Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4158
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
CLÁUSULA CUM POTUERIT
EXEQUIBILIDADE
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TÍTULO EXECUTIVO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Nº do Documento: SJ200712040041587
Data do Acordão: 12/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. Um documento particular só constitui título executivo se provar a constituição ou contiver o reconhecimento de uma obrigação pecuniária e se for assinado pelo devedor (artigo 46º, nº 2, c) do Código de Processo Civil);

2. Numa execução baseada em título extra-judicial, o executado pode utilizar para se opor à execução todos os fundamentos de que se poderia servir numa acção declarativa;

3. Num contrato, reduzido a escrito apesar de tal forma não ser imposta por lei, não se pode separar, para efeitos de interpretação da vontade das partes (no sentido juridicamente relevante, apurado de acordo com as regras definidas pelo artigo 236º do Código Civil), o corpo de uma cláusula dos respectivos parágrafos;

4. Se no corpo da cláusula de um contrato designado por “contrato de transmissão de acções” se estabelecer que a liquidação do valor global da transmissão, pelo adquirente, será efectuado até uma determinada data, de acordo com as suas possibilidades, e no parágrafo único da mesma cláusula se estipular que, se até essa data, tal montante não estiver pago, o adquirente se obriga a devolver as acções em causa, a consideração conjunta das duas partes da cláusula leva à conclusão de que se estipulou que o adquirente ficava com a possibilidade de, até àquela data, optar entre pagar o valor das acções ou devolvê-las ao alienante;

5. O documento em causa não pode ser utilizado como título executivo numa execução destinada a obter o pagamento do preço da transmissão, ainda que proposta após a referida data, porque não prova a constituição da obrigação de o pagar.
Decisão Texto Integral:


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Em 13 de Outubro de 2005, AA deduziu oposição à execução para pagamento da quantia de € 74.819,68, acrescidas dos juros contados desde 31 de Dezembro de 2003, baseada num documento, com cópia junta a fls. 157, que, segundo o exequente, BB, contém um contrato do qual resulta que o executado lhe deveria ter pago até esta última data a quantia de 15.000.000$00, encontrando-se desde então em mora, vencendo juros à taxa de 4% ao ano (cfr. cópia do requerimento executivo, a fls. 148).
Como fundamento, o embargante contesta a exequibilidade do título, por não demonstrar a constituição da obrigação invocada pelo embargado, a quem entende não dever qualquer quantia. Segundo o referido contrato, o que dele resultaria seria a transmissão, a seu favor, de determinadas acções, e o acordo segundo o qual o embargante tinha a faculdade, até àquela data, de pagar ao embargado a quantia de 15.000.00$00 ou, caso não procedesse a tal pagamento, de devolver as acções. Tendo preferido a última hipótese, colocou-as à disposição do exequente, que se recusou a aceitá-las.
Explicou ainda o embargante, em síntese, que os termos em que a transmissão das acções havia sido acordada se destinavam a “fideliz[á-lo como] técnico altamente qualificado” que era, e que aceitara o emprego que o embargado lhe oferecera, em empresas do ramo das confecções. E acrescentou ainda nunca ter retirado nenhum dividendo das acções que lhe foram transmitidas, nem nunca ter tido qualquer participação em decisões relativas às correspondentes sociedades.
Respondendo à oposição, o embargado sustentou, por entre o mais, que o executado, não pagando o preço das acções dentro do prazo estabelecido, tinha infringido o contratado, que se traduzia tão somente numa venda de acções cujo pagamento não havia sido efectuado no prazo acordado, e que o documento reunia as condições de exequibilidade exigidas pela alínea c) do artigo 46º do Código de Processo Civil.
Julgando a causa no saneador, em 6 de Novembro de 2006, a fls. 84, o Tribunal da Comarca de Viseu julgou improcedente a oposição e determinou o prosseguimento da execução. Recorrendo às regras de interpretação dos negócios jurídicos, constantes dos artigos 236º e segs. do Código Civil, o Tribunal considerou que o documento utilizado como título executivo continha um contrato nos termos do qual o exequente transmitiu ao executado determinadas acções pelo preço de 15.000.000$00, a pagar até 31 de Dezembro de 2003, sob pena de, para além de pagar o preço, o adquirente ter ainda de devolver as acções, de que tinha fruído desde a celebração do contrato:
“Aqui chegados, a conclusão interpretativa é uma e uma só: o oponente emitiu uma declaração de vontade, pensada e de boa fé, cujo fim era o de receber as acções, fruí-las e pagar o seu valor até 31 de Dezembro de 2003. Não o fazendo até essa data continuava onerado com essa liquidação, em situação de mora e cumulativamente obrigado a entregar/devolver as acções, [o] que não configura uma situação aparentada com a reversão” (cfr. fls. 103).

2. Esta sentença veio, todavia, a ser revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29 de Maio de 2007, de fls. 162, que julgou procedente a oposição e declarou extinta a execução.
Para o que agora releva, o Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se, nomeadamente, nos seguintes termos:
“A questão colocada neste recurso prende-se com a interpretação a dar ao conteúdo declaracional da cláusula 3º, que as partes incluíram no contrato ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no art.405º C.C. (…).
Atentemos então nos termos da declaração negocial aí contida:
«A liquidação da importância global da transmissão pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante será efectuada até 31 de Dezembro de 2003 de acordo com as possibilidades do segundo outorgante.
§ único: caso o segundo outorgante não liquide a importância de 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos) até 31 de Dezembro de 2003, obriga-se desde já a devolver as acções das sociedades «O..., S.A.» e «A..., S.A.» que por este contrato lhe são transmitidas».
O texto da primeira parte dessa cláusula não suscita dúvidas. Nele fixou-se o prazo e condições de retribuição: até ao dia 31.12.03 o recorrente realizaria a prestação a que se vinculou de pagar o preço devido pela transmissão das acções, e quando as suas condições (económicas) o permitissem. Ou seja, no decurso do prazo estipulado de cumprimento outorgou-se a faculdade de o pagamento ser feito quando pudesse, faculdade que poderá enquadrar-se na cláusula «cum potuerit» prevista no nº1 do art.778º/1.
Contrariamente ao que parece defender o recorrente, ele obrigou-se a pagar ao exequente o preço de 15.000 contos devido pela transmissão das acções. Trata-se de um negócio oneroso. A dita cláusula e ainda a cláusula 1ª (item II.1-b)), não deixa margem para dúvidas.
É verdade que não estamos em presença de um contrato de compra e venda, mas sim de um contrato oneroso de transmissão de títulos de acções como se referiu.
(…) Dúvidas levantam-se, porém, quanto ao conteúdo voluntário do texto inserido no § único, que não se mostra fácil de perceber. Os termos em que está redigido tornam difícil a sua interpretação, de modo a saber-se ao certo o que é que as partes outorgantes pretenderam com ele.
(…) À interpretação do alcance e sentido que as partes quiseram dar à sua declaração inserta no parágrafo único da cláusula 3º há-de proceder-se de acordo com o disposto no art. 236º/1, que representa a consagração da chamada «teoria de impressão do destinatário». Assim, o sentido prevalecente do conteúdo declaracional será aquele que objectivamente resulta da interpretação feita por um declaratário razoável, que ajuíza não só as circunstâncias efectivamente conhecidas pelo declaratário real mas também daquelas outras que um declaratário normal, posto na situação daquele, teria conhecido.
Acresce que, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (art. 238º/1).
Por outro lado, haverá ainda que ter em conta o critério fixado no art. 237º: em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Aplicando estes princípios ao caso concreto, pese embora alguma dificuldade em procurar o conteúdo decisivo do texto inserto no dito parágrafo, tal a pouca clareza como está redigido, a interpretação que dele fazemos vai no sentido de que a intenção comum das partes contraentes foi a de sancionar o não cumprimento da prestação do pagamento do preço com a imediata devolução das acções. Nada mais do que isso.
(…) Certo é que o convencionado entre as partes foi a da restituição ao exequente daquilo que já fora seu, em caso de incumprimento pelo outro contraente da obrigação de pagar. A cláusula em questão, no § único, assume, quanto a nós, a fisionomia de uma cláusula resolutiva, de livre estipulação.
É, pois, nossa convicção, com base nos critérios interpretativos fixados naqueles arts.236º a 238º, que os contraentes previram e incorporaram no conteúdo negocial do parágrafo único, a sancionar o incumprimento da prestação a que se vinculou o recorrente, a restituição dos títulos de acções das duas sociedades que lhe eram transmitidas pelo contrato. A cumulação com a liquidação da importância de quinze milhões de escudos não ganha sentido e razoabilidade. Era este o sentido dado a tal cláusula por qualquer declaratário medianamente diligente e prudente.
(…) Em suma, declarando o executado a vontade de devolver as acções em conformidade com o estipulado na dita cláusula e parágrafo, não há fundamento para o prosseguimento da execução.”

3. Recorreu então o embargado, agora para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:
“(…)
I. Não podemos estar mais de acordo com o Tribunal da Relação de Coimbra quando afirma que não seria razoável que o obrigado AA tivesse de devolver as acções e ainda ter de pagar o preço das mesmas, uma vez ultrapassado o prazo de pagamento – 31 de Dezembro de 2003 –, apesar de se encontrar em incumprimento por nem um tostão ter entregue ao exequente BB durante os anos em que deteve na sua posse as acções, livres de qualquer ónus ou encargos.
J. Discordamos é que o Tribunal da Relação de Coimbra considere que caberia ao incumpridor exercer um direito de resolução.
K. O direito de resolver o contrato caberia sempre a BB, a quem deveria ter sido pago o valor contratado de quinze milhões de escudos até 31 de Dezembro de 2003 e que, uma vez ultrapassado esse prazo, e considerando que a outra parte não cumpriu, poderia aceitar ou não a devolução das acções.
L. Ao não aceitar a devolução das acções, BB mais não fez do que exercer o direito de não ver resolvido o contrato sem o pagamento das ditas acções.

M. Pois se as tivesse aceite certamente que ao pagamento do preço não teria direito, resolvendo-se assim o contrato.
N. Ou uma coisa ou outra: ou o pagamento do preço ou as acções, cabendo a BB a escolha (nunca ao obrigado ao pagamento das acções e incumpridor). Tal interpretação não é razoável e não conduz ao equilíbrio das prestações, pois se assim fosse o risco do negócio correria todo por conta de BB, que transmitiu as acções a AA e vê 3 anos depois o mesmo a querer devolvê-las sem pagar um tostão que seja.
(…)
U. Razoável é, portanto, considerar que o § único contempla uma cláusula penal que visa compelir o devedor ao cumprimento, legitimando o credor, em caso de inadimplemento, a exigir, a título sancionatório, uma outra prestação – a pena convencional – em alternativa à que era inicialmente devida.
V. É essa a interpretação de um declaratário normal, a mais consistente com os critérios interpretativos fixados nos artigos 236º a 238º do Código Civil.
(…)”.

Não houve contra-alegações.

4. Cumpre conhecer do recurso, cujo objecto se encontra limitado à interpretação da cláusula 3ª do contrato designado por “Contrato de Transmissão de Acções”.
Interessa, desde logo, relembrar a matéria de facto que se encontra definitivamente provada:

a) Com a data de 2 de Janeiro de 2001, foi assinado por BB e por AA um documento, intitulado “Contrato de Transmissão de Acções”;

b) Desse documento, que começa com a identificação dos intervenientes, consta o seguinte texto:
“Entre (…) é celebrado e reciprocamente aceite, o presente contrato de transmissão de acções que se regerá pelas cláusulas seguintes:
1ª- Pelo presente contrato o primeiro outorgante [BB] transmite ao segundo outorgante [AA] pelo valor global de PTE 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos):
a) 9.750 acções (…), sendo nove títulos de mil acções cada numeradas e 11.001 a 20.000; sete títulos de 100 acções cada numeradas de 1.801 a 2.5000; e um título de 50 acções numeradas de 4.951 a 5.000 com o valor nominal de PTE 1.000$00 (…) cada, liberadas ao portador e representativas de PTE 9.750.000$00 (…), num capital social e PTE 20.000.000$00 (…) da sociedade «O...-Indústria e Comércio de Confecções S.A.», NIPC ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Leiria sob o nº .../980616, com sede na Rua Nossa Senhora das Dores, nº..., Boavista, no concelho de Leiria, e titular de um contrato de utilização de um prédio destinado à indústria na Ladeira da Paula, freguesia de Antanhol, em Coimbra;
b) 12.500 (…) acções, sendo dez títulos de 1.000 acções cada numeradas de 10.001 a 20.000 e cinco títulos de quinhentas acções cada numeradas de 20.001 a 22.500, com o valor nominal de PTE 1.000$00 (…) cada, liberadas ao portador, representativas de PTE 12.500.000$00 (…), num capital social de PTE 25.000.000$00 (…) da sociedade «A...-Indústria e Comércio de Confecções S.A.», NIPC ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Mealhada sob o n...0/990330, com sede na Rua Capitão Cabral, ..., no concelho da Mealhada.
2ª - Com a assinatura do presente contrato é transferida a posse da totalidade dos títulos que representam as acções referidas no artigo anterior do primeiro outorgante para o segundo outorgante.
3ª - A liquidação da importância global da transmissão pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante será efectuada até trinta e um de Dezembro do ano dois mil e três, de acordo com as possibilidades do segundo outorgante.
§ único: caso o segundo outorgante não liquide a importância de PTE 15.000.000$00 (quinze milhões de escudos), até trinta e um de Dezembro do ano dois mil e três, obriga-se desde já a devolver as acções das sociedades «O... S.A.» e «A...TÊXTIL S.A.» que por este contrato lhe são transmitidas.
4ª - Por este acto são transferidos para o segundo outorgante todos os direitos e deveres relativos às contratadas acções.
5ª - O primeiro outorgante entrega ao segundo outorgante os seguintes documentos, relativos às firmas O..., S.A. e A..., S.A.:
a) escritura de constituição das sociedades;
b) escrituras de aumentos de capital das sociedades;
c) certidões de registo comercial das sociedades;
d) escritura de mudança de sede da firma O..., S.A.»;
e) publicações no Diário da República;
f) inventário de bens patrimoniais da «A... S.A.»;
g) calendário do pagamento das prensas adquiridas pela «O..., S.A.» a «H... Ag» e ainda não totalmente pagas;
h) contrato de utilização do edifício fabril;
i) pedido de aumento de renda por parte da firma «E... S.A.», proprietária do edifício;
j) esclarecimentos sobre as sociedades dirigidos ao comprador - Sr. AA.”

c) Em 30 de Setembro de 2004, o referido documento foi utilizado como título executivo na acção executiva de que depende a presente oposição;

d) AA não pagou qualquer quantia a BB, com base no contrato constante do mesmo documento;

e) Por carta datada de 19 de Janeiro de 2004, na qual se refere como assunto “interpelação para pagamento”, dirigida pelo exequente BB ao executado AA, informa-se que nos termos da cláusula 3ª do contrato de transmissão de acções por eles celebrado em 2 de Janeiro de 2001, deveria este ter entregue àquele a quantia de 15.000.000$00 (74.819,68 €) até ao dia 31 de Dezembro de 2003, para pagamento das acções entregues na data de outorga do contrato. Acrescentou-se a finalizar: «Sucede que quantia alguma me entregou até à presente data, pelo que venho por este meio notificá-lo para, no prazo de quinze dias, realizar a prestação devida, pagando o preço a que está obrigado, acrescido dos juros legais devidos até à presente data (…) e ainda os que se vencerem (…) à mesma taxa de 4%.»;

f) Na resposta, e em carta datada de 23 de Janeiro de 2004, diz o executado: «2. Pede-me V.Exª que lhe pague uns milhares de euros relativos a acções de sociedades que se encontram tecnicamente falidas (como consta V.Exª ter expressado oportunamente). 3. É óbvio que, em tais circunstâncias, a sua pretensão, além de contrariar o convencionado. afigura-se-me totalmente abusiva. Acresce que, 4. Como resulta da cláusula 3ª do contrato, V.Exª tem à sua disposição as acções da «O..., S.A.» e da «A..., S.A.». Estas acções podem levantá-las em minha casa no 5[º] dia seguinte à recepção da presente carta, pelas 19 horas, contra recibo. Caso pretendam, fico à vossa disposição para proceder à sua entrega em local e hora que Vs. Exas. entendam por mais conveniente, nos mesmos termos. 5. Reservo-me o direito de exercer oportunamente as prerrogativas previstas nos artigos 288 e 291 sob cominação do previsto no artº 292, todos do Código das Sociedades Comerciais, bem como os direitos previstos no artº 294 do mesmo Código em relação ao período de posse das acções”.

5. Segundo o disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 46º do Código de Processo Civil, podem “servir de base à execução (…) os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético (…).”
Como se sabe, a selecção que a lei fez ao determinar que documentos são títulos executivos baseia-se, em particular, na especial força probatória de que gozam, e que se considera suficiente para o credor demonstrar a constituição (ou reconhecimento) do direito cuja satisfação material pretende, em termos de poderem “servir de base” a uma acção executiva.
É igualmente sabido que, ao admitir a existência de títulos executivos extra-judiciais, a lei protege o interesse do credor, tornando desnecessária a prévia instauração de uma acção declarativa; no entanto, e agora naturalmente no interesse do devedor, permite-se a este que, já no âmbito da acção executiva, utilize na oposição que pretenda deduzir todos os fundamentos “que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração”, para além dos que vêm indicados no artigo 814º (relativos à oposição a execução baseada em sentença, na qual há que respeitar o caso julgado formado).
Ora o que está em agora em causa é justamente determinar se o documento utilizado como título executivo prova a constituição do direito invocado pelo exequente; em especial, se da cláusula 3ª do contrato nele contido resulta a constituição, a seu favor, do direito ao pagamento dos 15.000.000$00 referidos na cláusula 1ª como “contrapartida” da transmissão das acções.

6. Está em causa um contrato feito por documento escrito, mas não um negócio formal no sentido com que o artigo 238º do Código Civil utiliza a expressão: a lei não impõe a forma escrita como condição da sua validade (cfr. artigo 101º do Código dos Valores Mobiliários).
A verdade, todavia, é que o texto do contrato é o único elemento disponível para o interpretar, desde logo porque, tendo a oposição sido julgada no saneador, não se procedeu à produção de prova dos factos alegados pelas partes e que, eventualmente, poderiam ajudar a compreender o sentido pretendido pelos intervenientes; por exemplo, saber se corresponde ou não à verdade a afirmação, feita pelo embargante, de que o contrato foi celebrado para o “fidelizar” ao trabalho para que diz ter sido contratado, nomeadamente pelas qualificações que diz possuir (alegação que o embargado impugna), poderia explicar o desequilíbrio que o ora recorrente aponta à interpretação adoptada pelo acórdão recorrido. E seria porventura indispensável se, não sendo claro o sentido retirado do texto, houvesse que recorrer à regra constante do artigo 237º do Código Civil, que manda optar, “em caso de dúvida”, pelo que, nos contratos onerosos “conduzir ao maior equilíbrio das prestações”.
Entende-se, no entanto, que o texto é suficientemente elucidativo para dispensar uma eventual anulação para ampliação da matéria de facto, nos termos possibilitados pelo nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil.

7. Resulta pois do contrato em causa que, em 2 de Janeiro de 2001, foram transmitidos para a esfera jurídica do embargante “todos os direitos e obrigações relativos às (…) acções” representadas pelos títulos cuja posse (cfr. cláusulas 4ª e 2ª do contrato) “é transferida” pela “assinatura do presente contrato”, ponto sobre o qual, aliás, não há controvérsia neste processo. E resulta, ainda, que o “valor global” pelo qual é realizada essa transmissão é de 15.000.000$00 (cláusula 1ª), o que também não é objecto de discussão.
A divergência, como se sabe, encontra-se na interpretação a dar à cláusula que prevê as condições em que esse valor poderá ou deverá ser pago pelo embargante, e às consequências decorrentes de se ter atingido a data limite para o pagamento (31 de Dezembro de 2003) sem que o mesmo haja sido efectuado.
Diversamente do que parece ter sido o caminho seguido pelas instâncias, entende-se que não é possível separar, para efeitos de interpretação da vontade das partes (no sentido juridicamente relevante, apurado de acordo com as regras definidas pelo artigo 236º do Código Civil), o corpo da cláusula 3º do respectivo § único. Conjuntamente consideradas, permitem compreender o verdadeiro alcance com que o contrato foi celebrado, sem qualquer dificuldade de compatibilização.
Segundo o corpo da cláusula, fixa-se a data de 31 de Dezembro para que o adquirente pague o valor fixado para as acções transmitidas. O acórdão recorrido reconduziu às chamadas cláusulas cum potuerit o regime definido na parte final do corpo da cláusula 3ª, que prevê que “a liquidação da importância global da transmissão” se fará “de acordo com as possibilidades do segundo outorgante”.
Tal conclusão não é, todavia, concordante com o que consta do § único.
Com efeito, convém ter presente que, quando se convenciona uma cláusula cum potuerit, o credor pode exigir o pagamento ao devedor desde que se verifique que este tem a possibilidade de a cumprir, como resulta do disposto no nº 1 do artigo 778º do Código Civil. Se fosse o caso, poderia tê-lo feito mesmo antes de 31 de Dezembro de 2003, desde que essa possibilidade fosse demonstrada.
Ora o referido § único prevê como única consequência do não pagamento até àquela mesma data, do valor da transmissão, a obrigação, por parte do adquirente, de devolver as acções ao transmitente, o que não é compatível com a atribuição, ao credor, da possibilidade de exigir o pagamento em momento anterior.
Da leitura conjunta de ambas as partes da cláusula 3ª decorre, antes, o desenho de um regime coerente, eventualmente explicável no contexto global das relações então estabelecidas entre as partes, e que é o de se ter estipulado que o adquirente ficava com a possibilidade de, até 31 de Dezembro de 2003, optar entre pagar o valor das acções (continuando então seu titular) ou devolvê-las, conforme julgasse de seu interesse. Só assim se explica, aliás, a previsão da devolução simples das acções, ou seja, a falta de estipulação de uma compensação ao transmitente pelo período em que o transmissário pode delas fruir, a pagar em caso de devolução.
Não tem qualquer vestígio no texto do contrato a interpretação propugnada pelo ora recorrente, e que deixaria nas suas mãos tal opção.

8. Está em causa neste recurso, apenas, saber se o documento prova ou não a constituição da obrigação de pagar 15.000.000$00 ao exequente, e a sua exigibilidade a partir de 31 de Dezembro de 2003.
Ora resulta da interpretação correcta da cláusula 3º do contrato que assim não é; demonstrado, como está, o não pagamento, tornou-se imediatamente exigível o cumprimento, pelo embargante, da obrigação de devolver os títulos que lhe foram transmitidos.
Não é essa, todavia, a obrigação exequenda.

9. Nestes termos, nega-se provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Dezembro de 2007

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa