Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B059
Nº Convencional: JSTJ00036582
Relator: SOUSA DINIS
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
DELIBERAÇÃO SOCIAL
FIM SOCIAL
NULIDADES
ABUSO DE DIREITO
SÓCIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: SJ199904140000592
Data do Acordão: 04/14/1999
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1410/98
Data: 07/02/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR COM - SOC COMERCIAIS.
DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG.
Legislação Nacional: CSC86 ARTIGO 6 N2 ARTIGO 56 N1 D ARTIGO 58 N1 B ARTIGO 24.
CCIV66 ARTIGO 940 N2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1996/12/06 IN CJSTJ ANOIV T2 PAG128.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/01/07 IN BMJ N423 PAG539.
Sumário : I - A deliberação social que confere a um accionista fundador o direito a utilizar gratuita e vitaliciamente uma concreta habitação não lhe atribui direito especial já que a todo o tempo a sociedade, através da assembleia, pode revogar a liberalidade, o que não acontece com os direitos extracorporativos ou especiais dos sócios.
II - Porque com a morte do accionista a família se não desintegrou, para que o cônjuge superstite, conquanto também accionista, possa nela permanecer tem a sociedade de o deliberar, ainda que seja para ratificar, com efeitos retroactivos, a decisão do Conselho de Administração que lhe conferiu direito a tal - é um direito novo.
III - Tendo a sociedade um cunho marcadamente familiar e sendo a beneficiária da liberalidade (de idêntico conteúdo à anteriormente conferida) accionista nomeada directora da sociedade responsável por um dos seus sectores, tal disposição não é contrária ao fim da sociedade.
IV - Elemento essencial da sociedade é o exercício de uma actividade económica comum, tendo em mira realizar o proveito económico dos sócios por qualquer meio, e não o fim de obter lucros a por eles repartir.
V - São nulas as deliberações ofensivas dos bons costumes - conceito de conteúdo indeterminado - havendo que, casuisticamente e com recurso ao prudente arbítrio, aferir da nulidade.
VI - Nem todas as deliberações ofensivas dos bons costumes são abusivas como também há deliberações abusivas que só são contrárias aos bons costumes pelo fim e não pelo conteúdo.
VII - O respeito pelo princípio geral do igual tratamento dos sócios constitui condição geral de validade, requisito de fundo, de qualquer deliberação social.
VIII - Para que haja abuso do direito de voto é necessário que cumulativamente se verifiquem os pressupostos objectivos (adequação da deliberação ao propósito ilegítimo dos associados) e subjectivo (intenção de obter uma vantagem especial para os sócios que votaram a deliberação ou para terceiros ou de causar prejuízos à sociedade ou aos restantes sócios) - esta situação apura-se através das circunstâncias concretas do voto pelo que, na sua apreciação, é de ter em conta também a posição (maioritária ou minoritária) do sócio votante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A intentou na comarca de Lisboa acção com processo ordinário contra Sociedade Agrícola SA, pedindo a declaração de nulidade, ou, se assim não se entender, a anulação das deliberações tomadas na AG da ré em 29-07-90 e que consistiram:
a) na aprovação das contas e do relatório das contas e do relatório de gestão do CA referentes ao exercício findo em 31-12-89;
b) na ratificação da decisão do CA que confere à accionista B o direito de utilização gratuita de dois andares da ré;
c) e na atribuição à mesma accionista do cargo de directora com efeitos retroactivos desde 1981.
A ré contestou, o processo seguiu os seus termos e, a final, foi proferida decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide em relação ao pedido formulado na al. a) supra e julgou, no mais, a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido.
Inconformada, a A. apelou, sem êxito, pois a Relação confirmou a decisão recorrida.
De novo inconformada, pede revista, tendo produzido alegações que concluiu pela forma seguinte:
1 - A deliberação da AG da ré de 29-03-90 que conferiu à accionista B. o direito vitalício de utilizar gratuitamente dois andares da sociedade, com o valor locativo anual de 15024 contos e uma área bruta global de 626,29 m2, constitui uma liberalidade contrária ao fim lucrativo da sociedade e aos bons costumes, violando ainda o art. 6 ns. 1 e 2 do CSC (que são normas inderrogáveis), sendo, em consequência nula (art. 56 n. 1 al. d).
2 - Com efeito, nem as circunstâncias da época em que a deliberação foi tomada, nem as condições da própria sociedade, permitem considerar tal deliberação como usual, nos termos e para os efeitos do n. 2 do art. 6 do CSC, dado que a liberalidade em causa tem peso significativo nos resultados negativos da sociedade (corresponde ao valor global da facturação anual da empresa), quase sempre negativos nomeadamente no ano de 1989, em que o resultado negativo foi de 9753417 escudos.
3 - O direito de utilização gratuita dos andares em causa a favor do K. nunca foi reconhecido ou legitimado por qualquer anterior deliberação social da recorrida, não podendo por isso afirmar-se que a deliberação sub judice não atribuiu "ex novo" um privilégio à referida accionista, sendo certo, por outro lado, que não ficou provado nas instâncias terem os andares sido adquiridos para serem usados gratuitamente por quem quer que seja.
4 - Caso se entenda não ser nula a referida deliberação, deve considerar-se ser a mesma abusiva e consequentemente anulável, nos termos do art. 58 n. 1 al. b) do CSC, pois visou satisfazer unicamente os interesses da referida accionista e dos accionistas seus filhos e genro, que aprovaram a deliberação, conferindo-lhe uma vantagem especial, exagerada e injustificada, em prejuízo da sociedade.
5 - Os interesses do grupo familiar maioritário, em que se integra a accionista B., não podem ser sobrevalorizados como o foram em relação ao interesse social comum a todos os accionistas.
6 - Ao decidir em sentido contrário, o acórdão recorrido violou, entre outras, as normas dos arts. 6 ns. 1 e 2, 56 n. 1 d) do CSC, art. 447 do CPC e 334 do CC.
Contra-alegando, a recorrida conclui:
1 - O recurso pretende ver anulada uma deliberação que ratifica a atribuição do direito de utilização gratuita de uma fracção, propriedade da recorrida, à família do fundador desta.
2 - Tal deliberação limitou-se a reconhecer e manter um direito de utilização da fracção em causa e não a atribuir "ex novo" tal direito. Direito já legitimado pela passividade da recorrente, por largos anos, conhecedora que sempre foi da sua ocorrência.
3 - A atribuição desses andares para casa de morada de família do fundador da sociedade recorrida e sua família não contraria nem o fim lucrativo da sociedade nem os bons costumes.
4 - O que é contrário aos bons costumes e abusivo é a pretensão da recorrente de se opor a uma situação que já dura há 30 anos e que sempre conheceu e assentiu.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir, para o que importa elencar os seguintes factos que as instâncias deram como provados.
1 - A ré Sociedade Agrícola SA constituiu-se por escritura pública de 20-07-42 como sociedade anónima, tendo o seu capital social sido aumentado para 20 milhões de escudos, dividido em 2000 acções com valor nominal de 10000 escudos cada uma, por escritura pública de 10-11-86.
2 - A A. é titular de 325 das acções representativas do capital da ré, pertencendo as restantes 1625 aos seguintes accionistas: 589 a C., 248 a D., 348 a E., 130 a F., 65 a G., 65 a H., 65 a I., 35 a J., e 30 a L.
3 - No dia 29-03-90 reuniu, em sessão ordinária, a assembleia geral da ré, com a seguinte ordem de trabalhos, constante do respectivo aviso convocatório:
a - deliberar sobre o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, apresentadas pelo conselho de administração com referência ao exercício findo em 31-12-89;
b - deliberar sobre a proposta da aplicação dos resultados;
c - proceder à apreciação geral da administração e fiscalização da sociedade;
d - deliberar sobre qualquer outro assunto de interesse para a sociedade.
4 - O conselho fiscal emitiu parecer favorável à aprovação do relatório e contas apresentadas pelo CA do exercício findo em 31-12-89 e o revisor oficial emitiu documento de certificação legal das contas sem reservas.
5 - A referida assembleia, com os votos favoráveis de todos os accionistas, à excepção da A., deliberou o seguinte:
a - aprovar o relatório de gestão e as contas do exercício findo em 31-12-89, apresentadas pelo CA;
b - ratificar a decisão do CA em conferir à accionista B. o direito de permanecer e usar as habitações utilizadas pelo seu marido K., nos termos em que o mesmo o fazia até à data do seu falecimento;
c - conferir formalmente à mesma accionista e com efeitos retroactivos à data do óbito do K., ocorrido em 30-08-81, o cargo de directora da sociedade responsável pelas actividades florícola e frutícola.
6 - A ré comprou a fracção autónoma designada pela letra "O", que constitui o 9º e 10º andares (duplex) do prédio urbano sito na rua das Amoreiras nº 72, E e F, em Lisboa, por escritura pública de 06-11-67, lavrada no 11º Cartório Notarial de Lisboa.
7 - Estes andares foram adquiridos para casa de morada de família do casal constituído pelo accionista fundador da ré K. e esposa B.
8 - Desde a sua aquisição em 1967, sempre os referidos andares foram utilizados gratuitamente pelo K. esposa e filhos solteiros.
9 - E sempre foram suportadas pela ré todas as despesas com água, electricidade e telefone relativas àqueles andares.
10 - Foram contabilizadas, nas contas aprovadas pela AG da ré de 29-03-90, como custos da sociedade, as despesas com água, electricidade, telefone e remunerações de pessoal doméstico, relativas à utilização dos 9º e 10º andares (duplex) do prédio referido no nº 6 supra, onde vive habitualmente a accionista B e o mesmo tipo de despesas relativas ao palacete da Quinta da Princesa.
11 - O relatório do CA aprovado na AG da ré de 29-03-90 não faz referência à autorização concedida pelo CA relativamente à celebração em 1989 de um contrato entre a sociedade e o administrador L., mediante o qual foi concedido a este o gozo de alguns gabinetes do escritório onde se situa a sede da ré.
12 - O L. utiliza parte do andar onde se situa a sede da ré, no exercício da sua actividade profissional como administrador da sociedade X, SA apenas desde Maio de 1989 inclusive, satisfazendo à ré, desde então, a retribuição mensal de 40000 escudos, como contrapartida pela utilização referida.
13 - A A. é accionista da ré desde 1977 e, desde então, a ré ou não distribui pelos accionistas os pequenos lucros apurados ou apresentou prejuízos.
14 - A A. não habita nem nunca habitou qualquer prédio da ré.
15 - Alguns accionistas da ré que não a A., vêm utilizando o palacete sito na Quinta da Princesa para passarem fins de semana ou férias e para banquetes, recepções, festas e reuniões sociais.
16 -A accionista H. vive com o marido no antigo "celeiro" da Quinta cujo gozo a ré lhe concedeu.
17 - A A., através de seu pai e representante K., nas assembleias gerais da ré, realizadas de 1977 a 1980 nunca suscitou qualquer problema relativo à casa de morada de família e ao modo da sua utilização.
18 - Os administradores da ré não recebem remuneração pelo exercício das suas funções.
19 - As contas aprovadas na AG da ré de 29-03-90 apresentam um resultado negativo de 9753417 escudos e cinquenta centavos.
20 - A ré teve também resultados negativos nos exercícios de 1971 a 1975, 1977 a 1979, 1986 e 1988.
21 - Em 1981, os andares referidos no n. 5 supra eram facilmente arrendáveis por uma renda mensal de 120000 escudos cada um e hoje poderão sê-lo por cerca de 625860 escudos o 9º e 626720 escudos o 10º andar.
Como se alcança das conclusões a presente revista vê o seu objecto circunscrito à deliberação que atribuiu gratuitamente à accionista B., o uso da fracção "O" (9º e 10º andares referidos no n. 5 supra), nas suas vertentes de nulidade por contrária ao fim lucrativo da sociedade e dos bons costumes, e da sua anulabilidade por abusiva, devendo aqui ser também tratada a questão do abuso de direito da A. invocada pela ré. Assim, tem-se por não escrita a referência à violação do art. 447 do CPC, que só fazia sentido em relação ao recurso de apelação.
1ª vertente: a declaração de nulidade (por contrária ao fim lucrativo e aos bons costumes).
a) posição da recorrente: há um direito que é atribuído ex novo à accionista B., porque se não provou que os andares tenham sido adquiridos para serem usados gratuitamente. A utilização gratuita anterior nunca foi legitimada ou reconhecida por qualquer anterior deliberação social. É uma liberalidade não usual, conduzindo à perda de lucros, sendo, assim, contrária ao fim lucrativo da sociedade e aos bons costumes. Houve ofensa dos arts. 6 ns. 1 e 2 e 56 n. 1 d) do CSC.
b) posição da Relação: 1 - os andares foram adquiridos para casa de morada da família, então constituída pelo sócio fundador, a esposa B. e filhos solteiro. A deliberação não atribuiu qualquer direito ex novo à accionista, limitando-se a manter, no seu estado de viuvez, um direito que ela usufruiu, desde 1967 a 1981 (data da morte do marido) enquanto cônjuge do sócio fundador. Tratou-se de uma liberalidade usual, não contrária nem aos bons costumes nem ao fim da sociedade, uma vez que, quanto à perda de lucros, a sociedade pode sempre tomar posição em sentido contrário ao da função (casa da morada de família) e ao inerente direito (de uso) "considerando-os extintos, o que impede que se possa considerar como privilégio (direito) especial gravoso para a sociedade, na medida em que a sua revogabilidade estivesse condicionada a pressupostos especiais que não a normal deliberação dos accionistas ou a decisão da administração".
Comecemos por acentuar duas ideias. A primeira é que, tal como as instâncias consideraram, também entendemos ser de afastar a qualificação de atribuição a um sócio de um direito especial, relativamente à deliberação posta em causa. É que a todo o tempo pode a sociedade, através da assembleia, revogar a liberalidade, o que não acontece com os direitos extracorporativos ou especiais dos sócios. A segunda, e aqui ao contrário das instâncias, é que propendemos para qualificar o direito de uso gratuito da fracção pela viúva do accionista fundador como um direito "ex novo", pelo menos a partir da deliberação agora posta em causa, e não como o mesmo direito anterior, embora com idêntico conteúdo. Com efeito, a fracção foi adquirida para casa de morada da família constituída pelo accionista fundador e esposa (facto n. 6 supra) e, claro está, dos filhos, uma vez que "desde a sua aquisição em 1967, sempre os referidos andares foram utilizados gratuitamente pelo F., esposa e filhos solteiros" (facto n. 7 supra).
A casa de morada de família pressupõe a (con) vivência dos membros mais directamente ligados por laços de parentesco e afinidade (pai, mãe, filhos e, eventualmente, os ascendentes daqueles) sob o mesmo tecto, concentrando nesse espaço físico as actividades normais de tomar juntos as refeições, conviver, dormir, receber os amigos, etc., enfim, as actividades próprias da célula familiar. E enquanto esta situação se mantiver pode falar-se apropriadamente de família e de casa de morada de família.
É claro que com a morte do accionista fundador a família não se extinguiu nem se desintegrou. O que aconteceu, entretanto, é que a família, sem desaparecer como entidade, foi-se fraccionando em vários pólos autónomos conforme os filhos se iam tornando independentes, de tal modo que, hoje em dia, somente a viúva do accionista fundador reside na referida fracção. Isto é, deixou de existir, na prática, a célula familiar e sócio-económica, em função de cuja existência e vivência a fracção foi adquirida. À medida que cada filho ia saindo de casa e constituindo a sua própria unidade familiar, e com a morte do F., o conceito de família em vista do qual a fracção fora adquirida, foi gradualmente "encolhendo", permita-se-nos a palavra, até desaparecer, como "família carecida de casa de morada" quando na fracção ficou apenas a viúva. Ora esta situação já não permite configurá-la como "família". Consequentemente, deixou de ter sentido continuar a falar-se de "casa de morada da família".
Por isto mesmo, a sociedade "sentiu" que necessitava de ratificar a decisão do CA em conferir à accionista B. o direito de permanecer e usar as habitações utilizadas pelo seu marido nos termos em que o mesmo o fazia até à data do seu falecimento. E por isso mesmo, a sociedade se viu na necessidade de preencher o hiato verificado desde o dito falecimento, conferindo à viúva e com efeitos retroactivos à data do óbito o cargo de directora da sociedade responsável pelas actividades florícola e frutícola.
Posto isto, vamos apreciar se a deliberação impugnada é uma liberalidade contrária ao fim do contrato ou se é uma liberalidade usual, e, ainda, se ofende os bons costumes.
Prescreve o art. 6 n. 2 do CSC que "as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta".
A beneficiária da liberalidade é viúva do accionista fundador. A liberalidade é, afinal de conteúdo idêntico, nem mais nem menos, ao da que antes fora conferida ao fundador, ressalvada a questão da finalidade já atrás aludida, e donde, como vimos, o entendimento de se tratar de direito novo. A sociedade, por outro lado, como resulta dos nomes dos accionistas, tem "um cunho marcadamente familiar (7 irmãos consanguíneos da A., um cunhado e a viúva do pai da A.)", que o acórdão sob recurso já acentuou. Dadas estas específicas características da própria sociedade e o conteúdo da própria liberalidade, idêntico à anterior, não vemos que extravase a qualificação de usual, que teve no seu início e que ninguém pôs em dúvida, inclusive a A.
Sendo assim, nos termos da referida norma, tal disposição não é havida como contrária ao fim da sociedade. Este fim, ao arrepio do que defende a recorrente (fls. 477) não é o lucro. O legislador "não considerou elemento essencial da sociedade o fim de obter lucros a repartir pelos associados, mas sim o exercício de uma actividade económica comum, tendo em mira realizar o proveito económico comum, tendo em mira realizar o proveito económico dos sócios por qualquer meio que seja" (Prof. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. 2, p. 218 e 338, ed. Lex).
Se bem repararmos, há um certo paralelismo na génese do n. 2 do art. 6 e na do n. 2, 2ª parte do art. 940 do CC. Naquele não se consideram as liberalidades usuais como contrárias ao fim da sociedade; neste não se consideram doações os donativos conformes aos usos sociais.
Pelo exposto, não consideramos ter havido violação do art. 6 n. 2 do CSC.
Vejamos agora se a deliberação ofende os bons costumes.
Dispõe o art. 56 n. 1 al. d) do CSC que "são nulas as deliberações dos sócios cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros orgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes (...)".
Antes de mais, e com vista a separar as águas, impõe-se anotar que há deliberações abusivas sem atentarem contra os bons costumes, há deliberações do conteúdo ofensivo dos bons costumes que não são abusivas e há deliberações abusivas que só são contrárias aos bons costumes pelo fim e não pelo conteúdo (Pinto Furtado, Deliberação dos sócios, p. 328, citando V. Xavier in RLJ 118, p. 18-19). Em face desta posição da doutrina, o legislador inseriu no CSC a hipótese do conteúdo ofensivo dos bons costumes (art. 56 n. 1 d), como fundamento de nulidade, e a hipótese de deliberações abusivas, como fundamento de anulabilidade (art. 58 n. 1 b).
Impõe-se, então, interpretar o conceito, algo indeterminado, de "bons costumes". Estes "exprimem a moral social, nas áreas referidas da actuação sexual e familiar e da deontologia profissional, proibindo os actos que a contrariem" (P. Furtado, obra cit. p. 331-332; no mesmo sentido, Ac. deste Supremo, de 12-06-96, CJ-S, 1996, T2, p. 128). Mas, continua P. Furtado, "a casuística jurisprudencial tem-se revelado, todavia, bem mais ampla do que esta apertada delimitação", dando conta de exemplos, uns retirados da jurisprudência alemã, via Enneccerus - Nipperdey, outros apontados por Vaz Serra e Cunha e Sá (ibidem, p. 337-339). E ainda segundo o mesmo autor, a referida casuística jurisprudencial pode "ser sistematizada, reconduzindo-se às classes fundamentais de ofensa de bons costumes seguintes: a) tráfico de bens cuja comercialidade é reprovada pela moral pública (tráfico sexual, esponsais, tráfico de influência); b) exploração económica eticamente censurável pelo aproveitamento das circunstâncias para se extorquir uma prestação patrimonial indevida ou para se comercializarem bens incomerciáveis (recebimento de luvas, quota litis, remuneração para não se cometer um delito, etc.); c) sujeição do semelhante a formas de servidão. É neste quadro que terá de integrar-se uma deliberação dos sócios, para poder dizer-se inquinada de ofensa aos bons costumes e por essa via ser fulminada de nulidade" (ibidem, p. 339-340).
Com a propositada indeterminabilidade do conceito de bons costumes, o legislador transferiu para o juiz o "ónus" de, casuisticamente e com recurso ao prudente arbítrio, aferir se esta ou aquela deliberação ofendeu ou não os bons costumes. Ou mesmo se se enquadra na boa fé ou no abuso de direito.
Ora, a deliberação aqui posta em causa pela recorrente não tem qualquer ponto que se possa rotular ao menos de tangencial com o quadro acima traçado. Aliás, a própria recorrente sente dificuldade em enquadrá-la na ofensa dos bons costumes. Por isso, a tal ofensa se refere genericamente. A não ser que nela integre o uso gratuito da fracção. Mas, se assim é, sempre recairia sobre ela o ónus de alegar e provar que a aquisição da fracção não tinha nem nunca teve por finalidade o uso gratuito.
Podemos, pois, concluir que a deliberação em causa, quanto ao conteúdo, não ofendeu os bons costumes. Se os ofendeu quanto ao fim é o que veremos a seguir.
2ª vertente: a anulabilidade (por abuso do direito da ré) e o abuso de direito da A.
a) posição da recorrente: o contrato de sociedade não confere qualquer vantagem aos accionistas fundadores. A deliberação visou apenas satisfazer os interesses da accionista B e dos seus filhos e genro, em prejuízo da sociedade e da recorrente. O prejuízo da sociedade corresponde ao valor locatício; o da recorrente afere-se pela situação de insuficiência económica em que se encontra, pois até litiga com o benefício do apoio judiciário. Houve abuso do direito e ofensa dos arts. 58 n. 1 b) do CSC e 334 do CC.
b) posição da recorrida: a pretensão da recorrente de se opor, agora, a uma situação que dura há mais de 30 anos e que sempre conheceu e na qual assentiu constitui abuso do direito.
c) posição da Relação: o argumento usado pela recorrente é reversível. Os administradores não recebem remuneração pelo exercício das suas funções, podendo a sociedade deliberar no sentido contrário e tornarem-se tais encargos superiores ao valor locatício.
Preceitua o art. 58 n. 1 al. b) do CSC que "são anuláveis as deliberações que sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos".
Como resulta do texto da lei, para que haja abuso do direito de voto são necessários dois requisitos cumulativos: um pressuposto objectivo, traduzido na adequação da deliberação ao propósito ilegítimo dos associados; e um pressuposto subjectivo que pode aparecer na variante da intenção de obter uma vantagem especial para os sócios que votaram a deliberação ou terceiros, ou na de causar prejuízos à sociedade ou aos restantes sócios.
Vejamos como a doutrina vem tratando esta questão:
O CSC adoptou, "ainda que numa fórmula um pouco mais ampla, ou se se quiser menos restritiva" (Dr. Taveira da Fonseca, Deliberações sociais, suspensão e anulação, Textos do CEJ e do CD do Porto da OA, p. 148) a posição perfilhada pelo Prof. Ferrer Correia, que entendia, para se poder falar de abuso do direito de voto, ser necessário aparecerem cumulados dois requisitos: determinar-se o sócio por motivos extra-sociais; e resultar daí prejuízo para a sociedade. Qualquer dos requisitos, de per si, não bastava para se poder falar de abuso do direito de voto. "A invocação da mera desconformidade do conteúdo da deliberação com o interesse social, não pode ser, de per si, fundamento da impugnação da validade daquela. Um sócio discordante não é admitido a fazer valer a sua própria interpretação do interesse social, alegando que a maioria não o avaliou bem e pedindo ao juiz que aprecie a deliberação quanto ao mérito. Por outro lado, não diremos, com certa orientação, que há vício de voto ou de deliberação, só porque os sócios com o seu voto, visaram interesses extra-sociais - se determinaram por motivos alheios ao bem da sociedade" (ibidem, p. 405).
Já para Pinto Furtado, mesmo faltando na norma a componente ético-jurídica presente no art. 334 do CC, "não será, pois, sem mais, abusiva a deliberação da maioria apenas susceptível de causar um dano à sociedade ou aos outros sócios na prossecução de vantagens especiais, mas aquela que traduza esta ideia na forma ou na dimensão de um excesso manifesto, abrindo margem à situação de clamorosa injustiça de que falam os autores e quanto à qual, só verificada ela, poderá fazer-se disparar a eficácia reparadora do abuso do direito" (ibidem, p. 389).
Na óptica deste autor, para se considerar abusiva a deliberação, seria necessário que ela se traduzisse, em relação aos outros sócios, numa situação de manifesta injustiça, "num excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé ou pelo fim social ou económico do seu direito" (ibidem, p. 406); ou então, encarada sob o ângulo do prejuízo da sociedade ou dos outros sócios, "à existência da vantagem deve corresponder, quase automaticamente uma perda, principalmente no património social" (ibidem, p. 408).
Para Moitinho de Almeida, na esteira dos Profs. M. Andrade (RLJ, 87, p. 305-306) e Vaz Serra (RLJ 113, p. 7) "o abuso do direito existe nas deliberações sociais quando a deliberação não é imposta pelo interesse social e excede manifestamente os limites resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito a uma razoável conciliação do interesse social e do interesse dos sócios, tornando-se escandalosa e intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico. E apura-se através das circunstâncias concretas do voto, demonstrativas de que a deliberação é em proveito exclusivo dos sócios que a aprovam ou de terceiros, conferindo vantagens especiais àqueles ou aos terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios como agentes de uma função social" (Anulação e suspensão de deliberações sociais, 2ª ed. p. 101).
Posto isto, voltemos ao art. 58 n. 1 b) do CSC. Com Pinto Furtado (obra cit. p. 387) vamos decompô-lo, obtendo-se "um espectro com as características que passamos a apontar. É anulável, por abuso do direito dos votos através dos quais foi aprovada:
a) a deliberação apropriada para a satisfação do propósito de um dos sócios;
b) de conseguir através do exercício do direito de voto;
c) vantagens especiais para si ou para terceiros;
d) em prejuízo da sociedade ou de outros sócios".
E chegou a altura de perguntar se os factos provados integram os requisitos apontados para se concluir pela existência de deliberação social abusiva.
Logo à primeira vista, e como a A. não habita nem nunca habitou qualquer prédio da ré, por simples cotejo, não deixa de ser chocante constatar que o principal património da ré esteja a ser utilizado ou pela accionista B (o duplex em causa) ou por alguns outros accionistas, que não a A. (palacete da Quinta da Princesa e antigo celeiro da mesma, aquele para fins de semana, férias, banquetes, recepções, festas e reuniões sociais, e o antigo celeiro para habitação da accionista H. e marido, por concessão da ré), enquanto - reverso da medalha - a sociedade apresentou saldos negativos nos exercícios de 71 a 75, 77 a 79, 86 e 88, tendo apresentado saldo também negativo (9753417 escudos e cinquenta centavos) nas contas aprovadas na AG da ré de 29-03-90.
Por outro lado, como é igualmente a ré a suportar as despesas de água, luz, telefone e remuneração com o pessoal doméstico da fracção referida na deliberação e do palacete da Quinta da Princesa, também este aspecto se reflecte nos ditos resultados negativos.
Como eventual contrapartida a este deficit, os andares que constituem a fracção cuja disponibilidade foi objecto da deliberação impugnada, eram facilmente arrendáveis em 1981 por 120000 escudos mensais, e hoje poderão sê-lo, um por cerca de 625860 escudos e outro por cerca de 626720 escudos, mensais.
Face a este conjunto de factos provados e agora relembrados, sem dúvida eticamente impressionantes, temos, no entanto, sérias dúvidas em afirmar categoricamente que a deliberação impugnada é abusiva, porque será difícil enquadrar os factos no espectro do art. 58 n. 1). Face aos resultados quase sempre negativos, como pode estabelecer-se uma relação de causalidade entre a deliberação e os prejuízos? Ou entre a deliberação e as vantagens para a utente da fracção, que já o era?
A deliberação só aparentemente será abusiva. É que, embora tenha havido com ela a atribuição de um direito novo, este tem, como se disse antes, o mesmo conteúdo do direito conferido ao accionista fundador. Isto é, se enveredarmos pela consideração de que a deliberação é abusiva, então não podemos escamotear que a situação de facto (utilizamos esta expressão para evitar confusão entre o direito conferido ao accionista fundador e o ora conferido à viúva e impugnado) já vem de trás, com conhecimento e passividade da A., cuja conduta, objectivamente interpretada, face à lei, aos bons costumes e boa fé, legitimou a convicção de que o direito que lhe assiste (de pôr em causa a utilização gratuita da fracção) não seria exercido. Sendo assim, a sua pretensão configura um venire contra factum proprium. Consequentemente, mesmo considerando abusiva a deliberação (e, repete-se, não é líquida tal qualificação) o abuso ver-se-ia neutralizado pela pretensão, também ela abusiva da A.

Termos em que se nega a revista, condenando-se a recorrente nas custas.
Lisboa, 14 de Abril de 1999.
Sousa Dinis,
Miranda Gusmão,
Sousa Inês.
Declaração de Voto

Lamento não poder acompanhar o entendimento que fez vencimento.

A ré é uma Sociedade Anónima. Esta é, por excelência, uma sociedade de capitais que se associam com a finalidade de produzir lucros. É através dos dividendos que os lucros proporcionam que os accionistas poderão satisfazer as suas necessidades; e não pelo gozo directo dos bens da sociedade.

Na espécie, a sociedade ré, desde 1977, ou apresenta prejuízos ou pequenos lucros que, aliás, não distribuem pelos sócios (13); e em 1990 as contas apresentaram um resultado negativo de quase dez milhões de escudos "1" (19), o que corresponde a metade do respectivo capital "1".
Apesar disto, a ré atribuiu a uma accionista o gozo gratuito de um "duplex", em Lisboa (5), susceptível de produzir a renda anual de quinze milhões trinta mil novecentos e sessenta escudos (21) e ainda lhe pagou as despesas com água, electricidade, telefone e criadagem (10); por outro lado, outros accionistas da ré, com exclusão da autora, utilizam um palacete da ré, sito na "Quinta da Princesa", para fins de semana, férias, banquetes, recepções, festas e reuniões sociais (15), sendo sempre a ré a pagar as respectivas despesas com água, electricidade, telefone e criadagem (10); uma outra accionista utiliza um outro prédio da ré para aí habitar com o marido (16).

Ora, é princípio geral e fundamental, de natureza objectiva, das sociedades comerciais, em especial das sociedades anónimas, a igualdade de tratamento de todos os sócios (entendida em termos hábeis dadas as eventuais diferenças do capital de cada um; e sem prejuízo de poder haver acções - nunca sócios - com direitos especiais). Este princípio do igual tratamento está consagrado no art. 24 do Cód. das Soc. Comerciais.
O respeito pelo princípio geral do igual tratamento dos sócios constitui condição geral de validade, requisito de fundo, de qualquer deliberação social, como ensina Raúl Ventura, in "Alterações do Contrato de Sociedade", 1986, pag. 75.
Por isto, só com o consentimento de todos os accionistas, incluindo a autora, teria sido possível atribuir a uma accionista a regalia da deliberação impugnada, para mais com valor superior a quinze milhões de escudos por ano "2". Consequentemente, a deliberação em causa, sempre seguindo o ensino de Raúl Ventura, é anulável, nos termos do art. 58, n. 1, al. a), por violação do art. 24, n. 1 do Cód. das Soc. Comerciais.

Por outro lado, fazendo apelo ao bom senso e equilíbrio, atentas as circunstâncias acima descritas, afigura-se-me que a deliberação impugnada se revela ofensiva dos bons costumes, caindo sob a alçada do art. 56, n. 1, al. d), do Cód. das Soc. Comerciais, como em caso semelhante este Tribunal decidiu pelo Acórdão de 7 de Janeiro de 1993 (Raul Mateus), publicado no Boletim n. 423, pag. 539, e Colectânea do Supremo, 1993, I, pag. 5.

Não acompanho os vencedores onde acenam com abuso de direito da autora por exercício tardio do direito de reagir contra os apontados abusos dos accionistas maioritários - que dela fizeram a "gata borralheira" da sociedade - uma vez que a deliberação social impugnada é de 29 de Março de 1990 e a acção foi introduzida em juízo no dia 30 de Abril do mesmo ano.

Não posso acompanhar a decisão de permitir aos accionistas maioritários que continuem a banquetear-se com os bens da sociedade, não deixando à accionista minoritária nem sequer as migalhas que caiam da mesa: e acabando por dizer que abusadora é a minoritária.
A. de Sousa Inês

"1" - Repare-se que foi na mesma Assembleia em que se verificou este resultado negativo que se tomou a deliberação de atribuir a uma accionista a principesca regalia que vem impugnada.

"2" - Isto que vem classificado de "liberalidade usual" é constituído por dois átrios, escadaria, grandes salas, sala de jantar, antecâmara entre estas, cozinha constituída por cinco divisões, biblioteca e escritório, suite de dois quartos, quarto de vestir e casa de banho, conjunto de três quartos servidos por um átrio e casa de banho, dois quartos e duas casas de banho e nove varandas cobertas.