometa um ilícito contratual, face ao artigo 799.º do Código Civil.
Logo, se um cônjuge deixa a casa conjugal, teria ónus de prova de que agira sem culpa.
Salvo o devido respeito por outro entendimento, esta é uma visão demasiado apressada da lei e das instituições sócio-jurídicas.
X - É certo que o artigo 1577.º do Código Civil diz que «casamento é o contrato [...]», logo, reporta-se à vertente contratual do casamento.
Mas, para além de o próprio artigo 1577.º do Código Civil não dizer só isso (e ler uma parte apenas de uma norma, ou desinserida do contexto da ordem jurídica, não permite, normalmente, apreender-lhe o verdadeiro sentido), certo é que ler uma norma é uma coisa, apreender-lhe o sentido é outra. E do que se trata é de apreender o sentido conjugado de uma certa normatividade, na sua perspectiva lógica (artigo 9.º do Código Civil; v.g. Prof. Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, II, p. 56).
O que todo o artigo 1577.º do Código Civil diz é:

Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código.

Esta matéria do casamento é das que mais dividem as normatividades próprias de cada país e cada cultura. Aliás, culturas próximas da portuguesa começam por divergir acerca da própria existência de noção legal de casamento, como são os casos de italiana e da alemã (cf. Profs. P. Lima e A. Varela, Anotado, IV, 2.ª ed., p. 22).
Apesar daquele conceito legal, é patente que a lei portuguesa não traz para o casamento toda a regulamentação contratual, isto é, toda a regulamentação geral dos contratos ou, especificamente, a que se reporta à prova de culpa.
Basta, para tanto constatar, considerar que o Código Civil está, basicamente, dividido em «livros», um dos quais, o II, se reporta ao «Direito das obrigações» e nele, sim, genericamente, aos contratos; enquanto outro «livro» (IV) inclui o «Direito de família» e neste o título relativo ao casamento.
Logo por aqui se vê que a lei constituída não quis trazer para o casamento, sem mais, a disciplina geral dos contratos.
Aliás, o próprio artigo 1577.º do Código Civil é disto reflexo, não se limitando a dizer que o casamento é um contrato mas sim indo muito mais longe e entrando na essência do acto e da situação jurídica a que o acto dá origem.
O designativo contrato aparece, assim, como o acto existencial que, juridicamente, traduz um acordo de vontades, baseado em duas declarações de vontade, distintas mas correspondentes e harmónias (v.g. Prof. A. Varela, Das Obrigações em Geral, I, 2.ª ed., p. 197).
Mas, para além disto, há tudo o mais para que logo o artigo 1577.º do Código Civil chama a atenção.
Com efeito, o dito contrato funciona como o acto que reflecte um acordo de vontades de pessoas singulares de sexo diferente «que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida», nos termos das disposições do Código Civil.
A essência desta realidade jurídica está, assim, na instituição familiar, que é a causa final daquele acordo.
Logo, as regras próprias dos contratos só relevam na medida em que se reportam ao acto desencadeante daquela essência institucional e, mesmo aí, desde que não funcionem regras específicas e tendo sempre em mente a dita essência institucional.
É preciso não confundir o acto cuja existência provoca uma situação jurídica matrimonial com tal situação consequente, sem deixar de ser verdade que, em português comum, tanto se pode chamar «casamento» à cerimónia por que se traduz o acordo de vontades, dito contrato, como à situação jurídico-matrimonial que daí decorre.
XI - Portanto, num divórcio, mormente litigioso, à luz do artigo 1779.º do Código Civil, a essência da questão não está no acto contratual; está na instituição familiar, na «plena comunhão de vida», que constitui a raiz e a base da vida social, tal como é vivida no plano sócio-jurídico português, inclusive com dignidade constitucional (artigo 36.º, nº 1, da Constituição de 1976).
Querer reduzir esta problemática à jurisdicidade contratual seria - ressalvando sempre o devido respeito pelo entendimento em contrário - tapar a floresta com a árvore da periferia, designadamente no plano grave, ainda que, às vezes, justificado, do divórcio litigioso tipo sanção e exactamente na vertente que, nesta perspectiva, atinge uma mais significativa importância, que é a da culpa.
Um casamento não se confunde com uma compra e venda ou um comodato ou, mesmo, um arrendamento, ou outro tipo contratual.
XII - Note-se que nisto nada há de antidivorcismo.
O divórcio é, quantas vezes, preferível à manutenção do nada que é um casamento irremediavelmente destruído dentro de si próprio.

Ao intérprete e, mais, ao aplicador da lei, que é o juiz, o que compete é entender a lei que existe e que o vincula (artigo 206.º da Constituição), sem esquecer que a vida não é estática e que, portanto, a lei que dela retira a sua razão de ser também não pode ser imobilista. E, com a lei, a sua interpretação e a jurisprudência que «governa», enquanto aquela «reina» ou «preside», devem ter em conta os valores traduzidos pelo dever-ser que a norma encerra. Reflectindo este tipo de considerações e em frases plenamente actuais, o Prof. Cabral de Moncada acrescentava que o direito «carece de reformar-se permanentemente, acompanhando a evolução social» e que todo o direito é «pensamento ao serviço da vida» (ob. cit., pp. 157 e 76).
Isto pode explicar, como flui do que já se expôs, que, ao longo dos anos, houvesse entendimentos diversos da lei; mas conforme também já se evidenciou, o sentido hoje prevalecente acerca do que é que está em causa e daí do que há que pensar sobre prova de culpa em acção de divórcio litigioso, ex vi do artigo 1779.º do Código Civil, claramente rejeita uma mecânica aplicação, neste âmbito, da regra contratual do artigo 799.º do Código Civil.
De resto, se a opção fosse a contrária, então não se entenderia a razão que levaria a não aplicar, no regime de casamento, por exemplo, as regras contratuais gerais, designadamente relativas à resolução, ou à revogação, ou à denúncia unilateral -, assim como a modos do unilateral arbitrário repúdio romanista (v. g. França Pitão, Sobre o Divórcio, p. 9)!
Em síntese, é seguro que nada implica, na lei vigente e no pensamento moderno sobre ela, que se aplique, no âmbito do artigo 1779.º do Código Civil, a regra contratual geral da presunção de culpa a que se reporta o artigo 799.º do mesmo Código.
XIII - Isto posto, torna-se incontroverso que o regime do ónus da prova, neste tipo de acções baseadas no artigo 1779.º do Código Civil, há-de reger-se pelos princípios próprios das normas sobre direito probatório material.
E tal significa, à luz do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, que o autor de uma tal acção de divórcio litigioso tem ónus da prova dos factos que correspondem à previsão legal em que se baseia a sua pretensão, quer sejam positivos quer sejam negativos (v. g. Prof. A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 455), e que, deste modo, são constitutivos do seu alegado direito ao divórcio.
Ora - e aqui entramos na consequência final e incontroversa do raciocínio desenvolvido - o artigo 1779.º do Código Civil, para além do mais através do que condiciona o direito ao divórcio, não prescreve só a violação de deveres conjugais, como o dever de coabitação. Prescreve violação culposa.
Ou, por outras palavras, não é só o acto formalmente infractor do dever conjugal que pode levar ao divórcio.
Para tanto, quem o comete, quem por ele seja réu, tem de ter agido com culpa.
O que vale por dizer, em elementar lógica, que a culpa do cônjuge formalmente infractor é elemento constitutivo do alegado direito ao divórcio litigioso.

Logo, os factos pertinentes são objecto de ónus de prova do autor.
Ou, dito de outro modo, o réu não tem ónus de prova de que agiu sem culpa. O autor, sim, tem ónus de prova de que o réu agiu culposamente.

Nem poderia ser de outro modo, sob pena, quando assim não fosse, de se fechar os olhos à vida e aos valores concretos, quando é certo que o direito só tem sentido enquanto estiver em consonância com as realidades que são o dia-a-dia dos cidadãos que lhe devem obediência.
Quantas vezes acontece que o cônjuge que deixa o lar conjugal o faz depois de esforços para ali se manter e apenas porque o que fica procedeu de forma a obrigar o outro a sair ou, mesmo, a fugir!
Quem põe uma acção de divórcio litigioso e, para mais, divórcio basicamente sanção, à luz do direito constituído, tem ónus de prova não só da formal ilicitude do comportamento do réu como da culpa deste.
XIV - Abramos, aqui, um pequeno parêntesis para referenciar que um outro problema, completamente diferente, consiste na valoração casuística dos factos tendentes ao apuramento, ou não, de culpa.
Este é um tipo de problemas que sempre se porá enquanto a justiça concreta for feita por homens.
Mas, de todo o modo, é algo que ultrapassa, abertamente, o thema decidendum, aqui e agora.
Neste acórdão só havia - «só» há - que optar entre duas teses acerca do ónus de prova, no âmbito referenciado.
XV - Face ao desenvolvimento que se expôs, é indubitável que o acórdão recorrido aplicou a doutrina que temos por correcta, considerando, explicitamente, que o cônjuge autor tem ónus de prova de culpa do cônjuge abandonante.
E, assim sendo, estamos em condições de concluir, acordando-se em negar provimento ao recurso.
Formula-se o seguinte assento:

No âmbito e para efeitos do n.º 1 do artigo 1779.º do Código Civil, o autor tem ónus da prova de culpa do cônjuge infractor do dever conjugal de coabitação.

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Lisboa, 26 de Janeiro de 1994.


Cardona Ferreira - Silva Reis - Ferreira Dias - Pais de Sousa - Raul Mateus - Sá Couto - Costa Pereira - Sousa Guedes - José Magalhães - Mora do Vale - Santos Monteiro - Ramos dos Santos - Guerra Pires - Abranches Martins - Cardoso Bastos - Pereira Cardigos - Zeferino Faria - Carlos Caldas - Chichorro Rodrigues - Gelásio Rocha - Sá Ferreira - Silva Cancela - Amado Gomes - Correia de Sousa - Cura Mariano - Ferreira Vidigal - Miguel Montenegro - Figueiredo de Sousa - Martins da Fonseca - Mário Noronha - Fernando Fabião - César Marques - Sá Nogueira - Sampaio da Silva - Roger Lopes - Ramiro Vidigal - Coelho Ventura - Costa Raposo - Lopes de Melo - Oliveira Branquinho - Martins da Costa - Araújo Ribeiro (vencido, nos termos e com os fundamentos que constam da declaração de voto que junto) - Ferreira da Silva (vencido, nos termos da declaração de voto que antecede) - Sousa Macedo (vencido, nos termos da declaração de voto que antecede) - Miranda Gusmão (vencido, nos termos da declaração de voto que antecede) - Dias Simão (vencido, nos termos da declaração de voto do Doutor Conselheiro Araújo Ribeiro) - Machado Soares (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Mário Ribeiro).

Declaração de voto


Votei vencido quanto à oposição entre os dois acórdãos, já que é diversa a factualidade considerada em ambos: no acórdão fundamento há uma saída do domicílio (exclusivo) do casal, sem mais; no acórdão recorrido, essa saída não é do domicílio do casal (i. e., só deste) e é precedida de uma fase (três anos) em que o marido, trabalhando a centenas de quilómetros da casa dos sogros (com quem o casal vivia), visitava regularmente a mulher, tendo - mais que isso - pretendido criar o seu próprio lar na região onde trabalhava, o que a mulher recusou. Esta diversidade de circunstâncias podia determinar soluções finais diferentes, independentemente da via para que o efeito foi seguida nos dois acórdãos.

Esta é, penso, a posição que mais se coaduna com jurisprudência corrente deste Tribunal quanto à existência de oposição entre acórdãos para efeitos de admissão de recurso para o tribunal pleno.
Por fim, repugna-me proferir assento sobre o problema específico deste recurso quando - com o devido respeito - penso que ele não se punha, ou, pelo menos, não se punha em termos tão «secos».
Por tudo, não votei o assento.

Lisboa, 26 de Janeiro de 1994. - Mário de M. Araújo Ribeiro.