Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3091
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE COMODATO
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
EXTINÇÃO DO CONTRATO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
VIOLAÇÃO DE LEI DE PROCESSO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ20071004030917
Data do Acordão: 10/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. No recurso de revista, não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer do segmento decisório do acórdão da Relação que, no recurso de apelação, decidiu sobre a impugnação do despacho proferido no tribunal da primeira instância no sentido de não verificação da nulidade do julgamento, sob o fundamento de não ter sido suspensa a audiência na sequência da renúncia ao mandato por parte da advogada dos réus.
2. Figuram em relação de coligação os contratos-promessa de compra e venda e de comodato decorrentes de os sócios de uma sociedade comercial e a contraparte haverem declarado, cederem os primeiros ao último as suas quotas, por determinado preço, fraccionado em prestações, e aqueles, em representação da sociedade, e a última, a esta entregarem uma casa gratuitamente, com a obrigação de a devolver no caso de ela incumprir o primeiro dos referidos contratos.
3. Nesse quadro de união de contratos, incumprido pelo promitente-comprador o contrato-promessa, e operada a sua resolução pelos promitentes vendedores, extinguiram-se ipso facto os efeitos do contrato de comodato.
4. O eventual diferendo entre a mencionada sociedade e terceiros quanto ao lote de terreno onde a referida casa havia sido construída é insusceptível de ser qualificada como excepção dilatória de direito material de não cumprimento contratual.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA intentou, no dia 7 de Agosto de 2001, contra BB e CC, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração judicial de ser titular do direito de propriedade sobre a casa nº ...., Cascais, a sua condenação a restituir-lha, a indemnizá-la pelas despesas decorrentes da restituição e pelos danos ainda indeterminados provocados na referida casa, a pagar-lhe os custos relativos à mesma, 636 000$ concernentes a quotas do condomínio e 50 dólares norte-americanos diários de sanção pecuniária compulsória desde 19 de Fevereiro de 20001 até à entrega da casa.
Fundamentou a sua pretensão na titularidade do referido imóvel e no incumprimento pelo réu, por falta de pagamento das prestações relativas ao montante USD 350 000 estabelecidas num contrato-promessa de cessão de quotas celebrado entre o último e os sócios dela, e na resolução de um contrato de comodato relativo ao mencionado imóvel com base no qual fora cedido ao réu o gozo do imóvel.
Os réus invocaram, em contestação, a ineptidão da petição inicial, e, a título de excepção de não cumprimento, o risco de, adquirindo as acções da autora, virem a ser responsabilizados pelos prejuízos sofridos pelos donos dos lotes de terreno onde aquela havia construído moradias com área superior à constante dos projectos.
Na réplica, negou a autora a ineptidão da petição inicial e impugnou os factos e o direito mencionados pelos réus, e, realizado o julgamento, os réus arguíram a sua nulidade, que foi julgada improcedente.
No dia 27 de Janeiro de 2006, foi proferida sentença, por via da qual os réus foram condenados a reconhecer ser a autora dona do referido prédio e a entregar-lho e a pagar-lhe o correspondente a 659 202$ e cinquenta dólares americanos por dia desde 4 de Abril de 2001 até à entrega daquele imóvel.
Interpuseram os réus recurso de apelação da referida sentença, invocando também a nulidade do julgamento por não ter sido adiado por virtude da falta de comparência da sua mandatária, e a autora, recurso de apelação subordinado, ambos julgados improcedentes pela Relação por acórdão proferido no dia 29 de Março de 2007.
Os referidos apelantes principais interpuseram recurso de revista do acórdão da Relação, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o julgamento só podia prosseguir se os recorrentes notificados para constituírem mandatário o não constituíssem no prazo de vinte dias;
- por via do princípio da adaptação processual previsto no artigo 265º-A do Código de Processo Civil, o mandatário renunciante não está obrigado a comparecer em audiência de julgamento, uma vez que já se produziram os efeitos da renúncia ao mandato;
- quebrada estava a relação de confiança, absolutamente indispensável entre mandante e mandatário, pelo que não constitui violação do dever deontológico a sua não comparência à audiência de julgamento, em virtude de o mandante já se encontrar notificado da renúncia ao mandato efectuada pelo mandatário;
- existia fundamento para ser determinada a suspensão da instância da audiência de julgamento, por forma a permitir a regularização do mandato, ao abrigo do disposto nos artigos 39º n.º 3 279º n.º 1, do Código de Processo Civil;
- como não foi suspensa a instância nem a adiada a audiência de julgamento, persiste a nulidade prevista no artigo o artigo 201.º n.º 1, do Código de Processo Civil, porque foi omitida uma formalidade que a lei prescreve com influência na decisão da causa;
- nos contratos, a recorrida assumiu a obrigação de transmissão das acções da sociedade, proprietária do bem imóvel, livre de ónus e encargos;
- o único interesse dos recorrentes era o imóvel e não as acções, pelo que, ameaçado por terceiros ou indisponível na esfera jurídica da recorrida, perdiam o interesse no negócio por falta de aptidão de garantia;
- só meses após o contrato souberam do diferendo entre recorrida e terceiros e a iminência de, por acção judicial, sair o imóvel da sua esfera jurídica ou deixarem de poder dispor dele;
- postula o artigo 227º, nº 1 do Código Civil o correcto procedimento na conclusão dos contratos, tanto nos preliminares como na sua formação, segundo as regras da boa-fé, incluindo o dever de informar os seus contornos, sob pena de o faltoso responder pelos danos que culposamente causar à contraparte;
- a recorrida, aquando da celebração do contrato, omitiu esses factos, violando as regras da boa fé estatuídas no artigo 762.º, nº 2, do Código Civil;
- ao omitir aos recorrentes o diferendo que a opunha aos demais condóminos, a recorrida pretendeu transferir para eles as obrigações de de exclusiva responsabilidade;
- justificado está o incumprimento pelos recorrentes por virtude de a recorrida não ter dado garantia de o imóvel permanecer na sua titularidade livre de qualquer penhora.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão de alegação:
- não tem fundamento a invocação da nulidade da sentença porque o julgamento se realizou em segunda marcação em virtude do adiamento da audiência primeiramente designada por falta de comparência da mandatária dos recorrentes, o que impedia novo adiamento;
- o artigo 39º, nº 2, do Código de Processo Civil impõe aos mandatários a obrigação de assegurar o patrocínio até à constituição de novo mandatário ou a suspensão da instância, pelo que os direitos processuais dos recorrentes foram acautelados;
- o artigo 39º, nº 3, do Código de Processo Civil estabelece que a renúncia do mandatário do réu não determina a suspensão da instância, mas o seu prosseguimento;
- não procede a excepção de incumprimento do contrato invocada pelos recorrentes por falta de prova dos factos em que assentava, pelo que tal matéria é inatendível no recurso de revista;
- não se encontram preenchidos os requisitos da excepção de não cumprimento do contrato, pois não se provou o incumprimento contratual da recorrida;
- os recorrentes foram a parte faltosa ao cumprimento do contrato, e a recorrida cumpriu as obrigações contratuais que assumiu.


II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. A autora, juntamente com outras sociedades, adquiriu o terreno onde actualmente se situa o condomínio Village do Golf, e promoveram a construção de um condomínio de vivendas constituído por 10 fracções autónomas e partes comuns.
2. O projecto aprovado para esse empreendimento previa a construção de dez moradias, mas foram construídas oito.
3. No processo de licenciamento camarário foi suscitada a questão da existência de um excesso de área de construção de 157 metros quadrados utilizada pelas referidas oito moradias, o que implicaria uma redução da área da construção das duas moradias ainda não construídas, atenta a área global da construção permitida.
4. As sociedades Brest Holding Limited e Calais Investment Limited comparticiparam na aquisição do terreno do empreendimento, não tendo nele construído nenhuma moradia.
5. A autora é a dona da moradia designada Vila nº ...., Cascais, compreendendo o terreno e a construção nele implantada, descrita na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº 102752/221087.
6. Por escrito do dia 2 de Março de 1999, HW e FW, como promitentes cedentes, e o réu, como promitente cessionário, declararam em instrumento particular de promessa de cessão de acções:
- os promitentes cedentes são em partes iguais, senhores e legítimos possuidores de 100% das acções da empresa AA Limited;
- a AA é proprietária do imóvel denominado casa Nº... Cascais;
- o promitente cessionário tem interesse em adquirir a totalidade das acções com a finalidade de, assim o fazendo, adquirir indirectamente a propriedade acima;
- o promitente cessionário declara assumir todas as despesas ou débitos de qualquer natureza ou procedência relativos ao imóvel supra identificado, vencidas ou a vencerem, relativas a qualquer imposto ou taxa, despesas de condomínio;
- desta forma, os promitentes cedentes prometem ceder a transferir para o promitente cessionário a totalidade das acções pelo preço de US 350 000, que serão pagos da forma seguinte: a) US$ 30 000, no acto de assinatura do presente instrumento; b) US$ 20 000 no dia 30 de Abril de 1999; c) US$ 20 000 no dia 30 de Junho de 1999; d) US$ 20 000 no dia 30 de Setembro de 1999; e) US$ 10 000 no dia 30 de Novembro de 1999; f) US$ 25 000 no dia 30 Março de 2000; g) US$ 25 000 no dia 30 de Maio de 2000; h) US$ 25 000 no dia 30 de Setembro de 2000; i) US$ 25 000 no dia 30 de Novembro de 2000; j) US$ 25 000 no dia 30 de Dezembro de 2000; k) US$ 50 000 no dia 30 de Março de 2001; l) US$ 25 000 no dia 30 de Março de 2001; m) US$ 25 000 no dia 30 de Março de 2001;
- na hipótese de imputabilidade do pagamento de quaisquer parcelas do preço, ficará o promitente cessionário obrigado ao pagamento de juros à taxa legal de 10% ao ano, sendo os débitos em atraso apurados para fins de acréscimo de juros moratórios, a partir da data do inadimplemento até ao final da liquidação do débito, à aliquota supra referida pro rata tempore. O atraso no pagamento das parcelas acarretará o vencimento antecipado e imediato de todas elas, sendo os juros calculados apenas sobre as parcelas em atraso;
- na hipótese de ocorrer o vencimento antecipado e imediato de todas as parcelas por força do inadimplemento do promitente cessionário relativamente a qualquer das parcelas, e não liquidando o mesmo a totalidade do preço até oito dias a contar do recebimento da notificação extrajudicial ou de carta devidamente registada e com aviso de recepção para fazê-lo, poderão os promitentes cedentes optar à sua exclusiva escolha: a) reter todas as parcelas que porventura hajam sido pagas, com a respectiva rescisão deste instrumento por incumprimento contratual, sem qualquer direito a perdas e danos por qualquer das partes; ou b) executar o presente instrumento;
- as correspondências referentes à AA deverão ser encaminhadas para o escritório do cessionário … a partir desta data, que suportará todos os custos pertinentes à manutenção da AA desde a data de 1 de Janeiro de 1999;
- fica entendido que em hipótese alguma, as condições materiais do imóvel em questão servirão de alegação ou escusa para o eventual não cumprimento das obrigações aqui acordadas e da obrigação do promitente cessionário.
7. Por escrito datado de 2 de Março de 1999, a autora, na qualidade de comodante, representada pelos sócios acima referidos, e o réu, na qualidade de comodatário, declararam acordar em celebrar um contrato de comodato relativo ao imóvel acima identificado, nos termos seguintes:
- o comodatário utilizará exclusivamente o referido imóvel para sua residência e família. A gratuitidade ditada pelo comodato não se estende, porém, aos pagamentos entre outros, de impostos e/ou taxas de qualquer natureza, contribuições em geral, do consumo de energia eléctrica, água e outros pagamentos que se tornem necessários à manutenção e uso da propriedade;
- o comodato cessará verificada que seja qualquer das seguintes condições: a) eventual transferência das acções (o instrumento) que as partes se propõem celebrar nesta data; b) a inadimplência do comodato perante qualquer obrigação estabelecida no instrumento acima referido;
- caso o comodatário venha a ser notificado para desocupar a propriedade, o que será feito por escrito pela comodante, mediante carta registada com aviso de recepção, o comodatário obriga-se a entrega-la até cinco dias úteis a contar do recebimento da referida notificação, sob pena de se sujeitar à medida reintegratória limiar, a ser pleiteada pela comodante, sem que o comodatário tenha direito de reivindicar retenção ou indemnização de qualquer espécie, sem prejuízo da multa moratória diária, no valor de US$ 50, a contar da data do recebimento da notificação até entrega do imóvel.
8. Das quantias referidas sob 6, o réu apenas pagou a quantia de € 44 196,92, e os advogados dos sócios da autora enviaram ao réu uma carta com data de 16 de Janeiro de 2001, recebida no dia seguinte, onde reclamavam o pagamento das quantias referentes ao contrato-promessa e em dívida e juros, no total de US$ 311 775,68 no prazo de cinco dias, após o qual tomariam as providências tidas por convenientes.
9. No dia 15 de Fevereiro de 2001, enviaram-lhe nova carta registada com aviso de recepção, recebida a 19 de Fevereiro de 2001, cuja cópia consta a folhas 37 e 38, na qual, com referência ao mesmo contrato e anterior carta, comunicavam a resolução do contrato-promessa com efeitos imediatos, nos termos do disposto no ponto 7, alínea a), do mesmo. Mais lhe comunicaram que se operava, por esse meio, a cessação do contrato de comodato supra referido, nos termos do disposto na alínea b) do ponto 7 do mesmo, pelo que deveria entregar o imóvel no prazo de cinco dias a contar da recepção da carta.
10. O réu enviou a HW, em 21 de Março de 2001, o fax cuja cópia consta de folhas 82/83, onde remeteu a minuta de uma procuração a emitir por aquele e FW, a favor do réu, com poderes gerais para este praticar diversos actos, inclusivamente vender o referido imóvel.
11. Os mesmos advogados, no dia 2 de Abril de 2001, na qualidade de advogados da autora, enviaram-lhe a carta registada com aviso de recepção, recebida no dia 3 de Março de 2001, na qual, uma vez mais os notificavam para proceder à entrega do imóvel no prazo de 5 dias, em virtude da resolução do contrato de comodato, nos termos do disposto na alínea b), ponto 7, e 8 do contrato.
12. A autora procedeu ao pagamento das contribuições para despesas do condomínio do ano de 2000, no montante de 636 000$, bem como de 23 202$ relativos ao consumo de água em dívida, referente ao imóvel.
13. O réu não entregou as chaves do imóvel, as quais lhe haviam sido entregues na data da celebração dos acordos acima referidos.

III
As questões objecto do recurso circunscrevem-se a saber se deve ou não ser anulado o processado desde o inicio da audiência de julgamento e, na hipótese negativa, se o recorrente pode ou não invocar a excepção dilatória de direito material de incumprimento contratual.
A resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- deve ou não este Tribunal conhecer da nulidade processual invocada pelos recorrentes?
- natureza dos contratos celebrados entre a recorrida e o recorrente BB e respectiva situação de incumprimento ou de incumprimento;
- têm ou não os recorrentes direito a impor à recorrida excepção de incumprimento contratual?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.
1.
Comecemos pela análise da questão de saber se este Tribunal deve ou conhecer da nulidade processual invocada pelos recorrentes.
No dia 26 de Janeiro de 2005, em despacho, o tribunal da primeira instância declarou, por um lado, que apesar de no dia 24 ter entrado um requerimento da mandatária dos réus, Drª...., de renúncia ao mandato por eles conferido, como o mesmo não havia sido notificado aos mandantes, mantinha-se esse mandato
E, por outro, como a audiência já tinha sido adiada com base na falta daquela mandatária, não havia motivo para novo adiamento. pelo que devia realizar-se com as pessoas presentes.
Do referido despacho não foi interposto recurso, mas os réus, depois do julgamento, no dia 28 de Janeiro de 2005, arguíram a nulidade do julgamento sob o fundamento de não ter sido suspensa a instância na sequência da renúncia ao mandato por parte da advogada ..., ao que a autora se opôs.
O tribunal da primeira instância, por despacho proferido no dia 27 de Janeiro de 2006, declarou a não verificação da nulidade invocada pelos réus, ora recorrentes, e proferiu, de seguida, a sentença de mérito.
Os recorrentes, no recurso de apelação para a Relação, impugnaram o referido despacho proferido pelo tribunal da primeira instância, e aquela negou-lhe provimento por virtude de ao tempo do início do julgamento não ter a renúncia do mandato produzido efeitos por ainda não haver sido notificada aos mandantes e por virtude de a audiência não poder ser adiada por falta de comparência de advogado, por já haver sido adiada uma vez por esse motivo.
O recurso próprio da decisão sobre a matéria da referida nulidade, é, naturalmente, de agravo, além do mais, porque só pode estar em causa a violação da lei de processo (artigos 691º, 733º e 740º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil).
Expressa a lei que, sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admitido recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, de modo a interpor do mesmo acórdão um mesmo recurso (artigo 722º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Trata-se do princípio designado da unidade ou absorção, em que o recurso de revista, em razão do seu objecto essencial relativo à violação de normas jurídicas substantivas, arrasta para a sua órbita o conhecimento da violação de normas jurídicas adjectivas, próprio do recurso de agravo.
Todavia, para o efeito, exige a lei, como condição do conhecimento da violação de normas jurídicas processuais, que a decisão da Relação sobre essa matéria seja impugnável nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
A este propósito, estabelece a lei, por um lado, ser admissível recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível recurso, salvo nos casos em que couber revista ou apelação (artigo 754º, nº 1, do Código de Processo Civil).
E, por outro, não ser admissível recurso de agravo do acórdão da Relação sobre decisão da 1ª instância, salvo se estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme (artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ora, estamos no caso vertente perante um segmento decisório de um acórdão da Relação que conheceu de um segmento decisório de um despacho proferido no tribunal da 1ª instância.
O referido segmento decisório não se integra na excepção à proibição da admissibilidade de recurso a que se reporta o nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
Em consequência, não pode este Tribunal, no recurso de revista, nesta matéria de natureza processual, conhecer da parte da decisão proferida pela Relação que confirmou o despacho proferido no tribunal da primeira instância que declarou a inexistência da nulidade da audiência de julgamento.

2.
Atentemos agora na natureza dos contratos em causa e na situação de incumprimento das obrigações deles decorrentes.
O princípio da liberdade contratual faculta às partes a livre fixação do conteúdo dos contratos e a celebração de contratos diferentes dos legalmente tipificados, e a reunião no mesmo contrato de regras próprias de diversos contratos (artigo 405º do Código Civil).
No quadro dessas relações contratuais complexas, como ocorre no caso vertente, distingue-se, além do mais, conforme o caso, entre contratos mistos e união ou coligação de contratos.
São considerados contratos mistos os que reúnem, em termos de fusão, elementos próprios de uma pluralidade de contratos, mas assumindo-se como contrato único.
São, por seu turno, considerados contratos coligados ou em união os que conservam a sua individualidade, mas estão entre si ligados de forma mais ou menos intensa.
No segundo caso são pensados pelas partes como um conjunto económico envolvente de um nexo funcional, do que resulta depender a validade e a vigência de um dos contratos da validade e vigência do outro (INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “Direito das Obrigações”, Coimbra, 1997, páginas 86 a 88).
Mas essa consequência não é absoluta, porque, ao abrigo do princípio da liberdade negocial, as partes podem afastar o referido efeito (artigo 405º do Código Civil).
Como HW e FW, por um lado, e o recorrente, por outro, declararam, os primeiros ceder e o último aceitar a cessão das quotas de participação na recorrida, por determinado preço, certo é estarmos perante um contrato-promessa de cessão de quotas societárias, ou seja, de compra e venda, celebrado no dia 2 de Março de 1999 (artigo 410º, nº 1, do Código Civil).
Na mesma data, os representantes da recorrida, por um lado, e o recorrente, por outro, declararam, a primeira entregar ao último, gratuitamente, para que dela se servisse e a restituir, verificado determinado circunstancialismo, a casa nº. 3 do Condomínio do Golf, pelo que se trata de um contrato de comodato (artigo 1129º do Código Civil).
Uma das cláusulas do referido contrato de comodato foi no sentido de, avisado o recorrente para entregar o imóvel em cinco dias, se assim procedesse, sujeitava-se a multa moratória diária de USD$ 50 até à sua entrega.
Trata-se de uma sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829º-A, nº 1, do Código Civil.
Embora os referidos contratos hajam sido celebrados por sujeitos diversos, o primeiro entre o recorrente e HW e FW, e o último entre a recorrida, pelos últimos representada, e o primeiro, certo é haver considerável conexão entre eles.
A referida conexão decorre da circunstância de o contrato de comodato cessar no momento da transferência por HW e FW para a titularidade do recorrente das acções relativas à recorrida ou no caso de incumprimento por este último das obrigações decorrentes do mencionado contrato-promessa.
Trata-se, por isso, de uma coligação de contratos, um de promessa de compra e venda de participações sociais, e o outro de comodato.
Uma vez que o recorrente, deixou de entregar a HW e FW prestações no montante de € 311 775,68, foi o primeiro notificado para proceder ao seu pagamento no prazo de cinco dias.
E como o recorrente assim não procedeu, por carta por ele recebida no dia 19 de Fevereiro de 2001, comunicaram-lhe a resolução do contrato-promessa de compra e venda de participações sociais, a cessação do contrato de comodato e exigiram-lhe a entrega do prédio.
Foi com base nisso que os recorrentes foram condenados a restituir o prédio à recorrida, bem como a pagar a esta € 3 288,08 relativos a consumo de água e despesas de condomínio e o correspondente a USD$ 50 diários desde 4 de Fevereiro de 2001 até à restituição do imóvel que as partes haviam convencionado.
Tal como foi entendido nas instâncias, o recorrente incumpriu as obrigações decorrentes do referido contrato-promessa de compra e venda, do que decorreu a extinção do contrato de comodato e a obrigação de entrega do prédio em causa.
Os recorrentes não excluem esse incumprimento, mas afirmam que ele foi justificado à luz da excepção de incumprimento contratual, matéria a que abaixo nos referiremos.

3.
Vejamos agora se os recorrentes têm ou não direito a impor à recorrida excepção de incumprimento contratual.
A lei prescreve que se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo (artigo 428º, nº 1, do Código Civil).
A ideia é a de que, em quadro de equivalência tendencial de prestações inerente aos contratos sinalagmáticos, quem incumpre a sua obrigação não pode legitimamente exigir o cumprimento pela contraparte da sua obrigação recíproca.
Trata-se, pois, da excepção de não cumprimento do contrato cujos pressupostos são a existência de um contrato bilateral, o não oferecimento simultâneo da prestação pela outra parte e a desobrigação do excipiente de realizar previamente a sua.
A procedência da referida excepção implica essencialmente a dilação temporal do cumprimento da sua obrigação por uma das partes até ao momento do cumprimento da respectiva obrigação pela outra.
A relevância do coligado contrato de comodato em causa dependia da dinâmica do cumprimento ou incumprimento do coligado contrato-promessa de compra e venda.
As obrigações sinalagmáticas principais decorrentes do referido contrato-promessa de compra e venda das acções envolvem as prestações de facto consubstanciadas nas declarações futuras de comprar e vender que, pela natureza das coisas, devem ocorrer na mesma altura por via da outorga do contrato definitivo.
No que concerne à obrigação de pagamento das prestações pecuniárias por parte do recorrente o sinalagma ocorre em relação à manutenção dos efeitos do contrato de comodato.
Todavia, em relação à obrigação de entrega das aludidas prestações pecuniárias pelo recorrente a HW e FW inexiste qualquer obrigação sinalagmática vinculativa dos últimos no confronto do primeiro.
Acresce que, independentemente do interesse directo do recorrente na aquisição do imóvel e meramente indirecto no que concerne à aquisição das acções da recorrida, os factos provados não revelam que algum diferendo entre a última e terceiros onerasse o imóvel em causa.
Em suma, os factos provados não justificam, por um lado, o funcionamento da excepção dilatória de direito material invocada pelos recorrentes, nem revelam que recorrida, através dos seus sócios, haja violado regras de boa fé, contra o disposto no 762º, nº 2, do Código Civil.

4.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.
A matéria da nulidade processual invocada pelos recorrentes é insusceptível de ser conhecida no âmbito do recurso de revista.
As partes celebraram dois contratos coligados, um de promessa de compra e venda de acções e o outro de comodato, cujos efeitos deste dependiam do cumprimento daquele.
O recorrente incumpriu o primeiro dos referidos contratos, o que justificou a sua resolução pelos sócios da recorrida, com a consequência da cessação dos efeitos do último.
Os factos provados não revelam o direito dos recorrentes de impor à recorrida a excepção dilatória de direito material que invocaram no seu confronto.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 4 de Outubro de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis