Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1169/19.6T9BCL.G1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO GAMA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 12/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :

O recurso de fixação de jurisprudência não está funcionalmente vocacionado para resolver o problema das decisões contraditórias sobre o mesmo facto histórico. O remédio é preventivo e consiste na apensação de processos por funcionamento da conexão (art. 24.º/1/e, CPP).

Decisão Texto Integral:


Processo n. º1169/19.6T9BCL.G1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I.

1. AA, arguido, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 30.06.2022, alegando encontrar-se em oposição com o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.06.2021, proferido no processo nº 162/19.3GBBCL.G1.

2. No requerimento alega em conclusão (transcrição):

«(…) II - Existe uma contraposição óbvia e evidente entre o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães do processo nº 162/19.3gbbcl.g1 proferido a 07/06/2021 com o acórdão desta mesma relação do processo nº 1169/19.6t9bcl.g1 proferido a 30/06/2022.

III. Ao abrigo do artigo 437º, nº 2cpp, a existência destas decisões opostas é motivo suficiente para a admissibilidade do recurso para o supremo tribunal de justiça, verificando-se, nomeadamente, uma contradição com outro acórdão anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

IV. No processo n.º 162/19.3gbbcl figurava como queixoso/assistente o arguido BB, e assumia o papel de arguido o ora ofendido/assistente AA. Pelo contrário, no processo nº1169/19.6t9bcl.g1 figurava como queixoso/assistente o arguido AA, e assumia o papel de arguido o ora ofendido/assistente BB.

v. Em ambos os processos estamos perante um episódio em que intervieram assistente e arguido, no dia 13 de fevereiro de 2019, na rua ..., em ..., ....

vi. A identidade da situação fáctica é reforçada com o deferimento do pedido de escusa do mmo. juiz sr. dr. CC, para intervir no processo comum (tribunal singular) nº 1169/19.6t9bcl, que correu termos no tribunal judicial da comarca de Braga, juízo local criminal ... - juiz ....

vii. No processo nº 162/19.3gbbcl, ali se decidiu verificada uma situação de legítima defesa, como causa de justificação da conduta do (ali) arguido AA, e, consequentemente, absolveu-se este da prática do imputado crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº1, al.a), e nº2, por referência ao art. 132º, nº2, al. h)e 143º, nº1, do código penal.

viii. No processo nº 1169/1169/19.6t9bcl, ali se decidiu verificada uma situação de legítima defesa, como causa de justificação da conduta do (ali) arguido BB, e, consequentemente, absolveu-se este da prática do imputado crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº1, al. a), e nº2, por referência ao art. 132º, nº2, al. h) e 143º, nº1, do código penal.

ix. Quando o agente atue em legítima defesa, não lhe pode ser oposto pelo visado o direito à legítima defesa. Contra legítima defesa não vale legítima defesa.

x. Dispõe o art.32.º do código penal: «constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro

xi. Ao abrigo do artigo 32º do código penal, exige a presença de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a atualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objetivos se referem à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa.

xii. Posto que a agressão perpetrada pelo BB ao AA, antes de este lhe desferir com o martelo, se mostrava atual, ilícita (também ela, consubstanciando, pelo menos, ela própria a prática do crime de ofensa à integridade física, p.e p. pelo art.143.º,n.º 1,do código penal)e atingia o referido bem jurídico (integridade física, senão avida, do AA), não se nos colocam dificuldades quanto à verificação do requisito da defesa.

xiii. Por outra banda, considerando a disparidade de forças (desde logo face às especiais características pessoais dos contendedores, nomeadamente a sua idade) e a possibilidade de AA se puder socorrer de outro meio, afigura-se-nos proporcional e, por isso, de arredar a concitação de uma eventual desproporção ou excesso de meios empregos, o desferir do martelo, tanto que o arguido não previu o local onde o mesmo pudesse vir a atingir o assistente.

xiv. Só a versão espelhada nos autos do processo nº 162/19.3gbbcl, poderá ter cabimento e assentimento para o conhecimento do tribunal ad quem, pois é nesta que se apresentam clara e cristalinamente aplicados os requisitos e pressupostos já supra enunciados da aplicação da legitima defesa ao assistente AA em virtude da ação direta, ilícita e criminosa, do arguido BB.

xv. No que diz respeito à legítima defesa e como estamos no nosso entender perante tal instituto vejamos o seguinte, seguindo a opinião tecida no processo nº 162/19.3gbbcl.g1 de 07/06/2021, dispõe o art. 32.º do código penal: «constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro».

xvi. Consideram-se como sendo «meios adequados» para impedir ou repelir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, como tal, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido (posto que qualquer meio que transponha a barreira da estrita necessidade – necessidade do meio mas também necessidade da própria defesa – entrará num excesso de legítima defesa).

xvii. Igualmente, devem ser considerados inadequados os meios que, apesar de pouco danosos para o agressor, não dispõem de quaisquer possibilidades de impedir a agressão ou de dissuadir o agressor.

xviii. Por isso, tem-se decidido que o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso: o bem ou interesse agredidos, o tipo e a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de atuar, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes ocorrentes (Taipa de Carvalho, a legítima defesa,1995, p. 318).

xix. A defesa só é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro - o meio menos gravoso para o agressor.

xx. Posto isto, a necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de atuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objetivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido.

xxi. No ac. rel. Coimbra de 17/09/2003 decidiu-se, aliás, que: «a exigência do animus defendendi revela-se, aliás, desprovida de sentido, uma vez que se ocorrem os requisitos da «situação de legítima defesa» – agressão atual e ilícita, verificando-se que o defendente não teve outro remédio que defender-se (necessidade de defesa) –, pouco importa, obviamente, que tenha sido motivado por indignação, vingança ou ódio (neste preciso sentido, quintero olivares, derecho penal parte general (1992), 461).

xxii. Por isso, o texto do art. 32º, do código penal, ao aludir «…ao facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro», ao contrário do expressamente defendido por leal henriques/simas santos que ali detetam a exigência do animus defendendi, não significa outra coisa que a consciência da agressão e a necessidade de defesa».

xxiii. Não se configura como defesa nem uma proteção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação preordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma ação conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir».

xxiv. Assim, e em suma, poderemos dizer que a exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do artigo 32º do código penal, exige a presença de cinco requisitos objetivos e um elemento subjetivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a atualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objetivos se referem à situação em que o agente atua e os dois últimos à ação de defesa.

XXV. Já haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão. estabelecidos os princípios à luz dos quais há que analisar a factualidade apurada, vejamos se os requisitos da legítima defesa se verificam ou não,sendo certo que para haver excesso de legítima defesa é necessário que ocorram os pressupostos da legítima defesa, uma vez que o excesso só poderá verificar-se em relação aos meios empregados na defesa.

XXVI. Ccomo se disse, a agressão deverá ser atual e é atual quando é iminente, já se iniciou ou ainda persiste. Como sustenta figueiredo dias, a agressão é iminente quando o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado. a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de atos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o ato agressivo, isto é, a agressão; uma defesa será, à partida, legítima até ao momento em que a mesma se revele imperiosa ou fundamental para travar definitivamente a respetiva agressão.

XXVII. No caso sub judice, não há dúvidas de que o arguido se encontrava a praticar um facto atentatório da integridade física, pelo menos, do assistente – posto que lhe estava a apertar a zona do pescoço e cara – e que, em última instância, e considerando a idade do AA, poderia até ser causador de um dano mais grave (quer dizer, poderia ser de molde a colocar em causa a vida do próprio).

XXVIII. Posto que a agressão perpetrada pelo arguido ao assistente, antes de este lhe desferir com o martelo, se mostrava atual, era ilícita (também ela, consubstanciando, pelo menos, ela própria a prática do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do código penal) e atingia o referido bem jurídico (integridade física, senão a vida do AA), não se nos colocam dificuldades a verificação do requisito da defesa.

XIX. Por outra banda, considerando a disparidade de forças (desde logo face às idades dos contendores) e a possibilidade de o AA se puder socorrer de outro meio,afigura-se-nos proporcional e, por isso, de arredar a concitação de uma eventual desproporção ou excesso de meios empregos, o desferir do martelo, tanto que o arguido não previu o local onde o mesmo pudesse vir a atingir o assistente.

XXX. Em síntese, mostrando-se verificados os requisitos da legítima defesa, considera-se afastada a ilicitude, porque justificada, da atuação do arguido AA, devendo o mesmo ser absolvido do crime que lhe é imputado. Quando o agente atue em tais circunstâncias (em legítima defesa, em estado de necessidade, no exercício de um direito, etc.), não lhe pode ser oposto pelo visado o direito à legítima defesa. Em síntese: contra legítima defesa não vale legítima defesa.

XXXI. «o juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante, e nele deve ser avaliada objetivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo especial atenção as características pessoais do agressor (idade, compleição física, perigosidade), os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente (o porte físico a experiência em situações de confronto) e os instrumentos de defesa de que poderia lançar mão».

XXXII. Em manifesta contradição com supra plasmado encontra-se a fundamentação do acórdão ora recorrido, que já deixou tomada em consideração a existência de uma real contradição entre a factualidade dado como provada nos presentes autos e a decida no processo nº 162/19.3gbbcl.

XXXIII. Como referido por germano marques da Silva4, reportando-se ao efeito positivo do caso julgado, a decisão penal transitada em julgado, seja condenatória ou absolutória, apenas releva fora do processo em que é prolatada nos precisos termos em que nela se decida «que os factos constituem ou não crime e que o agente é ou não por eles responsável penalmente». E só a versão ora apresentada e que se viu espelhada nos autos de processo nº 162/19.3gbbcl, poderá ter cabimento e assentimento para o conhecimento do tribunal ad quem, pois é nesta que se apresentam clara e cristalinamente aplicados

XXXIV. Os requisitos e pressupostos já supra enunciados da aplicação da legitima defesa ao assistente AA em virtude da ação direta ilícita e criminosa do arguido BB

xxxv. Ora quando o agente atue em tais circunstâncias (em legítima defesa, em estado de necessidade, no exercício de um direito, etc.), não lhe pode ser oposto pelo visado o direito à legítima defesa.

xxxvi. Em síntese: contra legítima defesa não vale legítima defesa.

Compete, posto isto, ao Supremo Tribunal de Justiça decidir, dotado de todas informações pertinentes, concedendo provimento ao recurso e, revogado acórdão e a sentença recorrida, e em consequência ser substituída por outra que condene arguido/recorrido a prática, com dolo direto e em autoria material, de um crime ofensa à integridade física qualificada, crime previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 145.º, n.º s 1, alínea a) e 2, 143.º, 132.º, n.º 2, alínea c), 26.º e 14.º, n.º 1, todos do código penal, bem como no pagamento de indemnização cível nunca inferior a € 10.000,00 para ressarcimento de danos sofridos, bem como se fixe tal decisão como jurisprudência uniforme da aplicação da a legitima defesa única e exclusivamente perante a factualidade dada como provados no acórdão em oposição ao ora recorrido, dos autos de processo 162/19.3gbbcl. Só assim se fará a acostumada justiça!»

3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães respondeu nos seguintes termos (transcrição):

«1. Não se encontram reunidos os indispensáveis requisitos, nos termos do art.º 437.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, para a fixação de jurisprudência, visto não serem similares os cenários em que se nutriram ambos os acórdãos e daí que não se vislumbre um quadro em que se tenha acedido a soluções opostas em relação à mesma questão fundamental de direito.

2. As soluções quanto à mesma fundamental questão de direito foram, sem reparo, idênticas, sendo apenas diverso, isso sim, o quadro factual em que assentaram.

3. Por conseguinte, o recurso deve ser rejeitado, nos termos dos art.ºs 420.º, n.º 1, al. b), 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441.º, n.º 1, todos, do Código de Processo Penal».

4. Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público foi de parecer que não se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário interposto, pelo que não deverá o mesmo prosseguir.

5. Colhidos os vistos e após conferência cumpre decidir, decisão que na fase preliminar do recurso se circunscreve a aquilatar da sua admissibilidade ou rejeição (art. 441.º, CPP).

II.

1. Os arts. 437.º/1/2/3 e 438.º/1/2, do CPP, assim como a jurisprudência pacífica deste STJ (PEREIRA MADEIRA, Código de Processo Penal, Comentado, 2021, p. 1402), fazem depender a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dos seguintes pressupostos:

a) Formais:

1. Legitimidade do recorrente;

2. Interposição do recurso no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido;

3. Identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento), com menção do lugar da publicação, se publicação houver;

4. Trânsito em julgado do acórdão fundamento.

b) – Substanciais:

1. Que os acórdãos respeitem à mesma questão de direito;

2. Sejam proferidos no domínio da mesma legislação;

3. Assentem em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto;

4. Que as decisões em oposição sejam expressas.

2. Quanto a estes dois últimos requisitos - soluções opostas a partir de idêntica situação de facto; decisões em oposição expressas -, constitui jurisprudência assente deste Supremo Tribunal que só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas, bem como é necessário que a questão decidida em termos contraditórios seja objeto de decisão expressa, isto é, as soluções em oposição têm de ser expressamente proferidas (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. STJ 11.12.2014, proc. 356/11.0IDBRG.G1-A.S1 – 5.ª) acrescendo que, de há muito, constitui também jurisprudência pacífica no STJ que a oposição de soluções entre um e outro acórdão tem de referir-se à própria decisão, que não aos seus fundamentos (ac. STJ 30.01.2020, proc. n.º 1288/18.6T8CTB.C1-A.S1, 5.ª, ac. de 13.02.2013, Proc. 561/08.6PCOER-A.L1.S1).

3. O recorrente, enquanto assistente, tem legitimidade e interesse em agir, dado que a decisão recorrida negou provimento ao recurso que interpôs da absolvição do arguido pelo tribunal de primeira instância.

4. O recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, está identificado o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão fundamento); o acórdão fundamento transitou em julgado.

5. Quanto aos requisitos substanciais, ambos os acórdãos respeitem à mesma questão de direito – legítima defesa –, foram proferidos no domínio da mesma legislação, mas não assentam em soluções opostas a partir de idêntica situação de facto. Enunciando a conclusão: a situação de facto apesar de retratar o mesmo episódio da vida foi descrita de modo diverso em cada um dos processos, mas a consequência jurídica retirada foi idêntica. Verificando-se diversidade da situação de facto e uniformidade da consequência jurídica, impõe-se a improcedência da pretensão do recorrente.

6. Reduzindo a questão ao essencial, no processo n.º 1169/19, o acórdão do TRG de 30.06.2002 negou provimento ao recurso em que o assistente AA, aqui recorrente, pretendia a condenação do arguido BB pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada. Na parte relevante foi considerado provado (transcrição):

«2. No dia 13 de fevereiro de 2019, cerca das 18h45m, na rua ..., em ...,

..., o assistente AA e o arguido BB travaram-se de razões por causa da intenção do último despejar o primeiro e o seu cônjuge.

3. No decurso da referida contenda, AA muniu-se de um martelo.

4. Aproveitando um momento em que o arguido se virou de costas para atender uma chamada no seu telemóvel, o assistente desferiu-lhe uma pancada na cabeça com o mencionado martelo, provocando-lhe um golpe e sangramento abundante.

5. Ao ser atingido na cabeça com o martelo, nos termos descritos no ponto anterior, o arguido, com o intuito de se libertar da acção do assistente, fez um movimento com o braço na direcção deste, atingindo o corpo de AA e provocando a sua queda desamparada ao solo.

6. Com tal conduta, o arguido provocou no AA, de forma direta e necessária, além de dores físicas e mal-estar, hematoma parietal direito, escoriações mentonianas e dor no punho direito.

7. Ao atingir AA com o braço, o arguido agiu com o propósito de pôr termo à acção que o assistente se encontrava a concretizar, temendo pela sua integridade física».

7. No processo 162/19, o acórdão do TRG de 07.06.2021, negou provimento ao recurso do assistente BB que pretendia a condenação do arguido AA pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada.

Na parte relevante foi considerado provado (transcrição):

«a) No dia 13 de Fevereiro de 2019, entre as 18h30 e as 18h45, na rua ..., em ..., ..., o arguido AA e o assistente BB travaram-se de razões por causa da intenção do último despejar o primeiro e a sua cônjuge.

b) No decurso da referida contenda, o arguido AA subiu até ao ... andar e muniu-se de uma cadeira.

c) Estando o arguido e o assistente novamente no logradouro do prédio, o BB dirigiu-se ao arguido, agarrou-o pelo casaco e começou a apertar-lhe o pescoço e a tapar-lhe a boca.

d) Perante a actuação do assistente, o arguido que tinha na sua mão um martelo (com que estava a trabalhar), desferiu com o mesmo uma pancada na cabeça do assistente, atingindo-o na região lateral direita, enquanto se procurou libertar com a outra mão da acção do mesmo.

e) Acto contínuo, o assistente ainda desferiu um murro na cara do arguido, acabando por o projectar ao chão.

f) Como consequência directa e necessária da conduta supra descrita, o arguido causou no BB, um hematoma epicraniano localizado na região parieto-occipital direita, com uma área de 3x2cm e sinais de flutuação, escoriações dispersas mas lineares pelo antebraço direito e 4.º dedo, medindo a maior 2cm e escoriações dispersas mas lineares pelo antebraço esquerdo e face dorsal da mão, medindo a maior 1cm, bem como dores nos locais atingidos, mal-estar, nervosismo e ansiedade, que demandaram o período de 7 dias para a sua cura, sem afectação da sua capacidade de trabalho geral e profissional.

g) Ao atingir o BB com o martelo, o arguido AA agiu com o intuito de se libertar do assistente e de pôr termo à acção que o mesmo se encontrava a concretizar, temendo (pelo menos) pela sua integridade física».

8. Os acórdãos que o recorrente alega estarem em confronto, partindo de descrições diversas do facto histórico único ocorrido no dia 13 de fevereiro de 2019, percorrem caminhos argumentativos idênticos e chegam à mesma conclusão, a existência, em ambos os casos, de legítima defesa. Na ótica do aqui recorrente AA, a alegada contradição de julgados consiste em que tendo o primeiro acórdão afirmado a legítima defesa relativamente à conduta de que foi o autor, pancada com o martelo na cabeça do BB, o segundo acórdão considerou também legítima defesa a subsequente conduta do BB levada a cabo com o intuito de se libertar da ação do assistente. Ora segundo o recorrente contra legítima defesa não vale legítima defesa.

9. Olhando para os factos provados, não há identidade de situações de facto nos dois acórdãos, nem a questão de direito teve soluções opostas pois foi idêntica a consequência jurídica retirada. Conforme acima referido (ponto 2.), só havendo identidade de situações de facto nos dois acórdãos – o que não ocorre – é possível estabelecer uma comparação que permita concluir, quanto à mesma questão de direito, que existem soluções jurídicas opostas. A diversidade das situações de facto inviabiliza a pretensão do recorrente. O fundamento do recurso para fixação de jurisprudência não é, como parece entender o recorrente, a mera existência de decisões contrapostas. Por outro lado, não visa o recurso para fixação de jurisprudência uniformizar ou ultrapassar a diversidade dos relatos de um mesmo facto histórico, para essa eventualidade tem o direito regras próprias e um mecanismo preventivo. Improcede, pois, a pretensão do recorrente.

10. Tentando ser mais claro e servindo-nos de um facto provado em ambos os processos, temos que o AA e o BB, no dia 13 de fevereiro de 2019, travaram-se de razões por causa da intenção do último despejar o primeiro e o seu cônjuge. Cada um deles foi acusado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na pessoa do outro. Estamos perante um exemplo clássico de conexão processual pelo que relativamente a esse facto histórico devia ter sido instaurado um único processo de inquérito…. e realizado um julgamento conjunto (art 24.º/1/c, CPP, Comentário Judiciário Código Processo Penal, Tomo I, p. 358), mas assim não ocorreu, por razões que não cabe aqui averiguar, ficando aberta a porta aos conhecidos inconvenientes do procedimento em separado num caso em que a lei impõe a conexão e o procedimento conjunto. Um desses resultados não queridos é «originar decisões contraditórias» o que acabou por acontecer no caso, (cf. Comentário Judiciário Código Processo Penal, I, p. 352).

11. Sem entrar no mérito das decisões é sabido que a «agressão» que consubstancia legítima defesa é uma agressão lícita pelo que a ela não se pode opor outra legítima defesa, porque a agressão é lícita e não ilícita (art. 32.º CP). Como é jurisprudência pacífica deste STJ (ac. de 06.05.1992, BMJ 417.º, p. 582) contra legítima defesa não vale legítima defesa, ou numa outra formulação, não há legitima defesa até ao infinito (Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal, 3.º ed. 2019, p. 486). O que precede não significa que o primeiro acórdão decidiu bem e o segundo mal, ou vice-versa, pois não nos compete aqui e agora essa avaliação. O que dizemos é que em caso de agressões recíprocas se uma agressão é lícita, em consequência de ser considerada legítima defesa, a que lhe responde é ilícita.

12. Uma nota final. Pediu o recorrente:

«(…) revogado acórdão e a sentença recorrida, e em consequência ser substituída por outra que condene arguido/recorrido a prática, com dolo direto e em autoria material, de um crime ofensa à integridade física qualificada, crime previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 145.º, n.º s 1, alínea a) e 2, 143.º, 132.º, n.º 2, alínea c), 26.º e 14.º, n.º 1, todos do código penal, bem como no pagamento de indemnização cível nunca inferior a € 10.000,00 para ressarcimento de danos sofridos, bem como se fixe tal decisão como jurisprudência uniforme da aplicação da a legitima defesa única e exclusivamente perante a factualidade dada como provados no acórdão em oposição ao ora recorrido, dos autos de processo 162/19.3gbbcl».

Bem vistas as coisas, o que pretende o recorrente é a alteração da matéria de facto no processo n.º 1169/19, a subsequente alteração da qualificação jurídica de modo a que a se reverta a absolvição do arguido em condenação… Ora o recurso para fixação de jurisprudência não é o meio processual adequado para remediar a inobservância do disposto no art. 24.º/1/e, CPP, nem pode ser enviesado de modo a que funcione como recurso de revisão ad hoc, contra o arguido e fora da previsão do art. 449.º/1/a/b, CPP.

13. Em conclusão, o recurso de fixação de jurisprudência não está funcionalmente vocacionado para resolver o problema das decisões contraditórias sobre o mesmo facto histórico. O remédio é preventivo, já foi enunciado, e consiste na apensação de processos por funcionamento da conexão (art. 24.º/1/e, CPP). Não aplicado o remédio preventivo há que arcar com as consequências.

III.

Nestes termos e com tais fundamentos, acorda-se em rejeitar o recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UCs a que acresce o pagamento de 4 UCs a título de sanção processual – artigos 448º e 420º, n.º 3.

*

Supremo Tribunal de Justiça 21.12.2022.

António Gama (Relator)

João Guerra

Orlando Gonçalves