Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3303/07.0TBBCL.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
ÓNUS DA PROVA
REQUISITOS
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / SERVIDÕES PREDIAIS
Doutrina: Código Civi (CC): - Artigos 1543.º, 1569.º, n.º2.
Sumário : I - Sendo a servidão predial o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente (art. 1543.º do CC), existe uma relação real entre dois prédios e não qualquer relação obrigacional entre os respectivos donos.

II - Quando se trate de extinguir uma servidão por desnecessidade, nos termos do art. 1569.º, n.º 2, do CC, deve atender-se, apenas, à desnecessidade objectiva, referente ao prédio dominante, em si mesmo considerado, o que significa que a extinção com o fundamento na desnecessidade da servidão tem de resultar de alterações objectivas, típicas e exclusivas, verificadas no prédio dominante.

III - A apreciação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve ser objecto de um juízo de actualidade, no sentido de que há-de ser apreciada pelo tribunal, atendendo à situação presente, ou seja, atendendo à situação que se verifica na data em que a acção é proposta.

IV - Constituindo a servidão um direito real que limita seriamente o direito de propriedade do dono do prédio serviente, e sendo tal limitação apenas justificada pela necessidade de obter para o prédio dominante determinadas utilidades que não estariam disponíveis sem a servidão, resulta manifesto que o encargo deve desaparecer logo que se torne desnecessário (desde que a extinção seja requerida), ou seja, quando o prédio dominante possa alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia.

V - Compete a quem pretende ver extinta a servidão o ónus de alegar e provar que a servidão perdeu, em relação ao prédio dominante, a utilidade que esteve na base da sua constituição.

VI - A extinção das servidões por desnecessidade é situação diversa da sua extinção pelo não uso, nada impedindo que se declare extinta por desnecessidade uma servidão que, todavia, está a ser usada pelo titular do prédio dominante.
Decisão Texto Integral:

No Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos,

AA e esposa,

BB,

intentaram a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra a

Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC, representada pelos seus herdeiros,

DD,

EE e

FF,

pedindo se declare extinta, por desnecessidade, uma servidão de passagem, constituída por usucapião, que onera o seu prédio em benefício do prédio da ré, visto que já não se justifica porque o prédio dominante passou a ter acesso directo à via pública.


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Ocorreu a intervenção espontânea da herdeira DD, que contestou, arguindo a ilegitimidade “ad causam” da ré herança, porquanto, existindo no local vários prédios, a herança não é proprietária exclusiva de dois deles, sendo a contestante proprietária de uma quinta parte de um e de metade do outro, além de ter impugnado parte da factualidade alegada pelos AA..

Deduziu reconvenção, pedindo se declare que a invocada servidão também se encontra constituída, por usucapião, a favor do prédio urbano da herança e da contestante, alegando, em síntese, que há mais de 40 anos, à vista de toda a gente, sem oposição e sem interrupção, o caminho é também usado para acesso à casa, para a ida à igreja e terrenos situados noutras freguesias.


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Os AA. replicaram, pugnando pela legitimidade da ré herança e arguindo a ilegitimidade da interveniente para deduzir o pedido reconvencional, uma vez que, para esse efeito, a herança ré não se encontra representada por todos os herdeiros.

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Veio, então, a interveniente DD requerer a intervenção principal provocada dos demais herdeiros, EE e FF, os quais, citados, não contestaram.

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Sanado e instruído o processo, efectuou-se julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou procedente a acção e improcedente a reconvenção.

Em consequência, declarou extinta, por desnecessidade, a servidão em lide.


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Entretanto, faleceu a interveniente DD, tendo sido habilitada em seu lugar GG.

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Notificada da sentença final, veio dela recorrer a habilitada GG.

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Admitida a apelação e conhecido o seu objecto, a Relação julgou procedente o recurso, revogou a sentença recorrida, julgando a acção improcedente.

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São agora os AA. que, inconformados, recorrem de revista para este S.T.J..

Conclusões

Oferecidas tempestivas alegações, formularam os recorrentes as seguintes conclusões:


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Conclusões da Revista dos AA.

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«1- O acórdão recorrido revogou a douta sentença proferida na 1ª instância com o fundamento de que os Autores, ora recorrentes, não alegaram nem provaram, como lhes competia, os factos demonstradores da desnecessidade da servidão de passagem que onera o seu prédio em benefício do prédio da Ré.

2- Ora, os Autores, ora recorrentes, conscientes de que esse ónus impendia sobre si, alegaram e provaram:

a)- Que o seu prédio misto, inscrito na matriz urbana sob o artigo 272 e na rústica sob o artigo 229 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n°…/… e inscrito a seu favor pela inscrição G-1, se encontra onerado por uma servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor da parte do prédio da Ré que, por o lado nascente, confronta com o dos Autores (Factos assentes, alínea A) e B, H), I) e J).

b)- Pois essa porção de terreno, hoje da Ré, então pertencia a outrem e nessa altura era encravado (alínea F) e G)).

c)- Só que, entretanto, aquele terreno foi integrado no prédio descrito no item 2/ da petição inicial e que consta das alíneas D) e E) dos fatos assentes, formando actualmente um todo, constituído por casa de habitação, dois cobertos, logradouro, eirado de lavradio e terrenos [... ou ... identificado em D) b) e o ... do C... ou de L... identificado em D) c)] (itens 11/ e 13/ da petição inicial e n° l dos factos provados).

d)- O qual tem acesso directo à via pública -estrada- através de um portão existente no muro de vedação (item 9/ da petição inicial e n°2 dos factos provados).

e)- A Ré e a chamada passaram a aceder directamente da parte urbana [casa, cobertos e logradouro referidos em D) a)] do conjunto formado pelos prédios em D) e E) com carros, animais e tractores ao terreno [eirado de lavradio identificado em D/ a), ... ou ..., identificado em D) b) e ... do C... ou de L... identificado em D) c)], integrado nesse conjunto (itens 10/ da petição inicial e n°3 dos factos provados).

f)- O terreno cujo acesso inicialmente onerava o prédio dos Autores é trabalhado juntamente com o resto do terreno do prédio da Ré, constituindo um único prédio (item 13/ da petição inicial e n°4 dos factos provados).

g)- Aliás, presentemente, o descrito prédio da Ré tem dois acessos directos à mesma via pública (item 17/ da petição inicial e n°5 dos factos provados).

3- Dos factos alegados e provados decorre que o terreno dominante foi integrado num prédio misto, constituído por casa de habitação, dois cobertos, logradouro, eirado de lavradio e vários terrenos, isto é, os prédios aludidos em D) e E).

4- Pois, os prédios a que se alude em D) e E) confrontam a sul com o referido em A), isto é, com o prédio dos Autores, ora recorrentes (n°8 das respostas). Aliás, já resultava da alínea C) da matéria assente, que o prédio dos Autores confronta a norte com herdeiros de CC -a Ré e chamada.

5- E que a Ré e a chamada passaram a aceder directamente da casa de habitação, anexos e logradouro, com carros, animais e tractores para os aludidos terrenos e destes para a casa de habitação, anexos e logradouro.

6- Nem sequer da via pública se servem para aceder de e para aqueles terrenos.

7- No entanto, têm dois acessos à via pública -estrada-, sendo um servido pelo portão existente no muro de vedação da casa, anexos e logradouro- o prédio referido em d) a), os quais têm respectivamente 2,65 e 2,89 metros de largura, como se alcança da inspecção ao local de fls..

8- Tanto o eirado de lavradio como os demais terrenos dos prédios aludidos em D) e E) são trabalhados em conjunto.

9- Formando, por isso, uma unidade agrícola, na qual o terreno dominante se encontra integrado.

10- Segundo o que foi decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/03/2007, "se o titular do prédio dominante, adquire um prédio contíguo com acesso directo à via pública a servidão só se extingue por desnecessidade se os prédios representarem uma unidade de utilização e fruição". Ora no caso presente o prédio dominante passou a ser trabalhado em conjunto com os demais terrenos da Ré, aos quais acede directamente da casa de habitação, com carros, animais e tractores e dos terrenos para a casa, sem ter necessidade de se servir da via pública.

11- Por outro lado, o conjunto formado pela casa de habitação, anexos, logradouro e terrenos, constituindo o conjunto identificado nas alíneas D) e E) têm dois acessos à via pública -estrada.

12- Como se refere no Acórdão de S. T. J. de 16.03-2011, " a desnecessidade de uma servidão de passagem tem de ser aferida em função do prédio dominante" e "só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante".

13- Da matéria fáctica apurada em sede de lª instância e que não foi minimamente alterada pela 2ª instância, resulta, sem margens para qualquer dúvida, que presentemente o prédio dominante é fruído plenamente pelo seu titular sem utilizar a servidão de passagem que onera o prédio dos recorrentes, não tendo da mesma necessidade.

14- Como escreveram os saudosos Prof. Pires de Lima e Antunes Varela e vem referido no Acórdão do S. T. J. de 21-05-2003, " os encargos constituídos por usucapião são impostos pelos factos, uma vez desaparecidos ou ultrapassados a latere, os factos que lhe deram origem nenhuma reserva se levanta contra a extinção da servidão (Código Civil anotado, lª edição. Vol. III, pág.621).

15- Pois que, nos termos do disposto no art° 1569° n°2 do C. C "As servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante".

16- Ora, os factos alegados pelos ora recorrentes e cabalmente provados em sede de julgamento, preenchem em absoluto os requisitos do citado dispositivo legal.

17- Pelo que deverá ser declarada extinta por desnecessidade a servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor do prédio da Ré e que onera o mencionado prédio dos ora recorrentes.

18- Ao ter decidido como decidiu o acórdão recorrido violou o disposto nos arts° 1569° n°2 e 342° n° l e 346° do Código Civil e 516° do C. P. C.

 Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso de revista, revogando-se o douto acórdão recorrido, e mantida a decisão proferida em Instância, decretando-se a extinção da servidão de passagem que onera o prédio dos ora recorrentes, como é de JUSTIÇA».


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Os Factos

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Foi a seguinte a factualidade fixada pela Relação.

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«a) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n.° …., da freguesia de ..., o prédio "Misto, ... - casa de r/c e andar - 74 m2; lavradio 2.000 m2; norte e sul - HH; nascente - II; poente - JJ (...). Arts° 272 urbano e 229 rústico" (alínea A) dos factos assentes);

b) O prédio a que se alude em a) confronta do norte com herdeiros de CC, do sul com HH, do nascente com KK e do poente com JJ (alínea C) dos factos assentes);

c) O prédio a que se alude em a) encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos a favor dos autores, conforme inscrição G-l (alínea B) dos factos assentes);

d) No processo de inventário que por óbito de CC corre termos pelo Io juízo cível deste tribunal com o n.° 3016/05.7TBBCL, foram relacionados os seguintes bens imóveis, aí referenciados como doados:

1."Quatro quintas partes indivisas da casa torre, dois cobertos e logradouro e junto eirado de lavradio, sito no Lugar de ..., freguesia de ... - Barcelos, a confrontar do norte com bens da herança, do sul com caminho, do nascente com bens da herança e do poente com bens da herança, com o artigo matricial urbano 21, descrito na Conservatória do Registo Predial no Livro … sob o n° ... (...)".

2."Metade indivisa do ... ou ..., sita no Lugar de ..., inscrito na matriz rústica sob os artigos 595 e 597 (...)."

3."... do C... ou de L..., sito no Lugar de ..., inscrito na matriz rústica sob os artigos 599, 727 e 728 (estes dois artigos que provieram do artigo rústico 605) (...)." (alínea D) dos factos assentes);

e) Mediante escritura pública outorgada a 16.01.1968 na Secretaria Notarial de Barcelos, LL e marido declararam vender à chamada DD, a qual declarou aceitar a venda, uma quinta parte indivisa do prédio a que se alude em d), n° 1, e metade do prédio referido em d), n° 2 (alínea E) dos factos assentes);

f)Tempos houve em que os prédios rústicos a que se alude em d), na parte em que confrontam com o referido em a), pertenciam a outrem que não a ré (alínea F) dos factos assentes);

g)Nos tempos referidos em f), os prédios rústicos referidos em d) não tinham acesso directo à via pública (alínea G) dos factos assentes);

h) Nos tempos referidos em f), o acesso aos prédios rústicos a que se alude em d), fazia-se através da extremidade norte do prédio referido em a) (alínea H) dos factos assentes);

i) Nos tempos referidos em f), os donos dos prédios rústicos a que se alude em d), para os agricultarem e colherem os frutos aí produzidos, utilizavam o acesso referido em h), o que fizeram durante 20 e 30 anos, sem interrupção, à vista de toda a gente e sem a oposição de ninguém, designadamente dos autores (alínea I) dos factos assentes);

j) Os prédios a que se alude em d) e e) formam actualmente um todo constituído por casa de habitação, dois cobertos, logradouro, eirado de lavradio e terrenos [o do ... ou ... identificado em d), n° 2, e o do ... do C... ou de L... identificado em d), n° 3] (resposta ao número 1 da base instrutória);

1) O terreno [eirado de lavradio referido em d), n° 1), ... ou ... referido em d), n° 2, e ... do C... ou de L... referido em d), n° 3] integrado no conjunto formado pelos prédios referidos em d) e e) é trabalhado em conjunto (resposta ao número 4 da base instrutória);

m) O conjunto formado pelos prédios referidos em d) e e) tem acesso directo à via pública -estrada -, através de um portão existente no muro de vedação do prédio referido em d), n° 1 (resposta ao número 2 da base instrutória);

n) Presentemente o conjunto formado pelos prédios referidos em d) e e) tem dois acessos directos à via pública (resposta ao número 5 da base instrutória);

o) A ré e a chamada passaram a aceder directamente da parte urbana [casa, cobertos, e logradouro referidos em d), n° 1] do conjunto formado pelos prédios referidos em d) e e) com carros, animais e tractores ao terreno [eirado de lavradio identificado em d), n° 1, ... ou ... identificado em d), n° 2), e ... do C... ou de L... identificado em d), n° 3] integrado nesse conjunto, o que vêm fazendo há mais de 20 anos (resposta aos números 3 e 9 a 14 da base instrutória);

p) O conjunto formado pelos prédios referidos em d) e e) confronta a sul com o referido em a) (resposta ao número 8 da base instrutória); -

q) A ré e a chamada utilizam o acesso a que se alude em h), de tractor, de motorizada e a pé, para se dirigirem dos prédios referidos em d) para a via pública e da via pública aos prédios a que se alude em d) (alínea J) dos factos assentes);

r) O acesso a que se alude em h) é efectuado através do prédio referido em a), por uma faixa de terreno com leito em terra, com sensivelmente 2,10 metros de largura e 50 metros de comprimento (alínea L) dos factos assentes);

s) A faixa de terreno encontra-se ladeada por paredes e esteios e coberta por ramada (alínea M) dos factos assentes);

t) A referida faixa de terreno desenvolve-se em linha recta, no sentido poente - nascente (alínea N) dos factos assentes);

u) Após sair do prédio a que se alude em a), a faixa de terreno inflecte para a direita, para sul, com a largura de 2,50 metros (alínea O) dos factos assentes);

v) Em subida, à direita da faixa de terreno, existe o prédio referido em d), n° 3, e, à esquerda, o referido em D), n° 4 (alínea P) dos factos assentes);

x) A seguir, faixa de terreno dá acesso ao eirado da casa referida em d), n° 1, e, depois, à própria casa, vacaria e anexos (alínea Q) dos factos assentes);

z) O leito dessa faixa de terreno encontra-se trilhado pela passagem de veículos, animais e pessoas (resposta ao número 15 da base instrutória);

aa) A passagem a que se alude em h) atravessa o logradouro da habitação referida em a) (resposta ao número 6 da base instrutória);

bb) No logradouro da habitação a que se alude em a) costumam brincar os netos da autora (resposta ao número 7 da base instrutória)


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Fundamentação

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Como se vê das conclusões da revista, a única questão a decidir é a de saber se da factualidade provada pode concluir-se ou não pela alegada desnecessidade da servidão da passagem que onera o prédio dos AA..

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Antes, porém, de entrarmos na análise da matéria de facto, convém alinhar algumas considerações sobre o enquadramento jurídico da questão.

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Como se sabe, a servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro pertencente a dono diferente (Art.º 1543 CC). Existe, portanto, uma relação real entre dois prédios e não qualquer relação obrigacional entre os respectivos donos.

Assim sendo, quando se trate de extinguir uma servidão por desnecessidade, nos termos do Art.º 1569º n.º 2 do CC., deve atender-se, apenas, à desnecessidade objectiva, referente ao prédio dominante, em si mesmo considerado, o que significa que a extinção com o fundamento na desnecessidade da servidão, tem de resultar de alterações objectivas, típicas e exclusivas, verificadas no prédio dominante.

Por outro lado, temos entendido que a apreciação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve ser objecto de um juízo de actualidade, no sentido que há-de ser apreciada pelo tribunal, atendendo à situação presente, ou seja, atendendo à situação que se verifica na data em que a acção é proposta.

Refira-se, ainda, que, constituindo a servidão um direito real que limita seriamente o direito de propriedade do dono do prédio serviente, e sendo tal limitação apenas justificada pela necessidade de obter para o prédio dominante, determinadas utilidades que não estariam disponíveis sem a servidão, resulta manifesto que o encargo deve desaparecer logo que se torne desnecessário (desde que a extinção seja requerida), ou seja, quando o prédio dominante possa alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que, por meio dela conseguia.


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Finalmente, dir-se-á que não existem quaisquer dúvidas de que compete a quem pretende ver extinta a servidão, o ónus de alegar e provar factualidade concreta, da qual resulta que a servidão perdeu, em relação ao prédio dominante, a utilidade que esteve na base da constituição da servidão.

Será, então, que a factualidade provada nos autos revela, suficientemente, a alegada desnecessidade?


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Resulta da prova que os prédios rústicos que agora pertencem à herança ré e em parte (quanto a um deles) também á interveniente DD, eram, anteriormente, propriedade de outros donos.

Nessa altura, não tinham acesso à via pública, razão porque os então proprietários, para os agricultar e colherem os frutos aí produzidos, utilizavam um caminho de acesso à via pública existente na extremidade Norte do prédio dos AA., o que fizeram durante 20 e 30 anos, sem interrupção, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, designadamente dos AA..

Está assim assente que, sobre o prédio dos AA. (identificado nos autos) se constituiu, por usucapião, uma servidão de passagem a favor dos prédios rústicos, acima aludidos, cuja utilidade era o acesso dos respectivos proprietários à via pública e desta para os prédios, a fim de os agricultar e colher os frutos aí produzidos. O referido caminho de servidão é constituído por uma faixa de terreno com leito em terra, trilhado pela passagem de veículos, animais e pessoas, com sensivelmente 2,10 metros de largura e 50 metros de comprimento, ladeado por paredes e esteios e coberto por ramada.

Tal caminho implantado em terreno dos AA., atravessa o logradouro da sua habitação, sítio onde costumam brincar os netos da A..

Os ditos prédios rústicos (dominantes), formam actualmente, juntamente com o prédio urbano, (também pertencente à ré herança e em parte à interveniente), um todo constituído por casa de habitação, dois cobertos, logradouro, eirado de lavradio e terrenos (os aludidos rústicos).

Esse conjunto predial é trabalhado em conjunto.

E tal conjunto predial tem dois acessos directos à via pública – estrada – sendo um deles através de um portão existente no muro de vedação da parte urbana.

A ré herança e a interveniente passaram a aceder, directamente, da parte urbana para os terrenos rústicos que constituem o conjunto predial em causa, com carros, animais e tractores, o que vêm fazendo há mais de 20 anos.

A ré herança e a interveniente, continuam a utilizar a servidão que onera o prédio dos AA., de tractor, de motorizada e a pé, para se dirigirem do dito conjunto predial para a via pública e da via pública para os prédios.


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É este, essencialmente, o circunstancialismo fáctico com interesse para a decisão, e não a factualidade alegada pela recorrente na apelação e que agora reproduz nas contra-alegações da revista, já que se trata de factos que não constam da matéria provada e que, aliás, nem foram alegadas nos articulados da acção.

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Assim, analisando os factos acima descritos, logo se verifica que a razão de ser da constituição da servidão em causa se encontra na circunstância de os terrenos rústicos identificados no ponto d) n.º 2 e 3 da matéria de facto pertencerem, então, a outrem que não a ré, sendo que nessa altura, os ditos terrenos rústicos não tinham acesso directo à via pública. Por isso, para os explorar agricolamente, o(s) respectivo(s) proprietário(s), acediam aos terrenos através da extremidade Norte do prédio dos AA., assim se constituindo a servidão ora em lide.

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Portanto, os prédios dominantes, que beneficiam da servidão que onera o prédio dos AA. (prédio serviente) são apenas os inscritos na matriz rústica sob os artigos 595º, 597º, 599º, 727º e 728º (referidos no ponto d) n.º 2 e 3 da matéria de facto).

O prédio urbano inscrito na matriz urbana sob o artigo 21, referido no ponto d) n.º 1 da matéria de facto, nunca foi prédio dominante, nem em relação a ele, posteriormente, se estabeleceu qualquer servidão pelo mesmo lugar da existente a favor dos prédios rústicos, como foi decidido na sentença de 1ª instância, com trânsito.


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Daqui decorre, ao que nos parece, a irrelevância da argumentação da recorrente explicitada na apelação e nas contra-alegações da revista, mesmo que a matéria de facto aí referida pudesse ser considerada (e não pode, como acima se disse).

De todo o modo, sempre se dirá, que a servidão em causa, não tinha de proporcionar ao prédio urbano quaisquer utilidades, porque, como se disse, não foi constituída em seu benefício.


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Assim, o que interessa analisar é se, em relação aos prédios rústicos dominantes se justifica a pretendida extinção de servidão, o que passa, evidentemente, por se averiguar se a factualidade provada revela ou não a sua desnecessidade.

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Ora, como se vê da factualidade provada, os AA. lograram demonstrar que, desde o momento em que são os mesmos os donos do prédio urbano e dos prédios rústicos identificados em d) da matéria de facto, ainda que matricialmente autonomizados, todos passaram a formar um todo unitário, trabalhado em conjunto.

Quer dizer, criou-se uma unidade económica, utilizada e fruída ou explorada pelos mesmos proprietários, sendo certo que essa unidade passou a ter acesso directo à estrada, através de um portão existente no muro de vedação do prédio urbano (aliás, até existe um outro acesso directo à via pública, como se provou).

Por outro lado, provaram também os AA. que, formada a referida exploração unitária, a ré e a interveniente passaram a aceder directamente da parte urbana (casa, cobertos e logradouro) com carros, animais e tractores ao eirado de lavradio (incluído no artigo urbano), assim como aos prédios rústicos dominantes, o que vêm fazendo há mais de 20 anos.


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Quer isto dizer, como é evidente, que passaram a poder explorar agricolamente os prédios rústicos dominantes a partir da parte urbana do conjunto, onde, além da casa de habitação, existe uma vacaria, cobertos e anexos, sem qualquer necessidade de, para a referida exploração, utilizarem o caminho de servidão aqui em causa. Na verdade, como dizem os AA., os réus nem sequer se servem da via pública, para aceder aos prédios dominantes.

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Assim sendo, como é, pode afirmar-se, com segurança, como fez a sentença da 1ª instância que «... os referidos prédios – os dois rústicos e o urbano – constituem uma unidade com uma idêntica situação de fruição e exploração pelo mesmo proprietário.

A esta conclusão não obsta a diferente natureza dos prédios – uns rústicos e o outro urbano.

É que o prédio urbano – onde existe, como vimos, além de cobertos, uma vacaria – está também ligado à exploração agrícola que é feita nos terrenos (o eirado de lavradio e os dois prédios rústicos) que integram a unidade, pois que é da parte urbana que saem os carros, os animais e os tractores para esses terrenos, representando, assim, a casa de habitação existente no prédio urbano a conjugação dos interesses habitacionais dos proprietários com os interesses económicos da exploração agrícola da unidade».


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É fácil de ver, portanto, que a situação dos prédios dominantes se alterou radicalmente, com a referida exploração conjunta.

Antes da unificação, isto é, quando o prédio urbano e os rústicos pertenciam a donos diferentes, estes últimos não tinham acesso à via pública, de modo que, para a eles aceder, a fim de os explorar agricolamente, tinham os seus proprietários de passar pelo terreno  dos AA. por via do caminho de servidão aqui em lide.

Porém, após a unificação dos prédios, nos termos acima referidos, a exploração dos rústicos dominantes, passou a fazer-se a partir da parte urbana do conjunto, visto que ela dá acesso directo aos aludidos prédios rústicos dominantes, e é dela que saem os carros, animais e tractores necessários à dita exploração, acrescendo que o conjunto predial assim constituído, tem acesso directo à via pública.

É, portanto, óbvio que a Ré e a interveniente (ou quem lhe sucedeu) não tem qualquer necessidade de passar pelo prédio dos AA. para aceder e explorar agricolamente os prédios rústicos dominantes (única finalidade da servidão).

Para o efeito, nem sequer necessitam de utilizar a via pública (embora a ela tenham acesso directo através da parte urbana do conjunto predial em causa), visto que acedem directamente aos prédios dominantes, também através da parte urbana do conjunto, como habitualmente fazem há mais de 20 anos.

Tal prática reiterada, revela, por si só, que a parte urbana da exploração conjunta, garante uma acessibilidade normal e regular, aos terrenos agricultados, onde se incluem os prédios dominantes.


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Entende-se assim que a factualidade provada, interpretada à luz da experiência comum, da normalidade e razoabilidade, é mais do que suficiente para revelar, com a necessária segurança, que a servidão em questão se tornou desnecessária para os prédios dominantes em consequência da exploração agrícola conjunta acima caracterizada, a qual proporciona, não só a comunicação directa do conjunto com a via pública, como essencialmente, a exploração agrícola dos prédios dominantes, sem qualquer restrição e sem necessidade de utilizar a servidão da passagem.

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É certo que se provou que os réus continuam a utilizar a servidão, mas não é menos certo que, para se conseguir a sua extinção por desnecessidade, não tinham os AA. de provar o não uso.

A extinção das servidões por desnecessidade é situação diversa da sua extinção pelo não uso, situações, de resto, tratadas autonomamente pela lei.

Assim, nada impede que se declare extinta por desnecessidade uma servidão, que, todavia, está a ser usada pelo titular do prédio dominante.

Aliás, ao que resulta da alegação da recorrida (cof. alegações da apelação e contra-alegações da revista), o uso que se continua a fazer da servidão, tem a ver com a exploração de outros prédios agrícolas da recorrida, que não com a exploração dos prédios dominantes.

Quanto a estes (e são os únicos que aqui interessa considerar), a sua exploração agrícola tem-se feito, há mais de 20 anos, através da parte urbana do conjunto, sem qualquer necessidade de os carros, animais ou tractores necessários para o efeito, de transitarem através da servidão.


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Procede, assim, a revista.

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Decisão

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Termos em que acordam neste S.T.J., em julgar procedente a revista dos AA. e, consequentemente, revogam o acórdão recorrido e julgam procedente a acção, declarando extinta por desnecessidade a servidão de passagem que onera o prédio dos AA., identificado nos autos.

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Custas pela recorrente.

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Lisboa, 11 de Dezembro de 2012

Moreira Alves (Relator)

Alves Velho

Paulo Sá