Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B347
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: CHEQUE
FALSIFICAÇÃO
Nº do Documento: SJ20080410003472
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA
Sumário :
I – Para que o Banco se exima à obrigação de pagar ao titular da conta bancária o valor dos cheques falsificados que indevidamente pagou, tem , não só de demonstrar que agiu sem culpa, nos termos dos artigo 799, nº 1 do CC, como também, concomitantemente, tem de fazer a prova de que é de imputar ao titular da conta o referido pagamento dos cheques.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Triunal



I
A… & S…. Limitada moveu a presente acção com processo ordinário contra Caixa E…. M…. G…., pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 77.870,00, acrescida dos juros de mora, a partir da citação.
Alega o pagamento indevido de cheques falsificados.
Contestou a ré alegando ter feito a conferência de assinaturas e identificado o respectivo portador.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, condenando a ré no peticionado.
Apelou a ré, tendo o Tribunal da Relação considerado que esta ilidira a presunção de culpa e absolveu-a do pedido.
Recorre, agora, a autora, a qual, nas suas alegações de recurso, apresenta, em síntese, as seguintes conclusões:

1 A ré violou o disposto nos nºs 1, 2 e 5 do artº 690º A do C. P. Civil, porque procedeu à impugnação da matéria de facto, tendo por referência a transcrição da gravação de prova realizada por empresa por si contratada para o efeito.
2 De qualquer modo, a gravação dos depoimentos foi efectuada de forma deficiente, pelo que a prova resultante de tal meio de prova não pode ser valorada pela Relação, deixando de ser modificável a decisão quanto à matéria de facto.
3 Donde resulta a nulidade do acórdão recorrido, nos termos dos artºs 721º nº 2 e 668º nº 1 alínea d) daquele código.
4 Compulsadas as declarações das testemunhas e restante prova documental importa concluir que não estão reunidos os pressupostos do artº 712º nº 1 alínea b) para a alteração da decisão de facto da 1ª instância, por tal não ser razoável, mostrando-se, também violado o artº 655º nº 1 do mesmo C. P. Civil.
5 A culpa da ré foi por ela admitida em relatório, por não terem sido apostas duas rubricas nos cheques, para além de que resulta da prova testemunhal.
6 Por outro lado, a recorrente não teve qualquer culpa.
7 Assim, a ré é responsável pelas quantias em causa, nos termos dos artºs 796º nº 1 e 796º nº 1 do C. Civil.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Em 1ª instância deram-se por assentes os seguintes factos:

1 A autora é uma sociedade por quotas, com sede nos Apartamentos C…., na Rua da ….., em Quarteira, Loulé, cujo objecto consiste na actividade de construção civil, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esses fins, com o capital social de € 100.000,00, tendo como sócios-gerentes AA e BB.
2 A autora é titular da conta de depósitos à ordem nº …….., na agência da ré em Quarteira, constituída em 20.03.92.
3 Nos dias 20 e 21 de Agosto de 2002, a agência de Quarteira recebeu das agências da ré sitas na Rua do …. e na Av ….., ambas em Lisboa, 3 faxes solicitando a conferência de assinaturas neles aposta e a respectiva autorização para pagamento dos cheques nºs ……., …… e ……..
4 No dia 20.08.02, foi descontado foi descontado o cheque ……, no valor de € 24.250,00.
5 No dia 21.08.02 foram descontados os cheques nºs …… e ….., respectivamente, nos montantes de € 25.520,00 e € 28.100,00.
6 Os três cheques eram ao portador e foram apresentados a pagamento nas agências de Lisboa da ré.
7 Os referidos cheques tinham aposta a assinatura “AA”.
8 Os cheques referidos foram pagos, apesar da referida conta de depósitos da autora apresentar um saldo insuficiente.
9 Autora e ré celebraram entre si, em 06.06.02, um contrato de abertura de crédito em conta corrente, no montante de € 750.000,00, de que já havia sido utilizada a quantia de 590.000,00, cuja finalidade era também a regularização de saldos negativos.
10 A autora nunca foi contactada antes ou durante o pagamento dos cheques para confirmar esses pagamentos.
11 No dia 08.09.02, a autora enviou um fax à ré a comunicar o extravio dos cheques e o desconto e apropriação indevida dos montantes deles constantes.
12 A autora contactou várias vezes a ré para obter o reembolso do pagamento dos cheques, recusando-se esta a fazê-lo.
13 Os sócios-gerentes da autora são portadores de, pelo menos, um livro de cheques emitido pela agência da Quarteira da ré.
14 As portas da sede da autora estão protegidas com grades metálicas.
15 Além dos sócios-gerentes da autora, têm acesso à sede as duas filhas e mulher do sócio-gerente BB, sendo uma das filhas mulher do sócio-gerente AA.
16 A sede da autora é ainda utilizada por aquela para recepção e reuniões de negócios com clientes, formalização e assinatura de contratos, nomeadamente contratos promessa de compra e venda de fracções autónomas e de prédios urbanos.
17 A sede da autora não foi objecto de qualquer arrombamento, furto ou roubo, no período imediato que antecedeu o desconto dos cheques.
18 Os livros de cheques emitidos sobre a conta existente na ré são guardados numa secretária metálica existente na sede da autora, que normalmente está fechada à chave, a qual se encontra na posse dos sócios-gerentes.
19 Os livros de cheques são retirados daquela gaveta, pelo menos, quando os sócios-gerentes da autora pretendem efectuar pagamentos, sendo a conta utilizada para a realização de operações de crédito e de débito necessárias ao desempenho da actividade da autora.
20 Os cheques emitidos pela autora são totalmente preenchidos, nomeadamente e por norma, com a identificação do tomador.
21 Do mesmo modo, os cheques ficam sempre indexados ao suporte documental a cujo pagamento se reportam.
22 Os sócios-gerentes da autora procedem à verificação dos extractos de conta enviados pela ré, comparando-os com os lançamentos a débito e a crédito.
23 Aquando da verificação do saldo de conta realizada pelo sócio-gerente AA, este verificou que tinham sido descontados os cheques especificados.
24 A autora desconhece o modo como os três cheques, referidos em 4 e 5 foram retirados da sua sede e quem é o responsável pelo desaparecimento do local onde os mesmos são habitualmente guardados.
25 Os três cheques correspondem aos constantes da última folha do livro de cheques distribuído ao sócio-gerente BB.
26 No seguimento das autorizações de pagamento concedidas pela agência da Quarteira da ré, procedeu-se à recolha da assinatura do portador e dos seus elementos de identificação, sendo que a assinatura do beneficiário inscrita nos cheques foi comparada por semelhança com a constante da ficha de assinaturas da conta.
27 O portador dos cheques descontados pela ré foi CC, reformado e cliente da ré.
28 Foi o CC quem efectuou o levantamento dos cheques.
29 A assinatura aposta nos três cheques não é do sócio gerente AA., tendo sido escrita por outra pessoa.
O Tribunal da Relação rectificou o que considerou ser um lapso de escrita mudando a expressão “beneficiário” do ponto 26 para “sacador”.

III
Apreciando

1 A primeira questão levantada pela recorrente é a de que o recurso quanto à matéria de facto deveria ter sido rejeitado, porque não obedece aos requisitos dos nºs 1 e 2 do artº 690 A do C. P. Civil.
Este preceito comina com a rejeição o recurso da matéria de facto que não indique os pontos concretos da decisão sobre tal matéria que se pretende impugnar, bem como que não indique os concretos meios de prova que fundamentam essa impugnação – nº 1 -.
E acrescenta - nº 2 - , também sob pena de rejeição do recurso, que a indicação dos depoimentos gravados faz-se assinalando o início e o termos de cada depoimento na gravação, conforme o que ficar assinalado na acta, de acordo com o artº 522º nº 2. Esta última norma refere que, quando haja registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação e o termo de cada depoimento.
Acontece, porém, que no recurso de apelação a ré juntou uma transcrição da sua iniciativa e foi em relação a esta que nomeou os depoimentos em que baseou o seu pedido de alteração de certos pontos da matéria de facto.
O acórdão recorrido aceitou esta forma de impugnação e veio a atender, em parte, à pretensão da apelante. Haveria pois, uma indevida admissão da impugnação da matéria de facto, que afecta o sentido da decisão em recurso.
Vejamos.
De acordo com o princípio que em recurso não se julga ex novo, mas faz-se uma reapreciação da decisão recorrida, também no recurso da matéria de facto só são apreciados aqueles pontos que forem concretamente impugnados. E este rigor “cirúrgico” é que explica que o legislador fale na indicação dos pontos concretos a reapreciar e nos concretos meios de prova que fundamentam a pedida alteração. Consequentemente, para que o tribunal apenas atenda a esses meios probatórios e não a outros, tem o recorrente, de forma inequívoca, indicar onde na gravação estão os depoimentos. A solução encontrada foi a de que o recorrente tem de fazer referência à indicação da acta, onde, por imposição do artº 522º nº 2, encontra-se identificado cada depoimento.
Na realidade, a apelante não identificou os depoimentos pela indicação da acta. Há, portanto uma irregularidade processual.
Como já se disse, o referido artº 690º A determina que o não cumprimento do que nele se especifica quanto à impugnação da matéria de facto implica a rejeição do recurso.
Deste modo, em 2ª instância não podia ser admitido o recurso de apelação quanto à matéria de facto.
E assim sendo, também não podia, com base nos meios de prova gravados, alterar os factos, como fez em relação ao ponto 29, julgando por não provado que as assinaturas dos cheques não pertenciam a AA.
Assim, dão-se como assentes os factos que como tal foram considerados na sentença de 1º instância.
A procedência desta conclusão do recurso prejudica o conhecimento das restantes que se referem à alteração da matéria de facto, uma vez que através dela já fica satisfeito o objectivo do recorrente de manter-se inalterado o julgamento da matéria de facto.

3 Entrando na questão de fundo.
O banco deu pagamento a cheques comprovadamente falsos.
O devedor que não cumpre tem o ónus de ilidir a presunção de que o seu incumprimento foi culposo – artº 799º nº 1 do C. Civil. -.
Por outro lado, o artº 796º nº 1 desse código prescreve que o perecimento ou deterioração da coisa, nos contratos que importem transferência do domínio ou constituam ou transfiram um direito real sobre essa coisa, corre por conta do adquirente, se não for imputável ao alienante.
É comumente aceite que este artigo é aplicável ao contrato de depósito bancário – Ac. deste STJ de 21.05.96 www.stj.pt 088272 – e Ac. deste STJ de 02.03.99 (citado pela recorrente).
Note-se que o dinheiro depositado na conta bancária, ou a ela creditada pelo banco, é propriedade deste, pelo que pertence-lhe o risco pela sua perda, nos termos do aludido artº 796º.
Se, como no caso, o banco paga um cheque falsificado, há uma sobreposição de dois regimes. Um derivado do incumprimento contratual e outro da impossibilidade da prestação. Por um lado, o banco tem de ilidir a dita presunção de culpa e, por outro, tem de demonstrar que o facto danoso é de atribuir ao depositante. Por outras palavras, tem de demonstrar que efectuou todas as diligências necessárias ao pagamento seguro do cheque e, ao mesmo tempo, que a causa do pagamento indevido é de atribuir ao titular do depósito.
No caso dos autos, o banco fez a conferência das assinaturas que nenhuma dúvida lhe suscitaram. E se dúvidas não teve, não tinha de tomar outras precauções, como a de contactar a autora. Ou seja, ilidiu a presunção de culpa do artº 799º.
No entanto, não demostrando que o desvio era imputável à autora, sempre teria de assumir, nos termos do artº 496º nº 1, a responsabilidade pela perda da coisa.
Assim, embora por fundamento diverso do da sentença de 1ª instância (que considerou não ilidida a presunção de culpa) é de a confirmar

Termos em que procede o recurso.

Pelo exposto, acordam em conceder a revista e revogam o acórdão recorrido, confirmando a sentença de 1ª instância.

Custas pela recorrente


Lisboa, 10 de Abril de 2008-04-10


Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos