Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
987/20.7T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
SUCUMBÊNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
VIOLAÇÃO DE LEI
REJEIÇÃO DE RECURSO
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO PARCIAL E REMESSA DO PROCESSO À FORMAÇÃO DO Nº 3 DO ARTº 672º CPC
Sumário :
Se a argumentação principal do tribunal não foi o abuso de direito, que vem usado como argumento coadjuvante da argumentação anteriormente apresentada, isso significa que não é argumento principal e que sem ele a decisão recorrida tinha sido a mesma, havendo dupla conforme impeditiva da revista.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

A. Em 19 de Dezembro de 2023a relatora a quem o processo foi distribuído proferiu despacho convite, ao abrigo do art.º 655.º, onde disse:

(transcrição)

1. RODO CARGO, TRANSPORTES RODOVIÁRIOS DE MERCADORIAS, S.A., instaurou acção, com processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A. actualmente Generali Seguros, S.A., pedindo que a R. seja condenada a:

A) Pagar à autora a quantia de 105.575,01 € (cento e cinco mil quinhentos e setenta e cinco euros e um cêntimo);

B) Pagar juros de mora, de 14% ao ano, em dobro da taxa legal, como decorre do n.º 1 e 3 do artº 43º do Decreto-Lei n.º 291/2007, sobre o montante da condenação até efectivo e integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, juros de mora à taxa comercial, desde a mesma data até efectivo e integral pagamento, a que acresce a obrigação de pagamento de juros à taxa de 5% ao ano desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescem aos juros de mora referenciados nos articulados 51º e 52º da presente PI;

C) Pagar à autora as penalizações impostas pelo incumprimento do Decreto-Lei 291/2007.

D) A notificação da autora, para ainda no âmbito do processo, se assim o entender, comunicar a assunção ou não assunção da sua responsabilidade como fixado na alínea e) do artigo 36º do decreto-lei 241/2007, a fim de parar com a penalização imposta por força do decorrente deste incumprimento €100,00 o qual se requer continue a contar e seja a Ré condenada a pagar até à data da sua assunção de responsabilidade;

E) A ampliação do pedido por força das infracções ao disposto no estatuído no Decreto-Lei 291/2007, designadamente, na alínea a) do nº 6 do Artigo 36º; do nº1 do artigo 38º e do nº 2 do Artigo 40º quando revistam os factos dados como provados no âmbito da PI..

2. Para sustentar o conjunto de pretensões deduzidas, alegou, em resumo, o seguinte:

- A autora é uma sociedade comercial cujo objecto se prende com o transporte rodoviário de mercadorias, sendo proprietária do conjunto circulante constituído pelo veículo tractor com a matrícula ..-..-PC e pelo reboque com a matrícula L-......;

- No dia 22 de Janeiro de 2018, ao KM 78,20 do IC2, localidade de ..., freguesia e concelho de ..., ocorreu um acidente de viação envolvendo o referido conjunto circulante e o conjunto circulante de matrículas ..-..-ZI/C-....., segurado na ora ré, sinistro que se deveu a culpa do condutor deste último, em resultado de imprudente e desatenta condução;

- Em 25 de Janeiro de 2018, a autora enviou à ré, através de uma empresa sua representante, a reclamação inicial sobre o acidente, solicitando a peritagem do reboque de que é proprietária e a quantificação dos respectivos danos, a fim de que pudessem ser prontamente reparados, com vista a que o conjunto circulante pudesse rapidamente continuar a laborar;

- Apesar da referida reclamação, a ré não contactou a autora no prazo legal previsto, o que levou a ora demandante a contactar uma empresa para proceder à realização da peritagem dos danos verificados no seu veículo de mercadorias;

- Realizada a peritagem, cujo relatório foi emitido em 6/2/2018, a empresa representante da autora voltou a contactar a ré, recordando-a da reclamação enviada a 25/1/2018;

- Não obstante tais comunicações, a ré não comunicou à autora a assunção ou não assunção da responsabilidade, em claro desrespeito do quadro legal estabelecido nesta matéria (pertinentes normas do DL n.º 291/2007);

- Nessa sequência, em 17 de Janeiro de 2020, a representante da autora enviou à ré uma reclamação de prejuízos de forma quantificada, que englobam o custo de reparação do veículo sinistrado – reparação que se iniciou em 5/2/2018 e ficou concluída a 6/2/2018 –, os respectivos custos de paralisação, os custos de reparação de uma viatura que era transportada no citado reboque e os custos decorrentes da necessidade de contratar uma empresa de peritagem;

- Dada a postura da ré, em nada contribuindo para impulsionar o processo no sentido da sua resolução, a autora reclama nos presentes autos, para além dos custos (prejuízos) supra mencionados, juros de mora ao dobro da taxa legal aplicável a empresas comerciais (14/%), em conformidade com o estatuído no art. 38º, nº 2, do DL n.º 291/2007, uma penalização de 200,00 € por cada dia de atraso, a reverter em partes iguais para a autora e para o Instituto de Seguros de Portugal, de acordo com o art. 40º, n.º 2, do DL n.º 291/2007, bem como juros de mora à taxa de 5%, nos termos previstos no art. 829ºA do Código Civil.

3. A ré contestou, impugnando, de forma motivada, parte da factualidade alegada pela autora e sustentando que a mesma litiga com abuso do direito, em virtude de ter protelado a propositura da acção com vista a receber um montante indemnizatório o mais alto possível.

A final, peticionou que a demandante fosse condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização no valor de 5.000,00 €, sem prejuízo da aplicação de uma taxa sancionatória excepcional, nos termos do art. 531º do C.P.C., atento o facto de a autora ter deduzido uma pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, uma vez que a ré, por carta de 15/3/2018, comunicou que assumia a responsabilidade pelo sinistro.

4. Em resposta, a autora pronunciou-se no sentido da improcedência da matéria de excepção e da requerida condenação por litigância de má fé e aplicação de taxa sancionatória excepcional.

5. Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

6. Realizada a audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, na qual, como questão prévia, decidiu-se indeferir os pedidos indicados sob as alíneas D) e E) da petição inicial, por falta de fundamento legal, e conhecendo do demais peticionado, julgou-se parcialmente procedente a acção e, em consequência, decidiu-se:

“a) Condenar a ré a pagar à autora a quantia de 2.018,74 € (dois mil e dezoito euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento, e dos juros previstos no art. 829º-A, nº4, do Código Civil;

b) Absolver a ré da restante parte do pedido;

c) Condenar a autora e a ré no pagamento das custas a que deram causa, na proporção do decaimento;

d) Condenar a autora, por ter litigado de má fé, no pagamento de uma multa correspondente a 25 (vinte e cinco) UCs e no pagamento de uma indemnização à parte contrária, após ser cumprido o disposto no art. 543º, n.º 3, do C.P.C..”

7. Houve recurso de apelação, em que as questões a decidir foram assim delimitadas:

(i) Da impugnação da matéria de facto;

(ii) Do erro na aplicação do direito;

(iii)Da condenação por litigância de má fé.

8. Veio a ser proferido acórdão pelo Tribunal da Relação, que culminou com o seguinte segmento dispositivo:

“Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência, condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 2.605,74, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da citação, até integral pagamento, mantendo-se a sentença recorrida quanto ao demais decidido, com excepção do valor da multa imposto à A., por litigar de má fé, que se reduz para o valor de 10. Ucs.

Custas a cargo da Apelante e apelada, na proporção do respectivo decaimento.”

9. Desse acórdão é apresentado recurso de revista pela A, no qual formula as seguintes conclusões relativas à revista normal(transcrição):

1. A ora Recorrente apresenta o seu Recurso de Revista relativamente às questões cuja dupla conforme não se verifica e, subsidiariamente, o seu Recurso de Revista Excecional relativamente aquelas cujas dupla conforme se poderá verificar.

2. Deste modo, verifica-se inexistir dupla conforme no que diz respeito à alteração da matéria factual e, no que à aplicação do Direito diz respeito, que inexiste dupla conforme no que diz respeito à questão da contabilização do valor de paralisação e quanto à aplicação da figura do abuso de Direito.

3. Em sentido oposto, verifica-se a existência de dupla conforme no que concerne à aplicação da figura das penalizações previstas no nº2 do artigo 40º do Decreto-lei 291/2007.

4. a operação de apreciação da prova impugnada pela ora Recorrente incorre no vício presente na alínea b) do número 2 e no nº3 do artigo 674º do Código de Processo Civil, por existir erro crasso e notório na aplicação da lei de processo

5. No que tange ao facto que se pretende aditar, sob o articulado 23, o Tribunal Recorrido viola o disposto no artigo 3º, nºs 3 e 4, 4º, 5º nº2, alíneas a) e b), 6º nº1, 411º e 526º nº1 do Código de Processo Civil.

6. Em especial, sobre o articulado 8º das Alegações de Recurso de Revista, correspondente à conclusão nº6 e 7 desse mesmo Recurso, decidiu o Tribunal Recorrido da seguinte forma:

Conclusão:

Decisão:

Conclusão:

Decisão:

7. O raciocínio do Venerando Tribunal Recorrido é assim contraditado e colocado em causa, uma vez que:

1 – A partir do momento em que o Tribunal de 1ª Instância funda a valoração daconduta daAutoratendo por base factos alegados pela Ré e meios de prova carreados por esta, os quais se revelam instrumentais, complementares ou acessórios, sem dar o devido contraditório à Autora, viola o princípio do contraditório e da igualdade das partes;

2 – A Autora sobre estes só pode fazer prova em sede de audiência de julgamento, uma vez que apenas pode responder a exceções;

3 – O Tribunal de 1ª Instância valoriza esta factualidade para a condenação da Autora como litigante de má-fé e, especialmente; 4 – A Autora faz expressa menção à relevância desta factualidade nas suas Alegações de Recurso de Apelação.

8. Assim, é pois notório que o Venerando Tribunal Recorrido andou mal ao nem sequer apreciar esta impugnação da matéria de facto efetuada pela ora Recorrente e por nem sequer equacionar renovar a prova e determinar que a 1ª Instância ouvisse a testemunha AA, para melhor decisão da causa e descoberta da verdade, para saber se, afinal, a AON representa ou não a Autora no que diz respeito à marcação de peritagens, se rececionou a comunicação da Ré e a não retransmitiu à aqui Autora.

9. Deste modo, o Tribunal Recorrido não efetuou uma diligência necessária para a

descoberta da verdade e considerou uma facto não essencial, que só emergiu após a junção de documentação por parte da Ré, sem dar o devido contraditório à Autora, condenando-o como litigante de má-fé, mesmo apesar da violação por parte da Ré das normas presentes no Decreto-Lei 291/2007.

10. Concluindo, o Tribunal Recorrido viola o disposto no artigo 3º, nºs 3 e 4, 4º, 5º nº2, alíneas a) e b), 6º nº1, 411º e 526º nº1 do Código de Processo Civil, pois porquanto assim o impõe a justa composição do litígio.

11. No que tange ao facto que se pretende aditar, sob o articulado 25, o Tribunal Recorrido viola o disposto no artigo 411º e 607º nº4 do Código de Processo Civil.

12. No caso em apreço, «diligência devida» não é somente um mero conceito jurídico:

13. É um juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real e, mais importante, um juízo empírico de uma realidade de uso corrente – diligência devida.

14. Deste modo, nunca poderia o Tribunal Recorrido ter decidido não julgar o aditamento pretendido por entender que se trata de matéria conclusiva/de direito e não factual, violando, assim, o teor dos artigos 411º e 607º nº4 do Código de Processo Civil.

15. Devendo, por isso, ser determinado que o Venerando Tribunal Recorrido aprecie tal pedido de aditamento ao acervo factual.

16. Inexiste dupla conforme no que diz respeito à privação de uso, uma vez que o Venerando Tribunal da Relação Recorrido não só atribui um valor superior no que diz respeito à paralisação, como introduz o a questão de o conjunto circulante constituir uma única unidade económica, conceito que a Autora discorda.

17. Verificado a ilicitude do condutor do veículo seguro pela Ré, discorda a Autora do entendimento versado pelo Tribunal Recorrido sendo consequentemente devido o montante global correspondente a 3 dias de paralisação».

18. Isto porquanto o Acordo desenvolvido entre ANTRAM e APS não constitui um elemento cujos contornos se desconhecem, como se se tratasse de uma justiça discricionária, em que tanto faz que seja “mais” ou “menos”, muito menos se trata de um mero “anúncio, que redundaria no mesmo que fixar o valor de um imóvel apenas a partir da sua anunciada venda numa publicação”.

19. Para fundamentar o custo de paralisação do conjunto circulante especial para transporte de automóveis com as matrículas ..-..-PC/ L-......, a Autora socorre-se do Acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM como critério para a fixação da indemnização no caso sub judice, consubstanciando o juízo de equidade previsto no artigo 566º, nº 3, do Código Civil, consistindo num critério através do qual se pode guiar o Julgador, sendo esta a orientação vertida no âmbito dos processos 779/03.8..., ..., 1458/12.0..., 189/16.7..., 11421/16.7... e 80/14.1....

20. Ora, tendo em consideração que o acordo em causa foi celebrado entre a APS e a ANTRAM, sendo que esta entidade representa grande parte do setor dos Transportes Rodoviários Pesados de Mercadorias, afigura-se razoável que os valores indemnizatórios aí previstos para situações de paralisação de veículos pesados de mercadorias surjam como equitativos, atendendo à similitude de situações e à qualidade e representatividade dos Outorgantes no setor dos transportes em questão, sendo indiferente ao caso que a Autora tenha outorgado ou não o referido acordo ou seja associada ou não da ANTRAM, devendo, por conseguinte, ser fixado pelo Tribunal ad quem a verba requerida pela paralisação no valor de € 257,03/dia para o ano de 2017, conforme melhor se alcança pela atualização do acordo entre a ANTRAM e APS, como decorrer da aplicação da taxa de imobilização diária para veículos de peso bruto entre 26 e 40 toneladas afetos ao serviço internacional.

21. É igualmente devida indemnização à Autora, no que à paralisação diz respeito, considerandos ambos os veículos que compõe o conjunto circulante propriedade desta, conforme orientação vertida no âmbito dos processos 14227/19.8..., 2278/07.T..., 11421/16.7..., 2278/07....-1, 11421/16.7...-6 e 04B312, constituindo trator e semirreboque realidades distintas para efeitos de fixação de indemnização pela paralisação.

22. Os veículos que integram um «conjunto de veículos», in casu, o conjunto circulante propriedade da Autora, composto pelo veículo trator com a matrícula ..-..-PC e pelo semirreboque com a matrícula L-...... são, assim, material e juridicamente autónomos, e, por conseguinte, funcionalmente intermutáveis na utilização económico-comercial de cada um dos tipos em combinação com diferentes veículos do outro tipo, possuindo cada um dos elementos do conjunto de veículos uma utilidade económica de exploração comercial própria e autónoma, bem se compreende, à luz do exposto, que a paralisação de qualquer deles deva relevar também autonomamente como fonte de danos, devendo a Ré pagar a indemnização por paralisação referente ao veículo trator e referente ao semirreboque.

23. Logo, a Autora deve ser ressarcida na verba de €257,03 diários pela paralisação do seu equipamento de tração matrícula ..-..-PC e ainda outra de igual valor pela paralisação do seu reboque matrícula L-......, reclamando assim pela paralisação do seu conjunto circulante a verba total de €257,03 multiplicada por 2 e este valor multiplicado por 5 num total de €2.570,30, pelo facto de os veículos que integram um conjunto de veículos serem material e juridicamente autónomos e no caso presente atento o facto de o reboque de matrícula L-...... não poder circular sem o trator de matrícula ..-..-PC e vice-versa.

24. No que tange à aplicação da figura do Abuso de Direito, dado a fundamentação manifestamente diferente quanto a esta figura, inexiste qualquer entrava à interposição de Recurso de Revista.

25. Desde já se avançando que a figura do abuso de direito não tem aplicação ao caso concreto, mormente na definição e aplicação da sanção cível prevista no artigo 40º nº2 do Decreto-lei 291/2007, entendendo a aqui Recorrente que a mesma linha de interpretação deverá ser vertida no âmbito do presente processo, logo, devendo a Ré ser efetivamente condenada na sanção cível prevista no artigo 40º nº2 do Decreto-lei 291/2007, pela violação dos prazos previstos no seu artigo 36º nº1 alínea f).”

10. Foram apresentadas contra-alegações onde se conclui, na parte relativa à revista normal (transcrição):

1. Vem o presente Recurso Excepcional de Revista interposto pela Recorrente Rodo Cargo - Transportes Rodoviários de Mercadorias, SA, do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, que julgou apenas parcialmente procedente o recurso de apelação então interposto pela ora Recorrente, da douta sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância - Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Central Cível de ... – Juiz 2 .

2. A Recorrente Rodocargo, na mesma peça processual, interpõe simultaneamente recurso de revista ordinário e extraordinário (ainda que este, a título subsidiário), integrando, num e noutro recurso, de modo simultâneo, as mesmas alegações e conclusões.

3. Entende a Recorrida que a Recorrente utilizou de forma processualmente inadequada as figuras da Revista Normal e Excepcional, em simultâneo.

4. Isto porque, o Recurso de Revista Normal e o Recurso de Revista Excepcional têm estruturas, fundamentos e tramitação distintas entre si, não podendo ser cumuláveis processualmente

5. Deveria a Recorrente, se assim o entendesse, apresentar dois articulados de Alegações de Recurso, um nos termos do disposto no art.º 671.º n.º 1 e n.º3 , e 675.º n.º 1 do CPC; e outro, de Revista Excepcional, nos termos do disposto no art.º 672.º e 675.,º n.º 2 do CPC.

6. Só assim se permite ao Tribunal “a quo”, em primeiro lugar, e depois ao Tribunal “a quem”, apreciar da admissibilidade ou não de cada um dos recursos, aceitando ou rejeitando um ou outro ou ambos

7. A apreciados os fundamentos de cada um dos Recursos Interpostos, as questões suscitadas na revista excecional são manifestamente diversas daquelas que foram suscitadas no recurso de revista geral, como a Recorrente indica expressamente nas conclusões 1.º , 2.º e 3.º das suas Alegações de Recurso

8. Na Revista Normal, a Recorrente pretende a alteração da matéria de facto e aplicação de direito (valor de paralisação e abuso de direito); na Revista Excepcional, na aplicação da figura das penalizações previstas no n.º 2 do artigo 40º do DL 291/2007.

9. Evidencia-se assim uma divergência evidente nas questões que estão na base dos recursos de Revista Normal e Excepcional: num recurso, pretende ver reapreciada a matéria de facto, e discutir os conceitos de dano de paralisação e abuso de direito; no outro, pretende, em sentido oposto, analisar a figura das penalizações do art.º 40 n.º 2 do DL 291/2007.

10. A Recorrente não podia, porque tal, misturar num único Articulado o Recurso Normal e Excepcional, que seguem tramitações diversas, fundamentos diferentes, e com consequências diferentes

11. Tal desconformidade determina, no caso dos autos, que nem um nem o outro Recurso se possam aproveitar, porquanto, como se referiu supra, as Alegações de Recurso são incindíveis.

12. Mesmo que, por hipótese académica, ambos os recursos se pudessem admitir na mesma peça processual – com o que não se concorda, pelas razões práticas acima expostas – sempre obrigaria a que o Recorrente individualizasse, de forma clara, nas Alegações e nas conclusões, os fundamentos de cada um dos recursos, não podendo misturar, na mesma peça, as conclusões de um ou outro recurso, ou de ambos, porquanto, conforme se evidenciou supra, e a própria recorrente assim o entende, as questões tratadas numa e noutra sede são “em sentidos opostos” – cfr. Conclusão 1 a 3 do recurso.

13. E, assim, sendo, ambos os recursos – de Revista Normal e de Revista Excepcional – não devem ser admitidos, o que se invoca para os devidos efeitos legais

14. Entende a Recorrente que o Recurso de Revista Normal é inadmissível, uma vez que i) quanto à matéria de facto impugnada, não se verifica violação de lei que imponha reapreciação nos termos do art.º 674.º n.º 3 do CPC e ii) - quanto à matéria de direito, verifica-se dupla conforme.

15. A competência residual para alterar a decisão quanto à matéria de facto ( art.º 674.º, n.º 3, segunda parte, 682.º, n.ºs 2 e 3 (a contrario): ) é limitada aos casos em que haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ou seja, por violação de direito probatório material.

16. É necessário ainda que o Tribunal da Relação, atuando com essa violação do direito probatório material, tenha produzido uma “fundamentação essencialmente diferente” de facto, eventualmente (mas não necessariamente) com alteração da própria decisão. Portanto, há que cumprir o requisito da essencialidade da alteração da fundamentação, do artigo 673.º, n.º 3.

17. De notar que, neste poder, não cabe sequer um “mero” mau uso do artigo 662.º, conjugado com o artigo 674.º, n.º 1, al. b), uma vez que se impõe, mais uma vez que desse mau uso decorra uma alteração essencial da fundamentação de facto. Se assim não suceder, cabe, na melhor das hipóteses, reclamação, nos termos do artigo 615.º, n.º4, desde que aquele mau uso configure(também)uma das nulidades do artigo 615.º, n.º 1 (por ex., a de falta de fundamentação).

18. Ora, entende a Recorrida que nem existiu uma violação do direito probatório, nem que o Tribunal da Relação, actuando com essa violação do direito probatório material, tenha produzido fundamentação essencialmente diferente de facto.

19. Não existiu violação do direito probatório: tanto o Tribunal de primeira instância como o Tribunal da Relação apreciaram devidamente os factos, os meios probatórios, documentais e testemunhais, fazendo uma análise crítica quanto aos mesmos.

20. Quanto à utilização de meios de prova, nomeadamente quanto à inquirição de testemunhas, não indicadas pela Autora e que a Autora pretende, agora, vir ouvir, o Tribunal da Relação foi cristalinamente elucidativo: devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.

E foi essa análise crítica que se fez da prova produzida que fundamentou as decisões tomadas quanto aos concretos pontos da matéria de facto impugnados. E não ocorre fundamento para renovação da prova ou produção de prova suplementar, nem ampliação da matéria de facto, desde logo por não constam nem são invocados factos alegados, que fundamentem a pretensão da A., que não tenham sido tidos em contam, nem se suscitam dúvidas quanto aos meios de prova apresentados em juízo, a justificar a repetição de prova ou prova suplementar, nos termos previstos no artigo 662º, n.º 2, alínea a) e b) do Código de Processo Civil. Acresce que, se a apelante pretendia que fosse inquirida a testemunha que indica, devia ter requerido a sua audição nos momentos processualmente previstos, ou, caso a necessidade da sua inquirição tivesse surgido no decorrer da audiência, devia aí ter suscitado a questão, e se lhe fosse negada tal pretensão, devia ter interposto o respectivo recurso, nos termos do artigo 644º, n.º2,alínead)do Código de Processo Civil, o que não vemos que tenha sucedido.

21. Por outro lado, do confronto da decisão do Tribunal da Primeira instância com o Tribunal da Relação, resulta que não há quanto à matéria invocada, qualquer alteração da decisão de matéria de facto, que tenha produzido fundamentação essencialmente diferente de facto.

22. E, assim, não se verifica qualquer violação de lei, que determine a utilização, no caso dos autos, do poder excepcional previsto no art.º 674.º n.º 3 do CPC

23. Ainda que assim não se entendesse, sempre se consideraria que não há no caso, lugar a alteração da matéria de facto, concluindo-se neste particular como a Relação

24. Não deve ser admitida a renovação da prova, com a inquirição de testemunha não indicada pela Autora nem nos articulados, nem durante o processo, nem sequer na audiência de julgamento, não tendo havido qualquer reacção da Autora quanto à admissibilidade ou não admissibilidade desse meio de prova

25. Não deve ser admitida a renovação de prova, ou a produção de prova testemunha não indicada pela Autora, quando existe prova documental e testemunhal em sentido contrário pretendido ao da Autora (cfr testemunha BB (com depoimento gravado no ficheiro 202111111614978_2895727_2871697), as marcações de peritagens são feitas com o corrector de seguros, e não com o cliente; E, a testemunha CC, conforme depoimento prestado – ficheiro n.º20211111161423_2895727_2871697,; ) , sendo parte da prova documental não impugnada pela própria Autora /Recorrente.

26. Não deve ser admitido como facto provado ou não provado a matéria “A Ré não procedeu com a devida diligência na resolução do presente sinistro”, por ser manifestamente conclusiva, e por da restante factualidade resultar precisamente o contrário.-

27. Quanto à matéria de direito objecto do Recurso Normal de Revista, entende a Recorrida que se verifica a existência de dupla conforme , quer quanto à contabilização do valor de paralisação, quer quanto à aplicação da figura do abuso de direito.

28. Quanto à contabilização do valor de paralisação, os valores considerados pelo Tribunal da Relação e pelo Tribunal de primeira instância se contêm , existindo e conformidade decisória entre a decisão de 1ª instância e o acórdão da Relação, uma vez que ocorre uma confirmação integral e irrestrita da primeira decisão, estando ausente um efeito revogatório da primeira decisão e, por isso, uma contradição com a mesma.

29. Também quanto decisão de direito sobre o instituto do abuso do direito, embora quanto a esta matéria possa, de modo aparente, não existir dupla conforme, o certo é que, em ambas as decisões se considerou a situação de abuso de direito.

30. Por mera cautela de patrocínio, e apenas para o caso de o Recurso apresentado pela Recorrente ser admitido – o que não se concede sempre se dirá que deve manter-se nos exactos termos, a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, aderindo nesta sede à fundamentação daquele Tribunal.

31. Na verdade, a Recorrente não demonstrou nos autos que o Protocolo entre a ANTRAM e a APS, a que a Recorrente alude nos autos, se trate de um elemento discricionário – tal Protocolo, como muitas vezes é evidenciado pela Jurisprudência dos Tribunais superiores, deve ser entendido como um elemento a considerar para o cálculo das indemnizações por paralisação, mas deve ser isso mesmo, meramente orientador, não podendo nem devendo ultrapassar ou substituir aquilo que são os critérios da lei civil, nomeadamente o recurso à equidade e ao princípio da diferença

32. Sucede que, como bem salientado pelas instâncias, a Recorrente não logrou demonstrar igualmente que o conjunto circulante, o tractor ou o reboque individualmente considerados tivessem deixado de efectuar serviços, e quais os serviços para os quais estava destacada, sendo esses elementos essenciais para a determinação de um dano concreto, que permita ultrapassar ou concretizar o valor do dano para além da regra da equidade.

33. E, assim, na falta desses elementos, por absoluta inércia probatória da Autora, aplicaram as instâncias a regra da equidade, com base no elemento orientador da Tabela da ANTRAM/APS resultante do Protocolo celebrado.

34. De notar, a talho de foice, que a Autora pretende a alteração do valor do dano para 2.570,30 Euros, o que é um valor que singularmente considerado, é muito inferior ao valor da alçada do Tribunal da Relação.

35. Entendemos que o comportamento da Autora deve ser juridicamente valorado, não só no plano da litigância de má fé, mas também no plano do abuso de direito.

36. E, assim sendo, justifica-se plenamente a consideração plasmada no douto Acórdão recorrido, de que o montante indemnizatório devido pelo atraso na assunção de responsabilidade deve ser diminuído, face à posição manifestamente censurável da Autora no processo, conforme bem vincaram a 1.ª instância (embora sob a égide do conceito de litigância de má fé) e da Relação (aqui, por via do abuso de direito).”

11. O recurso foi admitido com a prolação do seguinte despacho:

“1. Notificada do acórdão de 12 de Julho de 2023, que decidiu “julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência, condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 2.605,74, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da citação, até integral pagamento, mantendo-se a sentença recorrida quanto ao demais decidido, com excepção do valor da multa imposto à A., por litigar de má fé, que se reduz para o valor de 10. Ucs.”, veio a A./Recorrente interpor recurso de REVISTA (normal), nos termos do artigo 671º, n.º 1 do Código de Processo Civil, na parte não abrangida pela dupla conforme, referindo-se à alteração da matéria factual, em que invoca violação da lei processual e, no que à aplicação do direito diz respeito, quanto à questão da contabilização do valor de paralisação e quanto à aplicação da figura do abuso de direito, e recurso de REVISTA EXCEPCIONAL, na parte em que existe dupla conforme, referente à questão da “aplicação da figura das penalizações previstas no nº 2 do artigo 40º do Decreto-lei 291/2007”, nos termos do artigo 672º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do mesmo código.

Não obstante ter sido apresentada uma única peça processual para as duas espécies de recurso em causa, ao contrário do invocado pela recorrida, não se nos afigura que tal obste à admissibilidade dos mesmos, posto que estão individualizados os fundamentos específicos de cada um dos recursos e competir a apreciação de ambos ao Supremo Tribunal de Justiça.

2. Assim, por a recorrente ter legitimidade, estar em tempo e a decisão ser recorrível, estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso e se entender não ocorrer o pressuposto de inadmissibilidade previsto no n.º 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, por ser invocada a violação da lei processual quanto à apreciação da matéria de facto [cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/01/2021, proferido no processo n.º 844/18.7T8BNV.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se concluiu que:

«I- Não obstante a convergência decisória das instâncias, quanto ao mérito da causa, é admissível recurso de revista, nos termos gerais, do acórdão proferido pela Relação em que seja apontada a existência de erro decisório relativamente à aplicação da lei processual no âmbito da decisão sobre a matéria de facto;(…)»], e diversa fundamentação, admite-se o recurso interposto pela A. RODO CARGO, TRANSPORTES RODOVIÁRIOS DE MERCADORIAS, S.A., o qual é de REVISTA, sobe nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo (cf. artigos 631º, n.º 1, 638º, n.º 1, 629º, n.º 1, 671º, n.º 1, 675º, n.º 1, e 676º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

3. Quanto ao recurso de REVISTA EXCEPCIONAL, consideram-se igualmente verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, sendo que, em face do disposto no n.º 3 do artigo 672º do Código de Processo Civil, é ao Supremo Tribunal de Justiça que compete a verificação dos pressupostos específicos de admissibilidade invocados.”

II. FUNDAMENTAÇÃO

De facto

12. Nas instâncias foram dados como provados os seguintes factos (a negrito os alterados pelo TR):

1. A autora é uma sociedade comercial cujo objecto se prende com o transporte rodoviário de mercadorias por estrada, sendo proprietária do conjunto circulante especial para transporte de automóveis constituído pelo veículo tractor com a matrícula ..-..-PC e pelo reboque com a matrícula L-...... (art. 1º da petição inicial).

2. No dia 22 de Janeiro de 2018, pelas 10:00 horas, ao Km 78,20 do IC2, sentido ..., localidade de ..., freguesia e concelho de ..., no distrito de ..., ocorreu um acidente envolvendo o conjunto circulante porta-automóveis constituído pelo veículo tractor com a matrícula ..-..-PC e pelo reboque com a matrícula L-......, conduzido por DD, motorista da autora, e ainda o conjunto circulante matrículas ..-..-ZI/C-....., conduzido por EE e com registo a favor do Grupo L..., segurado pela ora ré através da apólice nº ........71 (art. 4º da petição inicial).

3. O condutor do conjunto com as matrículas ..-..-ZI/ C-..... circulava na mesma via que o conjunto circulante porta-automóveis propriedade da autora, atrás deste, não tendo salvaguardado a distância de segurança, indo embater na traseira do reboque do conjunto circulante porta-automóveis propriedade da autora (art. 7º da petição inicial).

4. Em 25 de Janeiro de 2018, a autora enviou à ora ré, por correio normal, para a Direcção do Ramo Automóvel, na Avenida ..., ..., através da empresa sua representante, a sociedade R..., Lda., a sua “Reclamação Inicial” sobre o acidente na qual transmite o seguinte:

- A sua referência para o acidente como sendo 2018-01-22 .....18 ..-..-PC L-...... 002;

- A identificação do acidente;

- A identificação dos intervenientes;

- A descrição da sua versão relativamente à forma como o mesmo ocorreu;  A indicação da localização dos danos;

- A solicitação para a quantificação dos danos a fim de que pudessem ser prontamente reparados para que o conjunto circulante pudesse rapidamente continuar a laborar;

- A solicitação da ora ré para realização da peritagem ao reboque porta-automóveis matrícula L-......;

- A indicação do local onde a ora ré deveria fazer deslocar o seu perito com o intuito de avaliação dos prejuízos materiais;

- A indicação de que decorridos 5 dias úteis sem notícias da ora ré, devidamente comprovadas, a empresa R..., Lda., tomaria a iniciativa de dar indicações à sua representada para requisitar imediatamente uma peritagem ao veículo sinistrado;

- A indicação de uma 1ª lista de 10 prejuízos a reclamar em consequência directa do acidente (arts. 13º a 23º da petição inicial).

5. A autora, conforme indicação da sua representante, a empresa R..., Lda., contactou a empresa RC..., Lda para proceder à realização da peritagem aos danos verificados no seu veículo e esta veio a emitir esse relatório de peritagem em 06.02.2018 (art. 28º da petição inicial).

5-A. A representante da autora, a empresa “R..., Lda.”, enviou, em 16.05.2018, um fax para o nº de fax 21-…33 da Ré, a solicitar resposta à reclamação enviada por carta de 25-01-2018, e informando que “dado o tempo decorrido, não obtendo qualquer resposta, solicitámos a uma empresa da especialidade uma peritagem ao veículo acidentado e procedemos à sua reparação. Oportunamente, enviaremos a quantificação dos prejuízos sofridos pela nossa representada.”. [facto aditado no recurso]

6. Em 17 de Janeiro de 2020, a representante da autora, a empresa R..., Lda., decide enviar uma carta à ré, como “Reclamação de prejuízos de forma quantificada”, no sentido de a interpelar para o pagamento dos prejuízos decorrentes deste sinistro (art. 37º da petição inicial).

7. Esta missiva, enviada por correio registado para a sede da ré a 17 de Janeiro de 2020, transmitia o seguinte:

- Reclamação de indemnização correspondente ao custo de reparação do veículo matrícula L-...... no valor de 1.634,74 €;

- Reclamação correspondente aos custos de paralisação do veículo matrícula L-...... no valor de 1.285,15 €;

- Indemnização correspondente aos custos decorrentes da reparação do veículo transportado, Toyota CH-R chassis 0R....99, no valor de 595,16 €;

- Reclamação de Indemnização correspondente aos custos decorrentes da necessidade de contratar a empresa RC..., Lda, para proceder à peritagem do veículo acidentado no valor de 200,00 € (arts. 39º a 42º da petição inicial).

8. Em consequência directa do acidente, sofreu o reboque do conjunto circulante com a matrícula L-......, propriedade da autora, o empeno do macaco hidráulico da extensiva da plataforma inferior (art. 58º da petição inicial).

9. Peça que ascende ao valor de 560,24 € (art. 60º da petição inicial).

10. Tendo a reparação desse dano, que incluiu “mão de obra”, “material de pintura” e “diversos” avaliados em 1.074,50 €, importado no valor total geral de 1.634,74 € (mil seiscentos e trinta e quatro euros e setenta e quatro cêntimos) arts. 61º e 62º da petição inicial).

11. O veículo de matrícula L-...... deu entrada nas instalações oficinais da autora em 02-02-2018 (art. 66º da petição inicial).

12. Após a 1ª vistoria em 02-02-2018, a reparação iniciou-se em 05-02-2018 e para realização da mesma, foi determinado pelo perito um período de 2 dias úteis (art. 67º da petição inicial).

13. A reparação foi concluída em 06-02-2018 (art. 68º da petição inicial).

14. O reboque propriedade da autora ficou impossibilitado de prestar quaisquer serviços à mesma no período que decorreu entre a entrada na oficina 02-02-2018 e a data de conclusão da reparação, 06-02-2018 (art. 69º da petição inicial).

15. Por carta de 15/3/2018, a ré comunicou à autora que havia feito diligências para proceder à marcação da peritagem e à avaliação dos danos resultantes do acidente, mas que não tinha conseguido (documento nº2 junto com a contestação cujo teor se considera integralmente reproduzido) (art. 26º da contestação).

16. Na mesma carta, a ré comunicou à autora que assumia a responsabilidade pelo sinistro e solicitou que esta o contactasse com vista a dar seguimento à regularização do sinistro (art. 27º da contestação).

17. Esta carta foi recebida pela ré entre 16 e 22/3/20218 (art. 28º da contestação).

18. O tractor propriedade da autora não sofreu quaisquer danos, podendo circular com outro semi-reboque, inexistindo outro disponível para o efeito. [em destaque a alteração efectuada no recurso]

19. A autora suportou o valor de 200,00 em consequência da peritagem mandada efectuar ao seu veículo de matrícula L-....... [aditado em sede de recurso]

13. Foram considerados como não provados os seguintes factos:

- A ré não comunicou a assunção ou não assunção de responsabilidade pelo sinistro até à presente data (art. 33º da petição inicial).

- A reparação do pára-choques traseiro e chassis da viatura Toyota CH-R chassis NMTKZ3BX40R....99 importou para a autora um custo de 595,16 € (art. 84º da petição inicial).

- A autora suportou o valor de 200,00 € em consequência da peritagem mandada efectuar ao seu veículo de matrícula L-...... (art. 85º da petição inicial). [eliminado]

- Considerando que a ré não facultou um veículo de substituição, a autora viu-se forçada a cancelar todos os serviços para os quais tinha o veículo destinado (art. 73º da petição inicial).

- A autora tinha outros semi-reboques que podia utilizar em substituição do semi-reboque danificado (art. 49º da contestação).

De Direito

14. Admissibilidade do recurso

14.1. No presente processo foi proferida sentença que condenou a R. a pagar à A. a quantia de € 2.018,74, acrescida de juros. Essa condenação reportou-se ao valor de 1.634,74 de reparação do veículo e € 384,00 de paralisação.

Foi esta a sentença:

“Nestes termos, julgo a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decido:

a) Condenar a ré a pagar à autora a quantia de 2.018,74 € (dois mil e dezoito euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a citação até integral pagamento, e dos juros previstos no art. 829º-A, nº4, do Código Civil;

b) Absolver a ré da restante parte do pedido.”

No recurso de apelação a decisão foi alterada no sentido de a R. vir a ser condenada a pagar à A. a quantia de € 2.605,74, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da citação, até integral pagamento, mantendo-se a sentença recorrida quanto ao demais decidido.

A alteração resultou de o valor da paralisação ter sido computado em € 771,00.

Sendo interposto recurso de revista deste acórdão, pode questionar-se se o mesmo é admissível à luz do art.º 671.º do CPC e do regime geral dos recursos – art.º 629.º do CC.

O recurso foi admitido no Tribunal da Relação, embora o recorrido diga ser inadmissível.

14.2. O processo tem um valor de 105.575,01, e na PI o A. explicitou como chegou a esse valor separando os vários tipos de danos.

Na sentença e no acórdão recorrido os únicos danos contemplados (com a procedência da acção) foram relativos à paralisação do veículo e ao custo da reparação (que não é contestado no recurso).

Pela paralisação o A. havia indicado que o valor era:

Art.º 63.º A Autora reclama ainda o pagamento de €2.570,30, com base na atualização do acordo firmado entre a ANTRAM e a APS, atualização esta, participada pela própria companhia de seguros Seguradoras Unidas, S.A., considerando o valor diário de paralisação de €257,03 relativo aos veículos pesados afetos ao transporte internacional, conforme Doc. 11 (tabela emitida pela Seguradora Tranquilidade relativa ao acordo firmado entre a ANTRAM e APS) que aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos;

Art.º 76º Assim a Autora reclama esta verba de €257,03 diários pela paralisação do seu equipamento de tração matrícula ..-..-PC e ainda outra de igual valor pela paralisação do seu reboque porta-automóveis de matrícula L-......, reclamando assim pela paralisaçãodoseuconjuntocirculante a verba total de €257,03multiplicada por2 e este valor multiplicado por 5 num total de €2.570,30.

Na sentença a questão dos danos invocados foi assim tratada:

“Resulta demonstrado que a autora, em consequência do sinistro em apreço, sofreu um prejuízo que corresponde ao custo de reparação do veículo de matrícula L-......, no valor de 1.634,74 €, sendo este o primeiro dano a que deve atender-se para efeitos indemnizatórios.

O segundo dano, traduz-se na circunstância de a autora ter ficado privada de tal veículo 2, durante o período que em durou a reparação, dano este que a demandante computa em 2.570,30 € (257,03 € diários, sendo que contabiliza 5 dias e leva em consideração ambos os veículos – tractor e reboque), por referência a uma alegado acordo celebrado entre a APS e a ANTRAM.”

O tribunal entendeu que esse dano devia ser indemnizado em 384,00.

E no acórdão recorrido o mesmo dano foi contabilizado em 771,00.

Com estes elementos, ainda que o processo tenha valor (de causa) no seu computo global, relativamente ao dano concreto que está questionado na revista (normal) podemos dizer que há um problema de sucumbência: a A. pedia €2.570,30 e a decisão atribuiu-lhe a quantia de €771,00.

Isto significa que, por referência ao pedido efectuado, a sucumbência não é superior a metade da alçada do Tribunal da Relação –art.º 629.º, n.º1 do CPC.

14.3. Quanto ao dano relativo ao valor da peritagem, só na apelação a A. viu a sua pretensão ser deferida e não recorre dela, tendo obtido o valor que pedia – 200 – e não está em causa na revista.

14.4. Um segundo argumento relativo à inadmissibilidade do recurso reporta-se ao facto de a decisão recorrida ser mais favorável à A. (na parte do dano de paralisação) do que a sentença, suscitando-se a dúvida de saber se ainda assim se pode dizer que saiu vencida, dúvida que a resolver-se pela negativa redundaria em não poder recorrer de uma decisão que lhe é favorável.

A esta questão responde o Acórdão nº 7/2022 de Uniformização de jurisprudência, que fixou a seguinte orientação:

«Em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671º, nº. 3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do Acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.»

DR-201/2022, SÉRIE I de 2022-10-18

Segundo esta orientação o A. não pode recorrer da decisão que lhe foi mais favorável, não se considerando que foi vencido.

14.5. Um terceiro argumento reporta-se à questão da litigância de má fé, que a recorrente indica ser a do “abuso de Direito”.

É que a condenação por litigância de má fé foi realizada na sentença e depois reanalisada na apelação – aqui com uma decisão que é mais favorável à A.. (poderia recorrer?)

Ora de acordo com a lei e com a jurisprudência deste STJ a condenação como litigante de má fé só comporta um grau de recurso – n.º3 do art.º 542.º do CPC – e esse grau já foi usado na apelação. Cf. Anotação 9. e 10., ao art.º 542º., in CPC Anotado, Vol. I, 2018, Almedina, A,Geraldes/Paulo Pimenta/ Luis Filipe Pires de Sousa, com indicação de jurisprudência.

14.6. Um quarto argumento, agora relativo à impugnação da matéria de facto:

O STJ apenas conhece de Direito e só pode pronunciar-se sobre os factos fixados e não fixados se estiver em causa uma situação excepcional, como a que se lê no art.º 674.º, n.º3 e 682.º, n.º2 do CPC.

Lidas as conclusões do recorrente não se identifica aqui nenhuma das indicadas situações, mas tão só uma discordância sobre o modo como o tribunal decidiu em matéria e com referência a meios de prova sujeitos à sua livre apreciação.

E nem se diga que no recurso está em causa o modo como o tribunal da Relação usou os poderes que lhe são conferidos pelo art.º 662.º do CPC, situação que seria questão de direito, sujeita a recurso de revista, porquanto basta ler a alegação do recurso e as conclusões para se verificar que o único erro que se aponta ao tribunal é de não se acolher a posição do recorrente, ainda que se procure não revelar de forma clara o intuito e de façam afirmações relativas à necessidade de ouvir mais uma testemunha ou ao tipo de factos que estavam em causa (conclusivos, complementares, etc).

14.6. Finalmente a recorrente entende que além da revista normal deve interpor recurso de revista excepcional sobre a aplicação ao caso do regime da duplicação dos juros, matéria em que reconhece ocorrer dupla conforme, que se confirma existir.

Tratando-se de questão decidida na sentença e no acórdão em sentido que não evidenciam fundamentação essencialmente diversa, no pressuposto de que o valor desses juros adicionados ao capital pedido fariam com que o valor em discussão estivesse acima de 15.000 euros, e com o valor da causa em € 105.575,01, e que os segmentos decisórios são autónomos para efeito de avaliação da dupla conforme, devem os autos ser remetidos à formação para que se decida da sua admissão excepcional – art.º 672.º do CPC.

III. Decisão

Tendo em conta o exposto no ponto 14., convidam-se as partes a emitir a sua posição sobre a não admissão da revista normal, no prazo legal, após o que se decidirá.

Sem custas.

(fim de transcrição)

B. Em resposta ao convite a recorrente entende que o recurso deve ser admitido:

– porque a sucumbência deve aferir-se em relação à totalidade do processo e não apenas a um segmento decisório;

– porque na questão do abuso de direito não há dupla conforme, mas decisões opostas dos dois tribunais;

– que cabe recurso da decisão relativa à Impugnação da matéria de facto porque houve um erro de aplicação do direito processual;

E pede:

Assim e face o exposto, deverão sempre ser apreciadas as respetivas Alegações e Conclusões de Revista Ordinária formulados pela aqui Autora, em especial no que diz respeito à questão da questão nova suscitada pelo Tribunal da Relação de Évora quanto à figura do abuso de Direito e à audição de testemunha, acima de tudo, pela clara violação do princípio do contraditório no que tange a factos essenciais que não se deu o devido espaço para exercício por parte da aqui Autora.”

Cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

Relevam os elementos constantes do relatório supra.

C) A única questão de que cumpre conhecer é da admissibilidade da revista pela via normal.

1. Para esta questão, teve o tribunal oportunidade de referir o que consta do despacho convite, supra transcrito e que aqui se dá por reproduzido.

Nesses despacho foi justificada a falta de sucumbência, com indicação de se estar a seguir o critério definido pelo Acórdão Uniformizador, não sendo apresentados argumentos que esbatam a posição de lógica que fundamenta a indicada orientação, à luz das disposições legais citadas, não havendo, em consequência motivos para alterar a posição já avançada, confirmando-se assim que, no entender no tribunal o presente processo não comporta sucumbência relativamente às questões sobre as quais o recorrente pretende seja admitida a revista pela via normal.

No que concerne ao abuso de direito – em aditamento ao que estava no despacho convite – porquanto só agora se compreende bem o sentido da pretensão do recorrente – cumpre acrescentar o seguinte.

No acórdão recorrido as questões a analisar foram assim identificadas:

Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:

i. Da impugnação da matéria de facto;

ii. Do erro na aplicação do direito;

iii. Da condenação por litigância de má fé.”

2. No que se reporta ao erro de aplicação do direito e ao abuso de direito, disse o tribunal, no recurso de apelação (citação):

18. A A. discorda do assim decidido, porquanto entende que, de acordo com o n.º 2 do artigo 38º do Decreto-Lei 291/2007, a Ré é devedora de juros no dobro do valor fixado pelo Tribunal Recorrido, e não em singelo, dado o incumprimento por parte da Ré dos deveres fixados nos artigos 36º e 38º do Decreto-lei 291/2007, e, bem assim, conforme o disposto no artigo 43º n.ºs 1 e 3 do mesmo normativo.

Diz a A. que “serão sempre devidos juros ao dobro da taxa legal aplicável pela Ré porquanto esta não pagou à Autora, no prazo de oito dias úteis a contar da data da assunção da responsabilidade a indemnização decorrente do sinistro, como o impõe o número 1 do artigo 43º do Decreto-lei 291/2007, como decorre à saciedade dos Autos”.

E, acrescenta que “através de uma leitura sistémica do Decreto-Lei 291/2007, não basta meramente assumir a responsabilidade, há que proceder ao pagamento, se não pagar, são devidos juros em dobro da taxa legal e, caso venha a afirmar a Ré que não dispõe de elementos, que não assumisse, pois o artigo 38º n.º 2 é peremptório ao afirmar que é dever da Seguradora, sempre que assume a responsabilidade, apresentar uma proposta razoável tendo em conta o dano quantificável. Ora se não consegue quantificar, não assuma.”

Vejamos:

Como se concluiu no acórdão desta Relação de 10/02/2022 (proc. n.º 576/20.6...), em que se suscitou a aplicação de idênticas normas, em litígio ocorrido com as mesmas partes:

«- O DL n.º 291/2007, de 21.08 regula o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, estabelecendo o Capítulo III um conjunto de regras e procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro, no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.

- O art. 38º, nº 2, através da remissão para o seu nº 1 e, deste para alínea e) do n.º 1 ou do n.º 5 do artigo 36.º do cit. DL estabelece como dever da seguradora cujo incumprimento é sancionado com o pagamento de juros em dobro: - Comunicar em 30 dias a assunção ou não assunção da responsabilidade e, no caso de assumir a responsabilidade e o dano ser quantificável no todo ou em parte, apresentar (outro não pode ser o sentido da expressão “consubstancia-se”) uma proposta razoável (aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado).

- Não comunicando, ou não comunicando no prazo e na forma prevista, são devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável, sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal (art. 38º, 2).

- O preceituado no n.º 2 do art. 40.º do DL 291/2007, consagra, uma sanção punitiva destinada a compelir a seguradora a pronunciar-se sobre a responsabilidade do sinistro. O incumprimento do dever de resposta fundamentada constitui a seguradora como devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso. Tendo cada um direito a metade daquela quantia.

- Existe abuso de direito por parte da Autora ao pretender beneficiar de um crédito calculado sobre um período de tempo que estava na sua esfera de disponibilidade aumentar ou reduzir.»

No caso em apreço, a A. fundava a sua pretensão indemnizatória de juros à taxa agravada (o dobro da taxa legal) e no pagamento da indemnização diária de € 200, pelo facto de a R. não ter assumido a responsabilidade pelo acidente nem a ter negado até à data da propositura da acção.

Porém, como resulta inequívoco da matéria de facto provada a R. assumiu essa responsabilidade, tendo comunicado este facto à A., por carta de 15/03/2018, recebida pela A. entre o dia 16 e 22/03/2018 (cf. pontos 15, 16 e 17 dos factos provados).

Ou seja, contrariamente ao alegado pela A., a assunção da responsabilidade foi comunicada.

É certo que esta comunicação foi feita com atraso em relação ao prazo de 30 dias prescrito no artigo 36º, n.º 1, alínea e) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, posto que o acidente lhe foi participado por carta datada de 25/01/2018, aceitando a R. que tomou conhecimento do mesmo em 29/01/2018. Assim como se verifica que a comunicação da assunção da responsabilidade não foi acompanhada de “proposta razoável de indemnização”, sendo o dano quantificável, como se exige no artigo 38º, n.º 1, do mesmo diploma.

Porém, no caso, tal atraso e falta de apresentação da proposta de indemnização, afigura-se-nos justificável, pelo facto de a R. ter invocado que havia feito diligências para proceder à marcação da peritagem e à avaliação dos danos, mas que não tinha conseguido, tendo solicitado que a A. a contactasse com vista a dar seguimento à regularização do sinistro (cf. pontos 15 e 16 dos factos provados).

A A. não deu resposta a esta comunicação da R., sendo certo que resulta provado que, em 02/02/2018, já tinha feito uma 1ª vistoria ao veículo e, em 05/02/2018 iniciou a reparação do mesmo, que ficou concluída no dia seguinte (cf. pontos 11 a 13 dos factos provados).

E, como se veio a apurar, só em 16/05/2018, através da sua representante “R..., Lda.”, veio solicitar resposta à sua reclamação de 25/01/2018, que foi a comunicação do acidente, e informar que “dado o tempo decorrido, não obtendo qualquer resposta, solicitámos a uma empresa da especialidade uma peritagem ao veículo acidentado e procedemos à sua reparação. Oportunamente, enviaremos a quantificação dos prejuízos sofridos pela nossa representada.” (cf. facto aditado sob o n.º 5-A).

Com esta comunicação é que a R. ficou a saber que já tinha sido feita a peritagem ao veículo, que até já estava reparado desde 06/02/2018 – o que impedia que a R. fizesse a peritagem –, e que a A. lhe enviará a quantificação dos prejuízos sofridos, daí que se compreenda que a R. tenha ficado a aguardar essa informação para apresentar uma proposta de indemnização, informação esta que só veio a ser prestada pela A. em 17 de Janeiro de 2020, quando pediu a indemnização total de € 3.715,05.

Ora, não só a A. já sabia quais os danos sofridos pelo veículo acidentado desde, pelo menos, 06/02/2018, data em que foi apresentado o relatório de peritagem, como pela sua comunicação de 16/05/2018, fazendo tábua rasa da comunicação anterior da R. a comunicar a assunção da responsabilidade pelo sinistro, dá a entender à R. que deve aguardar que lhe comunique a quantificação dos prejuízos sofridos, o que só veio a fazer em 17/01/2020.

Em suma, não só se considera, pelas razões supra referidas, que está justificado o atraso na assunção da responsabilidade pelo acidente, comunicada em 15/03/2018, como também está justificada a não apresentação da proposta de indemnização, não havendo por conseguinte lugar à aplicação das sanções previstas no n.º 2 do artigo 40º do Decreto-Lei n.º 291/2007. Conclusão esta que se alcançaria também por via do abuso de direito, como invocou a R. na contestação.”

Como resulta da transcrição, a argumentação principal do tribunal não foi o abuso de direito, que vem usado como argumento coadjuvante da argumentação anteriormente apresentada.

Quer isto dizer que não é argumento principal e que sem ele a decisão recorrida tinha sido a mesma.

Isto mesmo se confirma quando o tribunal abre um novo ponto de análise – o ponto 20 – onde diz:

“20. Nos termos do artigo 334º do Código Civil “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Para que haja abuso de direito é, pois, necessário que exista uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito (cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina, 6ª ed., pág. 516).

Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa ou intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, 4ª ed. pág. 299).

Como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa, de 24/04/2008 (proc. n.º 2889/2008-6): “existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado”.

No caso concreto, ainda que se entendesse que houve atraso na comunicação da assunção da responsabilidade pelo sinistro, certo é que a R. se propôs regularizar o sinistro, solicitando a colaboração da A., sendo que esta só em 16/05/2018 lhe comunicou já ter feito a peritagem e reparado o veículo, comunicando-lhe ainda, através da sua representante, que “oportunamente” enviaria a quantificação dos prejuízos.

Deste modo, tendo a R. já assumido a responsabilidade pelo sinistro, a apresentação de proposta de indemnização por parte da R. ficou dependente da informação a prestar pela A., relativamente aos prejuízos sofridos, pelo que, nestas circunstâncias, o pedido indemnizatório com base nas sanções previstas no Decreto-Lei n.º 291/2007, de molde a transformar a indemnização por danos comunicados em 17/01/2020, numa indemnização peticionada de € 105.575,01, constitui manifesto a abuso de direito.”

Quer isto dizer que o ponto 20 mais não é do que o desenvolvimento do argumento adicional a que se reporta o tribunal nos citados pontos 18 e 19.

Ora, de um argumento adicional não há recurso, sobretudo porque o mesmo é apenas mais um argumento que conduziu o tribunal a justificar a sua decisão.

E, por assim ser, não adquire autonomia no contexto da decisão, que deve ser interpretada no seu conjunto, e não tendo autonomia não desvirtua a dupla conforme que se forma à luz da justificação que fora apresentada na sentença.

Aí se disse:

“Penalizações devidas à autora em resultado da alegada inércia da ré na resolução do sinistro.

Em matéria de penalizações, conforme resulta dos autos, sustentou a autora, ab initio, que a ré não tinha tomado posição acerca da responsabilidade pelo sinistro e pela consequente liquidação dos prejuízos daí decorrentes, o que, em sua opinião, a legitima a peticionar juros moratórios ao dobro da taxa habitualmente prevista e, simultaneamente, um valor correspondente a 100,00 € diários, contabilizados desde 16/3/2018, ao abrigo do regime previsto no art. 40º, nº2, do DL nº291/2007.

A tese defendida pela autora, em nosso entender, parte de dois equívocos manifestos, um que se reporta ao modo como são contabilizados os juros moratórios neste domínio, e outro que diz respeito ao enquadramento da conduta da seguradora, no âmbito do citado decreto-lei, para efeitos de penalização.

Em primeiro lugar, no que diz respeito a juros de mora, estamos perante uma obrigação civil 6, sendo o atraso na realização da correspondente prestação sancionado de acordo com o quadro normativo previsto nos arts. 559º, nº1, 804º 8, 805º, nº3, e 806º, nºs 1 e 2, todos do Código Civil 11, tudo sem prejuízo da sanção pecuniária compulsória – que a autora peticiona – prevista no art. 829º-A, nº4, do Código Civil.

Em segundo lugar, a autora faz uma interpretação errada do regime que consagra juros moratórios ao dobro da taxa legalmente prevista, concretamente o art. 38º, nº3, do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto.

Com efeito, aí prescreve-se que “Se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial.”.

Trata-se, como resulta do respectivo teor e inserção normativa, de situações em que a seguradora formula ao lesado uma proposta indemnizatória tendo como base ou referência um montante manifestamente insuficiente, o que não é o caso dos autos, uma vez que não existiu qualquer proposta.

A norma pretende desincentivar condutas, por parte das seguradoras, que se traduzem na apresentação de propostas com valores que não cobrem, de forma mínima ou razoável, os prejuízos que o lesado sofreu.

Ora, a ré, no caso vertente, não actuou dessa forma, sendo manifesto que não existe qualquer “Proposta razoável” que careça de ser valorada nos termos pretendidos pela autora.

Em terceiro lugar, é também evidente que a ré não actuou de forma a ser sancionada de acordo com o regime previsto no art. 40º, nº2, do DL nº 291/2007, de 21-8.

Estabelece-se na referida norma que “Em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos n.ºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1.º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso.” (o sublinhado é nosso).

O art. 39º do DL nº 291/2007, para o qual o art. 40º, nº2, remete, estabelece o regime da “Proposta razoável para regularização dos sinistros que envolvam danos corporais” – o que não é o caso dos auto -, sendo que o art. 38º, por seu turno, regula, genericamente, a “Proposta razoável”, aqui se incluindo, naturalmente, sinistros que não envolvam danos corporais.

Quer num, quer noutro caso, para além do incumprimento das regras estabelecidas nos n.ºs 1 dos artigos 38.º e 39.º 16, é necessário que o mesmo (incumprimento) revista a forma constante no nº1 do citado art. 40º, ou seja, trata-se de casos em que a seguradora declina ou não assume a respectiva responsabilidade.

Ora, tal não se verifica na situação “sub judice” dado que a ré comunicou, de modo expresso, que assumia a responsabilidade pelo sinistro, pretendendo regularizar o mesmo (cf. ponto 16 da factualidade assente).

Não existem, deste modo, atentos os motivos expostos, quaisquer montantes a atribuir a título de penalização, pelo que cumpre analisar as restantes questões que foram suscitadas neste litígio.”

Por outro lado, o abuso de direito que vem referido no acórdão recorrido no ponto 20 não se reporta à mesma questão do abuso de direito da sentença, onde foi dito:

Em sede de contestação, sustentou a ré que a autora age em abuso de direito, uma vez que em 6/2/2018 os respectivos prejuízos estavam quantificados, optando a demandante por aguardar até 20/4/2020 com vista a obter um enriquecimento ilegítimo, à custa do património da ré.

Relativamente à matéria suscitada, dispõe o art. do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

Se bem entendemos o raciocínio expendido pela ré, o que estará em causa são os diversos valores que a autora peticiona a título de penalização, valores esses que não são devidos, pelos motivos supra expostos.

Em relação aos restantes montantes, não se mostram reunidos, no caso concreto, os pressupostos de aplicação do invocado instituto (abuso do direito), pelo que cabe apreciar a derradeira questão suscitada nos autos.”

Aqui foi analisado o abuso de direito na perspetiva de o A. por ter demorado muito tempo a propor a acção, visando obter um enriquecimento ilícito, quando já sabia qual o montante dos prejuízos que pretendia ver reparados em 2018, só tendo apresentado a sua petição em juízo em 2020.

No acórdão recorrido o abuso de direito é analisado na perspectiva da A mas no que concerne a saber se há justificação para a aplicação das penalidades previstas no Decreto-Lei n.º 291/2007 – a que acresce o facto de não adquirir autonomia argumentativa face ao modo como vem apresentado – argumento coadjuvante.

3. Na questão da impugnação da matéria de facto e alegada violação de lei de processo, é de voltar a insistir no já referido no despacho convite, considerando-se que o modo como o recorrente coloca a questão e a justifica em sede de resposta ao convite não inviabiliza o entendimento já veiculado, não se tratando se nenhuma situação em que possa estar em causa o mau uso pelo tribunal recorrido dos poderes que a lei lhe confere ao conhecer da impugnação da matéria de facto – art.º 662.º do CPC.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, acorda-se em não admitir a revista interposta pela via normal e remeter os autos à formação para efeitos de decisão da admissão da revista excepcional.

As custas serão definidas após decisão da Formação – e de preferência por este colectivo especial - , no que respeita à admissão da revista.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024

Relatora: Fátima Gomes

1ª adjunta: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

2º Adjunto: Conselheiro Lino Ribeiro