Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4302
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA DA SILVA
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DIREITOS DO CONSUMIDOR
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200801240043022
Data do Acordão: 01/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Na hipótese de compra e venda de coisa defeituosa, os direitos à reparação ou à substituição, contemplados nos artºs 914º do CC e 12º nº 1 da Lei nº 24/96, de 31 de Julho (redacção anterior), não constituem paradigma de concorrência electiva de pretensões, não absoluta, embora, por acontecer eticização da escolha do comprador através do princípio da boa fé, antes tais díspares meios jurídicos facultados a quem compra, no caso predito, não podendo ser exercidos em alternativa, por subordinados, antes, estarem a uma espécie de sequência lógica : o vendedor, em primeiro lugar, está adstrito a eliminar o defeito, tão só ficando obrigado à substituição, a antolhar-se como não possível, ou demasiado onerosa, a reparação.

II - O artº 12º nº 1 da Lei nº 24/96 (redacção do DL nº 67/03, de 8 de Abril) não contempla hipótese de responsabilidade objectiva, o direito à indemnização repousante no em tal normativo vazado só tendo lugar se o (re)vendedor final não provar que o incumprimento perfeito da obrigação não procede de culpa sua (artº 799º do CC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. 1. Instalou AA revista do acórdão do TRP, de 07-06-18, com o teor que ressuma de fls. 951 a 988, decisão essa que:
a) Negou provimento ao agravo interposto por "Empresa-A, S.A.", sociedade comercial esta que, tal-qualmente "Empresa-B, S.A.", viu a ré, "Empresa-C, S.A.", na contestação, requerer a sua intervenção acessória, deferido tendo sido o chamamento.
b) Concedeu parcial provimento às apelações da ré e intervenientes, tão só condenando a demandada a pagar à autora, a título de indemnização por danos não patrimoniais, 2.500 euros, quando, na sentença apelada, como decorrência de decretada parcial procedência da acção, fora a "Empresa-C, S.A.":
1'. Condenada "a substituir o veículo marca Peugeot 307, de matrícula TH, que vendeu à Autora AA, por outro de igual marca, nos termos dos art.s 921º do Código Civil e 12º da Lei 24/96, e ainda a pagar à mesma A. a quantia de 5.000,00 (cinco mil) euros, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.
2'. Absolvida "do outro pedido formulado pela A. (pagamento de reparações)."

2. Na alegação apresentada, em que propugna a justeza da concessão da revista, com consequente revogação do acórdão sob recurso, para a prevalecer ficar o, em 1ª instância, decidido, tirou AA as conclusões seguintes:

A - A Lei do Consumidor na redacção que lhe foi dada pela Lei 24/96 de 31 de Julho não estabelece qualquer hierarquia no exercício de tais direitos, nem tal ressalta das expressões utilizadas pelo legislador, nem tampouco da Directiva da CEE que determinou a transposição da mesma para a ordem jurídica interna.

B - A Lei do Consumidor apenas exige que a denúncia seja efectuada dentro do prazo aí fixado e impondo a prova da existência dos defeitos, o que efectivamente aconteceu.
C - A partir do momento em que o consumidor prova que o bem não se encontra conforme ao contrato que celebrou ou aos fins a que se destina, existe um incumprimento definitivo por parte do vendedor.

D - Face à factualidade dada como assente e provada, nomeadamente que durante dois anos, a viatura automóvel em causa nos presentes autos foi sujeita a diversas reparações, sendo que, em alguns casos os defeitos reparados voltaram a aparecer pouco tempo depois, que os defeitos denunciados existiam efectivamente e que os mesmos nunca foram reparados, o exercício do direito à substituição da viatura não constitui violação do princípio da boa-fé.

E - Assim, o acórdão em crise fez uma errada aplicação da lei substantiva, ao decidirem dar razão às Recorridas quando determinaram que estas não se encontravam ainda em mora, por não ter existido uma interpelação admonitória ou uma interpelação no sentido de comunicação da perda de interesse na reparação.

F - Na verdade, e tendo em atenção o caso concreto, perante a interpretação do douto acórdão, o consumidor ora recorrente estava obrigado a interpelar para reparar e caso tal reparação tivesse sido efectuada, estaria eternamente sujeito às referidas reparações, sendo certo que quando a denúncia do contrato acorreu, ou quando a interpelação admonitória ocorresse, já estaríamos fora do âmbito da garantia legal, ficando o consumidor sem a possibilidade de proceder à reparação ou substituição da viatura, pois a aí tal recusa seria legítima.

G - Aliás, face às sucessivas reparações, sem sucesso e face ao eminente termo do período de garantia não restava outra alternativa à recorrente consumidora para além de lançar mão de qualquer um dos direitos que lhe assiste, desde que possível (e era por se tratar de coisa fungível.

H - Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, sempre se dirá que na interpelação efectuada em 14/4/2004 à Ré recorrida "Empresa-C, S.A.", a Recorrente demonstrou perda de interesse no cumprimento da obrigação, a qual foi alegada e provada, conforme consta da resposta positiva dada ao quesito 11º.

I - A perda de interesse no cumprimento da prestação, consta da carta enviada à Ré Recorrida "Empresa-C, S.A.", cujo teor e alcance não foi impugnado.

J - Face às múltiplas reparações efectuadas na viatura, a prova de que a viatura padecia de defeitos à data da interpelação e face à recusa da Ré Recorrida "Empresa-C, S.A." em reparar os mesmos, não há dúvidas que a carta enviada pela recorrente em 14/04/2004, constituiu uma verdadeira interpelação de perda de interesse no cumprimento da prestação.

K - Facto que conferiu de imediato direito à Recorrente de lançar mão do direito à substituição da viatura.

L - Quanto ao valor da indemnização arbitrada, sempre se dirá que os critérios de determinação do quantum dos danos não patrimoniais são os estabelecidos pelo art. 496º nº 3 do C. Civil - fixação equitativa, tendo em atenção o grau de culpa, situação económica dos intervenientes e demais circunstâncias referidas no art. 494º do C.Civil.

M - A quantia arbitrada na primeira instância respeita o critério de equidade estabelecido no art. 494º do C. Civil e o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que a indemnização deste dano não patrimonial deverá constituir uma compensação, um lenitivo, para os danos suportados.

N - A indemnização por danos não patrimoniais configura-se como uma compensação destinada a proporcionar ao lesado virtualidades que, de algum modo, esbatam o sofrimento e os incómodos suportados.

O - A quantia em causa foi arbitrada à apelada em Tribunal afigura-se equitativa e se algum desequilíbrio apresentasse, ele seria por defeito e não por excesso.

P - Assim, o acórdão recorrido, viola o disposto nos artigos 3º, 4º e 12º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho e 808º do Código Civil.

3. Contra-alegaram "Empresa-C, S.A." e "Empresa-A, S.A.", batendo-se pela confirmação do predito acórdão.
4. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Não estamos ante caso excepcional previsto no art. 722º nº 2 do CPC, nem é cabida a aplicação do nº 3 do art. 729º de tal corpo normativo.
Pelo dilucidado, com justo arrimo no art. 713º nº 5, aplicável por mor do art. 726º, ambos do CPC, remetemos, no atinente ao elencar da matéria de facto, para o acórdão sob recurso, doravante designado por "acórdão".

III. 1. Sem prejuízo do que adiante se enunciará, desde já se deixa consignado que censura não merece o "acórdão", antes se confirmando, "in totum", o julgado em 2ª instância, quer quanto à decisão, quer quanto aos respectivos fundamentos, para que se remete, no uso da faculdade remissiva a que se reporta o art. 713º nº 5, aplicável por mor do vazado no art. 726º, ambos do CPC.
Prosseguindo:

2. Ponderado o que delimita o âmbito do recurso (art.s 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC), visto o teor das conclusões A) e B) da alegação da revista, em crise não estando, sublinhe-se liminarmente, que a autora, invocando como fundamento do seu direito a venda de coisa defeituosa - o veículo citado em I. 1. b) 1'. -, à sua pessoa, por banda de " Empresa-C, S.A.", de tal tendo o ónus (art.s 342º nº 1 e 913º do CC), logrou provar a existência do sustentado defeito (cfr. Pedro Romano Martinez, in "Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada", Almedina-1994-, págs. 356 e 357, bem como, entre outros, acórdãos deste Tribunal, de 23-05-00 -"Sumários de Acórdãos Cíveis", Edição Anual, 2000, pág. 171 - e de 11-10-07 - revista nº 3069/07-2), temos como seguro que questão nuclear a tratar nestes termos se pode equacionar:

Em caso de defeito da coisa vendida existe uma concorrência electiva de pretensão (art.s 911º, 913º, 914º e 915º do CC e art. 12º nº 1 da Lei nº 24/96, de 31 de Julho-redacção anterior), não absoluta, embora, sendo, nas palavras de Calvão da Silva, irrecusável a "eticização da escolha do comprador através do princípio da boa-fé, não caindo, decorrentemente, "no puro arbítrio do comprador, sem olhar aos legítimos interesses do vendedor" (cfr. "Compra e Venda de Coisas Defeituosas-Conformidade e Segurança" -, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, págs. 81 e 82), ou, como defende Pedro Romano Martinez, in "Direito das Obrigações (Parte Especial) -Contratos-", págs. 140 e 141, outra não sendo a tese sufragada em acórdão do STJ, de 15-03-05 (doc. nº SJ200503150044002, disponível in www.dgsi.pt/jstj.):

"Os diversos meios jurídicos facultados ao comprador em caso de defeito da coisa vendida não podem ser exercidos em alternativa. Há uma espécie de sequência lógica em primeiro lugar, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa e, não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação do defeito, a substituir a coisa vendida, frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço, mas não sendo este meio satisfatório, cabe ao comprador pedir a resolução do contrato."
Acolhemos este segundo entendimento, a bondade de tal, outrossim se encontrando no explanado no "acórdão".
Mais:

3. Consoante enfocado no à colação já chamado acórdão de 15-03-05:
"Denunciado tempestivamente o defeito e pedida a reparação pela autora adquirente, o mero eventual atraso na eliminação do defeito pelas rés alienantes não confere por si só o direito à substituição, antes pressupostos, em virtude da aludida "sequência lógica" reparação/substituição, a prévia conversão da mora na reparação em incumprimento definitivo desta obrigação, mediante interpelação admonitória nos termos do nº 1 do artigo 808º do Código Civil."
Pois bem, em retorno à hipótese em apreço:

4. Encontrando-se, inequivocamente, a ré em mora, à data da carta da autora, datada de 14-04-04, dirigida à vendedora, quanto à obrigação de reparação do veículo, sem dúvida possível, como assinalado no "acórdão", acaso converteu AA a relatada mora em incumprimento definitivo de tal obrigação?
Não.
Efectivamente:
Interpelação admonitória com a virtualidade apontada no art. 808º nº 1 do CC não foi levada a cabo com a carta dita, de harmonia com o explicitado no "acórdão", na esteira, aliás, do que constitui jurisprudência seguramente firme, no atinente ao que aquela coenvolve - cfr., entre muitos outros, acórdãos do STJ, de 18-11-04 (revista nº 3449/04-7ª, in "Sumários", Nº 85, págs. 50 e 51) e 08-05-07 (doc. nºs SJ20070508009321, disponível in www.dgsi.pt/jstj), bem como: Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. II - 3ª Edição Revista e Actualizada, págs. 71 e 72, e Inocêncio Galvão Telles, in "Direito das Obrigações", 7ª Edição (Revista e Actualizada), págs. 311 a 313.
Por seu turno, perda de interesse na prestação, em consequência da mora, a 14-04-04, essa, fundada, como importa não obliterar, numa causa objectiva, queda, é vítreo, indemonstrada, ao arrepio do pretendido pela autora, à qual falece, ainda, razão, quando aduz o levado às conclusões J) e K) da sua alegação.

5. Da indemnização por danos não patrimoniais (conclusões L) a O) da alegação da revista:
Nos termos do disposto no art.12º nº 1 (ex nº 4) da Lei nº 24/96 (redacção do DL nº 67/03, de 8 de Abril), "o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos".
Não se trata de responsabilidade objectiva, "a responsabilidade do (re) vendedor final pelos danos emergentes e lucros cessantes resultantes da entrega de coisa defeituosa a consumidor (art. 12º, nº 1)" só tendo lugar "se aquele não provar que o cumprimento imperfeito da obrigação não procede de culpa sua (art. 799º)" do CC (vide Calvão da Silva, in obra citada, págs. 124 e 125).
Se com a indemnização por danos não patrimoniais, com a gravidade plasmada no art. 496º nº 1 do CC, também se visa proporcionar ao lesado uma reparação indirecta daqueles, através de um "quantum" susceptível de proporcionar à vítima "satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados" (cfr. Galvão Telles, in obra referida, pág. 380), se se impõe o postergar de injustificados miserabilismos indemnizatórios, sim considerar valores arbitrados, a tal título, em recentes decisões jurisprudenciais com recurso à equidade (art. 496º nº 3 do CC), considerando as circunstâncias referidas no art. 494º do CC, antolha-se, ponderada, como urge, a factualidade provada, como equilibrada, ajustada, a indemnização no "acórdão" fixada.

IV. CONCLUSÃO:
Destarte, nega-se a revista, confirmando-se o "acórdão".
Custas pela recorrida (art. 446º nºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 24 de Janeiro de 2008

Pereira da Silva (Relator)
Rodrigues dos Santos
João Bernardo