Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
058690
Nº Convencional: JSTJ00004112
Relator: ARLINDO MARTINS
Descritores: DIVORCIO
INJURIAS GRAVES
MATERIA DE DIREITO
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ196304030586901
Data do Acordão: 04/03/1963
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IªS DE 30-04-1963 ; BMJ 126 , 311
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: UNIFORMIZADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 6/1963
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM. DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CPC61 ARTIGO 763 N3 ARTIGO 764 ARTIGO 766 N3.
D DE 1910/11/03 ARTIGO 1 N2 ARTIGO 4 N4 ARTIGO 34 ARTIGO 45.
D 1 DE 1910/12/25 ARTIGO 2 ARTIGO 38 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1950/02/17 IN BMJ N17 PAG343.
ACÓRDÃO STJ IN BMJ N110 PAG458.
Sumário :
Constitui materia de direito decidir se as injurias são graves, para o efeito de servirem de fundamento do divorcio litigioso.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O A..., ja identificado nos autos, recorreu para o Tribunal Pleno do acordão de folhas 564, que julgou improcedente a acção de divorcio que com fundamento em injurias graves, moveu contra sua mulher B....
E alegou: O acordão recorrido, para julgar a acção improcedente, decidiu ser materia de direito o conhecimento da gravidade das injurias.
Esta sua decisão esta porem em oposição com o julgado no acordão de 17 de Fevereiro de 1950, publicado no Boletim, n. 17, pagina 343.
Neste ultimo acordão, decidiu-se expressamente que o dito conhecimento era materia de facto.


Existe assim a oposição alegada, pelo que deve conhecer-se do recurso.
Quanto ao seu merecimento:


No Codigo de Processo Civil - no actual e no de 1939 - estabelece-se que a materia de facto fixada pela Relação não pode, regra geral, ser alterada.
E que aos factos fixados, o Supremo aplicara definitivamente o regime juridico que julgar adequado.


De onde tem de concluir-se que os mesmos factos, as circunstancias em que foram praticados e as determinantes da sua eclosão escapam a competencia do tribunal de revista, que tem de limitar-se a aplicar-lhes o devido regime juridico.


Esta doutrina - que e a do acordão invocado em oposição
- e, sem duvida, a unica legal.


Se assim não for, verificar-se-a a instabilidade do direito aplicavel, pois a qualificação das injurias dependera de condições meramente subjectivas e cair-se-a no completo arbitrio.


Prova disto e o acordão recorrido que imaginou uma discussão e uma exaltação de momento, para retirar as injurias a gravidade que a Relação lhes atribuiu.


A decisão de haver ou não injuria grave em determinada expressão verbal e puramente materia de facto.


E um facto que se avalia pelo seu conteudo, pelo grau de educação da pessoa a quem e dirigido e pela contumacia com que e proferida pelo ofensor.
Fazer dessa gravidade uma questão de direito, e criar a incerteza da lei, com todas as agravantes que moral e juridicamente comporta.
A recorrida sustenta que o recurso não merece provimento.
O objecto do presente recurso, e decidir se a qualificação das injurias graves e ou não materia de direito.


Ora, admitindo a lei recurso de revista da decisão da Relação, e tendo este recurso como fundamento a violação da lei substantiva, tem de concluir-se que a referida qualificação e materia de direito.


Assim o entendem a doutrina e jurisprudencia;


A doutrina, como pode ver-se nos estudos dos Professores Manuel Rodrigues, Barbosa de Magalhães, Alberto dos Reis e Manuel de Andrade.
A jurisprudencia, a parte o acordão em oposição, tem sempre entendido ser essa questão materia de direito.


O ilustre magistrado do Ministerio Publico pronuncia-se no sentido de se tratar de questão de direito.


No seu douto parecer, depois de afirmar a evidencia da oposição entre os acordãos recorrido e invocado, salienta que, com clareza e sem hesitação, se manifesta no sentido de ser questão de direito a qualificação das injurias em injurias graves, como causa legitima de divorcio.


Para tanto, baseia-se nas disposições legais, na doutrina e na jurisprudencia deste Supremo Tribunal.


Nas disposições legais, pois estas ordenam que as partes exponham claramente os factos e as razões de direito;


Que o juiz conheça no saneador da questão, se esta for so de direito ou de direito e facto se o processo contiver os necessarios elementos;
Que o juiz seleccione os factos que interessam a decisão da causa;
Que o Colectivo conheça das questões de facto... etc..
Se este ordenamento legal derrama - diz - alguma luz para facilitar a distinção: entram na materia de facto, os factos da vida real integradores das relações materiais controvertidas;


Entram no campo juridico, os aspectos da decisão e da interpretação e aplicação das leis aqueles factos.


Nos recursos, tambem se verifica o interesse da mesma distinção.
As decisões em materia de facto são inalteraveis e, no de revista, so pode conhecer-se da violação da lei substantiva e aplicar-se aos factos materiais o regime adequado.


Daqui resulta tambem que entra no campo das sugestões de direito o definir-se o direito aplicavel a cada caso, a determinação, interpretação e aplicação da norma juridica e a qualificação juridica dos factos materiais.
Indica depois o mesmo douto magistrado longa lista de autores que trataram dessa questão, de cujas lições extraiu os ensinamentos que sumariou.
E que se resumem no de incluir na materia de facto apenas os factos materiais os concretos que tem de ser articulados e quesitados.
Na materia de direito, tudo o mais, incluindo tudo quanto se obtem atraves dos raciocinios logicos construidos com as premissas anteriores formadas pelos factos materiais ou concretos que se articulam e quesitam.
Afirma-se ainda, no mesmo douto parecer, que a unanimidade doutrinal tem tido eco na jurisprudencia deste Supremo Tribunal que, com excepção do acordão invocado em oposição, sempre tem decidido ser materia de direito a qualificação das injurias.


E sustenta que, antes do apuramento da gravidade das injurias, se ha-de apurar se os actos ou factos são injuriosos e enumera os aspectos com influencia da sua determinação.


Depois, apurar-se-a se as ditas injurias são ou não graves e indica os criterios que hão-de presidir a esta qualificação.


Termina o mesmo ilustre magistrado por propor o seguinte assento:
"Considerar injurias graves, para o efeito do n. 4 do artigo 4 do Decreto de 3 de Novembro de 1910, e materia de direito da competencia do Supremo Tribunal de Justiça".


Tudo visto:


I) Embora a secção ja tenha decidido haver oposição entre o acordão recorrido e o invocado, no n. 3 do artigo 766 do Codigo de Processo Civil obriga a novamente examinar a questão.


O artigo 764 deste mencionado Codigo exige, como condições de admissão do recurso para o Tribunal Pleno, que os acordãos recorrido e o invocado sejam proferidos no dominio da mesma legislação e que, relativamente a mesma questão fundamental de direito, assentem sobre soluções opostas.
Verificam-se estes requisitos, no caso vertente.


No acordão recorrido - Boletim, n. 110, pagina 458, para julgar a acção improcedente, assentou-se em que era materia de direito, a qualificação das injurias;


No invocado, de 17 de Fevereiro de 1950, no Boletim n. 17, pag 343, decidiu-se que essa qualificação era materia de facto.
Ambos os acordãos foram proferidos no dominio da mesma legislação - o n. 4 do artigo 4 do Decreto de 3 de Novembro de 1910.
Exige ainda o n. 3 do artigo 763 do mesmo Codigo que os acordãos tenham sido proferidos em processos diferentes ou em incidentes diferentes do mesmo processo.


E que o invocado haja transitado, embora se presuma o seu transito.
Tambem estes requisitos se verificam no caso em apreço, pois os acordãos foram proferidos em processos diferentes e e de presumir que o invocado transitou.
Deve, portanto, considerar-se verificada a oposição e conhecer do recurso, como decidiu a secção.


II) Injurias são factos ou expressões susceptiveis de ofender a honra e consideração devidas a outrem.


Para efeitos de divorcio ou separação de pessoas e bens, devem esses factos ou expressões constituir a violação, por um dos conjuges, dos deveres resultantes do casamento.


Factos - injurias reais ou expressões - injurias verbais
- que hão-de ter significação pejorativa em si proprios, ou ser-lhes imputada pelas circunstancias em que foram praticados ou ditas.
A significação dos factos ou expressões e a que lhes atribui a generalidade das pessoas e, relativamente as expressões, esta recolhida nos dicionarios.
A significação dos factos e das expressões varia no tempo e no espaço.
Ha palavras ou gestos que foram ultrajantes e agora não são;
Igualmente pode acontecer que tenham significação pejorativa num lugar e não o tenham noutro.


Pode suceder ainda que os factos ou expressões não tenham em si significação pejorativa, mas que esta resulte das circunstancias em que foram praticados ou ditas.


E tambem que as mesmas circunstancias retirem aos factos ou expressões a significação injuriosa que em si contem.


Circunstancias que se referem ao modo, tempo e lugar da pratica dos ditos factos e ainda a relação, posição, e temperamento dos ofensor e ofendido.
Do modo, porque da maneira de proferir as palavras ou executar os gestos pode resultar para estes significação ultrajante, ainda que a não tenham ou retirar-lhe, no caso contrario;


Do tempo, visto o serem praticados numa ou noutra ocasião - sobretudo referida ao estado em que se encontra o ofensor - lhes poder alterar ou modificar a significação;


Do lugar, porque a publicidade nos gestos e expressões pode dar-lhes ou aumentar-lhes a significação ultrajante.


A relação, existente entre ofensor e ofendido, porque a situação de facto existente entre ambos, tem grande influencia na significação da sua conduta;
A posição, visto haver expressões e gestos que são considerados ultrajantes em certas classes e não o são noutras.


III) Os conhecimentos humanos são elaborados pela inteligencia que, para o efeito, utiliza os elementos - percepções - fornecidos pelos sentidos.
Estes, dada a sua natureza, somente fornecem elementos materiais.
A inteligencia despe esses elementos da sua materialidade e formula conceitos aplicaveis a todos os casos da mesma especie, independentemente da sua concreta figuração.


Dado este processo dos conhecimentos humanos, desde logo se poderia concluir que cabe no ambito da materia de facto a averiguação dos elementos que podem ser apreendidos pelos sentidos.


E reservar a materia de direito tudo o que diz respeito a formulação de juizos de valor, elaborados pela inteligencia, com base naqueles elementos fornecidos pelos sentidos.

Na verdade o objecto da prova são os factos e estes são os acontecimentos externos ou internos susceptiveis de percepção.
E não são objecto de prova os juizos juridicos, a não ser que eles contenham a subjunção de um acontecimento a um conceito juridico do conhecimento geral.
Esta questão - materia de facto e de direito - tem sido das mais versadas na doutrina e na jurisprudencia.
Na doutrina, versaram a questão varios ilustres professores das nossas faculdades de Direito e alguns magistrados.
Dos ensinamentos de todos eles, como nota o douto magistrado do Ministerio Publico, se colhe a lição de que se confina no ambito da materia de facto a averiguação dos factos materiais.
E que se reserva a materia de direito a sua qualificação e valoração, em face das normas juridicas aplicaveis.
Doutrina de perfilhar e que a nossa legislação processual consagra.
Em varias das suas disposições, se faz nitida distinção entre a actividade processual relacionada com os factos e a relativa a materia de direito.
Na obrigação da articulação dos factos; nos orgãos competentes para deles conhecer, no poder cognitivo do juiz, etc..
Em via de recurso, preceituando que no de revista somente se possa conhecer da violação da lei.
Na jurisprudencia - a parte o acordão invocado em oposição - sempre se tem entendido que a averiguação dos factos materiais e so essa constitui materia de facto.
Definida a noção de factos materiais, como sendo em regra os perceptiveis pelos sentidos, tem de concluir-se que a materia de facto se confina normalmente na averiguação dos acontecimentos que eles podem apreender.
IV) As injurias, como se disse, são factos ou expressões a que se atribui significação pejorativa.
Averiguar quais os factos ou expressões que foram praticados ou ditas, constitui manifestamente materia de facto.
Como ha factos e expressões que tem significado pejorativo nuns lugares e não o tem noutros e como ha circunstancias que lhes podem dar ou retirar essa significação, e tambem materia de facto averiguar essas circunstancias.
Decidir, ponderadas as circunstancias averiguadas, se os factos ou expressões são injuriosas e atribuir-lhes essa qualidade em função de um conceito de injuria.
E formular um juizo, conclusão intelectual baseada na adequação do predicado ao sujeito.
Sendo assim, esta definição dos factos ou expressões e um juizo de valor formulado pelo julgador, tendo em atenção os ditos factos e o conceito de injuria que, para o efeito e em face da lei, formulou.
Nitidamente materia de direito, pois que para essa formulação do juizo do valor teve de considerar os fins e consequencias legais da mesma definição.
Depois desta decisão, isto e, depois de considerar os factos ou expressões como injurias, tem de definir-se se elas são ou não graves, para o efeito de servirem de fundamento ao divorcio ou separação de pessoas e bens.
A lei - a não ser nos casos dos artigos 34 e 35 do Decreto de 3 de Novembro de 1910 - não especifica quais sejam as injurias graves para o dito efeito, nem estabelece criterios por que se hajam de classificar.
Compete assim ao julgador formular o conceito de gravidade, da gravidade necessaria para o efeito de as injurias poderem fundamentar o divorcio ou a separação.
O casamento - artigo 2 do Decreto n. 1, de 25 de Dezembro de 1910 - presume-se perpetuo;
Os conjuges tem obrigação de viver juntos - n. 2 do artigo 38 do mesmo decreto;
O divorcio ou separação de pessoas e bens dissolve ou interrompe o vinculo cojugal - n. 2 do artigo
1 do Decreto de 3 de Novembro de 1903 do Codigo Civil.
Dadas estas noções, a gravidade da injuria deve ser bastante para impossibilitar o conjuge ofendido de viver junto do ofensor, sem grave detrimento da sua dignidade pessoal, do respeito que deve a si proprio.
Ha tambem circunstancias que influem na gravidade da injuria.
Circunstancias que se referem a posição social, cultura, educação, habitos de linguagem, temperamento, estado fisico e mental do ofendido, etc..
Factos e expressões ha que, para individuos de esmerada educação e cultura são muito injuriosos e não o são para outros.
E tambem a reiteração das injurias, a ocasião em que foram ditas, ter havido ou não provocação do conjuge ofendido, são circunstancias que manifestamente influem na sua gravidade.
Definir se as injurias são ou não graves e igualmente definir, em face de um conceito de gravidade e das circunstancias de facto averiguadas, se pode ou não atribuir-se-lhes essa qualidade.
E um juizo de valor, a formular pelo julgador, baseado nas referidas circunstancias e no conceito da gravidade, tal como o formulou para o efeito de assim qualificar as injurias suficientes para fundamentar o divorcio ou separação de pessoas e bens.
Materia de direito portanto, ja que o julgador tem de ter em atenção, na formulação do conceito, as consequencias legais da sua definição.
Nestes termos, negam provimento ao recurso e condenam o recorrente nas custas.
E formulam o seguinte assento:
"Constitui materia de direito decidir se as injurias são graves, para o efeito de servirem de de fundamento do divorcio litigioso".


Lisboa, 03 de Abril de 1963

Arlindo Martins (Relator) - Jose Meneses - F. Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Amorim Girão - Bravo Serra
- Jose Osorio - Fragoso de Almeida - Abreu Lobo - Eduardo Coimbra - Cura Mariano - Alberto Toscano.