Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDO BENTO | ||
Descritores: | NASCENTE ÁGUAS PARTICULARES ÁGUAS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS DIREITO DE PROPRIEDADE COISA IMÓVEL DOMÍNIO PRIVADO SERVIDÃO EXPROPRIAÇÃO RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL CULPA ÓNUS DA ALEGAÇÃO ÓNUS DA PROVA COMISSÃO COMITENTE COMISSÁRIO RESPONSABILIDADE PELO RISCO | ||
Data do Acordão: | 07/12/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I - Fonte ou nascente é, no prédio onde brota, uma parte componente desse prédio, compreendendo todas as águas nativas que nele hajam e nele venham à superfície, enquanto não transpuserem os limites desse prédio. II - Ao invés, as águas – e a respectiva nascente – são porções do solo de onde emergem, pars fundi, inserindo-se no direito de propriedade deste, pelo que a propriedade do solo importa necessariamente a propriedade da nascente e das águas que dela surgem. III - Todavia, uma vez desintegradas do prédio (por lei ou por negócio jurídico), deixam de ser partes componentes ou integrantes dele, e adquirem autonomia passando a ser consideradas, de per si, imóveis. IV - A separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água (ou ao uso da água) a favor de terceiro, sendo que nos termos do art. 1390.º do CC, é título justo de aquisição qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões, entre elas a usucapião. V - O direito de propriedade e o direito de servidão não se confundem: no primeiro caso há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante. VI - Se as águas foram desintegradas do domínio do solo, passando a constituir coisa imóvel juridicamente autónoma, a expropriação do prédio ou da parcela do prédio onde se localizava a nascente em nada altera a propriedade daquelas, isto é: não tendo as águas sido objecto de expropriação, apesar de o ter sido o prédio onde se localizava a respectiva nascente, subsistem por inteiro os direitos que os autores detinham sobre aquelas. VII - Não é necessário ser perito para saber que obras de construção civil em zonas de nascentes de água envolvem sempre um elevado risco de comprometer decisivamente a qualidade e quantidade da água ali nascida, pelo que a ré V – enquanto construtora da auto-estrada e autora da intervenção no local da nascente – poderia e deveria saber quais as técnicas recomendadas para salvaguardar aquíferos e proteger os pontos de captação de água mais sensíveis. VIII - Visando facilitar ao lesado o exercício do direito à indemnização, assiste-se a uma transformação na interpretação e aplicação do princípio da culpa que pode ser descrita como uma quase objectivação de responsabilidade civil que – teoricamente e pressupondo a previsibilidade e evitabilidade do dano – continua a ser subjectiva. IX - Uma dessas manifestações decorre do avanço tecnológico e dos progressos na produção de bens e serviços, nas técnicas e processos de construção que constituem, não raro, um risco potencial de danos, e determinam quer a adopção, pelas empresas que os utilizam, de medidas tendentes a prevenir a ocorrência de danos, quer exigência de um nível de diligência mais elevado para os prevenir. X - Assim, mediante a alegação da conexão ou sequência de factos, justifica-se um recurso à presunção hominis e à regra da livre apreciação das provas pelo juiz na base do id quod plerumque accidit ou prima facie, bem como às regras empíricas da experiência, aligeirando-se, assim, ao lesado a exigência do ónus de alegação e prova da culpa, fazendo decorrer esta da relação de causalidade entre o facto e o dano, por um lado, e impondo ao lesante o ónus de demonstrar a observância da diligência devida e a inevitabilidade dos danos. XI - Respondendo a construtora da auto-estrada com fundamento em responsabilidade civil subjectiva, a responsabilidade da E. S.A., como concessionária, é meramente objectiva, fundando-se no preceituado no n.º 1 da Base LXXIV do contrato de concessão aprovado pelo DL n.º 234/2001 de 28-08, segundo o qual a concessionária responde «nos termos gerais da relação comitente-comissário pelos prejuízos causados pelas entidades por si contratadas para o desenvolvimento das actividades compreendidas na concessão». XII - Este preceito afasta a regra geral da inexistência de comissão no contrato de empreitada entre concessionária e a construtora, não sendo alheio ao mesmo a intenção de reforçar a garantia da indemnização para o terceiro, estendendo à relação entre a concessionária – como dona da obra – e à construtora – como empreiteira – essa relação de comissão. XIII - A impossibilidade de reconstituição natural configura um facto impeditivo ou modificativo do direito à indemnização, razão pela qual sobre as rés incumbia o ónus de alegar e demonstrar os factos integradores dessa impossibilidade. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no STJ RELATÓRIO
No Tribunal de Caminha foi proposta por AA e mulher, BB, acção de processo ordinário contra CC, A.C.E., DD, S. A., DD, S. A., e EE, E.P.E., com vista à condenação solidária destas a: a) A restabelecerem a captação da água na “M....V.....” e a conduzirem a água, com a mesma inclinação que desde sempre teve, até ao seu prédio - misto sito em ............, freguesia de ............., inscrito na matriz urbana no artigo 140 e rústica no artigo 835, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha na ficha nº 000000000, tendo sido desanexado do prédio nº 00000000, a fls. 194 do livro B-43 no qual se situa a nascente de água conhecida como M....V.....- de modo a que ali chegue em quantidade e qualidade, no estado em que se verificava antes das obras efectuadas no local da nascente, na sequência da expropriação da expropriação da respectiva parcela com vista à construção do troço da Auto-Estrada A28/IC1 – Viana do Castelo/Caminha; b) A pagarem-lhes o montante de 103.853,60 €, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais; c) A pagarem-lhes 1,31 € por cada metro cúbico de água que não chegar ao seu prédio, entre a data da entrada em juízo da presente acção e até à data do restabelecimento do fornecimento de água, com a capacidade de 100 litros por mi-nuto e com a qualidade que tinha antes do inicio das obras, em montante a fixar em ulterior liquidação; Subsidiariamente, d) Se o pedido formulado em a) não for julgado viável, ou se a captação da água e o restabelecimento da sua conduta, no estado existente antes das obras, não for possível, devem as rés ser condenadas a: - Reconhecerem que ao seu identificado prédio pertencia toda a água da nascente ou “M.....V.....” e a respectiva conduta; - A reconhecerem que tal nascente ou mina tinha uma capacidade de forne- cimento de água ao seu prédio de, pelo menos, 100 litros por minuto, e que tal água era potável, de excelente qualidade e tinha um valor económico de 1,31 € por metro cúbico; - Pagarem-lhes uma indemnização em quantia não inferior a 1.000.000,00 €. As RR defenderam-se, por excepção - as RR CC e DD, conjuntamente, excepcionaram a incompetência material do tribunal comum por competente ser a jurisdição administrativa e a Ré EE – EPE a sua ilegitimidade passiva – e por impugnação. Os AA replicaram. No despacho saneador, foi atendida a excepção dilatória de ilegitimidade passiva da Ré EE, E.P.E que foi, por isso, absolvida da instância e desatendida a de incompetência do tribunal comum em razão da matéria. Seguidamente foram seleccionados os factos relevantes, discriminando-se os já assentes dos ainda controvertidos. Prosseguindo a tramitação da acção, veio a realizar-se audiência de julgamento com decisão da matéria de facto controvertida e seguidamente, em 06-11-2008, prolação de sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou as rés CC, A.C.E., e DD, S. A., a, solidariamente: - Restabelecerem a captação da água na “M.....V....” e a conduzirem-na, com a mesma inclinação que desde sempre teve, até ao prédio dos autores, de modo a que ali chegue em quantidade e qualidade, no estado em que se verificava antes das obras levadas a cabo, no local da nascente, pelo “CC, A.C.E.”, fazendo, a expensas suas, no prazo seis meses, as obras necessárias e adequadas para esse efeito; - A pagarem aos autores a indemnização pelo prejuízo efectivo resultante da diminuição de produção agrícola no prédio referido em A) da matéria assente, durante o período de tempo em que estiverem privados da água necessária para o fazerem como antes das obras levadas a cabo pelas rés, a liquidar em ulterior execução; - A pagarem ao autor a quantia de 7.500,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais. No demais, a acção foi julgada improcedente FUNDAMENTAÇÃO As instâncias mostram-nos como provada a seguinte matéria de facto: - A Matéria de Facto: a) Constante da matéria de facto dada como assente: A) Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Caminha a favor do autor, pela inscrição G-4, através da Ap. .........., o prédio misto sito em .........., freguesia de Riba de Âncora, composto por casa com três dependências, rossio e terreno de cultura, com a superfície coberta de 190 m2, superfície das dependências de 150 m2, superfície dos rossios de 500 m2 e superfície do terreno de cultura de 12.730 m2, a confrontar do norte, sul e nascente com caminho público e do poente com FF e GG, inscrito na matriz urbana no artigo 140 e rústica no artigo 835, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha na ficha nº 000000000000, tendo sido desanexado do prédio nº 0000, a fls. 194 do livro B-43; B) Da descrição do prédio nº 0000 feita na Conservatória do Registo Predial de Caminha (datada de 18-06-1919), consta que se situa do “logar de ..........” e a ele pertence “toda a água da M....V.....com respectiva canalização até ao logar, com a qual são movidas umas azenhas que existem no mesmo logar “; C) Por escritura pública celebrada no dia 30 de Setembro de 2002, no 1º Cartório Notarial de Viana do Castelo, o autor marido declarou comprar a HH e esposa, II e esposa, JJ, KK, LL e marido, MM, NN, OO, PP e marido, e QQ, que declaram vender-lhe, o prédio descrito em A); D) Da escritura pública referida em C), consta ainda que os vendedores declararam que ao prédio objecto desse acto pertence “toda a água da M....V.....e canalização desde a mina até ao prédio”; E) Por DUP com carácter de urgência e autorização de posse administrativa proferida por Sua Exª o Secretário de Estado das Obras Públicas, em 18/08/2003, publicada no DR, nº 220, II Série, de 23/09/2003, foram expropriadas as parcelas 7.1, 7.2 e 7.3 para construção da A28/IC1 – Viana do Castelo/Caminha, lanço Riba de Âncora/Caminha; F) A Ré “DD – , S.A.”, é a empresa concessionária da construção da referida A28/IC1 – Viana do Castelo/Caminha, e o agrupamento complementar de empresas (ACE) denominado “CC, A.C.E.”, é (foi) a entidade construtora de tal via; G) A ré “Euroscut” garantiu aos autores que a “M....V....” ia ser mantida, através de obras de protecção e de conservação, assegurando-lhes, em quantidade e qualidade, a água ali nascida. b) Constantes das respostas à matéria da base instrutória: 1) A “M.......V......” fazia parte integrante da parcela 7.1, referida em E) –quesito 1); 2) O prédio identificado em A) há mais de 300 anos que é abastecido com a água da “M.......V.......” – quesito 2); 3) Facto esse praticado pelos autores e anteriores possuidores, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de modo continuado e ininterrupto e com a vontade, intenção e convicção de exercerem sobre tal água um direito de propriedade – quesito 3); 4) A água nascida na “M........V.......” corria, até ao prédio aludido em A), por um aqueduto, em grande parte do trajecto aéreo, feito em pedra de granito, com um sulco em forma de meia cana, apoiado em parte sobre o solo, em parte sobre muros e em parte sobre esteios de granito – quesito 4); 5) No final do ano de 2002, os autores colocaram, no referido aqueduto, um tubo para conduzir a água desde a “M.......V.......” até ao prédio mencionado em A), de modo a que não houvesse perda de água ao longo do seu trajecto – quesito 5); 6) Em Setembro/Outubro de 2002, a água proveniente da M......V.....era límpida, quimicamente potável e própria para consumo – quesito 6); 7) E era destinada e utilizada pelos autores no prédio identificado em A), quer para o consumo doméstico, quer para rega, quer para alimentação dos animais, quer para mover a azenha, quer para outros usos normais do quotidiano e da agricultura – quesito 7); 8) Antes do início das obras de construção da A28/IC1, Viana do Castelo Caminha, lanço Riba de Âncora/Caminha, a água que nascia na “M....V.....”, nos períodos mais húmidos do ano, poderia atingir valores de até 90 litros por minuto – quesito 8); 9) Antes das referidas obras, o prédio referido em A) nunca teve falta de água – quesito 9); 10) No local da nascente da “M.......V.......”, o réu “CC, A. C. E.”, abriu um fosso ou vala com cerca de 20 metros de comprimento por cerca de 3 metros de largura e 2 de profundidade – quesito 10); 11) Concluída a abertura de tal fosso ou vala, o réu “CC, A. C. E.”, colocou, ao longo de tal vala, diversas aduelas ou manilhas, e, nos extremos, fez uma espécie de quadrado em betão armado, abrindo na parte de cima do extremo poente de tal vala uma entrada para aquela obra, a qual se encontra efectuada por debaixo das faixas de rodagem da A28/IC1 Viana do Castelo/Caminha – quesito 11); 12) De tal espécie de reservatório feito em betão armado e aduelas ou manilhas, os réus construíram uma nova conduta, com cerca de 300 metros de comprimento, ligando-a à antiga conduta, destinada a conduzir a água até ao prédio identificado em A) – quesito 12); 13) Após os factos referidos nas respostas aos quesitos 10), 11) e 12), a água proveniente da M....V.....que chega ao prédio referido em A), por medição efectuada em 5 de Setembro de 2007, apresentava um caudal de cerca 1 litro por minuto – quesito 13); 14) A construção da nova captação, realizada no local da mina, e da conduta de ligação ao aqueduto, com enorme probabilidade, contribuiu para a forte redução de caudal registado na actualidade, porquanto: a) As condições hidrogeológicas locais foram fortemente modificadas pela construção da via (A28), sendo de esperar que daí tenha resultado uma redução do caudal escoado na nascente da antiga M....V.....; b) Por um lado, parte do maciço cristalino foi desmontado, o que reduziu o volume do aquífero; c) Por outro lado, a zona de emergência da água foi radicalmente alterada, devido à escavação aí realizada, à construção da nova captação e ao posterior aterro, compactação e pavimentação; d) Como consequência, é de esperar que a infiltração de água no solo, assim como a recarga e o armazenamento no aquífero freático tenham sido substancialmente reduzidos, quer devido à diminuição do volume do aquífero, quer devido à impermeabilização resultante da pavimentação da área de recarga; e) Por outro lado, na zona da captação, as condições de circulação das águas subterrâneas deverão ser bastante diferentes das originais, podendo a água emergir, presentemente, num local diferente – quesitos 15) e 16); 15) E, bem assim, a falta de declive ou queda da nova conduta da água, entre o local onde outrora era a “M....V.....” e a conduta antiga, feita para o restabelecimento da conduta – quesito 17); 16) Devido ao decréscimo do caudal de água proveniente da Mina de Vargas, o autor viu-se obrigado a diminuir a exploração e as culturas que vinha fabricando no prédio identificado em A) – quesito 18); 17) Os produtos hortícolas (tais como couves, alfaces, batatas, cenouras, cebolas, tomates, alhos, repolho, couve-flor, melões, meloas) e vinho que cultivava na quinta eram destinados pelo autor ao consumo nos restaurantes “O CHAFARIZ”, em Caminha, “A LAREIRA”, em Fão, e “O PÓPULO”, em Braga, que explora – quesito 20); 18) Se o autor tivesse de comprar no mercado os produtos provenientes da quinta, consumidos nos estabelecimentos de restauração aludidos, despenderia, pelo menos, aproximadamente 20.000,00 €, por ano – quesito 21); 19) Cada metro cúbico de água da rede pública, no concelho de Caminha, e em Riba de Âncora, é cobrado, no escalão > 25 m3, pelo valor de 1,31 €, na tarifa do consumidor doméstico – quesito 22); 20) A diminuição do caudal de água proveniente da Mina de Vargas provocou um sentimento de revolta no autor, uma grande desilusão, aborrecimento e transtorno, que o levou a andar ansioso e “stressado” durante muito tempo – quesitos 23) e 24); 21) Chegou a ter de tomar medicação para acalmar esse estado de ansiedade e “stress” – quesito 25). A Relação, sufragando a posição da 1ª instância, entendeu que o direito dos AA – que qualificou de propriedade – abrangia a ‘”M....V.....” e a água que dela brotava. Diversamente, defendem as recorrentes que o direito dos AA incidia apenas sobre a água da “M....V.....”, sem incluir esta última. Os factos provados mostram-nos que a razão está, nesta concreta questão, com o acórdão recorrido; como se alcança da alínea A), B), C) e D) e das resposta ao ponto 3º da Base Instrutória, o direito dos AA incide, para além do prédio, sobre “toda a água da M....V.....com respectiva canalização” sobre a qual (a água) os AA exerceram poderes de proprietário. É certo que, sendo realidades diferentes a água e a respectiva nascente, os AA alegam e reclamam apenas a propriedade da água da M....V....., localizada em prédio diverso do seu e entendida como nascente da água, e não também a propriedade da referida Mina. O que bem se compreende, pois a fonte ou nascente é, no prédio onde brota, uma parte componente desse prédio, compreendendo todas as águas nativas que nele hajam e nele venham à superfície e enquanto não transpuserem os limites desse prédio; daí que, depois de a alínea a) do nº1 do art. 1386º CC preceituar que são particulares “as que nascerem em prédio particular …, enquanto não transpuserem, abandonadas, os limites do mesmo prédio…”, o art. 1389º CC prescrever que “o dono do prédio onde haja alguma fonte ou nascente de água pode servir-se dela e dispor do seu uso livremente…”. As águas das nascentes não são, pois, res nullius se, emergindo à superfície das profundidades do solo, o proprietário do prédio delas se apodera quando assim brotam, como primeiro ocupante delas, beneficiando relativamente a elas como que do direito de preferência de primeiro ocupante. Ao invés, as águas - e a respectiva nascente - são porções do solo de onde emergem, pars fundi, inserindo-se no direito de propriedade deste; logo, a propriedade do solo importa necessariamente a propriedade da nascente e das águas que nela surgem (cfr. Tavarela Lobo, Manual de Direito de Águas, vol. II, p. 8). Assim, as águas são partes componentes ou integrantes dos prédios onde brotam e, como tal, comungam da natureza imobiliária destes. “Para que uma cousa se considere imóvel ou móvel, atende-se a que ela é ou não parte do solo ou terreno e a que está ou não nele incorporada ou integrada pela forma estabelecida na lei. Ora, nenhuma dúvida há de que as águas se acham incorporadas no solo com o qual formam um todo. Para considerar as águas como sendo, na classificação que das cousas imóveis se faça, a parte dominante, ou para ver esta parte no solo, necessário se torna atender ao que no regime das águas é fundamental - se as próprias águas, de que o leito e as margens representam em tal caso, formando com as águas um todo, partes componentes, se os prédios de que essas águas fazem parte, portio agri videtur aqua viva.” (cfr. Guilherme Moreira, As Águas no Direito Civil Português, I, p. 8-9). Todavia, uma vez desintegradas do prédio, deixam de ser partes componentes ou integrantes dele, adquirem autonomia e passam a ser consideradas, de per si, imóveis (art. 204º nº1-b) CC) (cfr. Pires de Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ªed., p.196; Santos Justo, Direitos Reais, 2007, p. 126; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo II, 2000, p. 130). Por conseguinte, o direito sobre as águas das fontes ou nascentes “está compreendido no direito de propriedade sobre o prédio, mas pode destacar-se deste, constituindo de per si objecto do direito de propriedade” (Guilherme Moreira, I, p. 501). Para tanto, têm as respectivas águas (de fontes e nascentes, subterrâneas ou equiparadas) que ser “desintegradas do domínio por lei ou negócio jurídico” (art. 1344º), passando, então, a constituir coisas (autónomas), imobiliárias (arts. 204°, nº 1, al. b) e 1302.°). Neste mesmo sentido o recente acórdão deste STJ, datado de 31-05-2011, de que foi Relator o Cons. Fernandes do Vale, seguindo o qual, “enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são partes componentes dos respectivos prédios” e “quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis”; no mesmo sentido também o Ac STJ de 03-03-2005 de que foi Relator o Cons. Azevedo Ramos, ambos acedidos na Internet em 12-06-2011, através de http://www.dgsi.pt. A separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água (ou ao uso da água) a favor de terceiro, desde logo, porque o art. 1389º CC, depois de reconhecer ao proprietário do prédio a faculdade de se servir da água de fonte ou nascente nele existente e de dela dispor livremente, ressalva as restrições previstas na lei “e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo”. E logo o art. 1390º CC no seu nº1 considera título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, “qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões”. Diversamente da opinião de Guilherme Moreira – para quem o direito à água que nasce em prédio alheio era sempre um direito de propriedade e nunca um direito de servidão - entende-se hoje, na vigência do Código Civil, que “o direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o titulo da sua constituição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo, é a da servidão” (cfr. Pires de Lima – A. Varela. Código Civil Anotado, vol III, 2ª ed., p. 305). Independentemente disso, os AA começam logo por beneficiar da inclusão na descrição predial do prédio nº nº 0000 da Conservatória do Registo Predial de Caminha (datada de 18-06-1919) da menção de que a ele pertence “toda a água da M....V.....com respectiva canalização até ao logar, com a qual são movidas umas azenhas que existem no mesmo logar “ – com a presunção legal que daí decorre (art. 7º do Cód. Reg. Predial) - sendo certo que o seu prédio – descrito como prédio misto sito em .........., freguesia de Riba de Âncora, composto por casa com três dependências, rossio e terreno de cultura, com a superfície coberta de 190 m2, superfície das dependências de 150 m2, superfície dos rossios de 500 m2 e superfície do terreno de cultura de 12.730 m2, a confrontar do norte, sul e nascente com caminho público e do poente com FF e GG, inscrito na matriz urbana no artigo 140 e rústica no artigo 835, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha na ficha nº 000000000000 - foi desanexado daquele nº 0000 e que nele se localizava este aproveitamento da água; aliás, na escritura pública de aquisição, foi expressamente mencionado pelos vendedores que ao prédio objecto dessa venda pertencia “toda a água da M....V.....e canalização desde a mina até ao prédio”. Deve entender-se, portanto, à luz destes títulos que o direito à água da nascente da M....V.....é um típico direito de propriedade e pertence, não ao proprietário do prédio onde a mesma se localiza, mas a proprietário diverso; o mesmo é dizer que aquele não tem direito à referida água e que, no que a esta concerne, o seu direito de propriedade sobre o prédio se encontra limitado pelos direitos dos AA e dos respectivos antecessores à referida água, porquanto há muito se operou a separação e desintegração do domínio do solo e da água que dele brotava naquela Mina. E quando dizemos há muito, vai aí também amplamente cumprido o prazo de aquisição do direito de propriedade das referidas águas por usucapião, pois tal situação – em que a água da M....V.....pertence e não apenas é aproveitada … (as palavras têm aqui um sentido que não pode ser escamoteado: se a água pertence a um prédio diverso daquele onde se localiza a respectiva nascente, isso significa um conceito mais amplo que o de mero aproveitamento, pois a relação de pertença inculca uma relação de propriedade) - verifica-se, seguramente, desde, pelo menos, 1919. E referimos usucapião porque os respectivos requisitos da aquisição do direito de propriedade da água também concorrem no caso sub judicio. Com efeito, prescreve o nº2 do art. 1390º CC que “a usucapião, porém, só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio”. A exigência, no caso, da permanência e visibilidade das obras ou sinais equiparados, justifica-se pela possibilidade de, assim, presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, na necessidade de salvaguardar a boa fé do comércio jurídico, relativamente a eventual adquirente, nos termos em que a lei pretende tutelá-la (cfr. Antunes Varela, RLJ– Ano 115º/222). Por conseguinte, o adquirente do direito de propriedade sobre águas provenientes de nascentes em prédio alheio por usucapião deve, para além disso, alegar e demonstrar também a posse de obras, visíveis e permanentes, nesse prédio, reveladoras da captação e condução da água para o seu prédio. Tal exigência visa excluir da usucapião em matéria de águas as situações de posse equívoca, já que, “impendendo sobre os proprietários a obrigação de dar escoamento às águas que naturalmente e sem obra do homem provenham de prédios superiores (art. 1351º) e facultando-lhes a lei, em compensação deste encargo, o poder legal de as aproveitar (veja-se o art. 1391º), a simples fruição, pelos proprietários inferiores, da água de uma fonte ou nascente tanto pode traduzir o cumprimento de um encargo e o mero exercício de una faculdade legal, como a intenção de agir uti dominus. Ora é precisamente para destruir esta equivocidade que o legislador faz depender a posse da construção de obras no prédio superior nos termos já referidos” (cfr. M. Henrique Mesquita, Direitos Reis, Sumários das Lições, 1967, p. 204).
E a verdade é que, no caso em apreço, para além do que consta no Registo Predial quanto à canalização, apurou-se que a água nascida na “M....V.....” corria, até ao prédio dos AA, por um aqueduto, em grande parte do trajecto aéreo, feito em pedra de granito, com um sulco em forma de meia cana, apoiado em parte sobre o solo, em parte sobre muros e em parte sobre esteios de granito – cfr resposta ao quesito 4º - canalização e aqueduto esses que eram propriedade dos AA. O direito dos AA, adquirido por usucapião, relativamente à referida água é, assim, de propriedade e não de servidão, como defendem as recorrentes. Com efeito, está provado que o abastecimento do seu prédio é feito há mais de 300 anos com a água da “M....V.....” (cfr. resposta ao quesito 2) e que tal facto é praticado por eles e pelos seus antecessores, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de modo continuado e ininterrupto e com a vontade, intenção e convicção de exercerem sobre tal água um direito de propriedade (cfr. resposta ao quesito 3). Aliás, os AA utilizavam essa água no seu prédio para o consumo doméstico, para rega, para alimentação dos animais, para mover a azenha e para outros usos normais do quotidiano e da agricultura (cfr. resposta ao quesito 7º). Ou seja, faziam uma utilização típica dos poderes incluídos no direito de propriedade e não apenas, como as recorrentes sustentam, da servidão, não obstante a limitação que a tal utilização constava do Registo Predial: fazer mover azenhas…e que poderia inculcar a qualificação do direito às águas como servidão. Pois os dois direitos reais – de propriedade e de servidão – não se confundem, existindo, segundo o Prof. Antunes Varela, “uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão: no primeiro caso, há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante”. Em consequência, o titular da servidão só a pode exercer, em princípio, no interesse do prédio dominante, sendo facultado ao dono do prédio serviente usar ele próprio das águas ou constituir novas servidões, visto a água continuar a pertencer-lhe. O que não pode decerto é prejudicar com novas concessões a servidão primitivamente constituída” (cfr. Tavarela Lobo, ob cit., p. 36). Por conseguinte, o direito dos AA à água de nascente sita em prédio alheio, porque abrange toda a água desta, reconduz-se a um direito de propriedade sobre a nascente; logo, com a desintegração e autonomização jurídica da água (de toda a água…) que brota da nascente da propriedade relativamente ao solo onde esta se localiza, cessa a sua qualificação como partes componentes ou integrantes do prédio onde se situam. A expropriação do prédio ou da parcela onde se localizava a nascente da M....V.....em nada altera os dados da questão, pois a expropriação abrangeu apenas o terreno e não também o direito às águas, constituindo estas, porque desintegradas do domínio do solo, coisa imóvel, juridicamente autónoma, e, como tal, susceptível de expropriação (art. 204º nº1-b) CC e 1º do Cód Exp.). Por conseguinte, não tendo as águas sido objecto da expropriação, apesar de o ter sido o prédio ou parcela onde se localizava a respectiva nascente, subsistem por inteiro os direitos que os AA detinham sobre aquelas. Assim reconduzido o direito dos AA à propriedade da nascente da M....V.....e de toda a água que dela brota, passemos à apreciação da 2ª questão enunciada: Fundamento da responsabilidade civil extra-contratual das RR. O acórdão recorrido aceitou a posição da 1ª instância quanto à responsabilidade civil subjectiva da recorrente CC ACE, enquanto construtora da auto-estrada por na execução desta obra haver violado o direito de propriedade dos AA sobre a água que brotava da M....V....., causando diminuição do caudal com os prejuízos decorrentes dessa redução drástica da água, invocando a culpa fundada na falta de cuidado na execução das obras necessárias à manutenção da captação e recondução da água. Escreveu-se no douto acórdão recorrido: “Na verdade, mesmo que nos trabalhos de captação e recondução da água se tenham usado as melhores técnicas de construção civil (e há elementos em sentido contrário, designadamente falta de declive da conduta e a perda de água na caixa de acesso à conduta de ligação entre a captação e o aqueduto), o certo é que, face ao que consta do relatório pericial e do relatório técnico que ficaram referidos, toda a obra se mostrou inadequada, pelas alterações profundas que introduziu no aquífero e nos terrenos adjacentes à nascente, resultando daí que nem deveria ter sido executada. A falta de cuidado que conduz à culpa, pela via da negligência, está não só no modo como foi efectuada aquela intervenção, mas também e sobretudo na opção por ela. Muito provavelmente faltou um estudo adequado que permitisse apurar se aquele tipo de intervenção era o adequado ou se era necessária outra ou até desviar o trajecto da auto-estrada” As recorrentes questionam tal entendimento. Segundo elas, inexistiria factualidade provada de onde se pudesse inferir as conclusões do acórdão recorrido quanto à viabilidade das técnicas utilizadas na obra e quanto à negligência na construção. Os factos, porém, mostram-nos que depois da obra, designadamente, da intervenção efectuada na zona da nascente da M....V....., se verificou uma forte redução do caudal; basta conferir os seguintes factos provados: A construção da nova captação, realizada no local da mina, e da conduta de ligação ao aqueduto, com enorme probabilidade, contribuiu para a forte redução de caudal registado na actualidade, porquanto: a) As condições hidrogeológicas locais foram fortemente modificadas pela construção da via (A28), sendo de esperar que daí tenha resultado uma redução do caudal escoado na nascente da antiga M....V.....; b) Por um lado, parte do maciço cristalino foi desmontado, o que reduziu o volume do aquífero; c) Por outro lado, a zona de emergência da água foi radicalmente alterada, devido à escavação aí realizada, à construção da nova captação e ao posterior aterro, compactação e pavimentação d) Como consequência, é de esperar que a infiltração de água no solo, assim como a recarga e o armazenamento no aquífero freático tenham sido substancialmente reduzidos, quer devido à diminuição do volume do aquífero, quer devido à impermeabilização resultante da pavimentação da área de recarga; e) Por outro lado, na zona da captação, as condições de circulação das águas subterrâneas deverão ser bastante diferentes das originais, podendo a água emergir, presentemente, num local diferente – quesitos 15) e 16).
Por outras palavras, dos vários pressupostos da responsabilidade civil subjectiva por factos ilícitos, assentes nas instâncias o facto, a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, questionam as recorrentes apenas a culpa da construtora na execução da obra. A culpa consiste, como é do conhecimento comum, num juízo de censura dirigido ao autor do facto por ter agido como agiu quando podia e devia ter agido de outro modo por forma a respeitar os direitos do lesado, in casu, por forma a manter a M....V.....com a mesma quantidade e qualidade de água, conforme foi garantido pela Euroscut aos AA. Como pressuposto da responsabilidade civil, é ao lesado que incumbe provar a culpa do lesante, excepto se houver presunção legal de culpa. Por outro lado, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487º nº1 e 2 CC). O critério de um bom pai de família (bonus pater famílias) pretende acentuar a nota ética ou deontológica do bom cidadão relativamente ao critério puramente estatístico do homem médio. Quer isto significar que o julgador não estará vinculado às práticas de desleixo , de desmazelo ou de incúria que porventura se tenham generalizado no meio (“correntes no tráfego”), se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e de são procedimento; por isso, se substituiu na Alemanha a expressão “corrente no tráfego” pela expressão “exigível no tráfego”, sendo aí a culpa aferida, não pela diligência de um bonus pater familias, mas pelos cuidados exigidos e exigíveis no tráfego (cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., p. 575, nota 3). O critério normativo do bem pai de família permite aferir a culpa ou seja a omissão dos cuidados exigíveis e exigidos (a diligência equivale à observância dos cuidados devidos) em certas ocasiões e circunstâncias; logo, a culpa pode ter também um significado técnico. A violação de deveres do (exigíveis no) tráfego exterioriza-se na inobservância de cuidados exteriores; as violações de deveres do tráfego respeitam a comportamentos que “significam falta de cuidado exterior”. O cuidado exterior refere-se a um certo comportamento no mundo exterior que, visto do ponto de vista de uma pessoa, preserva os direitos e bens jurídicos de terceiros da colocação em perigo excessivo. Quando o comportamento exterior é objectivamente negligente, é necessário um exame da culpa. Para a infracção objectiva de um dever do tráfego não interessa se o titular do dever podia evitar a violação e se se preparou interiormente para o seu cumprimento. O cuidado interior é de examinar apenas quando se viola o cuidado exterior. E uma perspectiva essencial deste exame prende-se com o juízo de previsibilidade (técnica) do dano em face da actuação do agente; o cuidado interior visa o conhecimento e o evitar da violação de um dever de tráfego (cfr. Adelaide Menezes Leitão, Normas de Protecção e Danos Puramente Patrimoniais, 2009, p. 685). Em resumo: a diligência de um bom pai e família é o cuidado a que segundo as circunstâncias se está obrigado. Ora, volvendo ao caso em apreço, excluída a imputação do facto ao respectivo agente na modalidade de dolo (consciência e vontade da lesão do direito dos AA), fica-nos a negligência, ou seja, a omissão da diligência exigível, a falta dos cuidados exigíveis naquelas concretas circunstâncias (construção civil em aquíferos), a inobservância dos deveres do tráfego - na planificação e/ou na execução da obra – seja porque o resultado danoso é previsível e é possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria se acreditou (as RR acreditaram…) na sua não verificação e só por isso não tomaram as providências necessárias para o evitar, seja porque por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, as RR não conceberam a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação se usassem a diligência devida (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., p. 573). A previsibilidade do dano é, portanto, um elemento essencial da negligência, naquele caso como efectiva, neste como meramente eventual. Ora, não é necessário ser perito para saber que obras de construção civil em zonas de nascentes de água envolvem sempre um elevado risco de as comprometer decisivamente - – qualquer leigo por mais ignorante que seja sabe isso…; logo, o dano como o acontecido, previsível para o leigo mais ignorante, por maioria de razão o deveria ser também para as RR, em cujos quadros de pessoal havia com toda a certeza peritos mais que qualificados para planificar e executar a obra sem afectar a nascente; como, aliás, fora prometido aos AA, pois que – e isso resulta da matéria de facto provada, a “Euroscut” garantiu aos autores que a “M....V.....” ia ser mantida, através de obras de protecção e de conservação, assegurando-lhes, em quantidade e qualidade, a água ali nascida (cfr. G). Numa perspectiva de precaução e de prevenção do dano – prevenção de resultados lesivos - a negligência decorre, assim, da omissão indesculpável de regras aconselhadas pela mais elementar experiência e da actuação não ajustada à diligência exigível, segundo as circunstâncias do caso concreto. A crescente complexidade técnica dos nossos dias não é compatível com o conhecimento detalhado pelos lesados dos processos em cujo âmbito ocorrem os danos; daí que, fora das situações em que beneficia de presunção de culpa (art. 493º CC), não lhes seja fácil o desempenho do ónus de alegação dos factos integradores da negligência, dificuldade essa que varia, em regra, na razão directa da complexidade técnica envolvida e do seu desconhecimento daqueles processos; daí que se justifique o aligeiramento ao lesado da exigência do ónus de alegação e de prova da culpa fazendo, por um lado, decorrer esta da relação de causalidade entre o facto e o dano (princípio de prova da culpa) e por outro, impondo ao lesante o ónus de demonstrar a observância da diligência devida e a inevitabilidade dos danos. Visando facilitar ao lesado o exercício do direito à indemnização, assiste-se, pois, a uma radical transformação na interpretação e aplicação do tradicional princípio da culpa que pode ser descrita como uma quase-objectivação de responsabilidade civil que, teoricamente e pressupondo a previsibilidade e evitabilidade do dano, continua a ser subjectiva; e uma dessas manifestações decorre do avanço tecnológico e dos progressos na produção de bens e de serviços, nas técnicas e processos de construção que constituem, não raro, um risco potencial de danos, e determinam quer a adopção pelas empresas que os utilizam de medidas tendentes a prevenir a ocorrência de danos, quer a exigência de um nível de diligência mais elevado para os prevenir. Perante o expressamente estatuído no art. 487º nº1 CC, onerando o lesado com o encargo da prova da culpa, não ocorre aqui qualquer presunção legal de culpa determinativa da inversão do ónus de prova. Há, sim, mediante a alegação da conexão ou sequência de factos, um recurso à presunção hominis e à regra da livre apreciação das provas pelo juiz na base do id quod plerumque accidit (o que normalmente sucede) ou prima facie (primeira aparência); as regras empíricas da experiência aceites pela generalidade das pessoas podem integrar a fundamentação normativa se não forem contrariadas por leis científicas. De outro modo dito, a oneração do lesado com a prova da culpa e da respectiva alegação (porque o ónus de alegação precede necessariamente o de prova) é susceptível de, num entendimento literal e rigoroso do preceito, acabar por impedir a efectivação da responsabilidade civil, em razão das dificuldades de prova (e também de alegação… pois que o lesado não tem obrigação de conhecer as técnicas de prevenção…) em determinadas situações, frustrando o respectivo fim que é assegurar a reparação dos danos sofridos pelo lesado. Ora, no caso em apreço, melhor que ninguém, as RR – mas sobretudo, a recorrente CC, A.C.E., construtora da auto-estrada e autora da intervenção no local da nascente da “M....V.....” onde abriu um fosso ou vala com cerca de 20 metros de comprimento por cerca de 3 metros de largura e 2 de profundidade - sabem quais as técnicas recomendadas para salvaguardar aquíferos e proteger os pontos de captação de água mais sensíveis, por forma a salvaguardar o direito dos AA à água das nascente e a esta própria. E se não sabem, deviam sabê-lo para o que se impunha a elaboração prévia dos estudos necessários; como doutamente se observou no acórdão recorrido: “Muito provavelmente faltou um estudo adequado que permitisse apurar se aquele tipo de intervenção era o adequado ou se era necessária outra ou até desviar o trajecto da auto-estrada”. Logo, a intervenção da Ré CC, A.C.E. no local da nascente deveria ter sido efectuada por forma a conduzir a um resultado diverso do obtido - acentuada redução do caudal aquífero – desde logo, porque era um dado empírico aceite por todos (incluindo os peritos) que obras de construção civil em zonas de veios subterrâneos de águas são susceptíveis de interferir com esses fluxos e de os desviarem – logo, este resultado, a violação do cuidado exterior, era mais que previsível. Por conseguinte, a Ré CC, A.C.E., a quem a concessionária adjudicou a construção da auto-estrada e autora dessa intervenção, responde perante os AA, lesados, com fundamento em responsabilidade civil subjectiva. Ao invés, a responsabilidade da Euroscut SA, como concessionária, é meramente objectiva e funda-se no preceituado no nº1 da Base LXXIV do contrato de concessão aprovado pelo DL nº 234/2001 de 28 de Agosto segundo o qual ela, como concessionária, responde “nos termos gerais da relação comitente-comissário pelos prejuízos causados pelas entidades por si contratadas para o desenvolvimento das actividades compreendidas na Concessão”. Este preceito afasta a regra geral de inexistência da comissão (e a consequente relação de dependência entre comitente e comissário que legitima aquele a dar ordens ou instruções a este, pois que só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo) no contrato de empreitada entre a concessionária e a construtora. Com efeito, é por falta de tal relação que, à luz dos princípios gerais, não podem considerar-se comissários do dono da obra as pessoas que o empreiteiro contrata para a execução desta nem o empreiteiro em face do proprietário (cfr, A. Varela, Das Obrigações em Geral, ob cit., p. 640) Mercê, porém, daquele preceito – a que não é alheia a intenção de reforçar a garantia da indemnização para o terceiro - é “estendida” à relação entre a concessionária, como dona da obra, e a construtora, como empreiteira, essa relação de comissão e, logo, por via do art. 500º nº1 do CC, a concessionária – in casu, a DD SA - responderá, independentemente de culpa, pelos danos que a construtora causar, desde que sobre esta recaia também a obrigação de indemnizar. E já vimos que a construtora está obrigada a indemnizar com fundamento em responsabilidade civil subjectiva. Outra questão suscitada no recurso foi a da omissão de pronúncia sobre a modalidade de indemnização. As RR foram solidariamente condenadas a - restabelecer a captação da água na “M....V.....” e a conduzirem-na, com a mesma inclinação que desde sempre teve, até ao prédio dos autores, de modo a que ali chegue em quantidade e qualidade, no estado em que se verificava antes das obras levadas a cabo, no local da nascente, pelo “CC, A.C.E.”, fazendo, a expensas suas, no prazo seis meses, as obras necessárias e adequadas para esse efeito; - a pagarem aos autores a indemnização pelo prejuízo efectivo resultante da diminuição de produção agrícola no prédio referido em A) da matéria assente, durante o período de tempo em que estiverem privados da água necessária para o fazerem como antes das obras levadas a cabo pelas rés, a liquidar em ulterior execução; - a pagarem ao autor a quantia de 7.500,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais. Por outras palavras, a condenação no restabelecimento da captação de água e na sua condenação ao prédio dos AA com a inclinação que tinha anteriormente configurando uma reposição do statu quo ante, é uma indemnização por reconstituição natural. Com efeito, a reparação dos danos efectua-se pela reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o facto que obriga à reparação (art. 562º CC). Este modo de indemnização – isto é, de eliminação dos danos – por reconstituição natural é, por via de regra, o normal, como se depreende do nº1 do art. 566º CC ao prescrever a subsidiariedade excepcional da indemnização em dinheiro nos casos de impossibilidade, insuficiência e excessiva onerosidade da reconstituição natural: “a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”. A reparação, indemnização por reconstituição natural é, portanto, a regra e a pecuniária a excepção. As RR nas contestações que apresentaram não suscitaram a questão da impossibilidade da reconstituição natural; aliás, para além da defesa por excepção, limitaram-se a impugnar a versão dos factos invocados pelos AA na petição inicial. E, configurando a impossibilidade de reconstituição natural de excepção à regra de reparação dos danos pela reconstituição in natura da situação anterior ao facto lesivo, logo, facto impeditivo ou modificativo do direito a indemnização por este modo, sobre elas impendia o ónus de alegação e de demonstração dos factos integradores dessa impossibilidade. O que não fizeram. Logo, não tendo tal questão sido submetida à apreciação do tribunal, não tinha que ser apreciada na 1ª instância (art. 660º nº2 CPC). Como, correctamente, não foi. Daí que, suscitada na apelação, a Relação - bem - não a tivesse apreciado por se tratar de questão nova, não colocada à 1ª instância e sobre a qual, por isso, esta não produzira qualquer decisão susceptível de ser sindicada pela Relação. É a velha regra de que, fora das questões de conhecimento oficioso, o conhecimento dos tribunais de recurso está funcionalmente limitado à apreciação das questões decididas pelas instâncias inferiores, não servindo os recursos para suscitar decisões sobre questões novas (art. 676º nº1 CPC). Questionada perante o STJ a validade de tal entendimento – que os recorrentes defendem configurar nulidade por omissão de pronúncia (art. 668º nº 1-d) ex vi do art. 716º CPC) – nenhuma censura merece o acórdão recorrido que, recusando apreciar a questão, mais não fez que aplicar os preceitos legais que presidem ao julgamento dos recursos, não criando neste decisões sobre questões não submetidas ao tribunal a quo. Concluindo: Impõe-se a negação da revista.
ACÓRDÃO Em face do exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido. Custas pelas recorrentes Lisboa e STJ, 12 de Julho de 2011 Os Conselheiros Fernando Bento (Relator) Fernando Bento Tavares de Paiva |