Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
459/05.0TBMCD.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
ESTABELECIMENTO DE ENSINO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I - Um estabelecimento de ensino superior, deverá, por essência, promover os valores humanos, para além de ministrar, fomentar e impulsionar os conhecimentos científicos. Deverá, assim, impulsionar o dever de respeito dos direitos fundamentais do homem, acautelando que esses direitos - tutelados pelos arts. 70.º do CC e 24.º e ss. da CRP -, designadamente os direitos de personalidade de uma pessoa, não sejam ofendidos.
II - Embora não se possa negar a possibilidade de as diversas universidades do país terem e exercerem as suas praxes, onde alguma irreverência será até aceitável, não será admissível que com essas praxes se venham a exercer violências físicas e morais sobre alunos, designadamente sobre os mais desprotegidos (os que se aprestam a frequentar o 1.º ano), para gozo e júbilo de alguns e sofrimento (moral e físico) dos atingidos, os mais fracos.
III - Um estabelecimento de ensino superior tem, pois, o dever jurídico e social de impedir que seja levado à prática nas suas instalações um “Regulamento de Praxes de Alunos” contendo praxes humilhantes e vexatórias, procedimentos constrangedores que podem levar ao exercício de violência física e psíquica sobre os alunos, claramente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos visados.
IV - O estabelecimento de ensino que contempla com a vigência de um Regulamento da Comissão de Praxe com tais características, é responsável, por omissão, pelos danos sofridos por uma aluna que foi submetida a praxes dessa natureza.
V - Existe nexo de causalidade entre o comportamento omissivo do estabelecimento de ensino acima referenciado, que originou a que à aluna fossem aplicadas práticas violadoras dos seus direitos de personalidade, e os danos de ordem material (gastos com medicamentos e consultas médicas, despesas com anulação da matrícula e outras, bem como lucros cessantes pelo tardio ingresso no mercado de trabalho) e moral sofridos por esta.
VI - Não se pode considerar que os gastos em causa tenham sido realizados pelos pais da aluna se ficou provado que o dinheiro despendido lhe foi entregue pelos seus pais. Nesse caso, ter-se-á verificado uma situação de doação dos pais a favor da filha, assistindo a esta o direito a ser reembolsada.
VI - Considerando a humilhação a que a aluna foi sujeita, a tristeza que sentiu, a situação de baixa médica, os sintomas de depressão e stress e o abandono daquele estabelecimento de ensino, tendo perdido um ano escolar, é adequado fixar em 25.000€ o montante da indemnização por danos não patrimoniais.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I- Relatório:
1-1- AA, residente na Urbanização ..., bloco 0 - 0.º 0, 5400-088 Chaves propôs a presente acção com processo ordinário contra “BB, CRL”, com sede na Rua ..., apartado 000, EC Canelas, 4410-269 Canelas, Vila Nova de Gaia, pedindo se condene a R. no pagamento da quantia de € 67.740,67, a título de indemnização por danos morais e patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que no dia 14/09/2002 matriculou-se na Escola Superior de Saúde de ..., criada pela R. no âmbito do seu objecto, no curso de fisioterapia. No início das aulas, nos dias 14/10/2002 e 15/10/2002, nas instalações da escola, foi sujeita a várias práticas humilhantes de praxe, que descreve. Devido à situação a que foi submetida, dirigiu uma carta ao Presidente do Conselho Executivo do Instituto BB de ..., datada de 13/11/2002, cuja cópia consta de fls. 29 a 31. Na sequência dessa carta, foi convocada para uma reunião no dia 3/12/2002. Tal reunião foi promovida pela R. com o único intuito de humilhar e intimidar a A., sendo que por causa dessa reunião sofreu os danos morais que discrimina, avaliados em € 20.000,00. Em consequência dos actos de praxe a que foi sujeita, que só aconteceram porque a R. o permitiu, sofreu os danos morais, que discrimina, avaliados em € 30.000,00. Sofreu ainda os danos patrimoniais que indica, no valor total de € 17.740,67.
A R. contestou impugnando a maioria dos factos alegados na petição inicial, sustentando que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada pelos danos invocados pela A. e concluindo pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.
A A. respondeu com a réplica, mantendo a posição assumida na petição inicial.
O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se elaborou a base instrutória, tendo esta sido objecto de reclamação pela R. que não foi atendida, mas tendo o tribunal, na audiência de julgamento, determinado o aditamento de factos à base instrutória.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no decurso da qual, a A. e a R., peticionaram a condenação recíproca em multa e indemnização como litigantes de má fé.
Respondeu-se depois à base instrutória e proferiu-se a sentença.
Nesta julgou-se acção improcedente por não provada, absolvendo-se a R. do pedido contra ela formulado pela A.
Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, tendo-se aí, por acórdão de 24-11-2008, julgado parcialmente procedente o recurso, condenando-se a R. a pagar à A. a quantia de 25.000,00 € a título de danos morais e 13.540,67 € a título de danos patrimoniais, num total de 38.540,67 €, acrescida de juros de mora desde a citação.

1-2 Irresignado com este acórdão, dele recorreu a R. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A A. na sua petição inicial, alegou ter sido vítima da prática de vários actos de praxes académicas, actos estes praticados por alunos da Escola de ... da qual a R. é a entidade instituidora.
2ª- Por entender terem sido violados, com a prática de tais actos os seus direitos, a A. reclamou indemnização no montante de 30.000,00 €

3ª- Alegou ainda a A. que, na sequência de queixa por ela formulada aos órgãos da escola e relativamente àquelas praxes académicas, a R. instaurou inquérito disciplinar, no decurso do qual foi realizada, em 3/12/2002, uma reunião que teria sido promovida com o objectivo de a humilhar e vexar, fazendo-a desistir da queixa contra os alunos praxantes, motivo porque dessa reunião teriam resultado, para ela A., prejuízos que computou em 20.000,00 €.

4ª- Pediu, a final, a condenação da R. no pagamento da quantia de 50.000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

5ª- A A. alegou também que a R. findo aquele inquérito disciplinar, lhe aplicou ilegalmente a sanção de repreensão e não registada, o que a teria obrigado a anular a matrícula na Escola, perdendo um ano lectivo, com a correspondente entrada tardia no mercado de trabalho.

6ª- Por isso pediu a condenação da R. no pagamento dos danos patrimoniais a título de danos emergentes e lucros cessantes, que computou, sendo os primeiros pelas despesas que efectuou para frequentar a Escola da R. e segundos pelo ganho que não obteve mas que teria obtido se entrasse no mercado de trabalho no ano previsto após a conclusão dos estudos.

7ª- A R. foi absolvida de todos os pedidos em 1ª instância.

8ª- A Relação do Porto, pelo Acórdão recorrido, revogou a sentença da 1ª instância e condenou a R. a pagar à A. a quantia de 25.000,00 € a título de danos não patrimoniais e de 13.540,67 €, a título de danos patrimoniais.

9ª- No seu recurso de apelação da sentença da 1ª instância, a A. não impugnou a matéria de facto ali dada como provada.

10ª- Contudo, o Tribunal recorrido, lançando mão do disposto no art. 712º A. do C.P.C, desenvolveu a matéria de facto dada como provada em 1ª instância, o que fez com a transcrição total de um documento e a transcrição parcial de outros dois, todos constantes do autos a fls. 29 a 31, 32 a 44 e 74 a 88.

11ª- A Relação não deu, como não podia dar porque os documentos em causa não são idóneos para o efeito, como provados os factos constantes dessa documentação, fazendo apenas a sua transcrição total ou parcial.

12ª- Consequentemente, os factos que são conteúdo desses documentos não se podem considerar como provados nos autos, devendo apenas entender-se como provada a matéria de facto fixada pela 1ª instância e, por desenvolvimento desta efectuado pela Relação, a existência daqueles documentos com aquele conteúdo.

13ª- Todavia, na prolação do Acórdão recorrido a Relação fundamentou a sua decisão de condenação da R. em muitos dos factos constantes desses documentos.

14ª- A Relação usou, assim, de forma ilegal, para condenar a R., factos que não foram dados como provados em 1ª instância, sendo que ela própria, Relação, não deu como provados esses factos.

15ª- O Acórdão recorrido é, na sua génese, embora o não pareça, uma critica às praxes em geral, tendo-se aproveitado o caso concreto dos autos e a sua mediatização, mediatização esta que por seu de conhecimento público não carece de prova, para se enviar um recado a toda a comunidade académica, isto quando o que o Tribunal deveria ter feito apenas e tão só era apreciar o caso concreto em face da prova fixada em 1ª instância e aceite pelas partes, dado que não compete aos tribunais fazer terapia social.

16ª- Os actos de praxe a que a A. foi submetida dentro da Escola de ... não foram praticados pela R. ou por alguém a mando dela, mas sim por outros alunos dessa Escola, aliás como a A. o reconheceu nas suas queixas aos órgãos da Escola, na sua petição inicial e no mais que desenvolveu nos autos.

17ª- Assim, a R. seria responsável, no entender da A., pelos actos de praxe concretos que foram dados como provados porque não teria agido como devia, ou seja, porque não teria impedido as praxes em geral e esses actos em particular.

18ª- A responsabilidade da R. seria assim por omissão e não por acção.

19ª- O Tribunal da 1ª instância entendeu não ser de assacar à R. qualquer responsabilidade por omissão, dado que não existe norma legal impondo à R. qualquer tipo de comportamento no sentido de impedir ou regulamentar as praxes académicas e também porque a existência dessa norma e o seu cumprimento pela R., (caso a norma existisse), nunca seria impeditiva da prática dos actos concretos relatados nos autos ou de outros lesivos dos direitos, liberdades e garantias dos alunos.

20ª- A 1ª instância entendeu também que a A. se inseriu inicialmente nas praxes académicas, não se declarando anti-praxe embora soubesse que o podia fazer, vindo apenas posteriormente à ocorrência dos factos que relatou na queixa apresentada aos órgãos da Escola a fazer essa declaração anti-praxe, de onde resulta que a A. acabou por consentir nas praxes a que foi submetida.

21ª- O Acórdão recorrido teve entendimento diferente, embora nele não se diga expressa ou tacitamente qual a norma ou o princípio jurídico que impunha à R. um certo tipo de comportamento activo, designadamente de regulamentar e/ou proibir as praxes académicas na sua Escola.

22ª- Aliás, o Acórdão recorrido é uma peça árida em termos de invocação das normas jurídicas aplicáveis e/ou da doutrina e jurisprudência seguidas, ficando sem se saber concretamente de que preceitos legais emerge a condenação da R..

23ª- Acresce que, como resulta dos factos dados como provados, a A. declarou e confessou posteriormente à ocorrência das praxes que estas não tinham tido, quanto à sua pessoa, a gravidade que inicialmente lhes conferiu, desvalorizando completamente os actos de praxe a que foi submetida.

24ª- O Tribunal da Relação, violando flagrantemente todas as normas e princípios de direito concernente à prova, resolveu desvalorizar esta confissão da A., isto quando ele próprio deu como provada essa confissão.

25ª- O Tribunal da Relação entendeu também que a existência do código da praxe, de fls. 74 a 88 dos autos, era suficiente para a prática na Escola de actos ofensivos dos direitos, liberdades e garantias dos alunos e que foi com base nesse código da praxe que a A. foi submetida aos actos concretos provados nos autos

26ª- Mas a Relação fez mais, pois na fundamentação da decisão entendeu que a A tinha sido submetida a outros actos de praxe para além daqueles que foram fixados em 1ª instância, designadamente que tinha sido ofendida verbalmente e violentada na sua sexualidade

27ª- Ora, embora se tenha provado que a R. conhecia o código da praxe, o qual estava afixado na Escola, no lugar reservado aos alunos, não pode entender-se, como o fez a Relação, que a existência desse código e o seu conhecimento pela R. foram motivo bastante para a prática dos actos de praxe em concreto praticados sobre a pessoa da A..

28ª- Inexiste qualquer nexo da causalidade entre o código da praxe com o seu conteúdo e o actos de praxe que em concreto foram praticados sobre a A. e que a 1ª instância deu como provados.

29ª- A restante matéria de facto, alegada pela A., tanto na sua participação à Escola, como nas suas declarações à Inspecção-Geral de Educação, como na sua petição inicial, no tocante aos actos de praxe a que foi submetida, não ficou provada, tendo até a 1ª instância dado como não provados grande parte desses factos.

30ª- Porém, no Acórdão recorrido, fazendo-se de conta que para além dos actos de praxe a que a A. foi submetida e fixados em 1ª instância teriam sido praticados outros actos de praxe constantes das queixas por ela formuladas, considerou-se que a R. por não ter impedido a existência do código da praxe e do seu conteúdo, acabou por agir não só por omissão mas também por acção, pois que dessa forma teria dado o seu consentimento aos concretos actos de praxe praticados sobre a A..

31ª- Trata-se, mais uma vez, da subversão de todas as normas relativas a produção, apropriação e integração da prova e bem assim das regras sobre a sua subsunção às normas jurídicas aplicáveis.

32ª- A sentença da 1ª instância, que é a decisão que da melhor forma apreciou e decidiu sobre a matéria, valorou apenas a prova fixada, coisa que a Relação não fez, pois valorou factos não provados no autos, tudo com o intuito evidente de fundamentar a decisão que obteve vencimento, de condenação da R..

33ª- De todo o modo, o código da praxe junto aos autos nunca seria meio idóneo para a pratica de actos de praxe ofensivos dos direitos liberdades e garantias dos alunos dado que dele consta, como a sentença da 1ª instância bem salientou, norma proibitiva dessas praxes violadoras desses direitos.

34ª- A R., embora conhecendo a existência do código da praxe, não podia prever quais as praxes concretas que os alunos praxantes se propunham aplicar aos caloiros, não lhe sendo exigível qualquer tipo de comportamento activo no sentido de proibir aquilo que desconhecia.

35ª- A R. não agiu, por isso, em violação de qualquer norma jurídica, nem agiu com culpa, por omissão ou acção, ao contrário do que se sustenta no Acórdão recorrido.

36ª- A A., que se submeteu voluntariamente, porque não se declarou anti-praxe às praxes académicas, não sofreu qualquer violação dos seus direitos, designadamente de personalidade.

37ª- Mas mesmo que tivesse sofrido violação desses direitos, a verdade é que a A, para além do consentimento que deu quanto à prática das praxes, declarou e confessou posteriormente que os actos a que foi submetida não tiveram a gravidade que ela inicialmente lhes deu, desvalorizando-os por completo.

38ª- Deste modo, afastada está qualquer responsabilidade da R., até porque a existir responsabilidade essa terá que ser apenas assacada ao alunos praxantes, pois foram eles que praticaram os actos sobre a A..

39ª- Ficou provado nos autos que as duas reuniões promovidas pela R., após as denúncias da A., no âmbito do inquérito disciplinar que instaurou, se destinaram ao apuramento da verdade, tendo-se dado como não provado que a segunda dessas reuniões, ocorrida em 3-12-2002, tivesse sido promovida com o intuito de vexar e humilhar a A..

40ª- A Relação entendeu, ao contrário do entendimento e do decidido em 1ª instância, que o facto de a segunda reunião ter ocorrido com a presença de todos os alunos ostentando o traje académico (os praxantes e a comissão de praxes) foi motivo bastante para que a A se sentisse pressionada e constrangida, dando também a Relação relevância ao facto de a R. não ter permitido a presença do pai da A. nessa reunião.

41ª- Ora, não se tendo provado, como a A. alegava, que a reunião tinha tido por objectivo prejudicá-la e violar os seus direitos, tendo ao contrário ficado provado que ela foi promovida e ocorreu com o objectivo de descobrir a verdade, não pode concluir-se, ao contrário do que fez a Relação, que a R agiu em violação da lei, culposamente, causando prejuízo à A..

42ª- A A. não foi nem constrangida nem humilhada, nem intimidada no decorrer dessa reunião, nem ficou provado nos autos, ao contrário do que a Relação entendeu, que a mesma estivesse na altura em inferioridade psicológica

43ª- A A. não sofreu quaisquer prejuízos de ordem moral resultantes da realização dessa mesma reunião.

44ª- A Relação, mais uma vez e quanto a esta questão, deu como provados factos não fixados em 1ª instância e que ela própria, Relação, não aditou à matéria de facto no uso dos poderes que lhe confere o art. 712°-A, do CPC, violando também, assim, as normas substantivas e adjectivas aplicáveis.

45ª- Concluído o inquérito disciplinar promovido e conduzido pela R., esta aplicou aos outros alunos intervenientes nas praxes a sanção de repreensão escrita registada, tendo aplicado à A. a sanção de repreensão escrita simples não registada.

46ª- Esta sanção aplicada à A, teve por fundamento a forma subjectiva e excessiva como a A. relatou os factos inicialmente, tendo em conta que posteriormente a essa denúncia reconheceu que eles não possuíam a gravidade que lhes havia conferido, desvalorizando-os quase em absoluto.

47ª- A R. aplicou esta sanção à A. no uso dos seus poderes disciplinares e no exercício de um direito próprio.

48ª- A A. que alegou que por força desta sanção anulou a matricula não provou essa factualidade, tendo apenas provado que anulou a matricula posteriormente à aplicação da sanção, de onde resulta a inexistência de nexo causal entre um e outro facto.

49ª- Assim, ao contrário do que defendeu a Relação, a perda de um ano escolar pela A. não esteve directamente relacionada com a sanção aplicada.

50ª- Como muito bem se apreciou e decidiu em 1ª instância, a A. não logrou provar grande parte daquilo que alegou a tal propósito, sendo que o que ficou provado não é suficiente para formular um juízo de censura, ético ou jurídico, no tocante ao comportamento da R..

51ª- Não tendo a A. anulado a matrícula por virtude de qualquer acto da R., não pode esta ser responsabilizada por quaisquer prejuízos decorrentes da perda de um ano escolar.

52ª- Acresce que a A. não provou, como lhe competia, que se não tivesse anulado a matricula e tivesse continuado os estudos na Escola da R. teria concluído o curso no ano lectivo inicialmente projectado.

53ª- Também não provou a A. que mesmo que tivesse concluído o curso no ano inicialmente projectado teria logo emprego certo com ordenado concreto.

54ª- A Relação, quanto a esta matéria e baseando-se na prova fixada em 1ª instância, proferiu decisão com base apenas em eventualidades e possibilidades, pois não ficou provado qual o empregador que daria imediato emprego à A. logo que esta concluísse os estudos e qual o ordenado real que ele lhe pagaria.

55ª- O que ficou provado foi que a há cerca de dois anos os alunos que concluíam o curso na Escola da R. arranjavam normalmente emprego com um vencimento mensal médio de 700,00 €, sendo que esta factualidade não é idónea para concluir, com o mínimo de certeza e segurança exigível, que A. arranjaria emprego com esse vencimento no ano da conclusão provável dos estudo atendendo a que a prova produzida se refere a anos passados, nada se tendo provado quanto ao presente.

56ª- A R. não tem, assim, que ser responsabilizada por quaisquer danos patrimoniais da designadamente os invocados a título de danos emergentes e lucros cessantes.

57ª- Mas mesmo que houvesse responsabilidade por parte da R., o que apenas se admite por hipótese, a A. não teria direito a indemnização por danos patrimoniais a título de danos emergentes dado que, como ficou provado quem pagou as despesas para que a A. frequentasse o curso foram os seus pais e não ela própria.

58ª- Daí que apenas os pais da A. poderiam reclamar da R. a indemnização em causa.

59ª- Acresce que parte das despesas invocadas pela A., as médicas e de telefone, são estranhas à necessidade de frequentar o curso.

60ª- Quanto aos danos não patrimoniais, os fixados pela Relação mostram-se completamente exagerados e inadequados em função da lei aplicável a casos de indemnização a esse título (Portaria 377/2008, de 26.05) e da jurisprudência firmada.

61ª- Mesmo a existir lugar a indemnização por tais danos, eles nunca deveriam ser computados em montante superior a 3.000,00 €, sendo do 2.500,00 pelos actos de praxe a que a A. foi submetida e 500 € pelas consequências da reunião relatada.

62ª- Também quanto aos juros, o Acórdão recorrido fez uma errada interpretação da lei, atendendo a que os juros referentes aos lucros cessantes só poderiam ser contados partir do mês em que se verificasse a falta de ganho concreto e efectivo, sobre o ordenado apurado contagem essa a fazer mês a mês.

63ª- Os danos não patrimoniais, por sua vez, só dão lugar a juros após a fixação do montante indemnizatório, motivo porque a R. só poderia ser condenada a pagá-los a partir da data em que foi notificada do Acórdão recorrido.

64ª- Deverá, por todo o exposto, na concessão da revista revogar-se o Acórdão recorrido, da Relação do Porto, mantendo-se a sentença da 1ª instância com a consequente absolvição da R. de todos os pedidos.

65ª- Se assim se não entender, deverão alterar-se os montantes indemnizatórios a título de danos patrimoniais, como acima se explanou, fixando-se a indemnização por danos não patrimoniais em montante global não superior a 3.000,00 €

66ª- Foram violados, pelo Acórdão recorrido, os arts. 342°, 349°, 351º, 352°, 356°, 483°, 486º, 487°, 496°, 562º, 563°, 564° e 570°, do CC e 712º nº 1 al. a) e nº 2, 713°, nº 2 e 659º n°3 e 655º do CPC.


A recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
Nesta conformidade, serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Apreciação da actuação da Relação quanto à matéria de facto provada.
- Responsabilidade civil por factos ilícitos por parte da R..
- Montante dos danos.
- Juros moratórios.
2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
1) A R. é uma cooperativa de ensino cujo objecto é criar e manter estabelecimentos destinados a ministrar o ensino superior, e dentro deste âmbito, desenvolver estruturas educativas, sociais, assistenciais, de investigação, culturais, desportivas, turísticas, construção de obras próprias e actividades laborais, bem como todas as demais, nomeadamente colóquios, conferências e semanários, edições, divulgação e comercialização de livros e publicações da sua especialidade que se afigurem como apoio económico e logístico ao desenvolvimento da instituição, dos seus beneficiários e comunidades de que faz parte, a fim de participar de forma activa no desenvolvimento humano, integral e ecológico dos diferentes grupos etários e sociais em cada sociedade, e das diferentes etnias, comunidades e povos, e com sede na Via ... (actual Rua ....), Canelas, Vila Nova de Gaia, registada na Conservatória do Registo Comercial de Vila Nova de Gaia, sob o n.º 45 (cf. alínea A) dos factos assentes).
2) No âmbito do seu objecto a R. criou a Escola Superior de Enfermagem ..../ Nordeste (cf. alínea B) dos factos assentes).
3) No dia 14 de Setembro de 2002, a A. matriculou-se na Escola Superior de Saúde de ..., no curso de fisioterapia (cf. alínea C) dos factos assentes).
4) As aulas começaram no dia 14/10/2002 (cf. alínea D) dos factos assentes).
5) No início das aulas, no referido dia 14/10/2002, durante a manhã, a A. participou numa reunião de alunos do 1º ano do curso de fisioterapia, com a directora, a coordenadora do 1º ano do curso de fisioterapia e mais dois docentes da turma, na qual foi feita a apresentação da escola e do curso (cf. alínea E) dos factos assentes).
6) A A. faltou às aulas nos dias 17 e 18 de Outubro de 2002 e recomeçou a frequência das aulas no dia 22 de Outubro de 2002 (cf. alínea F) dos factos assentes).
7) A A. remeteu ao Presidente do Conselho Executivo do "Campus" de ... do Instituto BB, que a recebeu, a carta datada de 13/11/2002, cuja cópia consta de fls. 29 a 31 e que se dá por totalmente reproduzida, e dirigiu ainda carta de igual teor ao Ministério da Ciência e do Ensino Superior (cf. alínea G) dos factos assentes).
8) Na última semana de Novembro, na sequência do aludido em G), a A. foi convocada para, numa reunião com a directora do Instituto ... do "Campus" de ..., identificar, por fotografia, os alunos que a teriam submetido a actos de praxe (cf. alínea H) dos factos assentes).
9) No dia 3/12/2002, a A. foi convocada para uma nova reunião, tendo-se a A. apresentado nessa reunião acompanhada do pai, cuja presença não foi admitida pela R. (cf. alínea I) dos factos assentes).
10) Na reunião aludida em I), encontravam-se presentes a directora da escola, Dra. ...., a coordenadora do curso de fisioterapia, os alunos identificados pela A. como sendo os praticantes da praxe a que teria sido sujeita e toda a comissão de praxe, sendo que todos os alunos presentes, excepto a A., ostentaram o traje académico, tendo tal reunião demorado três horas (cf. alínea J) dos factos assentes).
11) A direcção do "Campus" de ... do Instituto ... informou a Inspecção-Geral de Educação que a reunião havia sido inconclusiva por existirem vários intervenientes, cada qual com a sua opinião (cf. alínea L) dos factos assentes).
12) Por deliberação da Direcção da Escola Superior de Saúde, com data de 23/01/2003, foi aplicada à A. a seguinte sanção: “repreensão escrita à aluna, pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição, tal como ela própria reconheceu. No entanto, considerando a atenuante de ter apresentado os acontecimentos aos órgãos (Direcção) da Escola, esta sanção não fica sujeita a registo” (cf. alínea M) dos factos assentes).
13) Tal deliberação foi notificada à A. (cf. alínea N) dos factos assentes).
14) Em 26/02/2003, a A. anulou a matrícula na Escola Superior de Saúde (cf. alínea O) dos factos assentes).
15) A A. residia em Chaves (resposta ao número 1º da base instrutória).
16) A A. desde Julho de 2002 havia arrendado um apartamento em ..., a fim de frequentar as aulas (resposta ao número 2º da base instrutória).
17) No dia 14/10/2002, no âmbito da recepção aos caloiros, e já depois da reunião aludida em E), a A. foi sujeita a vários actos de praxe por parte de outros alunos, dentro do "Campus" Académico da R. em ..., designadamente, foi-lhe ordenado que vestisse do avesso a roupa da cintura para cima e que colocasse o soutien do lado de fora da roupa, tendo tal mudança da posição da roupa e do soutien sido feita resguardada de olhares alheios, na casa de banho (resposta aos números 3.º a 8.º e 10.º da base instrutória).
18) À A. foi ainda ordenado que simulasse orgasmos com um poste de iluminação (resposta ao número 11º da base instrutória).
19) À A. foi ainda ordenado que rebolasse na relva (resposta aos números 12.º e 13.º da base instrutória).
20) À A. foi ainda ordenado que carregasse com arreios de um burro (resposta ao número 14.º da base instrutória).
21) A A., enquanto durou a sua praxe, esteve triste (resposta ao número 15.º da base instrutória).
22) A A. não se recusou a ser praxada (resposta ao número 19.º da base instrutória).
23) A A. no dia 16/10/2002 comunicou à comissão de praxe a sua vontade de se declarar anti-praxe (resposta ao número 20.º da base instrutória).
24) Em consequência da praxe a que foi sujeita a A. sentiu-se triste e humilhada (resposta ao número 21º da base instrutória).
25) Por causa do referido em 24), a A. teve baixa médica por dez dias (resposta ao número 22.º da base instrutória).
26) Em virtude de tal baixa médica, a A. faltou às aulas como o aludido em F) (resposta ao número 23.º da base instrutória).
27) A A. recomeçou a frequentar as aulas antes de terminar o período de doença fixado no atestado médico, como aludido em F), por não querer perder as aulas (resposta ao número 24.º da base instrutória).
28) Na reunião referida em H), a A. identificou alguns dos alunos que a haviam praxado (resposta ao número 25.º da base instrutória).
29) A praxe no "Campus" Académico de ... estava regulada no documento de fls. 74 a 88, cujo teor aqui se dá por reproduzido (alínea P) dos factos assentes e resposta ao número 36º da base instrutória).
30) Em caso de recusa de praxe, a comissão aplicava as sanções aludidas em tal documento (resposta ao número 37.º da base instrutória).
31) Tal documento estava afixado no "Campus" Académico da R. e era do seu conhecimento (resposta aos números 38º e 39º da base instrutória).
32) A R. conhecia o referido em 29) e 30) (resposta ao número 40.º da base instrutória).
33) A R. não proibia a actividade da praxe (resposta ao número 41.º e 42.º da base instrutória).
34) A R. em 6/01/2003 suspendeu as actividades relacionadas com a praxe (resposta ao número 43.º da base instrutória).
35) A partir de Janeiro de 2003 a A. passou a deslocar-se à escola unicamente para realizar as frequências e exames (resposta ao número 44.º da base instrutória).
36) Em 30 de Janeiro 2003 foram receitados à A. ansiolíticos e antidepressivos, para debelar sintomas ligados a depressão e stress (resposta ao número 45.º da base instrutória).
37) Em consequência da deliberação aludida em M) a A. sentiu-se indignada e revoltada (resposta aos números 47.º e 48.º da base instrutória).
38) Após a deliberação aludida em M), a A. anulou a matrícula (resposta ao número 49.º da base instrutória).
39) A A. só regressou ao ensino superior no ano lectivo 2003/2004, tendo perdido um ano (resposta ao número 50.º da base instrutória).
40) Até há cerca de dois anos os alunos que acabavam o curso de fisioterapia na R. normalmente arranjavam logo emprego e ganhavam em média € 700,00 mensais (resposta aos números 51.º e 52.º da base instrutória).
41) No ano lectivo de 2002/2003, a A. pagou à ré em propinas e taxas moderadoras a quantia de € 2.175,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais (resposta ao número 53.º da base instrutória).
42) Em rendas de Julho de 2002 a Fevereiro de 2003, a A. pagou o montante de € 890,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais (resposta ao número 54.º da base instrutória).
43) A A. pagou em despesas com água, luz e telefone, naquele período, o montante total de € 375,46, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais (resposta ao número 55.º da base instrutória).
44) A A. gastou em material escolar o montante de € 235,21, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais (resposta ao número 56.º da base instrutória).
45) Nas respectivas consultas médicas a que se referem 25) e 36), a A. gastou o montante de € 65,00, que lhe foi entregue para o efeito pelos pais (resposta ao número 57.º da base instrutória).
46) As reuniões referidas em H) e J) foram realizadas pela R. com o intuito de esclarecer os factos relatados pela A. na exposição aludida em G) (resposta ao número 58º da base instrutória).
47) O documento referido em P) estava afixado no placard reservado aos alunos (resposta ao número 59.º da base instrutória).
48) A A. reconheceu e confessou, em depoimento prestado posteriormente à sua denúncia dos factos: que em tempo algum ficou totalmente despida; que quando virou a roupa do avesso estava encoberta por duas ou três capas do traje académico; que talvez tenha sido a falta de informação que a levou a acreditar que teria mesmo que cumprir as ordens dos colegas, nomeadamente a de simular orgasmos com postes de iluminação e com uma planta; não considerar que essas situações fossem feitas com malícia nem com uma carga sexual mas sim com a intenção de brincar com a situação; não considerar que tenha sido abusada sexualmente; que as corridas nos campos de terra se destinavam a ver quem ganhava e que todos os outros caloiros também foram obrigados a rebolar na relva; que a perguntas dos outros colegas sobre se estava triste respondeu que era o impacto do primeiro dia pelo que estes não deveriam ligar; que os colegas lhe afirmaram que tudo o que estavam a fazer era na brincadeira; que quando começou a chorar os colegas mais velhos aguardaram que se acalmasse para depois recomeçarem a praxe; que posteriormente compreendeu que quando lhe perguntaram se era virgem os colegas estavam a referir-se ao signo e que se fosse hoje levaria a pergunta para a brincadeira; que ninguém a violentou sexualmente; que apesar de ter apresentado um atestado médico por dez dias apenas faltou 3 dias por não querer perder as aulas (resposta ao número 62.º da base instrutória).
A Relação considerou (nº 49) o que consta de fls. 32/44 (informação da equipa inspectiva designada pela Inspecção Geral de Educação, Delegação Regional do Norte, para apurar os factos denunciados pela A.), informação que reproduziu parcialmente.
2-3- A recorrente começa a presente revista por mostrar o seu inconformismo sobre a forma como a Relação usou de circunstâncias factuais não inseridos pela 1ª instância nos factos provados, tendo-o feito com a transcrição total de um documento e a transcrição parcial de outros dois, todos constantes nos autos a fls. 29 a 31, 32 a 44 e 74 a 88. A Relação não deu, como não podia dar - porque os documentos em causa não são idóneos para o efeito - como provados os factos constantes dessa documentação, fazendo apenas a sua transcrição total ou parcial. Consequentemente, os factos que são conteúdo desses documentos não se podem considerar como provados nos autos, devendo apenas entender-se como provada a matéria de facto fixada pela 1ª instância e, por desenvolvimento desta efectuado pela Relação, a existência daqueles documentos com aquele conteúdo. Todavia, na prolação do Acórdão recorrido a Relação fundamentou a sua decisão de condenação da R. em muitos dos factos constantes desses documentos. A Relação usou, assim, de forma ilegal para condenar a R., factos que não foram dados como provados em 1ª instância, sendo que ela própria, Relação, não deu como provados esses factos.

Como ponto prévio haverá que esclarecer que os poderes do S.T.J. em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos. Assim, o Supremo só poderá proceder a essa análise/modificação nas limitadas hipóteses contidas nos arts. 722º nº 2, 729º nºs 2 e 3 do C.P.Civil, isto é, quando a decisão das instâncias vá contra disposição expressa da lei que exija certa prova para a existência do facto ou fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada), quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito. De resto, como decorre do disposto no art. 712º nº 6 do C.P.Civil, das decisões da Relação sobre a matéria de facto, não é, em regra, admissível o recurso para o S.T.J. Trata-se, no essencial, de consagrar o princípio de que a competência jurisdicional do Supremo Tribunal se limita à apreciação da matéria de direito, como decorre do art. 26º da Lei 3/99 de 13/1 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) segundo o qual “fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito”.
No caso vertente, a recorrente não defende que existiu por parte da Relação modificação à matéria dada como assente na 1ª instância. O que no seu entender ocorreu é que a Relação procedeu à transcrição total de um documento e parcial de outros dois, não dando, porém, (nem podendo dar) como provados os factos constantes dessa documentação. Pese embora esta circunstância, acabou por fundamentar a sua decisão de condenação da R. em muitos dos factos constantes desses documentos, o que é ilegal.
Verifica-se que, no douto acórdão recorrido, em relação ao nº 7 dos factos acima dados como provados, se introduziu o teor da carta redigida pela A. ao Conselho Executivo da R., cujo teor foi dado como reproduzido nessa parcela. Igualmente no nº 29 dos factos provados e no que toca ao documento aí referido, o aresto exarou parte do conteúdo do documento.
Em relação a este aspecto, nenhuma censura haverá que efectuar, na medida em que a Relação se limitou a reproduzir o que já se continha nas circunstâncias factuais fixadas.
Para além de reproduzir factos já contidos nos ditos números da factualidade assente, a Relação entendeu por bem descrever o que consta de fls. 32 a 44 que constitui uma informação da equipa inspectiva designada pela Inspecção Geral de Educação, Delegação Regional do Norte, para apurar os factos denunciados pela A..
Também aqui, dado que os factos descritos não foram dados como demonstrados, também nenhum juízo de reprovação será de realizar. Apenas ficou exarado o que consta dessa informação.
Mas evidentemente que, nem naquele caso (o teor da carta da A.), nem neste (a dita informação) os factos aí aduzidos podem ser dados como provados. E o certo é que não foram dados como demonstrados, como se verifica compulsando o acórdão e como a própria recorrente reconhece.
Quanto à circunstância de se ter utilizado parte desses factos para fundamentar a decisão de condenação, diremos que isso será ilegítimo, visto que só os factos assentes é que podem justificar uma decisão (arts. 659º nº 3 e 713º nº 2 do C.P.Civil).
Mas, a nosso ver, não estando especificados os pontos em concreto em que isso sucedeu e não vendo nós que qualquer desses factos tenha sido fundamental para a decisão tomada, concluímos não existir razão para censurar a posição da Relação.
Entendemos esclarecer, todavia, que só os factos dados por provados nas instâncias é que serão considerados para a prolação do presente acórdão.
Posto isto, entremos na questão de direito essencial que se debate no processo, que é a de saber se a conduta da R., denunciada pelos factos provados, é susceptível de gerar a sua responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, conforme sustenta a A.. Tudo se reconduzirá, assim, a saber se à A. assiste o direito de exigir da R. a indemnização que pede, a título de responsabilidade civil extracontratual.
Estabelece o art. 483º nº 1 do C.Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Trata-se de responsabilidade extracontratual emergente do acto ilícito. A obrigação de indemnizar funda-se aqui na culpa (mera culpa ou dolo) do agente. De sublinhar que de harmonia com o nº 2 desta disposição “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
Como tem vindo a ser entendido pela doutrina, são elementos constitutivos da responsabilidade civil por factos ilícitos “o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano” (in Noções de Direito Civil, Mário Júlio de Almeida Costa, 2ª edição, pág. 103 e C.Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, 4ª edição, Volume I, pág. 471, Das Obrigações em Geral, Antunes Varela, Vol. I, 9ª edição, pág. 544).
A verificação cumulativa destes requisitos de responsabilidade civil por factos ilícitos gera a obrigação de indemnizar por parte do lesante.
No que respeita ao requisito enunciado em primeiro lugar, o facto voluntário do agente, isto é, facto objectivamente controlável ou dominável pela vontade, pode ser positivo, traduzindo-se numa acção mediante a qual o agente viola um dever jurídico de não intromissão na esfera jurídica de outra pessoa, titular do correspondente direito absoluto, mas também pode ser negativo, traduzindo-se numa abstenção ou numa omissão de um dever jurídico. À frente iremos pronunciar-nos mais detalhadamente sobre a omissão, dado que, no caso vertente, a demandante busca a responsabilidade civil da demandada, essencialmente por acto de omissão desta.
Como decorre do supra-indicado artigo, a ilicitude pode revestir duas modalidades, a violação do direito de outrem e a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
A violação do direito de outrem traduz-se na infracção de um direito subjectivo de outra pessoa. Aqui se abrangem as ofensas aos direitos absolutos, nomeadamente os direitos reais (direitos sobre as coisas), os direitos de personalidade, a propriedade intelectual (direitos de autor e propriedade industrial) e os direitos familiares de eficácia absoluta .
No que toca à ilicitude derivada da violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, “tem-se agora em vista a ofensa de deveres impostos por um norma legal (pode ser, até, um mero regulamento de polícia) dirigida à defesa de interesses particulares, mas de que não derivam quaisquer direitos subjectivos. Todavia, para que esse fundamento de responsabilidade civil possa ser invocado, será necessário que o lesado esteja entre as pessoas cujo interesse a norma violada visa directamente proteger e que o dano se produza de facto no bem juridicamente protegido (1) .
A nosso ver, a modalidade de ilicitude a atender no caso dos autos será a primeira, isto é, a que deriva da violação do direito subjectivo de outrem, designadamente do direito de personalidade (direito à integridade física e moral da A.), como melhor iremos ver à frente.
A culpa abrange duas formas distintas. O dolo e a negligência ou mera culpa. Agir com culpa significa a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito, sendo que o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo(2). Tal juízo assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor.
Não nos iremos alongar sobre a vertente teórica da culpa, por isso se nos afigurar ser escusado. Importante é sublinhar que, nos termos do art. 487º nº 1 do mesmo Código, pertence ao lesado a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção de culpa. Como a culpa constitui elemento integrante do direito à indemnização, é ao lesado que compete a prova da culpa do lesante.
A disposição, porém, prevê excepções. Quando exista presunção de culpa, o ónus da prova inverte-se e assim a prova, ao invés de pertencer ao lesado, compete ao lesante. Será este que terá que demonstrar que não agiu com culpa, o que sucederá, por exemplo, nas situações definidas no art. 493º.
Para que ocorra a obrigação de indemnizar, é condição essencial que ocorra o dano, que se traduz no prejuízo que o facto ilícito culposo causa ao lesado, podendo o dano ser patrimonial ou não patrimonial, consoante seja ou não susceptível de avaliação pecuniária.
No que toca ao nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, estabelece-se no art. 563º do mesmo Código, que “a obrigação só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, estabelecendo-se, assim, legalmente a doutrina da causalidade adequada.
Como refere o Prof. Galvão Telles “a lei reconduz assim a questão da causalidade a uma questão de probabilidade, o que significa aderir à tese da causa adequada, pois esta tese tem esse significado. Causa adequada é justamente aquela que, agravando o risco de produção do prejuízo, o torna mais provável(3).
Debruçando-se sobre a problemática, o Prof. Antunes Varela reconhece que a fórmula legal não é inteiramente feliz no sentido de expressar o pensamento do legislador. “Há, com efeito danos que o lesado muito provavelmente não teria sofrido se não fosse o facto ilícito imputável ao agente e que, no entanto, não podem ser incluídos na obrigação de indemnização, porque isso repugnaria ao pensamento da causalidade adequada que o art. 563º indubitavelmente quis perfilhar(4). O mesmo autor entende que a fórmula legal deve ser interpretada “no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito…” (in Código Civil Anotado referido, pág. 579).
Quer dizer, segundo a teoria da causalidade adequada, para que um facto seja causa de um dano é necessário, por um lado, que no plano naturalístico, ele seja condição (directa ou indirecta), sem a qual o dano não se teria verificado e, por outro, que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo.
Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 13-3-2008 (in www.djsi.pt/jstj.nsf), evidenciando o princípio da causalidade numa formulação negativa e mais vasta “o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis” (vide ainda no mesmo sentido os arestos indicados nesse acórdão).
No mesmo sentido e sustentando que a doutrina da causalidade adequada, no que toca à responsabilidade por facto ilícito culposo – contratual ou extracontratual - se deve interpretar de uma forma mais ampla, com o sentido de que “o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais”, decidiu o acórdão deste S.T.J. de 20-10-2005 (in www.djsi.pt/jstj.nsf).
Ainda no sentido de uma formulação mais ampla da teoria da causalidade adequada, escreve o Prof. Antunes Varela que “para outros, partidários de uma formulação mais ampla, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgultig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto(5).
Quer dizer, segundo a doutrina que entende de forma mais ampla a teoria da causalidade adequada, desde que exista uma relação de causa/efeito entre o facto e o dano, este só deixará de ser entendido causa adequada daquele, se se mostrar de todo alheio à verificação dele, tendo-o provocado apenas por circunstâncias absolutamente anormais, extraordinárias ou anómalas.
De notar ainda que a teoria da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano. A este propósito sustenta o Prof. Antunes Varela que “o facto seja condição do dano será requisito necessário; mas não é requisito suficiente, para que possa ser considerado como causa desse dano (6) .
Postas estas breves noções teóricas, vejamos o caso vertente.
Para envolver a questão em termos adequados, interessará apreciar os fundamentos que a A. utiliza para deduzir o seu pedido.
A A. alega que a R. é uma cooperativa de ensino cujo objecto é o acima indicado. A A. matriculou-se na Escola Superior de ... e no dia 14-10-2002 e no dia seguinte foi submetida, dentro das instalações da escola, a diversas praxes vexatórias e humilhantes. A 3-12-2002 a A. foi convocada para uma reunião pela Direcção da Escola, reunião que descreve e que foi traumatizante para si, pois deixou-a psicologicamente arrasada. Os seus direitos de personalidade foram ofendidos pelos órgãos da direcção da escola, sendo que o seu direito à integridade moral foi violado pela R., através dos seus órgãos, ao ser promovida uma reunião entre a Comissão da Praxe, devidamente trajada, alunos praticantes da praxe e a A., completamente desprotegida, já que nem sequer foi permitida a presença do seu pai. As práticas humilhantes da praxe a que foi submetida, foram-no porque a R. assim o permitiu. É que nunca se opôs a tais práticas, permitindo que vigorasse um regulamento da Comissão de Praxe no interior das suas instalações. O facto de a R. nunca se ter oposto ao dito regulamento da Comissão da Praxe, discordando dele claramente, conferiu aos membros da Comissão da Praxe ampla liberdade no tocante às práticas levadas a cabo. O cometimento de facto ilícito pela R. consistiu em que vigorasse um Regulamento de Praxe que violava os estatutos da R. e todos os princípios basilares de integração no ensino superior de alunos, tendo permitido aos alunos mais velhos que levassem a cabo as práticas da praxe a que foi sujeita. Recebeu da parte da R. uma repreensão escrita, tendo anulado, por isso, a matrícula na escola. Toda a conduta da R. lhe originou os danos que indica.
Quer dizer, a A. fundamenta o seu pedido de ressarcimento dos danos não patrimoniais e patrimoniais, que diz ter sofrido, no facto de a R. ter promovido uma reunião que a traumatizou e arrasou psicologicamente, na circunstância de ter sido submetida a praxes humilhantes nas instalações da R., sendo que esta nunca se opôs a tais práticas, permitindo que vigorasse o regulamento da Comissão de Praxe no interior das suas instalações e no facto de ter anulado a matrícula na sequência da repreensão escrita que lhe foi aplicada pela R..
Como acima já se revelou, a pretensão da A. enquadra-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos. A promoção da reunião que a traumatizou e a anulação da matrícula em razão da sanção aplicada pela R. ajusta-se à prática de actos ou acções, enquanto que nos actos de praxe (cerne da questão) não está em causa, patentemente, um facto positivo ou um comportamento activo por parte da R. (7), mas sim um eventual facto negativo ou um comportamento passivo ou omissivo por parte dela. Este comportamento omissivo terá consistido, no dizer da A., em nunca a R. se ter oposto às práticas da praxe, permitindo que vigorasse o regulamento da Comissão de Praxe no interior das suas instalações. Mas também, a nosso ver, idêntica acção omissiva poderá retirar-se do facto de a R. ter permitido, por ausência de acção, que a A. fosse sujeita a ofensas à sua integridade física e moral dentro das suas instalações.
A omissão, traduzindo-se numa atitude passiva de inacção, não pode gerar material e directamente o dano sofrido pelo lesado. Porém, entende-se que “a omissão é causa de dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente teria impedido a consumação do dano”(8).
Em relação à omissão, estabelece o art. 486º que “as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar danos, quando independentemente de outros requisitos, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido”.
Face a esta disposição, parece-nos lícito concluir que, para que haja lugar à indemnização, será necessário que exista obrigação de praticar o acto omitido. A obrigação de agir pode resultar directamente da lei ou pode ter fonte negocial. Será necessário, outrossim, que ocorra entre o acto omitido e o dano um nexo de causalidade (9).
Como refere Pedro Pitta Nunes de Carvalho “a referência à lei como fonte de dever jurídico de agir não deve ser interpretada como designando restritivamente a lei civil, deve, pelo contrário, ser entendida no sentido amplo de ordem jurídica”(10) . Como refere o mesmo autor esta posição é aceite pacificamente pelos civilistas.
O art. 486º é algo restrito pois, como se viu, as omissões só geram a responsabilidade civil, desde que, para além de outros pressupostos legais, exista o dever jurídico da prática do acto omitido. Por isso, o Prof. Almeida Costa opina no sentido de que o artigo abranja outras situações (11). No mesmo sentido parece entender Menezes Cordeiro, como sublinha Pedro Pitta Nunes de Carvalho, que diz: “ O problema que se deve pôr é outro e resulta da questão de saber quando é que, face a determinado dano iminente, existe por parte das pessoas que possam intervir, a obrigação de o evitar ou, pelo menos, de desenvolver, nesse sentido um esforço razoável. A resposta não pode ser dada em geral, uma vez que não existe qualquer norma explícita num sentido ou noutro”. A solução, segundo o mesmo autor, será dada casuisticamente “à luz das norma jurídicas aplicáveis e no espírito dado pela boa fé, à colaboração intersubjectiva que deve reinar no espaço jurídico”, concluindo pela existência do dever jurídico fundado na boa fé “nos casos limites – em que, por exemplo, um dano máximo pode ser evitado, com o esforço mínimo” (12).
Parece-nos ser aceitável esta posição, devendo orientar-se a jurisprudência pelo caso concreto, não perdendo nunca de vista os princípios da boa fé e como refere Menezes Cordeiro, com a “colaboração intersubjectiva que deve reinar no espaço jurídico”.
Posto isto, voltemos ao caso concreto.
Como se disse, a A. fundamenta o comportamento omissivo da R. no facto desta nunca se ter oposto às práticas das praxes, permitindo que vigorasse o regulamento da Comissão de Praxe no interior das suas instalações
Claro que o entendimento perfilhado pela A. em relação à acção omissiva da R. parte do pressuposto que esta conhecia o regulamento da praxe e que esse regulamento continha praxes humilhantes e vexatórias para os alvos ou objectos dele. Só assim se compreenderia que a R. tomasse a iniciativa de se opor a tais praxes.
Quanto ao conhecimento do regulamento, as instâncias deram como provado esse conhecimento. No que toca ao facto de o regulamento conter praxes humilhantes e vexatórias dos direitos de personalidade dos visados, existe controvérsia. Com efeito, em relação a esta questão as instâncias tiveram posição divergente. Assim, na 1ª instância disse-se que “procedendo à leitura desse documento não se pode dizer que o mesmo permitia actos de praxe lesivos ou desrespeitadores dos direitos, liberdades e garantias dos alunos, nem do seu teor é possível conjecturar que o mesmo levaria à prática de actos de praxe lesivos ou desrespeitadores dos direitos, liberdades e garantias dos alunos. Pelo contrário, na medida em que tal documento expressamente encerra uma disposição relativa a proibições em praxe, figurando entre elas os actos de praxe que atentem contra a moral e a integridade física do aluno (artigo 32.º) – é aqui de referir, em face do que já se disse e do mais que se dirá, que não cabe no âmbito desta acção apreciar da bondade global do documento, designadamente quanto às sanções nele previstas em caso de recusa de praxe, porquanto esse é um problema que ultrapassa o que está em causa na acção e que são os concretos actos de praxe a que a autora foi sujeita”. Isto é, não se viu no regulamento práticas de praxe lesivos ou desrespeitadores dos direitos, liberdades e garantias dos alunos. Já no douto acórdão recorrido referiu-se que “estava a Ré obrigada a fazer eliminar do regulamento da praxe destinado a ser utilizado no seu estabelecimento de ensino, as expressões e sugestões ofensivas e ameaçadoras, nele contidas e já referidas, o que não fez”. Ou seja, segundo o acórdão recorrido, a R. estava obrigada a agir eliminando do regulamento os ditos elementos.

Compulsando tal regulamento, somos em crer que comporta nele componentes que indiciam procedimentos constrangedores e coactivos que podem levar ao exercício de violência sobre os alunos. Estamos a referir-nos, principalmente, às designações de “vermes”, “caloiros” e “bostas” (art. 14º) e às restrições coactivas que, impostas aos “bostas” (os que recusam a praxe) e aos caloiros (art. 20º), são claramente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos visados, sendo que, como se sabe, a Constituição da República Portuguesa assegura essas prerrogativas a todos os cidadãos deste país (arts. 24º e segs. da Constituição). Claro que com isto não se quer negar a possibilidade de as diversas universidades do país terem e exercerem as suas praxes, onde alguma irreverência será até aceitável. Não se vai tão longe. O que não será admissível é que com essas praxes se venham a exercer violências físicas e morais sobre alunos, designadamente sobre os mais desprotegidos (os que se aprestam a frequentar o 1º ano), para gozo e júbilo de alguns e sofrimento (moral e físico) dos atingidos, os mais fracos.
Portanto, somos em crer que aquelas expressões, juntamente com as ditas restrições coactivas, eram presságio de exercício de violências sobre os visados.
No douto acórdão recorrido sobre o dever de agir, disse-se que a R., enquanto estabelecimento autorizado de ensino superior, está vinculado a um quadro de valores destinados ao desenvolvimento da pessoa humana. Tem, por isso, o dever específico de respeitar, fazer respeitar e promover direitos fundamentais, como o respeito mútuo, a liberdade, a solidariedade, a dignidade da pessoa humana. Assim, estava a R. obrigada a fazer eliminar do regulamento da praxe destinado a ser utilizado no seu estabelecimento, as expressões e sugestões ofensivas e ameaçadoras nele contidas, o que não fez.
Quer dizer, segundo o aresto recorrido, dado o quadro de valores humanos que lhe cabia fazer respeitar, a R. tinha o dever jurídico de eliminar do regulamento da praxe as expressões e sugestões nele contidas.
A recorrente discorda deste entendimento, afirmando que o acórdão recorrido não diz expressa ou tacitamente qual a norma ou o princípio jurídico que impunha à R. um certo tipo de comportamento activo, designadamente de regulamentar e/ou proibir as praxes académicas na sua Escola. Ou seja, o acórdão recorrido não menciona a concreta norma jurídica que lhe impõe o dever de praticar o acto omitido.

Não podemos aceitar este entendimento já que, sendo a R. um estabelecimento de ensino superior, deverá, por essência, promover os valores humanos, para além de ministrar, fomentar e impulsionar os conhecimentos científicos. Neste sentido estabelece o art. 6º nº 2 do Dec-Lei 16/94 de 22/1 (que aprova o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo) (13) que “as universidades são centros de criação, transmissão e difusão de cultura, da ciência e da tecnologia que através da articulação do estudo, da docência e da investigação, se integram na vida da sociedade e que prosseguem os fins enunciados no nº 2 do art. 1º da Lei 108/88 de 29 de Setembro”. Por sua vez esta norma (nº 2 do art. 1º da Lei 108/88 (14) estabelece serem fins das universidades: “a) A formação humana, cultural, científica e técnica; b) A realização de investigação fundamental e aplicada; c) A prestação de serviços à comunidade, numa perspectiva de valorização recíproca…” (15). Do próprio contrato de constituição da R. consta, no seu art. 3º, que a cooperativa (Instituto Piaget) tem como objecto social “desenvolver estruturas educativas sociais, assistenciais, de investigação culturais e laborais bem com todas as demais … a fim de participar de forma activa no desenvolvimento humano, integral e ecológico, dos diferentes grupos etários e sociais em cada sociedade e das diferentes etnias, comunidades e povos”. No art. 4º nº 1 do mesmo contrato exarou-se que “a Cooperativa tem como fim participar, de forma activa e inovadora, no esforço de desenvolvimento humano, integral e ecológico, dos diferentes grupos etários e sociais, em cada sociedade e das diferentes etnias, comunidades e povos”. Acrescenta o nº 2 da disposição que “para a prossecução desta finalidade, orientar-se-á de acordo com os seguintes princípios: a) Assumir os princípios e normas decorrentes de convenções sobre os direitos do homem, os direitos da criança, os direitos das minorias e marginalizados, os direitos dos deficientes; b)Assumir a promoção e defesa de um conceito e prática social do desenvolvimento no sentido do desenvolvimento integral, diversificador, ecológico, humanista e criativo de indivíduos e grupos …” (in Suplemento do Diário da República, III Série, de 28 de Setembro de 2000).

Deverá, assim em relação ao objectivo de promoção dos valores humanos (a que está obrigada face às normas evidenciadas), impulsionar o dever de respeito dos direitos fundamentais do homem, acautelando que esses direitos, designadamente os direitos de personalidade de uma pessoa, não sejam ofendidos. Estes direitos são tutelados por lei, como resulta do disposto no art. 70º nº 1 do C.Civil que estabelece que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. Os direitos de personalidade (onde se devem inscrever o direito à integridade física e moral de uma pessoa) pertencem à categoria de direitos absolutos, como direitos de exclusão, oponíveis a todos, que os têm de respeitar.

Somos em crer que em consonância com o dito objectivo, tinha a R. o dever jurídico e social de agir para impedir que um regulamento de praxe de alunos seus, nas suas instalações, pudesse vir a ser veículo de violação de direitos de personalidade de outros seus estudantes. De forma alguma se poderia entender a omissão da R. perante um regulamento que contivesse práticas de praxe claramente atentatórias dos direitos de personalidade dos seus alunos. Exigências determinadas pelas normas indicadas e de autoridade inerentes à sua condição e até de solidariedade impunham que agisse, procedendo no sentido de tornar inócuo em tal regulamento esses atentatórios procedimentos. A R. deveria intervir de forma a regular e promover práticas sãs de boas-vindas aos novos alunos. O próprio nº 2 do referido art. 70º(16), analogicamente aplicado, coagia a essa acção, com o evidente objectivo de evitar que os alunos ameaçados por esse regulamento (17) viessem a sofrer as ofensas anunciadas.
Estará aqui em causa a obrigação de agir, derivada directamente dos ditos normativos legais.
Além disso e por outro lado, estando em causa uma aluna que se matriculou (e pagou as respectiva propinas) para frequentar o curso em questão ministrado pela R. nas suas instalações, esta deveria, para além de proporcionar os ensinamentos científicos apropriados, providenciar para que nada de mal lhe pudesse acontecer nas suas instalações. A título de exemplo, deveria promover a boa conservação dos edifícios para evitar que o tecto pudesse cair sobre a aluna e seus companheiros. Do mesmo modo, a nosso ver, deveria diligenciar para que dentro das suas instalações a integridade física e moral dos estudantes não fosse violada, através de práticas sobre eles de violência corporal e de crueldade espiritual. Esta diligência deveria ser até premente no início do ano escolar (18), quando, como é sabido, se exercem procedimentos de praxe, mais das vezes consistindo em sevícias humanamente inadmissíveis, à semelhança do que sucedeu no caso dos autos, como adiante mais particularmente sublinharemos. Aqui o dever de agir derivaria de fonte negocial.
Tudo isto serve para dizer que a R. deveria ter actuado no caso concreto, não propriamente para retirar actos concretos de praxe constantes do regulamento (19), mas para tornar inócuas, nesse regulamento, as expressões ofensivas e ameaçadoras nele contidas de direitos de personalidade de alunos seus, assim como afastar a carga coactiva incidente contra os estudantes que se recusassem a ser submetidos à praxe. Igualmente incumbia à R., nas suas instalações, em virtude da do contrato que celebrou, providenciar pela segurança e bem-estar dos alunos, protegendo-os de violações à sua integridade física ou moral.
De resto, a R. terá sentido a necessidade de proceder a essa eliminação, pois provou-se que pouco tempo depois dos factos em causa, em 6/01/2003, suspendeu as actividades relacionadas com a praxe (facto nº 34 acima referenciado), circunstância que servirá também para indiciar a faculdade e competência da R. para intervir em tais práticas. Terá, então, reconhecido que procedimentos da praxe praticada pelos alunos mais antigos da escola atentavam contra valores de liberdade e dignidade humanas dos que estavam a chegar.

Sustenta a recorrente que não existe qualquer nexo de causalidade entre o código da praxe com o seu conteúdo e o actos de praxe que em concreto foram praticados sobre a A..

Como se disse acima, aderindo-se à doutrina mais ampla da teoria da causalidade adequada, deve entender-se que quando exista uma relação de causa/efeito entre o facto e o dano, este só deixará de ser entendido causa adequada daquele, se se mostrar de todo alheio à verificação dele, tendo-o provocado apenas por circunstâncias absolutamente anormais, extraordinárias ou anómalas.
À questão levantada pela recorrente, já acima respondemos parcialmente. A R. deveria ter actuado no sentido de tornar inócuas, no regulamento da praxe, expressões sugestivas e propiciadoras de práticas atentatórias de direitos de personalidade de alunos seus, assim como proceder para afastar a carga coactiva incidente contra os estudantes que se recusassem a ser submetidos à praxe. Igualmente a R. deveria, nas suas instalações, em virtude do contrato que celebrou, providenciar pela segurança e bem-estar dos alunos, protegendo-os de violações à sua integridade física ou moral. Ao omitir esses deveres, originou que a A. fosse lesada na sua personalidade, provocando-lhe danos no âmbito patrimonial e não patrimonial. Caso actuasse na forma preconizada, a A., muito provavelmente não teria sofrido os danos que sofreu.
Ao abrigo do regulamento da praxe, nas instalações da R., foram exercidos sobre a A. os actos acima referenciados, designadamente foi-lhe ordenado que vestisse do avesso a roupa da cintura para cima e que colocasse o soutien do lado de fora da roupa, tendo tal mudança da posição da roupa e do soutien sido feita resguardada de olhares alheios, na casa de banho. Foi-lhe ainda determinado que simulasse orgasmos com um poste de iluminação, que rebolasse na relva, que carregasse com arreios de um burro, sendo que enquanto durou a sua praxe, a A. esteve triste (factos acima referidos sob os nºs 17 a 21).
Evidentemente que este acto de simulação de orgasmos além de vexatório, atentou contra o recato, intimidade e moral sexual da A., tendo sido claramente violentada na sua sexualidade. Os outros actos, principalmente o rebolar na relva e a aposição de arreios de burros (para claro gáudio dos presentes), revestiram para a A. uma evidente humilhação, estando todos os procedimentos praticados envolvidos de uma evidente carga de coação que o regulamento da praxe claramente induz. Daí, apesar de a A. se encontrar triste e notoriamente contrariada, se ter deixado submeter a tais praxes, sujeição justificada quiçá para evitar a discriminação e segregação a que seria sujeita se se recusasse a aderir a tais práticas. Veja-se, por exemplo, que os estudantes que se recusassem a submeter-se à praxe, para além de serem denominados depreciativamente de “bostas”, não poderiam utilizar o traje académico nem poderiam participar em qualquer actividade académica, como simples festas, reuniões ou conferências (vide o regulamento da praxe a fls. 79 e 82). Quem fez o regulamento da praxe e quem realizou os actos de praxe indicados, beneficiou, nitidamente, da posição de supremacia e preponderância que a sua antiguidade e a sua anterior integração na escola propiciaram, em relação e em detrimento dos que estavam a entrar na escola.

Os procedimentos infligidos nada têm com práticas salutares de boas-vindas aos novos alunos que uma praxe académica deveria prosseguir, mesmo aceitando-se que nela pudessem constar alguns procedimentos irreverentes, próprios da juventude. Irreverência não se deve, porém, confundir com práticas vexatórias, grosseiras, ordinárias, imorais e agressivas atentatórias da integridade física e moral do visado pela praxe. Como com propriedade se refere no acórdão recorrido “para quem sai da casa para frequentar um curso superior, estes são tempos novos de muita esperança, mas igualmente de muita ansiedade. Quem chega espera ser acolhido de forma amigável, deseja ver facilitada a sua integração. E ninguém estaria em melhores condições para o fazer que os colegas “doutores” com experiência acumulada”.
Sem qualquer dúvida poderemos afirmar que com os actos de praxe que lhe foram aplicados e de que se deu conta, a A. sofreu danos de ordem moral (20).
Como se viu acima, a A. fundamenta também o seu pedido de ressarcimento pelos prejuízos que sofreu, pelo facto de a R. ter promovido uma reunião que a traumatizou e arrasou psicologicamente.
Aqui, a responsabilidade civil que a A. invoca fundamenta-se, já não num acto omissivo por banda da A., mas sim numa acção. Segundo a A., com a reunião que a R. promoveu, provocou-lhe danos de âmbito psicológico.
Provou-se, em relação ao assunto, que no dia 3/12/2002, a A. foi convocada para uma reunião, tendo-se apresentado nessa reunião acompanhada do pai, cuja presença não foi admitida pela R.. Na reunião encontravam-se presentes a directora da escola, Dra. ..., a coordenadora do curso de fisioterapia, os alunos identificados pela A. como sendo os praticantes da praxe a que teria sido sujeita e toda a comissão de praxe, sendo que todos os alunos presentes, excepto a A., ostentaram o traje académico, tendo tal reunião demorado três horas.
Tendo-se provado, em relação à questão, apenas esta circunstância factual, mas não se tendo demonstrado que a reunião serviu unicamente para humilhar a A. e incutir-lhe medo e para a deixar psicologicamente arrasada (vide respostas negativas aos quesitos 26º a 35º), é evidente que nessa parte não se prova que dessa reunião tivessem resultados danos psicológicos para a A..
Parece-nos, assim, que as considerações que se fazem no douto acórdão recorrido, designadamente sobre a inferioridade psicológica a que a A. foi submetida nessa reunião e sobre o efeito intimidador e constrangedor sobre a sua liberdade resultante do evento, se possam ter como demonstradas. Mas mesmo que se pudesse aceitar (e não se pode, porque os factos provados não o permitem) que a reunião, atendendo à forma como se realizou, foi intimidadora e constrangedora para a A., não se provando qualquer consequência danosa decorrente para ela, não estaria integrado um dos elementos essenciais da obrigação de indemnizar, o dano.
É certo que se demonstrou que a A. teve baixa médica por dez dias e que em virtude de tal baixa médica, faltou às aulas e que em 30 de Janeiro 2003 foram-lhe receitados ansiolíticos e antidepressivos, para debelar sintomas ligados a depressão e stress. Contudo, estas nefastas consequências devem ser relacionadas, como resulta das respectivas respostas aos quesitos, da acção da praxe a que foi a A. submetida e não de qualquer outra causa.
A A. fundamenta ainda o seu pedido de ressarcimento pelos danos que sofreu, no facto de ter anulado a matrícula na sequência da repreensão escrita que lhe foi aplicada pela R..
Sobre o assunto provou-se que por deliberação da Direcção da Escola Superior de Saúde, com data de 23/01/2003, foi aplicada à A. a seguinte sanção: “repreensão escrita à aluna, pela forma subjectiva excessiva como relatou os factos, que sabia não terem a gravidade que decorre da sua exposição, tal como ela própria reconheceu. No entanto, considerando a atenuante de ter apresentado os acontecimentos aos órgãos (Direcção) da Escola, esta sanção não fica sujeita a registo”. Em consequência desta deliberação, a A. sentiu-se indignada e revoltada. Em 26/02/2003, a A. anulou a matrícula.
Na base instrutória, atendendo aos factos que a A. alegou nesse sentido, introduziu-se que se “em consequência da deliberação aludida em M) a A. se sentiu humilhada e vexada”, “sentindo-se exposta ao ridículo”, “e foi por causa disso que a A. anulou a matrícula” (factos nºs 47º, 48º e 49º), respondeu-se que “provado que em consequência da deliberação aludida em M) a A. se sentiu indignada e revoltada” (respostas aos quesitos 47º e 48º) e que “após a deliberação aludida em M), a A. anulou a matrícula” (resposta ao quesito 49º).
Face à forma como se respondeu a estes quesitos, somos em crer que não ficou demonstrado que a anulação da matrícula se tenha ficado a dever a essa deliberação. É que a resposta restritiva ao quesito 49º (onde se perguntava, repete-se, se havia sido por causa da dita deliberação que a A. havia anulado a matrícula) inculca no sentido de se ter como excluída uma relação de causa/efeito entre as duas circunstâncias.
Por outro lado, não nos parece que os factos provados denunciem a ilicitude por parte da R. ao proferir a deliberação em causa, já que, como correctamente, se refere na douta sentença de 1ª instância “porquanto gozando a mesma (a R.) de autonomia em diversas áreas, designadamente na área disciplinar, a referida deliberação foi por ela tomada no exercício das suas competências, concretamente no uso do seu direito de exercer a acção disciplinar, depois da averiguação dos factos a que procedeu, no âmbito do processo de inquérito e disciplinar que instaurou na sequência dos factos relatados pela autora na já citada carta/exposição que esta lhe dirigiu”.
De resto, não se conformando com tal deliberação sempre a A. a poderia impugnar hierárquica ou contenciosamente, sendo certo que não nos compete aqui e agora sindicar a legalidade e justeza de tal resolução.
Ainda a este propósito diga-se que se provou que a A. reconheceu e confessou ter existido da sua parte um certo empolamento das práticas de praxe a que foi submetida, como os factos acima referenciados sob o nº 48 indiciam. Daí a justificação usada para tal deliberação.
Quer isto dizer que também com este fundamento não será possível atribuir à R. a obrigação de indemnizar a A..
Por conseguinte, a responsabilidade civil por factos ilícitos que a A. pretende exercer contra a R., deve, assim, buscar-se (apenas) no acto omissivo a que acima já nos referimos.
Provou-se que a partir de Janeiro de 2003 a A. passou a deslocar-se à escola unicamente para realizar as frequências e exames, em 30 de Janeiro 2003 foram receitados à A. ansiolíticos e antidepressivos, para debelar sintomas ligados a depressão e stress e que a A., após anular a matrícula (21). só regressou ao ensino superior no ano lectivo 2003/2004, tendo perdido um ano. Realizou os gastos que os factos acima referenciados indicam. Sublinhe-se que estes gastos foram realizados por si e não, como sustenta, a recorrente pelos seus pais. É que se provou que o dinheiro lhe foi entregue pelos seus pais, o que denuncia uma situação de doação destes a favor dela, filha, o que aliás constitui uma situação habitual e corrente. Além disso, a A. sofreu psicologicamente ao ser objecto da praxe. Daí o ter-se sentido triste e humilhada, durante esse período.
Estes factos denunciam que a A. sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais. Aqueles, derivados de ter perdido um ano lectivo e consequentemente ter entrado um ano mais tarde no mercado de trabalho e além disso, ter efectuado despesas sem retorno. Estes, derivados do sofrimento psicológico que a praxe a que foi submetida desencadeou.
Existe nexo de causalidade entre o comportamento omissivo da R. acima já referenciado que originou a que à A. fossem aplicadas as práticas violadoras dos seus direitos de personalidade e os danos de ordem material e moral sofridos por esta.
Está, assim, a R. obrigada a indemnizar a A..
Na Relação computaram-se os danos patrimoniais em 13.540,67 € (danos emergentes de 3.740,67 € e lucros cessantes de 9.800 €) e os danos não patrimoniais em 25.000 €.
A recorrente sustenta que não pode ser responsabilizada pelos danos reclamados pela A. porque esta não provou, como lhe competia, que se não tivesse anulado a matricula e tivesse continuado os estudos na Escola da R. teria concluído o curso no ano lectivo inicialmente projectado. Também não provou que mesmo que tivesse concluído o curso no ano inicialmente projectado teria logo emprego certo com ordenado concreto.
De modo muito liminar e sumário diremos que estas objecções não têm cabimento dados os factos que se provaram nesse âmbito e que acima referenciámos. Além disso, sem dúvidas apreciáveis, poderemos dizer que terminar um curso no ano projectado e começar a trabalhar logo de seguida é algo que não é inconcebível ou surpreendente, constituindo antes algo plausível e provável, tanto mais que se demonstrou que há cerca de dois anos os alunos que concluíam o curso na Escola da R. arranjavam normalmente emprego com um vencimento mensal médio de 700,00 €.
A recorrente questiona também o valor atribuído aos danos, considerando pecarem por excesso. Defende que mesmo que, a existir lugar a indemnização por tais prejuízos, eles nunca deveriam ser computados em montante superior a 3.000,00 €, sendo do 2.500,00 pelos actos de praxe a que a A. foi submetida e 500 € pelas consequências da reunião relatada.
No que toca aos danos patrimoniais sofridos, parece-nos terem sido arbitrados correctamente, atendendo aos factos provados.

Igualmente no respeita aos danos não patrimoniais parece-nos terem sido fixados de forma criteriosa e equilibrada, dadas as consequências gravosas e vexatórias resultantes para a A. a nível psíquico, remetendo-se para as demais considerações que sobre a matéria se fazem no douto acórdão recorrido.

Quanto aos juros moratórios defende a recorrente que o acórdão recorrido fez uma errada interpretação da lei, atendendo a que os juros referentes aos lucros cessantes só poderiam ser contados partir do mês em que se verificasse a falta de ganho concreto e efectivo, sobre o ordenado apurado contagem essa a fazer mês a mês. Já no que concerne aos danos não patrimoniais, só darão lugar a juros após a fixação do montante indemnizatório, motivo porque a R. só poderia ser condenada a pagá-los a partir da data em que foi notificada do acórdão recorrido.

Começando por esta parte diremos que a recorrente tem razão, dado que na senda do acórdão uniformizador deste STJ nº 4/2002 de 9-5-02, publicado no DR 1ª série A de 26-6-02 (22), doutrina que não vemos razão para alterar, os juros relativos a quantias fixadas a título de danos não patrimoniais, devem contabilizados a partir da decisão (actualizadora) que os fixou e não a partir da citação. Serão, pois, devidos, juros moratórios, em relação à indemnização pelos danos não patrimoniais, a partir da data da decisão que os fixou (o acórdão da Relação) e não desde a citação, pelo que a decisão a proferir será deste teor.
Já no que toca aos impropriamente chamados lucros cessantes a condenação em juros desde a citação justifica-se dado que na altura da propositura da acção (15-9-2005 fls-1), os mesmos já se tinham verificado, sendo certo que se trata de responsabilidade por facto ilícito (art. 805º nº 3)
Em síntese:
A R., em virtude do acto omissivo que teve, incorreu em responsabilidade civil por factos ilícitos e consequentemente fica condenada a pagar à A., as quantias de 13.540,67 € a título de danos patrimoniais e de 25.000 € a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros legais desde a citação sobre aquela quantia e da prolação do acórdão da Relação sobre esta importância, até efectivo e integral pagamento.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, dá-se parcial provimento à revista, julgando-se parcialmente procedente a acção condenando-se a R. a pagar à A. a quantia de 38.540,67 €, acrescida dos juros legais, desde a citação sobre a quantia de 13.540,67 € e desde a prolação do acórdão da Relação sobre o montante de 25.000 €.
Custas na acção e na revista por ambas as partes na proporção dos respectivos vencimentos.

Lisboa, 25 de Junho de 2009

Garcia Calejo (relator)
Helder Roque
Sebastião Póvoas

___________________________
(1) Vide C.Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, 4ª edição, Vol. I, pág. 472.
(2) Noções de Direito Civil, Mário Júlio de Almeida Costa, 2ª edição, pág. 104
Vide mesma obra pág. 104 e 105 e ainda Antunes Varela in Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª edição, pág. 554.
Antunes Varela, Obra citada, pág. 587.
(3) Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 409.
(4) Obra citada, págs. 928 e 929.
(5) Obra citada, págs. 919 e 920.
(6) Obra citada, pág. 918
(7) Visto que os actos de praxe a que a A. foi sujeita não foram praticados pela R., como a própria A. afirma, sendo certo também que nem sequer foi dito que os mesmos foram praticados com conhecimento e permissão da R.
(8) Antunes Varela, obra citada, pág. 546.
(9) Vide a este propósito o C.Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, Vol. I, pág. 487, 4ª edição e o Acórdão desde STJ de 2-5-2002 in www.dgsi.pt/jstj.nsf
(10) in Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, pág. 144.
(11) Direito das Obrigações, pág. 366
(12) Obra citada, pág. 168.
(13) Note-se que, como se provou, a R. é uma Cooperativa de Ensino Superior (vide facto provado nº 1).
(14)Lei que estabelece a autonomia das universidades.
(15)Tanto a Lei 108/88 de 29/9 como o Dec-Lei 16/94 de 22/1, vigoravam à data dos factos dos autos, tendo, porém, já sido revogados pela Lei 62/2007 de 10 de Setembro.
(16) Disposição que estabelece que “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.
(17)Designadamente os “caloiros”
(18) No próprio regulamento se refere que o período da praxe se exerce logo no início do ano lectivo (art. 17º)
(19) Não seria, de qualquer modo, inadequado providenciar por se retirar do regulamento, por exemplo o art. 30º em que se “aconselha” “aos excelentíssimos doutores”, sendo o caloiro uma “besta”, “asno”, “quadrúpede”, jumento” ou pedaço de “asno”, que a posição que melhor se adequa à sua condição “é de quatro com os cascos dianteiros assentes no chão”.
(20) E também de ordem patrimonial, como iremos ver à frente.
(21) Pese embora se não tenha provado que a A. anulou a matrícula na sequência da dita deliberação, o certo é que se deve ver essa anulação num processo evolutivo psicológico que se iniciou com a prática da praxe e que terminou precisamente com esse acto. Por isso, é incorrecta a conclusão da recorrente segundo a qual não se deve ver a anulação da matrícula como derivado de qualquer acto seu.
(22) Este acórdão fixou a seguinte jurisprudência: “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do art. 566º do C.Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos arts. 805º nº 3 interpretado restritivamente) e 806º nº 1 também do C.Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.