Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S3667
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: SJ200801230036674
Data do Acordão: 01/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
Não é contrato de trabalho, mas sim contrato de prestação de serviço, aquele em que a autora foi contratada para a limpeza das zonas comuns do centro comercial do prédio, sem sujeição a horário de trabalho e em que as partes acordaram que bastava que a zona comercial estivesse limpa.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA propôs, no Tribunal do Trabalho de Gondomar, a presente acção contra o BB, pedindo que se declarasse a ilicitude do despedimento de que foi alvo por parte do réu, em 28 de Setembro de 2004 e que o réu fosse condenado: i) a reintegrá-la no seu posto de trabalho ou a pagar-lhe a indemnização de antiguidade, se ela por esta vier a optar; ii) a pagar-lhe a quantia global de € 6.521,60 (€ 5.000,00 a título de danos morais, € 380,40 a título de retribuição relativa aos 30 dias que antecederam a data de propositura da acção e € 1.141,20 a título de retribuição e subsídio das férias vencidas em 1.1.2004 e de subsídio de Natal de 2004), acrescida de todas as prestações, retribuições e subsídios vencidos desde a data do despedimento até ao trânsito da decisão final; iii) a pagar-lhe os juros de mora, desde a citação; iiii) a pagar-lhe os descontos para a Segurança Social desde a data da sua admissão, em 1998 até à presente data, bem como os subsídios, abonos, baixas, subsídio de maternidade e outros que deixou de auferir, por falta de descontos dos aludidos descontos, a liquidar em execução de sentença.

Em resumo, a autora alegou que foi admitida ao serviço do réu, em 1998, para, sob as suas ordens e direcção e mediante retribuição, efectuar a limpeza das zonas comuns do condomínio, com sujeição a horário de trabalho, contrato esse que o réu fez cessar, por carta datada de 24.9.2004, sem justa causa nem processo disciplinar, o que a deixou profundamente aflita, infeliz, angustiada e humilhada, por ter ficado sem meios para fazer face às suas despesas normais e às do seu agregado familiar, vendo-se na necessidade de pedir dinheiro emprestado a terceiros, e lhe causou um grande choque emocional e foi motivo de depressão.

O réu contestou, alegando, em resumo, que o vínculo jurídico estabelecido com a autora era de prestação de serviço e não de contrato de trabalho, não tendo, por isso, direito aos créditos peticionados.

No articulado de resposta, a autora reafirmou a natureza laboral do vínculo contratual estabelecido com o réu e, nesse sentido, alegou que, em Agosto e Novembro de 2003, o réu lhe pagou horas extraordinárias, o que só ocorre quando o trabalho é prestado de forma subordinada, que as quantias pagas pelo réu eram apelidadas de “vencimento”, pelo menos desde 1999, e que sempre recebeu subsídio de férias e de Natal, o que é incompatível com o contrato de prestação de serviço.

Proferido o despacho saneador e seleccionada a matéria de facto admitida por acordo e elaborada a base instrutória, procedeu-se a julgamento, sem gravação da prova, e, posteriormente, foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente, com o fundamento de que a autora não tinha logrado fazer a prova da existência do contrato de trabalho.

A autora apelou da sentença, sustentando que os factos dados como provados eram suficientes para concluir pela existência do contrato de trabalho.

Apesar da decisão proferida na 1.ª instância sobre a matéria de facto não ter sido objecto de impugnação, o Tribunal da Relação do Porto alterou aquela decisão nos termos que adiante serão referidos e, em consequência dessa alteração, julgou procedente o recurso, no que diz respeito à existência do contrato de trabalho e ao despedimento, e condenou o réu a pagar à autora: i) a indemnização de antiguidade correspondente a 35 dias de retribuição por cada ano completo ou fracção de antiguidade até ao trânsito em julgada da sentença, a liquidar oportunamente, acrescida dos juros de mora, desde a data da liquidação até efectivo e integral pagamento; ii) as retribuições que a autora teria auferido desde o 30.º dia que antecedeu a dada da propositura da acção (ou seja, desde 2.7.2005) até à data do trânsito da decisão final, a liquidar oportunamente, acrescidas de juros de mora, desde a data da liquidação até efectivo e integral pagamento.

Inconformado com a decisão da Relação, o réu interpôs o presente recurso de revista, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

a) Os Senhores Juízes Desembargadores, ao contrário do que é habitual, fizeram letra morta da factualidade dada como provada pelo M.mo Juiz da 1.ª Instância.
b) Não sendo os Juízes do julgamento em 1.ª instância, não tiveram acesso a toda a prova testemunhal produzida, acabando por alterar a matéria de facto dada como provada, eliminando parte e aditando outra matéria, de forma que se nos afigura abusiva, conclusiva e sem sustentação na realidade da prova que se produziu em audiência de julgamento.
c) Violando a própria lei substantiva e processual.
d) A decisão do M.mo Juiz da 1.ª instância baseou-se na prova produzida e na convicção que formou de determinada realidade, de factos com os quais foi confrontado, em certezas que deu como provadas.
e) A decisão do Tribunal da Relação, ao contrário, baseou-se, salvo o devido respeito, que é muito, em suposições, em juízos meramente conclusivos, partindo de pressupostos e de uma realidade diversa da efectivamente vivida, fazendo uma interpretação dos factos tendenciosa e discricionária.
f) No douto acórdão recorrido foi decidido alterar o n.° 9 da matéria de facto dada como provada, pretendendo-se com tal alteração tirar a conclusão de que o facto de nos documentos de fls. 92 e 95 constar "horas extraordinárias" configura a existência de um contrato de trabalho, que não de prestação de serviços.
g) Conclusão abusiva e que contraria a prova produzida em audiência de julgamento, bem como a alegação que foi produzida pela recorrente em sede de oposição à resposta da recorrida.
h) Em tal oposição, a recorrente afirmou que o facto de constar em tais documentos que o pagamento é proveniente de “horas extraordinárias” significa, apenas, que a recorrente pagou à recorrida trabalhos que não estavam incluídos na prestação mensal a que se havia obrigado contratualmente.
i) Neste contexto, o M.mo Juiz da 1.ª instância valorou certamente tais documentos, mas, tendo em atenção a demais prova produzida, decidiu que tal menção nos documentos não se devia a verdadeiro pagamento de horas extraordinárias, como se existisse um vínculo laboral.
j) E andou bem o M.mo Juiz ao assim decidir, não tendo o mesmo violado qualquer disposição legal, mormente o invocado art. 376.º do Cód. Civil e o n.° 3 do art. 659.º do Cód. Proc. Civil.
l) Afigura-se no mínimo estranho, por contraditório, que, relativamente aos demais documentos juntos com a contestação como os n.os 1 a 52, à excepção dos de fls. 92 e 95, o Tribunal da Relação não tenha dado como provado que existia um contrato de prestação de serviços entre a recorrente e a recorrida, posto que em tais documentos consta escrito "proveniente de serviços de limpeza", "prestação de serviços".
m) Aplicando o mesmo raciocínio e não tendo tais documentos sido objecto de impugnação e de arguição de falsidade, devem os mesmos fazer prova plena da existência de um contrato de prestação de serviços, que não laboral.
n) Assim sendo, o acórdão recorrido enferma de violação da lei substantiva e processual – ut. art. 376.° do Cód. Civil e 646.º, n.° 4 e 659.°, n.° 3 do Cód. Proc. Civil.
o) Quanto à eliminação da palavra "apenas" constante do n.° 12 da matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância, afigura-se à recorrente que ao Tribunal da Relação não assiste razão ao pretender eliminar a mesma, dando-a como não escrita, pois mais uma vez o acórdão recorrido enferma de falta de conhecimento concreto da realidade por que tal palavra foi escrita, e bem se entende o porquê, posto que não assistiu à prova produzida, bem como não atentou nos articulados.
p) Sendo o prédio em causa constituído por uma parte comercial e uma parte habitacional, a recorrida foi contratada para prestar os seus serviços de limpeza na parte comercial.
q) Assim, a palavra "apenas" deverá ser mantida escrita no n.° 12 da matéria de facto dada como provada.
r) Não pode ou não deve o Tribunal da Relação substituir-se ao Tribunal da 1.ª instância relativamente à matéria dada como provada, sem que para que tal existam factos que sejam do seu conhecimento e baseados na prova produzida.
s) O acórdão recorrido procedeu à eliminação da matéria de facto dada como provada no n.° 13.
t) Diz o acórdão: "No n.° 13 da matéria de facto assente consta «sem sujeição a qualquer horário de trabalho». Tal afirmação tem, porém, natureza conclusiva, uma vez que se extrairia de factualidade que não consta de matéria de facto alegada e dada como provada, tanto mais que não só a questão da existência (ou não) de um horário de trabalho era controvertida, como também é a própria Ré quem, alegando embora na contestação que «não foi fixado qualquer horário de trabalho para a mesma prestar o seu serviço», refere igualmente que a A. tinha que o fazer «todos os dias, mesmo aos sábados e domingos» e que, embora não necessitando «da execução permanente de trabalhos nesse sentido», a limpeza teria que se encontrar efectuada «à hora de abertura».
u) Com o devido respeito, afigura-se que quem faz afirmação conclusiva é o Tribunal da Relação, que não o M.mo Juiz da 1.ª instância.
v) O que ficou provado em audiência de julgamento, e bem, é que a recorrida só precisava de um número de horas reduzido para executar o serviço para que tinha sido contratada, número esse muito aquém das oito horas diárias.
x) Quando se afirma que a zona comercial bastava que se encontrasse limpa à hora da abertura, quer-se dizer que, como é natural em qualquer comercial ou centro comercial, o mesmo esteja limpo à hora de abertura.
z) Após essa hora de abertura, a recorrida não tinha que fazer qualquer trabalho ou limpeza, como não fazia.
aa) Ao dizer-se que a recorrida não estava sujeita a qualquer horário, quer dizer-se, e foi o que ficou provado, que a mesma só tinha que ter o centro comercial limpo à hora de abertura, podendo a mesma efectuar o serviço durante a noite e gastando o tempo necessário para o efeito, podendo uns dias demorar mais tempo, outros menos tempo, consoante a sua capacidade de desenvolver o serviço e o estado de sujidade em que a zona comercial se encontrava.
bb) Por estas razões, e por ter sido cabalmente provada esta realidade, nomeadamente pela prova testemunhal produzida, é que o M.mo Juiz da 1.ª Instância deu como provada a não existência de horário de trabalho.
cc) Não pode aceitar-se que o Tribunal da Relação, mais uma vez com raciocínios conclusivos e meramente especulativos, sem sustentação na realidade factual, altere a matéria dada como assente.
dd) Ao fazê-lo, está a violar a lei, nomeadamente o disposto no art. 668.°, n.° 1, al. d), do Cód. Proc. Civil.
ee) Face ao que se deixou escrito supra e pelas mesmas razões, não pode o Tribunal da Relação fazer eliminar a matéria dada como assente no n.° 14 da sentença.
ff) O Tribunal da Relação decidiu aditar à matéria de facto provada mais dois números, o 17 e o 18, com o teor que em ordem a inúteis repetições aqui se dão por reproduzidos.
gg) Mais uma vez o Tribunal da Relação faz raciocínio conclusivo, sem qualquer suporte na prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, incluindo os depoimentos das testemunhas arroladas pela recorrida.
hh) No art. 5.º da oposição à resposta da recorrida, a recorrente tomou posição sobre o alegado nos art.os 4.º e 5.º desta.
ii) Como bem se entende, face ao teor da posição assumida pela recorrente no aludido art. 5.°, esta pretendia incluir os docs. n.os 7 a 12, o que não aconteceu por mero lapso.
jj) No entanto, a matéria para a qual foram juntos tais documentos foi impugnada e, como ficou provado em audiência de julgamento, apesar de nos recibos constar subsídios de Natal e férias, o certo é que tais verbas não eram pagas a esse título.
ll) Ilidindo-se ou provando-se em audiência de julgamento a falsidade do teor de tais documentos.
mm) Assim sendo, nenhuma razão existe para que o Tribunal adite à matéria de facto provada os n.os 17 e 18.
nn) Ao fazê-lo está a violar o disposto no art.º 376.º do Cód. Civil e o disposto nos arts. 646.º, n.° 4 e 659.°, n.° 3, do Cód. Proc. Civil.
oo) A fundamentação constante do acórdão recorrido enferma, pois, de ilegalidade e assenta todo ele em juízos meramente conclusivos que estão fora do seu alcance de decisão, que não na prova produzida em audiência de julgamento e que, sem margem para dúvidas, fez com o M.mo Juiz da 1.ª instância absolvesse a recorrente dos pedidos.
pp) No douto acórdão recorrido a recorrente é condenada a pagar à recorrida as retribuições que esta teria auferido desde os 30 dias anteriores à propositura da acção até à data do trânsito em julgado da decisão, incluindo subsídios de férias e de Natal de 2005 e 2006 e demais vincendos até ao referido trânsito, a liquidar oportunamente, bem como a pagar-lhe, sobre tais quantias, os juros de mora, à taxa legal, nos termos do art.º 805.°, n.° 3, do Cód. Civil.
qq) Afigura-se à recorrente que esta decisão merece censura, posto que não tomou em consideração o facto da recorrida poder estar a trabalhar para terceiros e, assim, poder auferir importâncias que comprovadamente não poderia auferir se não fosse o alegado despedimento.
rr) Tais importâncias terão de ser deduzidas, pelo que tal decisão deverá ser revogada ou alterada, atento o disposto no n.° 2 do art. 437.º do Cód. do Trabalho.

O recorrente termina, pedindo que se dê provimento ao presente recurso e que, em consequência, se revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outra que confirme a decisão da 1.ª instância, assim se fazendo sã e inteira JUSTIÇA.

A autora contra-alegou defendendo o acerto da decisão e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no mesmo sentido, em “parecer” a que as partes não reagiram.

Colhidos os vistos dos juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
Factos admitidos por acordo:
1 - A autora exerce a profissão de empregada de limpeza.
2 – Desde Junho de 1999, pelo menos, e até Fevereiro de 2004, a autora prestou serviços de limpeza à ré.
3 – A ré pagava à autora uma quantia mensal e 14 vezes por ano, que em Fevereiro de 2004 era de 380,40 €.
4 - Todos os produtos de limpeza e instrumentos de trabalho utilizados pela autora eram propriedade da ré.
5 – No ano de 2004 a autora engravidou e passou a frequentar consultas pré-natais.
6 – A ré não efectuava descontos para a segurança social em relação às quantias que pagava à autora.
7 – Por carta datada de 24.9.2004, registada em 28.9.2004 e recebida pela autora a ré comunicou-lhe que “não tem qualquer vínculo laboral e que atendendo à circunstância da situação, contratamos a prestação de serviços de limpeza a outra firma”.
8 – A ré não instaurou qualquer processo disciplinar à autora.
9 - Em Agosto e Novembro de 2003, a ré pagou à autora quantias a título de horas extraordinárias.
Das respostas aos quesitos da base instrutória:
10 - A autora contratou com a ré a limpeza das zonas comuns do centro comercial do BB (resposta ao quesito 1.º).
11 - A autora tem um filho (resposta ao quesito 7.º).
12 - Autora e ré acordaram que a primeira apenas tinha que fazer a limpeza diária, incluindo sábados e domingos, à zona comercial do prédio Paraíso (resposta ao quesito 10.º).
13 - Sem sujeição a qualquer horário (resposta ao quesito 11.º).
14 - E bastava que a zona comercial do prédio se encontrasse limpa (resposta ao quesito 12.º).
15 - A autora, quando recebia a retribuição, assinava o “recibo” que lhe era apresentado pelo réu Paraíso (resposta ao quesito 14.º).
16 - Até 19.4.2004, a autora fez descontos para a Segurança Social, como trabalhadora por conta de outrem, através de CC(resposta ao quesito 15.º).

Todavia, a Relação decidiu alterar oficiosamente a redacção dos n.º 9, 12 e 15, os quais passaram a ter o seguinte teor:
9 - O Réu, nos meses de Agosto e Novembro de 2003, pagou à A. as quantias de, respectivamente, € 78,75 e de € 190,20 que, nos termos dos recibos de remunerações que constam dos documentos que constituem fls. 92 e 95, por ele emitidos, imputou «a pagamento relativo a horas extraordinárias».
12 - Autora e ré acordaram que a primeira tinha que fazer a limpeza diária, incluindo sábados e domingos, à zona comercial do prédio Paraíso.
15 - A Autora, quando recebia a retribuição, assinava o «recibo» que era emitido pelo Réu Paraíso e lhe era por este apresentado.

E, também oficiosamente, a Relação decidiu eliminar os n.os 13 e 14 da matéria de facto dada como provada na 1.ª instância e aditar-lhe dois números, os n.os 17 e 18, com o seguinte teor:
17 - Nos recibos que constam dos documentos que constituem fls. 52, 64, 76 e 94, emitidos pela Ré, esta refere haver pago à A., nos meses de Novembro de 1999, 2000, 2001 e 2003, quantia que, neles, designou de “subsídio de Natal”.
18 - Nos recibos que constam dos documentos que constituem de fls. 60, 71, 83 e 90, emitido pela Ré, esta refere haver pago à A., nos meses de Julho de 2000, Junho de 2001, Julho de 2002 e Julho de 2003, quantia que, neles, designou de “subsídio de férias”.

3.1 Do recurso
Como decorre das conclusões formuladas pela recorrente, as questões por ela suscitadas são as seguintes:
- saber se a Relação podia ter alterado a redacção dos n.os 9 e 12 da matéria de facto dada como provada na 1.ª instância;
- saber se a Relação podia ter eliminado os n.os 13 e 14 da matéria de facto dada como provada na 1.ª instância;
- saber se a Relação podia ter aditado à referida matéria de facto os n.os 17 e 18;
- saber se o contrato celebrado entre as partes era de trabalho ou de prestação de serviço;
- saber se ao montante das retribuições que a autora deixou de auferir desde o 30.º dia que antecedeu a data da propositura da acção até ao trânsito em julgado da decisão devem ser deduzidas as importâncias que ela tenha comprovadamente obtido com a cessação do contrato e que não teria recebido se não fosse o despedimento.

3.1 Da alteração da matéria de facto feita pela Relação
Como já foi referido, o Tribunal da Relação alterou a redacção dos n.º 9, 12 e 15 da matéria de facto dada como provada na 1.ª instância, eliminou os n.os 13 e 14 da referida factualidade e aditou à mesma os n.os 17 e 18.

O recorrente insurge-se contra as alterações introduzidas nos n.os 9 e 12, contra a eliminação dos n.os 13 e 14 e contra o aditamento dos n.os 17 e 18.

Vejamos se lhe assiste razão, começando por recordar os poderes de que o Supremo dispõe relativamente à decisão da matéria de facto.

Como é sabido, o Supremo, em regra, só conhece de direito. É o que inequivocamente resulta do disposto no art.º 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), nos termos do qual “[f]ora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito” e do disposto no n.º 1 do art.º 722.º do CPC, nos termos do qual “[a]os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado”.

E, face ao disposto no n.º 6 do art.º 712.º do CPC, nos termos do qual não cabe recurso das decisões de Relação proferidas sobre a matéria de facto, poderia mesmo pensar-se que o Supremo não dispunha de quaisquer poderes no domínio da matéria de facto.

Todavia e como é fácil de ver, o disposto no n.º 6 do art.º 712.º não tem um tal alcance, pois, se assim fosse, aquando da sua introdução no art.º 712.º (feita pelo Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro), o legislador não teria deixado de revogar a segunda parte do n.º 2 do art.º 722.º, nos termos da qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objecto de recurso de revista se tiver havido ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, e também não teria deixado de revogar o disposto no n.º 2 do art.º 729.º do CPC que confere poderes ao Supremo para alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, precisamente nos casos previstos na segunda parte do n.º 2 do art.º 722.º.

Deste modo e apesar do disposto no n.º 6 do art.º 712.º, deve entender-se que o Supremo Tribunal de Justiça continua a ter poderes no que toca à alteração da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido. São poderes extremamente restritos, uma vez que se circunscrevem às situações em que o tribunal recorrido tenha violado “uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” e que, no fundo, não contendem com a regra geral de que o Supremo apenas conhece de direito, uma vez que os poderes conferidos ao Supremo em sede da matéria de facto se restringem aos casos em que o tribunal recorrido tenha violado o direito material probatório.

Fora desses casos e no que concerne à decisão da matéria de facto, o Supremo apenas poderá ordenar que o processo regresse ao tribunal recorrido, para que aí se proceda à realização de novo julgamento, quando entender que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou quando entender que a mesma sofre de contradições que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (art.º 729.º, n.º 3, do CPC).
Todavia e como se disse no recente acórdão deste tribunal, de 17 de Dezembro de 2006 (proferido no proc. n.º 2908/07, da 4.ª Secção, deste Supremo Tribunal -(1)), do que se deixa dito não decorre que o Supremo esteja impedido de sindicar a interpretação e aplicação que a Relação haja feito das normas contidas nos diversos números do art.º 712.º

“É que [disse-se naquele acórdão], nesse plano de actuação, bem pode o tribunal “a quo” ter cometido um “erro de julgamento” em matéria processual, caso em que já estaremos perante uma “questão de direito”, patentemente contida na competência funcional do tribunal de revista.”

Com efeito, o Tribunal da Relação só pode alterar a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, dentro dos condicionalismos previstos no n.º 1 do art.º 712.º. Se a alteração se processar fora daqueles condicionalismos, haverá violação, por parte da Relação, do disposto naquele normativo e a respectiva decisão será susceptível de recurso de agravo para o Supremo, se o valor da causa e da sucumbência o consentirem (art.º 678.º, n.º 1, do CPC), podendo essa violação ser invocada no próprio recurso de revista, se a decisão recorrida admitir tal espécie de recurso e este tiver sido interposto (art.º 722.º, n.º 1, do CPC).

E, como é óbvio, tal recurso não se destina a averiguar se a Relação apreciou bem ou mal os meios de prova, ou se fixou bem ou mal a matéria de facto. Destina-se apenas a averiguar se alteração da matéria de facto era processualmente admissível, e na hipótese negativa, a decisão da Relação não poderá deixar de ser revogada, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
E, como é fácil de ver, ao revogar a decisão da Relação que alterou a matéria de facto, por aquela ter violado o disposto no n.º 1 do art.º 712.º, o Supremo não toma posição sobre o mérito do julgamento feito pela Relação relativamente à alteração da matéria de facto em si. Limita-se a verificar se estavam preenchidos, ou não, os pressupostos processuais para que a Relação pudesse avançar para tal julgamento, o que vale por dizer que o Supremo se limita a conhecer de uma questão de direito (de direito processual).

E o mesmo acontecerá quando o objecto do recurso incida sobre a recusa da Relação em apreciar a impugnação da matéria de facto (não confundir com a recusa em alterar a matéria de facto), pois, também neste caso, o que estará em causa é uma questão de direito: saber se tal recusa era legítima face ao disposto no n.º 1 do art.º 712.º

E o que acaba se ser dito relativamente ao art.º 712.º do CPC também vale para art.º 646.º, n.º 4, do mesmo Código, nos termos do qual “[t]êm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.

Assim, se, ao abrigo do disposto no art.º 646.º, n.º 4, do CPC, a Relação der como não escrito determinado facto, nada impede o Supremo de sindicar se a Relação interpretou e aplicou correctamente aquele normativo, uma vez que, ao agir dessa forma, está a conhecer de uma questão de direito.

Revertendo, agora, ao caso em apreço, vejamos se a Relação podia ter realmente alterado a redacção dos n.os 9 e 12 da matéria de facto, se podia ter eliminado os n.os 13 e 14 da referida matéria de facto e se podia ter aditado, à mesma, os n.os 17 e 18.

Facto n.º 9:
No n.º 9 da matéria de facto, que corresponde à alínea I) dos factos admitidos por acordo, a 1.ª instância deu como provado o seguinte:
Em Agosto e Novembro de 2003, a ré pagou à autora quantias a título de horas extraordinárias».

A Relação alterou a redacção daquele n.º 9, com a seguinte fundamentação:
“No n.º 9 da matéria de facto provada refere-se que «Em Agosto e Novembro de 2003, a ré pagou à autora quantias a título de horas extraordinárias».
A afirmação, aparentemente implícita no mencionado número, de que a A. terá efectuado «horas extraordinárias» tem natureza conclusiva, na medida em que tal consubstancia a conclusão que se extrairia do horário de trabalho da A. (ou, pelo menos, do número total de horas, diário, semanal ou mensal, a que se teria obrigado por via da relação contratual) e da factualidade relativa ao tempo em que o trabalho terá sido concretamente prestado, matéria essa que não se encontra provada.
Contudo, o Réu, com a contestação, juntou aos autos 2 recibos, que constam dos documentos que constituem fls. 92 e 95, por ele emitidos e assinados pela A., autoria e assinatura essas aceite pelas partes, nos quais refere que, nos meses de Outubro e Novembro de 2003, o Réu procedeu ao pagamento à A. das quantias de, respectivamente, € 78,75 e de € 190,20 «relativo a horas extraordinárias».
Assim, nos termos e ao abrigo do disposto nos artºs 376º do Código Civil e 646º, nº 4 e 659º, nº 3, estes do CPC, altera-se o n.º 9 da matéria de facto provada, que passará a ter a seguinte redacção:
9. O Réu, nos meses de Agosto e Novembro de 2003, pagou à A. as quantias de, respectivamente, € 78,75 e de € 190,20 que, nos termos dos recibos de remunerações que constam dos documentos que constituem fls. 92 e 95, por ele emitidos, imputou «a pagamento relativo a horas extraordinárias».”

Como resulta do confronto das duas redacções, a Relação limitou-se especificar as quantias pagas pelo réu à autora, a título de horas extraordinárias, nos meses de Agosto e de Novembro de 2003 e a indicar os documentos que atestam esses pagamentos. E dúvidas não há de que os documentos em causa comprovam o pagamento das quantias neles referidas, uma vez que se encontram assinados pela autora, na qualidade de “recebor”, assinatura essa que por ela não foi impugnada.

Aliás, o réu não põe em causa o pagamento das referidas quantias, nem contesta que esse pagamento tenha sido feito a título de “horas extraordinárias”. O que o réu contesta é que a Relação se tenha servido desse facto para concluir pela existência do contrato de trabalho, mas, como é evidente, tal contestação contende com a decisão de mérito e não com a decisão sobre a matéria de facto.

Deste modo, ao alterar a redacção do n.º 9 da matéria de facto, a Relação não violou o disposto no art.º 376.º do C. C. e actuou dentro do condicionalismo previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 712.º do CPC, que também não foi violado, como violados não foram os artigos 646.º, n.º 4 e 659.º, n.º 3, do CPC, invocados pelo réu.

Facto n.º 12.º:
No n.º 12 da matéria de facto, que corresponde à resposta dada ao quesito 10.º, a 1.ª instância deu como provado o seguinte:
Autora e ré acordaram que a primeira apenas tinha que fazer a limpeza diária, incluindo sábados e domingos, à zona comercial do prédio?

A Relação eliminou a palavra apenas e fê-lo com a seguinte fundamentação:
«No nº 12º da matéria de facto assente pela 1.ª instância refere-se que «Autora e ré acordaram que a primeira apenas tinha que fazer a limpeza diária, incluindo sábados e domingos, à zona comercial do prédio Paraíso» ( o sublinhado é nosso).
A expressão apenas utilizada nesse número parece ter subjacente uma determinada qualificação jurídica da natureza do vínculo contratual entre as partes, ou estar relacionada com o nº 13 dos factos provados. No entanto, ela nada acrescenta, ou explicita, relativamente ao que consta dos nºs 12 e 13.
Assim, elimina-se a palavra «apenas» que consta desse número, passando o mesmo a ter a ter a seguinte redacção:
12º - Autora e Réu acordaram que a primeira tinha que fazer a limpeza diária, incluindo sábados e domingos, à zona comercial do prédio Paraíso.»

Como decorre daquela fundamentação, a Relação decidiu eliminar a palavra apenas, por considerar que a mesma tinha uma carga jurídica, mas não indicou a disposição legal em que se baseou para tal. Todavia, face ao fundamento por ela invocado, dúvidas não há de que o fundamento legal da eliminação da referida palavra só podia ser o n.º 4 do art.º 646.º, nos termos do qual se têm por não escritas as respostas do colectivo sobre questões de direito. Foi esta, com certeza, a disposição legal que a Relação implicitamente aplicou.

E, se a palavra em questão tivesse realmente um conteúdo jurídico, a decisão da Relação estaria, naturalmente, correcta.

Entendemos, porém, que a palavra em questão não comporta, in casu, qualquer valoração ou sentido jurídico, expressando, antes, pura matéria de facto. Com efeito, no contexto da frase em que está inserida, a palavra “apenas” tem a ver apenas com o objecto do acordo que foi celebrado entre as partes, mais propriamente com a prestação a que a autora ficou obrigada por força desse acordo. A sua utilização não tem outro sentido que não seja o de precisar o âmbito do serviço, da actividade, do trabalho que tinha de realizar: fazer, tão somente, a limpeza diária, incluindo sábados e domingos, na zona comercial do prédio.

Ao contrário do que diz a Relação, a palavra em questão não tem subjacente uma determinada qualificação jurídica da natureza do vínculo contratual que foi estabelecido entre as partes, por não comportar em si mesma nenhum juízo de valor jurídico. O seu sentido é meramente factual, embora o facto em causa assuma alguma relevância para a qualificação jurídica do contrato, como adiante se verá.
E, sendo assim, temos de concluir que a Relação cometeu um erro de julgamento em matéria processual, ao ter aplicado incorrectamente o disposto no n.º 4 do art.º 646.º, para eliminar a palavra “apenas” do n.º 12 da matéria de facto, sendo certo que aquela palavra também não podia ser eliminada ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 712.º do CPC, uma vez que a resposta ao quesito foi dada com base na prova testemunhal e esta não foi objecto de gravação, escapando assim ao controlo da Relação.

Revoga-se, por isso, a decisão da Relação, nesta parte, com a consequente manutenção da redacção que a 1.ª instância tinha dado ao n.º 12 da matéria de facto.

Factos n.os 13 e 14:
Na sequência do foi perguntado no quesito 10.º, (“Autora e ré acordaram que a primeira apenas tinha que fazer a limpeza diária, incluindo sábados e domingos, à zona comercial do prédio?), no quesito 11.º perguntava-se se a autora tinha de fazer a limpeza “[s]em sujeição a qualquer horário?”. E no quesito 12.º perguntava-se “[e] bastava que a zona comercial do prédio se encontrasse limpa à hora de abertura?”

O quesito 11.º foi dado como provado, ficando a resposta a constar do n.º 13 da matéria de facto e, no que diz respeito ao quesito 12.º, apenas foi dado como provado que “bastava que a zona comercial do prédio se encontrasse limpa”, ficando a resposta a constar do n.º 14 da matéria de facto.

A Relação decidiu eliminar o n.º 13, com a seguinte fundamentação:
«No nº 13 da matéria de facto assente consta «sem sujeição a qualquer horário de trabalho». Tal afirmação tem, porém, natureza conclusiva, uma vez que se extrairia de factualidade que não consta de matéria de facto alegada e dada como provada (2), tanto mais que não só a questão da existência (ou não) de um horário de trabalho era controvertida, como também é a própria Ré quem, alegando embora na contestação que «não foi fixado qualquer horário de trabalho para a mesma prestar o seu serviço», refere igualmente que a A. tinha que o fazer «todos os dias, mesmo aos sábados e domingos» e que, embora não necessitando «da execução permanente de trabalhos nesse sentido», a limpeza teria que se encontrar efectuada «à hora de abertura» - cfr. artºs 15º a 18º da contestação.
Assim, nos termos do artº 646º, nº 4, do CPC, elimina-se o nº 13 da matéria de facto.»

E decidiu eliminar o n.º 14, com a seguinte argumentação:
«No nº 14 da matéria de facto refere-se que «E bastava que a zona comercial do prédio se encontrasse limpa».
O que consta desse número 14 é irrelevante, sendo que a obrigação de limpar a zona comercial do prédio já resulta do nº 12º. Por outro lado, a expressão «e bastava que (…)», na medida em que, eventualmente, relacionada com o que constava do nº 13, acima eliminado, é também conclusiva pelas razões já acima apontadas.
Assim, elimina-se o nº 14 da matéria de facto.»

Como resulta da fundamentação produzida pela Relação, os n.º 13 e 14 foram eliminados, ao abrigo do disposto n.º 4 do art.º 646.º, por se ter entendido que a factualidade neles contida era conclusiva.

Saber se determinado “facto” é conclusivo, ou não, constitui matéria de direito e, por isso, o Supremo pode averiguar se a decisão da Relação foi ou não correcta, ao eliminar as respostas dadas aos quesitos 11.º e 12.º, com o fundamento de que as mesmas eram conclusivas.

No que toca à resposta dada ao quesito 11.º, temos de reconhecer que, à primeira vista, a resposta em questão é realmente conclusiva, uma vez que a “sujeição a horário” não é em si mesmo um facto, por não constituir um acontecimento do mundo exterior, da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem (ex propriis sensibus, visus et audictus) e por não ser também um evento do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo - (3). A afirmação de que a autora fazia a limpeza sem sujeição a horário pressupõe a existência de factos que a suportem. É uma ilação a que se chega através do conhecimento de determinadas ocorrências da vida real, como sejam a de que a autora não era obrigada a iniciar a limpeza a determinada hora. Assume, por isso, inquestionavelmente, um juízo de valor factual sobre determinados factos.

E, mais do que isso, a expressão “horário de trabalho” (é com este sentido que a palavra “horário” é utilizada no n.º 13 da matéria de facto) constitui um conceito jurídico, uma vez que a lei define o que se deve entender como tal. Tal conceito consta actualmente do art.º 159.º, n.º 1, do Código do Trabalho, nos termos do qual “[e]ntende-se por horário de trabalho a determinação das horas do início e do termo do período normal de trabalho diário, bem assim como os intervalos de descanso”, e é textualmente igual ao que já constava do n.º 2 do art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27/9.

Acontece, porém, que aquela expressão foi, desde há muito, assumida na linguagem corrente para expressar a realidade factual que aquele conceito jurídico encerra, qual seja a inexistência de horas para iniciar, executar e terminar o trabalho diário. E, como a jurisprudência tem vindo a entender, as palavras e expressões com conteúdo jurídico podem ser utilizadas na decisão da matéria de facto com o sentido que comummente lhes é atribuído na linguagem corrente, desde que esse significado seja inequívoco e a sua utilização não contenda directamente com o thema decidendum.

E, sendo assim, nada obstava a que na resposta ao quesito 11.º se tivesse dado como provado que a autora não estava sujeita a qualquer horário, o que vale por dizer, que a Relação não a podia ter eliminado o n.º 13 da matéria de facto, ao abrigo do disposto no n.º 4 do art.º 646.º do CPC.

Por sua vez, no que diz respeito ao n.º 14 da matéria de facto (resposta ao quesito 12.º), não vemos que o seu teor assuma natureza conclusiva. O que realmente se perguntava no quesito 12.º era se as partes tinham acordado (o quesito 12.º está na sequência do 10.º e 11.º) que a prestação da autora (limpeza diária das partes comuns da zona comercial do prédio) ficava cumprida, desde que a limpeza da zona comercial se encontrasse limpa à hora de abertura.

O objectivo do quesito era, pois, o de indagar da vontade real das partes, aquando do acordo entre elas firmado e, como é sabido, o apuramento da vontade real das partes constitui uma questão de facto e não uma questão de direito.

Revoga-se, por isso, o decidido pela Relação relativamente à eliminação dos n.os 13 e 14 da matéria de facto.

Factos n.os 17 e 18:
A Relação aditou dois números à matéria de facto da 1.ª instância, com a seguinte fundamentação:
«O Réu, com a contestação, juntou aos autos os documentos (neles denominados de recibos) de fls. 47 a 98, por ele emitidos e assinados pela A., sendo que:
- nos de fls. 52, 64, 76 e 94, se refere que pagou à A., nos meses de Novembro de 1999, 2000, 2001 e 2003, quantia que, neles, designou de subsídio de Natal;
- nos de fls. 60, 71, 83 e 90, se refere que pagou à A., nos meses de Julho de 2000, Junho de 2001, Julho de 2002 e Julho de 2003, quantia que, neles, designou de subsídio de férias.
Quer a autoria de tais documentos, que o Réu, no artº 32º da contestação, alega ser sua (os quais, aliás, foram por ela juntos), quer a assinatura dos mesmos pela A., não foram impugnados por nenhuma das partes, mormente pelo Réu.
Assim, nos termos do artº 376º do Código Civil e artº 659º nº 3 do CPC, adita-se à matéria de facto provada os nºs 17º e 18º, com o seguinte teor:
17º - Nos recibos que constam dos documentos que constituem fls. 52, 64, 76 e 94, emitidos pela Ré, esta refere haver pago à A., nos meses de Novembro de 1999, 2000, 2001 e 2003, quantia que, neles, designou de «subsídio de Natal».
18º - Nos recibos que constam dos documentos que constituem de fls. 60, 71, 83 e 90, emitido pela Ré, esta refere haver pago à A., nos meses de Julho de 2000, Junho de 2001, Julho de 2002 e Julho de 2003, quantia que, neles, designou de “subsídio de férias”.»

Os documentos referidos nos n.os 17 e 18 foram juntos com a contestação e, conforme o réu, então, alegou (art.os 31.º e 32.º da contestação), a autora nunca passou qualquer recibo, era o réu que todos os meses emitia um recibo que era por ela assinado, conforme se alcança dos recibos que juntam e que aqui se dão por reproduzidos – docs. n.ºs 1 a 52.

O doc. de fls. 92 corresponde ao doc. n.º 46 e o doc. de fls. 95 corresponde ao doc. 49. O primeiro tem data de 31 de Agosto de 2003, é dirigido a AA e, com interesse para o caso, nele se declara que, “[n]esta data, a Administração do BB procede ao pagamento de € 78,75 (Setenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos) relativo a horas extraordinárias, proveniente de Agosto”. O segundo tem data de 7 de Novembro de 2003, é dirigido a AA e, com interesse para o caso, nele se declara que “[n]esta data, a Administração do BB procede ao pagamento de € 190,20 (cento e noventa euros e vinte cêntimos) relativo a Serviços Prestados, proveniente de Horas Extraordinárias”.

Os referidos documentos estão assinados pela autora (a assinatura foi feita no final dos documentos, por debaixo das palavras “O Recebedor”) e esta não impugnou a sua assinatura. Deste modo e dado o disposto no art.º 376.º, n.os 1 e 2, do C.C., tais documentos fazem prova plena de que a autora recebeu do réu as importâncias que neles são mencionadas.

E dúvidas não há também acerca da autoria material dos documentos e das declarações neles emitidas, que o réu confessou serem suas.

Tal significa que a força probatória dos ditos documentos não podia ser contrariada pela prova testemunhal produzidas nos autos (art. 393.º, n.º 2, do C.C.) e, sendo assim, nada obstava a que a Relação tivesse aditado à matéria de facto os n.os 17 e 18, ao abrigo do disposto no art.º 712.º, n.º 1, al. b), do CPC.

3.2 Da natureza do contrato
Na decisão recorrida, contrariando o que fora decidido na sentença da 1.ª instância, entendeu-se que o contrato celebrado entre as partes era um contrato de trabalho e não um contrato de prestação de serviço.

Ignora-se a data em que o contrato foi celebrado, mas sabe-se que tal ocorreu, pelo menos em Junho de 1999, uma vez que está provado que a autora prestou serviços de limpeza ao réu, pelo menos desde Junho de 1999 até Fevereiro de 2004 (facto n.º 1).

Deste modo, na qualificação do contrato, há que atender à legislação que, em Junho de 1999, estava em vigor, mais concretamente à LCT - (4).

“Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.” (art.º 1.º da LCT).

Por sua vez, “[c]ontrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição” (art.º 1154.º do C.C.)

Como a doutrina e a jurisprudência têm salientado, o que verdadeiramente caracteriza e distingue o contrato de trabalho dos contratos afins, nomeadamente do contrato de prestação de serviço, é a chamada subordinação jurídica que só naquele existe e que se traduz no facto de o prestador da actividade estar sujeito ao poder directivo da parte que dela beneficia, poder directivo esse que, por sua vez, se exprime através de ordens, orientações, instruções e directrizes relativamente à forma como a actividade deve ser desenvolvida e a que o prestador da actividade terá de obedecer - (5).

Acontece, porém, que, no plano prático, nem sempre é fácil surpreender, de forma clara e inequívoca, aquele elemento. E, para resolver as dificuldades, a doutrina e a jurisprudência recorrem ao chamado método indiciário que consiste em procurar, na situação real em apreço, as ocorrências concretas que normalmente andam associadas à existência ou inexistência da subordinação jurídica, de acordo com o modelo prático em que o conceito de trabalho se traduz, passando cada uma dessas ocorrências a constituir um indício que militará a favor, ou contra, a existência da dita subordinação.

Como refere Monteiro Fernandes -(6), no elenco de indícios de subordinação, é geralmente conferido especial ênfase aos que respeitam ao chamado “momento organizatório” da subordinação: vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens e a sujeição à disciplina da empresa. E a estes acrescem os elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo, em regra), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação. E são, ainda, referidos indícios de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem.

E na mesma linha navega Pedro Romano Martinez - (7), que àqueles indícios acrescenta outros: o pagamento dos subsídios de férias e de Natal; a prestação da actividade sem recurso a colaboradores; a manutenção do direito à retribuição quando a actividade não pode ser prestada por facto não imputável ao prestador; o direito a férias remuneradas; a integração do prestador da actividade na estrutura da empresa; a não prestação da actividade a outros beneficiários; a inscrição do prestador da actividade em organismo sindical; o fornecimento, por escrito, por parte do beneficiário da actividade, das informações impostas pelo Decreto-Lei n.º 5/94, de 11 de Janeiro.

Mas, como aqueles autores também referem, tais indícios, isoladamente apreciados, não são determinantes para a qualificação negocial, sendo necessário conjugá-los entre si, atendendo à situação concreta em análise e levando em conta que o valor relativo de cada um deles varia de caso para caso. E, como de forma mais explícita, diz Monteiro Fernandes - (8), “a determinação da subordinação, feita através daquilo que alguns caricaturam como uma “caça ao indício”, não é configurável como um juízo subsuntivo ou de correspondência biunívoca, mas como um mero juízo de aproximação entre “dois modos de ser” analiticamente considerados: o da situação concreta e o do modelo típico da subordinação. Os elementos desse modelo que assumam expressão prática na situação a qualificar serão tomados como outros tantos indícios de subordinação que, no seu conjunto, definirão uma zona mais ou menos ampla de correspondência e, portanto, uma maior ou menor proximidade entre o conceito-tipo e a situação confrontada”.

Por outras palavras, como no recente acórdão de 10.10.2007, desde tribunal -(9), se afirmou, “torna-se patente que cada um dos falados indícios, tomados de per si, assumem natural relatividade, o que implica a formulação de um juízo de globalidade face à relação jurídica concreta. É dizer que a almejada qualificação do contrato deverá ser feita caso a caso, sem valorizar os indícios de forma atomística, o que comporta necessariamente alguma margem de indeterminação, e até de subjectividade, na valoração dos vários indícios atendíveis”.

Aos indícios referidos haverá que acrescentar outros, quando o contrato tiver sido reduzido a escrito (o que no caso em apreço não sucedeu), uma vez que, nesse caso, o nomen juris que lhe tiver sido dado pelas partes não pode ser menosprezado e, muito menos, o teor das respectivas cláusulas. Com efeito, tais elementos, embora não sejam decisivos para a qualificação do contrato (pois o que realmente releva, para esse efeito, não é a designação escolhida pelas partes nem os termos em que foi redigido, mas sim a forma e o modo em que o mesmo foi executado), são naturalmente importantes para ajuizar da vontade real das partes, no que toca ao regime jurídico que elegeram para regular a relação jurídica que entre si estabeleceram, sobretudo se os outorgantes forem pessoas cultas e esclarecidas.

Revertendo, agora, ao caso em apreço, não temos dúvidas em afirmar que o vínculo contratual estabelecido entre as partes era de prestação de serviço e não de trabalho subordinado.

Na verdade, compulsada a matéria de facto provada, nela não vislumbramos a menor referência ao poder directivo do réu e, consequentemente à subordinação jurídica da autora. Nenhum indício nela existe de que a autora estivesse sujeita às ordens e direcção dos representantes do réu na execução da limpeza às zonas comuns do centro comercial do prédio. A não sujeição a horário aponta manifestamente em sentido contrário e os termos do acordo celebrado entre as partes também vai nesse sentido, nomeadamente o teor dos n.os 10, 12 e 13, pois deles transparece que o objecto do contrato não era a prestação da actividade da autora, em si, mas sim o resultado dessa actividade, uma vez que a autora contratou com o réu a limpeza das zonas comuns do centro comercial (n.º 10) e as partes acordaram que a autora apenas tinha que fazer a limpeza diária (n.º 12) e que bastava que a zona comercial estivesse limpa (n.º 14).

Provou-se, é certo, que a retribuição da autora era mensal e que alguns dos pagamentos feitos pelo réu foram por este imputados a título de subsídio de férias, de subsídio de Natal e de horas extraordinárias, prestações estas que são específicas do contrato de trabalho. Importa, todavia, ter presente que não foi dado como provado que a autora tivesse prestado trabalho suplementar ou que as quantias pagas a título de subsídio de férias e de Natal se destinassem efectivamente ao pagamento desse subsídios. Apenas se provou que houve pagamentos que lhe foram imputados a esse título, o que não é a mesma coisa.

Finalmente, ainda que se entendesse que a matéria de facto não era suficiente para concluir pela existência do contrato de prestação de serviço, sempre teríamos de concluir que também não era bastante para dar como provado o contrato de trabalho e, na dúvida, a acção teria de improceder, uma vez que competia à autora provar os factos constitutivos do direito por si invocado, cuja existência dependia da prova do, por si, alegado contrato de trabalho (art.º 342.º, n.º 1, do C.C.).

Como essa prova não foi feita, a cessação do contrato não pode ser considerada ilícita, o que implica a revogação do acórdão recorrido, na parte em que julgou o despedimento ilícito e na parte em que condenou o réu a pagar à autora a indemnização de antiguidade e as retribuições intercalares.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar procedente o recurso e revogar o acórdão nos temos atrás referidos, o que vale por dizer que o réu fica totalmente absolvido do pedido.
Custas pela autora nas instâncias e no Supremo.
Lisboa, 23 de Janeiro de 2008

Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
________________________________

(1) - De que foi relator o juiz conselheiro Sousa Grandão.
(2) - Designadamente: se era a A. quem decidia a que horas iniciava a limpeza diária e se a efectuava ou poderia efectuá-la, nomeadamente entre as 00h00 e as 24h00, quando o entendesse.
(3) - Vide Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 407.
(4)- Forma abreviada de designar o regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Decreto--Lei n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1969.
(5) - Vide o recente acórdão de 17.10.2007, deste tribunal, proferido no proc. 2187/07, da 4.ª Secção, que praticamente nos limitamos a reproduzir e de que foram relatores e adjuntos os juízes que subscrevem este.
(6) - Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, p. 144.
(7) - Direito do Trabalho, Abril 2002, Almedina, p. 308-311.
(8) - Ob. cit., p. 144.
(9)- Proferido no proc. n.º 1800/07, da 4.ª Secção, de que foi relator o Conselheiro Sousa Grandão.