Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
705/21.2T8AGH.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: LINO RIBEIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO BILATERAL
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
CREDOR
DEVEDOR
PRESTAÇÃO
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
COISA MÓVEL
UNIVERSALIDADE
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
ANIMAL
LIQUIDAÇÃO
CARÁTER SINALAGMÁTICO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Num contrato bilateral, se o credor recupera a prestação anteriormente feita, por facto imputável ao devedor que torna impossível a sua realização, a relação obrigacional de cumprimento converte-se numa relação obrigacional de liquidação.

II - No processo de liquidação da relação contratual, decorrente da rotura do sinalagma, já não se trata de manter a equivalência das prestações, obtendo em contrapartida a prestação originária do devedor, mas sim indemnizar os danos decorrentes do não cumprimento definitivo.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1 - AA propôs contra BB ação em que pediu a condenação deste a pagar-lhe, com juros, a quantia de € 52.000,00, desde a data de incumprimento definitivo do contrato com ele celebrado até integral e efetivo pagamento.

Articulou que em 1 de março de 2012 vendeu ao réu a sua exploração de 500 suínos pelo preço de € 50.000,00, acrescido de IVA, à taxa de 4 %, tendo este entrado na posse dos mencionados animais nessa data, passando a vendê-los; que ficou acordado entre ambos que o pagamento do preço deveria ser feito no prazo máximo de 7 anos; e que, apesar de ter sido marcada a escritura e de ter sido interpelado em 9 de fevereiro de 2021, nada foi pago, tendo abandonado a pocilga em causa em 19 de março de 2013.

O réu contestou, confessando que celebrou com o autor o negócio de venda de suínos, mas que o valor acordado foi apenas de € 25.000,00, acrescido de juros, o qual deveria ter sido pago em prestações mensais até abril de 2019; mais sustentou que não faltou a qualquer escritura ou abandonou a pocilga ou os animais em causa, tendo, ao invés, sido expulso pelo autor e que a prestação, atenta a convenção de pagamento em prestações, está prescrita, nos termos do artigo. 310.º, al. e), do Código Civil.

Após audiência prévia, despacho saneador, instrução e realização da audiência final, foi proferida sentença que julgou improcedente a ação, por não se ter provado o valor e o modo de pagamento do preço da venda dos suínos, e absolveu o réu do pedido.

O autor apelou, impugnando a matéria de facto por entender que os factos provados devem ser ampliados com matéria que foi confessada nos articulados, especialmente o valor de €25.000, que o réu aceita como devendo ao autor pela cedência da exploração dos suínos.

A Relação alterou a dita sentença, aditando novos factos à matéria de facto provada, mas julgou improcedente o recurso por considerar que já não pode ser exigido o pagamento do preço porque o autor não comunicou aos serviços agrários a cessão da exploração suinícola para o nome do réu, não tendo assim havido transferência da propriedade da exploração, e o réu ter saído da exploração em março de 2013.

2. Dessa decisão pede agora o autor a revista, formulando as seguintes conclusões:

1 - Nos termos do n.º 1 da al. b) do art. 615º do CPC “é nula a sentença quando não especifique os fundamentos (…) de direito que justifiquem a decisão”.

2 – O Tribunal a quo, depois de ter fundamentado apenas o que levou a decidir alterar a matéria de facto provados, em suma, concluiu que considerando que: 1. O negócio celebrado entre o A. e o R. é uma cessão de exploração suinícola e não uma compra e venda; 2. O A. não comunicou aos serviços agrários a cessão da exploração suinícola para o nome do R.; 3. Que o R. saiu da exploração suinícola em 2013; 4. Tanto é que no art. 31º da petição inicial o A. afirmou que “perdeu o interesse em manter o contrato com o R. após este ter abandonado a pocilga”. Decisão/Conclusão: Não pode o A., em 2021, exigir o pagamento do preço.

3 – Após a motivação que levou à alteração da matéria de facto, extravasando para além do requerido pelo Recorrente ao abrigo da al. c) do n.º 2 do art. 662.º do CPC, o Tribunal a quo conclui quais os factos provados que entendia que deviam ser alterados.

4 – O certo é que ao ter feito uma correção das deficiências e insuficiências sobre a matéria de facto do Tribunal de 1ª instância, o Tribunal a quo não alterou apenas a matéria de facto daquela sentença, mas também a fundamentação da matéria de direito. O Tribunal a quo alterou o regime de jurídico aplicável ao negócio do litígio.

5 – Posto isto, conforme se pode ler no acórdão, depois de alterar a da matéria de facto, o Tribunal a quo estaria pronto a começar por especificar os fundamentos de facto e de direito que levaram a proferir a decisão final de que” não pode o A., em 2021, exigir o pagamento do preço”.

6 – No entanto, o certo é que Tribunal se ficou apenas pelos argumentos de facto que levaram a tal decisão final (argumentos acima já expostos em pontos) e não especificou qual o a fundamentação de direito que o levou a tal conclusão.

7 - Ao alterar a fundamentação de direito da sentença proferida em 1ª instância, o Tribunal a quo tinha o dever de especificar a matéria de direito que sustentava tal conclusão.

8 – No entanto, tal não sucedeu, pelo que deve o acórdão proferido pela Relação de Lisboa ser declarado nulo nos termos do preceito legal já referido e, por se tratar de matéria de direito (quanto à questão da fixação do preço do negócio e consequente incumprimento contratual), pugna-se que seja o Supremo Tribunal de Justiça a proferir a decisão conforme o alegado nas alegações de apelação e para as quais se relegam.

9 – É de referir que nas alegações de recurso para o Tribunal a quo, em momento algum, o Recorrente requereu que fosse alterado o regime jurídico do negócio que foi celebrado entre o A. e o R. Tanto é que nas suas alegações explicou que concordava com a matéria de facto provada e com a fundamentação direito quanto à qualificação do negócio jurídico proferida na 1ª instância (compra e venda).

10 – O A. explicitou nas suas alegações que pretendida que, dada a confissão do Réu, se ampliasse a matéria de facto provada ficando a constar da mesma que o preço da venda dos suínos foi, pelo menos, de €25.000,00.

11 - O Recorrente entende que o Tribunal a quo fez uma aplicação errada da lei processual e, consequentemente, da lei substantiva, ao ter alterado por completo a matéria de facto provada com base no argumento de que, com recurso à al.c) do n.º 2 do art. 662º do CPC, a decisão sobre a matéria de facto do Tribunal de 1ª instância padecia de deficiências e insuficiências que precisavam ser corrigidas.

12 - Ora, a redação proposta pelo Recorrente quanto à questão de que se deve reconhecer que o preço do negócio de compra e venda foi de pelo menos, €25.000,00, assenta no facto de que tanto na decisão de facto como na decisão de direito o Tribunal de 1ªinstância, face à matéria provada, decidiu que estamos perante um contrato de compra e venda.

13 - Ao lermos sentença num todo, ou seja, lendo o seu contexto, quando o Tribunal de 1ª instância refere ora “venda de suínos” ora “venda de exploração suinícola” está se sempre a referir a um contrato de compra e venda e não a um contato de cessão, como pretende fazer crer o Tribunal a quo. A venda de suínos/venda de exploração suinícola e cessão de exploração suinícola é que são realidades distintas.

14 - O argumento mais usado pelo Tribunal a quo para que se alterasse a matéria de facto e se alterasse a qualificação jurídica do negócio tem a ver com facto de na petição inicial o próprio A., algumas vezes, fazer menção a cessão de exploração de suínos. O Tribunal a quo até referiu que “Curiosamente no art. 15º da petição inicial o A. usa a expressão pocilga do A.”.

15 - Com todo o respeito, o que escapou ao Tribunal a quo é que quanto a art. 15ºda petição inicial foi requerido pelo A. a alteração da redação de tal artigo no início da audiência de discussão de julgamento para que ao invés de “pocilga do A.” se lesse “pocilga do pai do A.”.

16 - Ao lermos a causa de pedir da petição inicial no todo conjunto é patente que o A. pretendeu referir-se a uma compra e venda e não um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial. Tanto é que no seu art. 5º o A. e aqui recorrente explica que o espaço onde estavam os suínos (ou seja, a pocilga) não era seu, mas sim do seu pai.

17 - Veja-se também que a o A. logo no seu art.1º da petição inicial refere que “o A. vendeu ao R a sua exploração suinícola”.

18 - É certo que na sua petição inicial A. fez algumas vezes menção a “cessão de exploração”. O que poderá, de facto causa alguma confusão sobre qual o negócio que afinal pretendia que se provasse. No entanto, quando referiu “cessão” não se referia ao termo jurídico, mas sim ao sentido literal da palavra “ceder” que significa transmitir um direito.

19 - E as partes, foi referido pelo próprio MM. Juiz que visto que a petição inicial era confusa quanto ao negócio que estaria em causa e que o Réu na sua contestação falava em venda, foi fixado como 1º tema de prova o seguinte “Termos do acordo celebrado em 01/03/2012, entre Autor e Réu, preço acordado e respetivo modo de pagamento.” Ou seja, ao abrigo do poder inquisitório que dispõe o Tribunal nos termos do art. 411º do CPC ficou patente que a qualificação do negócio jurídico celebrado entre o A. e o R. seria melhor esclarecida em sede de audiência de discussão e julgamento.

20 - Outro argumento usado pelo Tribunal a quo para alteração drástica da matéria de facto provada foi de que o Tribunal de 1ª instância refere no ponto I da matéria de facto o termo “exploração suinícola”.

21 – Ao analisarmos os temas de prova e o objeto do litígio é claro (sem qualquer deficiência ou insuficiência): pretendia-se apurar qual o negócio jurídico que estava em causa e se o Réu havia incumprido com o negócio em causa e em caso afirmativo quais as consequências jurídicas.

22 - O Tribunal de 1ª instância remete a fundamentação de facto da matéria dada como provada para os articulados porque nos articulados é assente que: o contrato celebrado entre o A. e o R. foi de compra e venda de suínos (artigo 1º da petição inicial e como já se disse o R. na sua contestação refere “foi vendida” nos seus arts. 4º e 19º), o R. nunca pagou qualquer valor (R. não impugnou o art. 10º da petição inicial, em que o A. refere que o R. nunca pagou qualquer quantia).

23 – Quanto à parte em o Tribunal a quo refere que lhe causa estranheza o Tribunal de primeira instância mencionar ora “exploração”, ora “pocilga”, ora “animais”, terá de se ler com atenção a fundamentação de direito do Tribunal de 1ª instância que nos diz que “Como resulta do facto dado como provado em I, o negócio jurídico celebrado entre o Autor e o Réu CC [lapso de escrita do Tribunal pois não existe nenhuma parte com este nome] tem, essencialmente, as seguintes características: (1) entrega de 500 suínos pelo Autor ao Réu;(2) o pagamento pelo Réu de um valor pecuniário pelos suínos em causa. Assim, confrontamo-nos, aqui, com um contrato de compra e venda, previsto no art. 874.º, do Código Civil. Tal contrato tem, no que ora interessa, como efeitos essenciais, para além da transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa, por parte do vendedor, e a obrigação de pagar o preço, por parte do comprador (cfr. o art. 879.º, do Código Civil).” (sublinhado nosso).

24 - O Tribunal 1ª instância qualificou o negócio do A. e do R. como um contrato de compra e venda. O que concordamos quer nas alegações do recurso de apelação quer no presente recurso de revista.

25 – Pelo que face ao exposto, fez o Tribunal a quo uma errada aplicação da lei processual ao ter entendido que, no caso em concreto, podia socorrer-se do disposto na al. c) do n.º 2 do art. 662º do CPC, extravasando todo o objeto do litígio e alterando toda a matéria de facto sem ter depois sequer se dignado a especificar quais as consequências jurídicas que daí adviriam através da fundamentação da matéria de direito.

26 - Assim, entende o Recorrente que o Tribunal a quo poderia e deveria ter mantido a matéria de facto dado como provada.

27 - É facto irretratável que o Réu confessou que celebrou o contrato de compra e venda de 500 suínos pelo preço €25.000,00, e que nunca pagou.

28 - E mais uma vez se reitera que ficou provado por acordo das partes que os 500 suínos foram entregues ao Réu.

29 - É manifesto que o Recorrente requereu ao Tribunal a quo que se ampliasse a matéria de facto e que passasse a constar da matéria de facto dado como provada que foi acordado que o preço do negócio entre o A. e o R. foi, de pelo menos, €25.000,00. É certo que o Tribunal a quo podia e devia ter reconhecido tal facto sem ter de extravasar o objeto do recurso e alterar por completo a matéria de facto da como provada.

30 - E é exatamente isso que se pretende se aprecie em sede do presente recurso de revista.

31 - A ser dado como provado o preço do contrato de compra e venda era de €25.000,00, que houve entrega dos animais e que o Réu nunca pagou qualquer quantia ao A., à luz das regras de direito substantivo, é manifesto que há incumprimento contratual e, portanto, deverá o R. ser condenado, pelo menos ao pagamento de €25.000,00 desde a data da sua interpelação (04/02/2021, tal como consta do ponto III. da matéria dada como provada pelo Tribunal de 1ª instância).

32 - Pelo que, face ao exposto, o Tribunal a quo fez uma errada aplicação da lei substantiva.

II – Fundamentação

3 – A Relação corrigiu e ampliou a matéria de facto provada na 1.ª instância, nos seguintes termos:

I. A 1 de Março de 2012, o A. e o R. acordaram na entrega pelo primeiro a troco de quantia não inferior a € 25.000,00 pelo segundo da exploração suinícola do primeiro composta por 500 cabeças de suíno.

II. O R. não entregou qualquer valor ao A. relativo ao negócio referido em I.

III. O A. não comunicou aos serviços agrários a cessão da exploração suinícola para o nome do R., razão pela qual, sempre que o R. apresentava os suínos no matadouro para abate, os suínos estavam no nome do A.

IV. O R. saiu da exploração suinícola em março de 2013.

V. O A., por carta registada com a/r enviada a 4 de fevereiro de 2021 e recebida a 9 de fevereiro de 2021, interpelou, através da sua mandatária, o Réu, para que este procedesse ao pagamento de fatura do valor de € 52.000,00, no prazo de 8 dias.

4 – As duas instâncias recusaram o crédito reclamado pelo autor, emergente de um negócio que celebrou com o réu, mas fizeram-no com fundamentação essencialmente diferente.

A decisão de 1.ª instância, qualificando o negócio como contrato de compra e venda, assenta na falta de prova do valor a pagar e do modo de pagamento, cujo ónus competia ao autor (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

A decisão de 2.ª instância, ampliando a matéria de facto e qualificando o negócio como cessão de exploração, termina por assentar na premissa da “inexigibilidade” da prestação por (i) não ter “havido transferência da propriedade da exploração suinícola do A. para o R”, (ii) o réu já não ser “o detentor da exploração desde abril de 2013”, (iii) e o autor ter afirmado que “perdeu o interesse em manter o contrato com o R. após este ter abandonado a pocilga”.

Portanto, apesar de a ação ser improcedente em ambas as instâncias, não existe uma situação de dupla conforme que obstaculize o acesso ao Supremo, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 671.º do CPC. A segunda decisão difere substancialmente da primeira em três pontos essenciais: com base na confissão do réu, deu-se como provado o valor do negócio; atribui-se distinta qualificação jurídica ao acordo estabelecido entre autor e réu; e considerou-se o réu desvinculado da obrigação de pagar o valor do negócio. De modo que, apesar do resultado final ser idêntico ou “conforme”, o quadro factual e normativo seguido em cada uma das instâncias revela duas decisões substancialmente diversas.

5 - A revista aponta ao acórdão recorrido dois defeitos: (i) nulidade, por falta da fundamentação de direito que justifique a decisão (alínea b) do artigo 615.º ex vi artigo 666.º do CPC); (ii) violação da lei processual que atribui competência à Relação para modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto (n.º 1 e alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC).

Relativamente à primeira questão, diz o recorrente que o acórdão concluiu que o autor não pode exigir o pagamento do preço, mas “não especificou qual o fundamento de direito que o levou a tal conclusão”. O coletivo que proferiu o acórdão recorrido pronunciou-se, nos termos do n.º 1 do artigo 617.º do CPC, no sentido da inexistência de falta absoluta de fundamentação da sentença, já que a mesma especifica as razões – parte que o recorrente omite – que sustentam a solução adotada.

A decisão judicial recorrida, após ampliação da matéria de facto, justifica a improcedência da ação em três parágrafos:

«Com a alteração da matéria de facto provada, passou a constar desta que o preço é de montante não inferior a € 25.000,00.

No entanto, passou também a constar da matéria de facto provada que o A. não comunicou aos serviços agrários a cessão da exploração suinícola para o nome do R. e que o R. saiu da exploração suinícola em março de 2013.

Não tendo havido transferência da propriedade da exploração suinícola do A. para o R. e já não sendo este o detentor da exploração desde abril de 2013, não pode o A., em 2021, exigir o pagamento do preço, tanto mais que, no artigo 31º da petição inicial, afirmou que “perdeu o interesse em manter o contrato com o R. após este ter abandonado a pocilga”».

Não obstante se ter dado como provado o preço do negócio celebrado entre autor e réu – no sentido pretendido pelo apelante –, considerou-se que o réu já não tinha o dever de pagar esse valor porque a propriedade da exploração suinícola nunca chegou a ser transferida e o réu, apesar de ter detido a exploração desde o início do contrato, saiu em março de 2013. Deste modo, a sentença expressa os motivos que servem de apoio à conclusão de que após aquela data inexiste o vínculo jurídico por força do qual o autor pudesse exigir o pagamento dos vinte e cinco mil euros. Para se dar a decisão judicial como perfeita, no sentido de não padecer do vício que o recorrente lhe imputa, é suficiente a exposição enunciadora das razões jurídicas da solução adotada pelos julgadores. Já a recondução do decidido a um parâmetro valorativo que a justifique não se inclui entre as nulidades da sentença, mas sim no erro de julgamento ou não conformidade com o direito substantivo.

Com efeito, o dever formal de fundamentação da decisão judicial cumpriu-se com a explicitação de que não existe a obrigação de pagar a quantia peticionada, porque o réu não chegou a ser proprietário da exploração suinícola e desde março de 2013 deixou de a possuir. E isto é suficiente para esclarecer as razões determinantes da decisão judicial que foi tomada, pois, como reiteradamente de diz, para que o acórdão careça de fundamentação não basta que o discurso justificativo seja deficiente, incompleto, não convincente, é preciso que haja falta absoluta. Consistindo a fundamentação da sentença na externação das razões de facto e de direito que estão na base da decisão, o seu conteúdo há-de aparentemente ser capaz de fundar a decisão, não se exigindo a existência de pressupostos reais e motivos corretos suscetíveis de suportarem uma decisão judicial legítima quanto ao fundo.

6 - Na verdade, o que o recorrente contesta com a invocação da nulidade da sentença é o juízo judicial judicativo que no acórdão se faz quanto à inexigibilidade do crédito de que o autor se arroga. A sua tese é a de que vendeu ao réu 500 suínos por 25.000 euros e o réu não pagou o respetivo preço, convertendo-se a mora em incumprimento definitivo através da interpelação admonitória. Diferente foi o entendimento do acórdão que, perante os factos provados, considerou que o objeto do contrato não foram os suínos individualmente considerados, mas a exploração suinícola. Por isso, tendo a posse da exploração sido restituída ao autor, pela saída do réu em março de 2013, deixou de existir a contrapartida devida pela cedência ao réu.

Deve dizer-se que, contrariamente ao referido no acórdão, a falta de comunicação aos serviços agrários da transmissão da exploração pecuária não interfere na questão da propriedade da mesma. A relação que o produtor, responsável ou titular da exploração pecuária tem com a Administração Pública resulta dos condicionamentos que a lei estabelece ao exercício da atividade pecuária para garantir o respeito pelas normas de bem-estar animal, a defesa higiossanitária do efetivo pecuário, a salvaguarda da saúde, a segurança de pessoas e bens, a qualidade do ambiente e o ordenamento do território. É em razão de tais imperiosos interesses públicos que a lei sujeita o exercício da atividade pecuária a autorizações, licenças, declarações prévias, registos de produtores, estabelecimentos e animais, etc. (Decreto-Lei n.º 81/213, de 4 de junho).

Por isso, o registo dos estabelecimentos onde os animais estão alojados, criados ou mantidos no Sistema Nacional de Informação e Registo Animal (Decreto-Lei n.º 143/2006, de 27 de julho) não constitui nas relações privadas presunção de que o estabelecimento pertence a quem promoveu aquele registo. O facto de não se comunicar ao RNIRA a alteração de denominação do operador da exploração, bem como qualquer cessão, definitiva ou temporária, gratuita ou onerosa da exploração pecuária, prevista naqueles diplomas, não significa que não tenha havido alteração no domínio da exploração. Como se sabe, no nosso sistema jurídico relativo ao direito sobre as coisas - de acordo com o artigo 408.º, n.º 1, do Código Civil – vale o regime de transmissão ou constituição solo consensu, isto é, depende de mero acordo de vontades. Ou seja, quem, sem reserva de domínio ou estipulação semelhante, realiza um contrato de compra e venda, atribui ou adquire o correspondente jus in re sem dependência de qualquer ato ulterior.

7 - O punctum saliens do diferendo assenta sobretudo na definição do objeto mediato do acordo realizado entre autor e réu e não tanto na qualificação da atividade negocial descrita. O recorrente considera que vendeu 500 suínos por 25,000 euros, o que dá 50 euros por suíno; o acórdão recorrido decidiu que o objeto da prestação devida foi a exploração suinícola. É evidente que, como objeto de direitos ou relações jurídicas, são coisas distintas um suíno, um grupo de suínos (vara) ou uma exploração suinícola. Um suíno, como coisa simples, uma vara, como universalidade de facto (ou coisa composta, no critério do artigo 206.º do Código Civil) ou uma exploração pecuária, como estabelecimento (empresa), podem ser objeto de relações jurídicas próprias. Neste caso, a transmissão do estabelecimento como universalidade, isto é, como complexo ou unidade económica, como um todo destinado ao fim próprio dessa unidade, qualificava-se como «trespasse» se a alienação fosse definitiva ou como «cessão de exploração» se foi temporária.

Ora, os factos tidos por assentes nas instâncias e as ilações tiradas em matéria de facto não permitem qualificar com rigor a relação contratual, pois desconhece-se se houve ou não transmissão do local onde a exploração estava instalada, se foi definitiva ou temporária, e que elementos (móveis, utensílios, espaços) faziam parte da exploração transmitida.

Todavia, a qualificação jurídica do acordo é um problema que não tem relevância prática, porque a «coisa» que o recorrente se obrigou a prestar e que efetivamente prestou em março 2012 («exploração suinícola composto por 500 suínos») foi restituída um ano depois. Qualquer que tenha sido o objeto do contrato – os suínos, na sua individualidade física, a vara, como universalidade de facto ou a exploração pecuniária, como universalidade jurídica (estabelecimento) – o programa negocial corresponde malogrou-se com a saída do réu da exploração e consequente restituição ao autor da prestação feita. Se o objeto do contrato tivesse sido os 500 suínos individualmente considerados – com entende o recorrente – e o mesmo número de animais tivesse sido restituído, não podia ser exigida a contraprestação, mas apenas indemnização pelo não cumprimento.

Como o contrato tem natureza sinalagmática, tendo cada uma das obrigações a sua causa na outra (sinalagma genético) – a obrigação de prestar 25.000 euros deriva da obrigação de entregar a exploração suinícola e vice-versa –, a sorte de uma delas acompanha a outra, o que determina que permaneçam ligadas durante a fase de execução do contrato, não podendo uma ser realizada se a outra o não for (sinalagma funcional).

Ora, por facto imputável ao devedor – o réu que saiu da exploração – a prestação do credor de lhe entregar da exploração tornou-se impossível de realizar, entrando a relação contratual numa fase de liquidação. No processo de liquidação da relação contratual, decorrente da rotura do sinalagma, já não se trata de manter a equivalência das prestações, obtendo em contrapartida a prestação originário do devedor, mas sim indemnizar os danos decorrentes do não cumprimento definitivo (artigos 798.º do Código Civil). Uma vez que a relação contratual já não existe como tal, porque entrou em crise e se volveu em relação de liquidação por culpa do devedor, a prestação exigida pelo autor não pode ser feita em cumprimento ou execução da relação obrigacional originária.

Se bem repararmos, é esta a ratio decidendi do acórdão recorrido, quando refere que autor não pode exigir em 2021 o pagamento do preço, porque não é detentor da exploração desde março de 2013, tanto mais que autor “perdeu o interesse em manter o contrato com o R. após este ter abandonado a pocilga”. Ou seja, recuperada a prestação anteriormente feita, com a saída do devedor da exploração suinícola, desapareceu a causa da obrigação de pagamento do preço, restando ao credor pedir uma indemnização pelos danos causados pelo não cumprimento definitivo.

Portanto, mesmo numa dimensão substancial do dever de fundamentar a sentença, que exija a explicitação de pressupostos ou motivos corretos, o acórdão recorrido não padece de nulidade por falta absoluta de fundamentação.

8. O mesmo se diga quanto a alegada violação da lei processual atributiva de competência à Relação para modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto (n.º 1 e alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC).

O recorrente alega que no recurso de apelação apenas pretendeu que, perante a confissão do réu, fosse ampliada a matéria de facto provada, ficando a constar da mesma que o preço de venda dos suínos fosse de 25.000 euros; mas o tribunal extravasou esse pedido, alterando a matéria de facto provada que não padecia de qualquer “deficiência ou insuficiência”, nem merecia qualquer correção; pois, em momento algum requereu que fosse alterado o regime jurídico do negócio celebrado entre autor e réu, que em vez de um contrato de compra e venda passou a ser um contrato de cessão de exploração.

A objeção dirigida ao poder de a Relação alterar a qualificação jurídica do contrato não tem razão de ser. A qualificação do contrato é uma questão de direito a ser decidida pelos tribunais, independentemente do nomen juris que as partes lhe tenham atribuído. Os tribunais, procedendo a diferente qualificação, não exorbitam de modo algum dos limites dos seus poderes cognitivos, já que estes operam em matéria de facto e não também no tocante a matéria de direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC). Por isso, com base nos factos provados e nas ilações que deles se retiram, não está subtraído ao tribunal ad quem o poder de qualificar de modo diferente a figura negocial.

O que o recorrente contesta é alteração da matéria de facto provada que, no seu entender, conduziu a que o negócio tivesse sido qualificado como “cessão de exploração” e não “compra e venda”. Porém, a alteração da decisão proferida em 1.ª instância sobre a matéria de facto não tem a virtualidade para, com base nela, como seu lógico desenvolvimento, tornar mais clara a qualificação jurídica do contrato realizado. Com efeito, no ponto n.º 1 dos factos provados, apenas foi substituída a expressão «a troco de um valor pecuniário» pela «a troco de quantia não inferior a €25,000»; acrescentaram-se dois novos factos que não têm a ver com a substancia ou conteúdo do contrato (ponto 3 - O A. não comunicou aos serviços agrários a cessão da exploração suinícola para o nome do R., razão pela qual, sempre que o R. apresentava os suínos no matadouro para abate, os suínos estavam no nome do A; ponto 4 - O R. saiu da exploração suinícola em março de 2013); e acrescentou-se ao do ponto 3 (que passou a ser o n.º 5) a referência à data em que foi recebida a carta registada para interpelação do réu. Quanto ao objeto do negócio, definido no ponto 1 («exploração suinícola composta por 500 cabeças de suíno»), não houve qualquer alteração.

Os três pontos da matéria de facto que a 1.ª instância deu como provada, como expressamente motivou a sentença, resultam de factos que foram admitidos por acordo nos articulados; e o mesmo acontece com a ampliação efetuada na Relação. O recorrente não questiona, nem o podia fazer (n.º 4 do artigo 662.º do CPC), a ampliação da matéria de facto. Considera, porém, que não tendo requerido a ampliação com tal extensão, o tribunal estava impedido de a realizar.

Em face das normas extraídas do artigo 662.º do CPC não oferece dúvidas que a Relação não só «pode» como «deve» alterar a matéria de facto, «se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa». Significa isto que, em aplicação de regras vinculativas de direito probatório, a Relação pode modificar a decisão sobre a matéria de facto, mesmo quando não solicitado pelo apelante, assumindo-se como verdadeiro tribunal de instância. Trata-se de importante inovação que visa garantir um efetivo segundo grau de jurisdição, através do poder de formulação de um “juízo autónomo” sobre meios de prova constantes do processo.

Como se fundamenta no acórdão recorrido, os factos novos introduzidos na matéria de facto foram todos admitidos por acordo nos articulados. Do artigo 607.º, n.º 4, aplicável ao acórdão da Relação, por força do artigo 663.º, n.º 2, o coletivo deve tomar em consideração os «factos admitidos por acordo». Por isso, se dos temas da prova e da matéria de facto provada e não provada, se omitiu matéria de facto alegada e não impugnada que se revela essencial para a resolução do litígio, em termos de assegurar um diferente enquadramento jurídico do tribunal a quo, deve a Relação ampliar a matéria de facto.

Conclui-se, assim, que não há qualquer violação das normas do artigo 662.º do CPC.

III - Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido, com as custas pelo recorrente.


Lisboa, 25 de Janeiro de 2024

Lino Rodrigues Ribeiro (relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Ferreira Lopes