Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A2736
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MÁRIO CRUZ
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
CADUCIDADE
POSSE DE ESTADO
RECUSA
PERÍCIA
Nº do Documento: SJ20071023027361
Data do Acordão: 10/23/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. O estabelecimento da filiação é um direito constitucional.- art. 26.º
II. O Tribunal Constitucional já declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do art. 1817.º-1 para a propositura da acção de investigação com base na investigação biológica pura, referindo que a acção pode ser proposta a qualquer momento independentemente do prazo. III. Devem também considerar-se inconstitucionais os demais números do mesmo artigo, uma vez que no seu núcleo está precisamente o mesmo direito constitucional à identidade e dignidade pessoal, ao bom nome, reputação e à identidade genética, consagrados no art. 26.º da Constituição, cuja natureza é inalienável e imprescritível.
IV. Assim, os n.ºs 4 e 5 do art. 1817.º do CC., que estabelecem prazos para a propositura da acção de investigação de paternidade/maternidade sob pena de caducidade baseados na posse de estado ou sua cessação, devem também eles considerar-se como inconstitucionais.
V. Os Tribunais estão obrigados a recusar a aplicação de normas inconstitucionais.- art. 220.º da Constituição.
VI. O investigado não pode ser obrigado a submeter-se a perícia científica (exames hematológicos ou a outros exames, mesmo não evasivos - como o do ADN (em cabelos, unhas, saliva ou suor) para determinação dos níveis de correspondência biológica com o investigante, mas a sua recusa em submeter-se aos exames que forem determinados será apreciada livremente pelo Tribunal.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

AA, nascido em 1962.04.10, e registado apenas como filho de BB, então solteira, intentou em 2004.10.22, acção declarativa com processo comum sob a forma ordinária para investigação de paternidade
contra
CC, solteiro à data do nascimento do A.,
pedindo
- que fosse reconhecido como filho do R. para todos os legais efeitos.

Para o efeito alegou ter sua mãe engravidado por força das relações sexuais de cópula completa havidas entre sua mãe e o R., com exclusão de qualquer outro homem, no período legal da concepção que antecedeu o nascimento do A., na sequência de acção sedutora que este exerceu sobre ela, com promessas de casamento que lhe fez.
Alegou ainda que é reputado pelo público como filho do R. e que A. e R. mutuamente se trataram como pai e filho, respectivamente, até que em 2003.11.02. o R. passou a dizer-lhe para não mais o tratar como pai nem lhe dirigir a palavra, e que se o voltasse a procurar o metia na Justiça.

Na contestação o R. defendeu-se por impugnação e com a caducidade da acção:
Relativamente á impugnação referiu nunca ter tido relações sexuais com a mãe do A. mas saber que esta teve relações ocasionais de sexo com outros homens.
Quanto à caducidade da acção, disse que nunca o R. considerou, nem antes nem depois do nascimento, o A. como seu filho, apesar deste já ter 42 anos.

O A. replicou, sustentando não se registar a caducidade.
Concluiu como na petição inicial.

Saneado e condensado o processo, reclamou o A. da base instrutória, e requereu a admissão de diversos meios de prova, entre os quais a prova pericial, através da “realização de exames hematológicos dele mesmo e do R., no Instituto de Medicina Legal do Porto, com vista a determinar, por meios científicos, qual o grau de probabilidade de ser o R. o pai biológico do A”.- fls. 88 e 90 (repetido a fls 94 e 95).
A 5 de Junho de 2006 – fls. 88 – a Mª Juiz decidiu a reclamação à base instrutória, alterando a redacção dos quesitos 5.º, 6.º e 8.º.- fls. 99.
Em despacho de 11 de Novembro do mesmo ano, a M.ª Juiz admitiu:
a) os róis de testemunhas apresentados pelas partes nos seus requerimentos,
b) o depoimento de parte do R.,
c) a gravação da prova testemunhal
e escreveu ainda:
“Por se afigurar mais célere, solicite ao Centro Médico Legal a realização de perícia hematológica tendente a fixar o grau de probabilidade de paternidade do R. relativamente ao autor, esclarecendo que a mãe do autor já faleceu.” – fls. 102
Este despacho foi notificado às partes em 14 de Novembro de 2005 (segunda-feira)- fls.103 e 104
Em 30 de Novembro de 2005 veio o R. agravar deste despacho.- fls. 106
Este agravo foi recebido, vindo-lhe a ser atribuído subida diferida e efeito devolutivo ...”(1) – fls. 109

A 7 de Dezembro de 2005 deu entrada no Tribunal de Felgueiras, dirigido à M.ª Juiz um ofício do IML do Porto, informando da data para colheita de sangue ao A. e R., em 14 de Dezembro, pelas 10h,15- fls. 122
No mesmo dia a M.ª Juiz lavrou despacho nos termos seguintes:
Fls. 22(verificou-se aqui erro na paginação – era fls. 122): Convoque nos termos requeridos”
A Secretaria deu cumprimento à notificação em 9 de Dezembro, pelo que a respectiva notificação veio a ocorrer em 12 de Dezembro (Segunda-feira).
O R. faltou a esse exame, pelo que lhe foi marcada nova data pelo IML para 27 de Dezembro, tendo a M.º Juiz ordenado nova convocação do R., na sua própria pessoa, para aí comparecer, nessa data, sob pena de multa como litigante de má fé em caso de falta injustificada, ordenando que os autos aguardassem a justificação da falta ao exame que esteve marcado para o dia 14. fls. 119 (da nova paginação)
O R. chegou a agravar, mas a cominação indicada veio a ser retirada por despacho de fls. 138, e na sua sequência ser julgado extinto por inutilidade superveniente, o recurso desse despacho.
No mesmo momento, proferiu a M.ª Juiz despacho com os dizeres seguintes:
“Em ordem a evitar diligências inúteis, notifique o R. para declarar se consente ou não na perícia hematológica, sendo certo que a sua recusa será livremente apreciada em sede probatória.”- fls. 138.
O R. veio no entanto informar não consentir a perícia hematológica.- fls. 148

A M.º Juiz lavrou despacho posterior onde indicou que a recusa de submissão à perícia será livremente apreciada para efeitos probatórios. No entanto, veio a condenar o R. em € 500,00 pela recusa de colaboração.- fls. 164
Novo recurso do R. (2), interposto a fls. 170, também admitido como agravo – fls. 173.

Brevitatis causa:

Chegou-se então à fase de julgamento, havendo o Tribunal respondido aos quesitos da base instrutória e proferido Sentença.
Nesta vieram a considerar-se provados apenas os factos seguintes:
“1. Em 1962.04.10, na freguesia de ..., concelho de Felgueiras, nasceu o A. AA, o qual se encontra registado como filho de BB, solteira (Alínea A) dos factos assentes)
2. O respectivo nascimento foi objecto de assento n.º 616, lavrado no ano de 1962 na Conservatória do Registo Civil de Felgueiras, estando a paternidade omissa (alínea B) dos factos assentes)
3. A mãe do A., BB, faleceu em 1988.12.03 (alínea C) dos factos assentes)
4. A BB quando conheceu o R. era doméstica (resposta ao art. 5.º da b.i.)
5. E cuidava de sua mãe, CC, por esta se achar acamada (resposta ao quesito 6.º da b.i.)
6. Na noite de 27 para 28 de Agosto de 1960 decorriam em ... as festas em honra de santa Águeda e de Nossa Senhora da Paz (resposta ao quesito 7.º da b.i.)
7. Em ..., designadamente, no lugar de Assento e em Felgueiras, pelo menos algumas pessoas, conhecidas do R., do A. e da mae, consideram que o A. é filho do R. (resposta ao quesito 11.º da b.i.- quesito só parcialmente considerado provado)
8. Considerando o A. muito parecido com o R. (resposta aos quesitos 12.º e 13.º da b.i. – quesitos só parcialmente considerados provados)

Foram considerados como não provados todos os demais factos constantes da base instrutória.

Em função disso foi a acção julgada improcedente e o R. absolvido do pedido, por duas razões:
a) Estar verificada a caducidade da acção por ter sido proposta para além do prazo de dois anos posteriores à maioridade do A. - art. 1817.º-1 do CC ;
b) e por não se ter demonstrado que alguma vez o R. tenha tratado o A. como filho, e cujo ónus da prova, cabia ao A.- o que afastava a hipótese de aplicação do n.º 4 desse mesmo artigo. – fls.

Da Sentença recorreu o A., recurso que foi admitido como apelação.- fls.256 a 258 e 267
O A. apresentou alegações- fls. 271 a 316 (duplicados fls-319 a 341), suscitando nelas as seguintes questões:
a) incorrecção do julgamento dos ítemes 1.º a 4.º, 8.º a 10.º, 11.º a 13.º e 14.º a 22.º da base instrutória, dados como não provados
b) não consideração dos efeitos da actuação do R. por se ter recusado a submeter-se à realização do exame hematológico para determinação da paternidade;
c) desconsideração da prova da posse de estado de que beneficiava o A.
d) não caducidade do prazo para accionar.

O R contra-alegou – fls. 344 a 349 (duplicados a fls. 350 a 355)

O Tribunal da Relação de Guimarães proferiu Acórdão, em que:
- julgou não providos os agravos ( dizendo que “o R. é livre de recusar-se à perícia, faltando à diligência para a recolha do sangue, ainda que tenha de suportar a multa pela falta de comparência; mas já não pode ignorar que a partir daí a sua recusa será apreciada livremente (como toda a prova não vinculada) pelo Tribunal, estando compelido a um quase ónus de comprovar que não é ele o procriador”);
- mas procedente a apelação:
o alterando a matéria de facto,
o não considerando aplicáveis os prazos de caducidade previstos no art. 1817.º do CC., por inconstitucionais
o e reconhecendo o A. como filho do R., com todas as legais consequências.- fls. 371 a 391.

Recorreu agora o R. para este Tribunal, com base em nulidade por omissão de pronúncia e em erro na determinação na norma aplicada – fls. 397 e 400 (duplicado), sendo admitido como revista e com efeito suspensivo.
Apresentou alegações que concluiu pela forma seguinte:

“A - Terminada a produção de prova na primeira instância, não pode a mesma ser alterada a não ser que haja erro de julgamento
B - A declaração de inconstitucionalidade de um número do artigo 1817.º, não se estende aos outros números desse mesmo artigo, mantendo-se assim esses válidos, em vigor e constitucionalmente aceites.
C - Não tem aplicação ao caso concreto, a declarada inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, uma vez que a sentença nestes autos foi proferida muito antes da declaração da inconstitucionalidade.
D - De todo o modo, mesmo que assim fosse, o que não se aceita, a acção em causa não se fundamenta no n.º 1 desse preceito, mas sim nos disposto dos números 3 e 4 desse mesmo artigo, cuja validade se mantém intacta.
E - O tribunal da Relação, não deu resposta a todas as questões enunciadas nos dois agravos do Apelante, razão pela qual, está o mesmo Acórdão ferido de nulidade, cfr. Artigo 668.º, n.º 1 alínea d).
F - Não há qualquer despacho a admitir a prova pericial, nem sequer foi dado sequência ao referido nos artigos 578.º e seguintes do Código Processo Civil.
G - O despacho que ordena a perícia é inexistente, ou se doutro modo o entendermos é NULO, por preterição de formalidade essencial, cfr. artigo 578.º do Código Processo Civil.
H - Atendendo toda a estratégia de defesa do R. a forma como a acção foi instaurada, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 1817.º do C. Civil, não tendo o Tribunal que conhecer de facto biológico da procriação, pelo que, só por esse facto a recusa era e é legitima, e não pode levar a alteração do ónus da prova.
I - Todos os arestos aludidos pelo Tribunal da Relação, são posteriores à prolação da sentença pela Primeira instncia, e todos os anteriores, são no mesmo sentido da douta sentença da primeira instância.
J – (O) A., não estribou a acção na filiação biológica porque estava impedido de a invocar direitamente, face á caducidade estabelecida no artigo 1817 n.º 1, ou seja, como já tinha caducado o seu direito de instaurar acção de investigação de paternidade com base na relação biológica, fê-lo noutros moldes. A causa de pedir é completamente diferente, daí que e conforme amplamente descrito nas peças do R. / Apelante, e era é comumente aceite, pois os exames hematológicos destinam-se directamente à prova da filiação biológica, o que não era/é o caso.
L - A causa de pedir, nos presentes autos, fundamenta-se nos n.°s 3 e 4 do artigo 1817° do Código Civil, ou seja, com base em presunção do tratamento do pretenso filho, pelo pretenso pai.
K - Se a causa de pedir assentar em presunções, não se forma caso julgado sob a paternidade, uma vez que o Tribunal não chegou a pronunciar-se sobre o facto de paternidade sob procriação.
M - Se a causa de pedir fosse exclusivamente a do n. ° 1 do artigo 1816 do Código Civil, isto é a relação biológica nua, é que a acção deve ou devia ser proposta até aos dois primeiros anos depois de emancipação do pretenso filho, cfr. n.º 1 do citado artigo 1817 do C. Civil.
N - Se a causa de pedir for apenas ou também o tratamento de filho, prolongado para além da maioridade do pretenso filho, o prazo seria de um ano contado a partir da data em que este pretensamente o deixou de o tratar assim, e como tal ocorrerá o previsto no n. ° 4 do citado artigo 1817°, o que no caso concreto equivale a que o A. teve 24 anos, para intentar a acção, ou seja quando quis, daí que o Tribunal constitucional, apenas tenha declarado a inconstitucionalidade, APENAS, do n. ° 1 do artigo 1817°.
O - Não é da entender que a inconstitucionalidade se aplica também aos n.ºs 2.°, 3.° e 4.° do artigo 1817.°, como o parece pretender o Tribunal da Relação de Guimarães.
P - A posse de estado, não foi discutida nestes autos; aqui foram, discutidas presunções e em presunções não há lugar a quaisquer exames hematológicos.
Q - Mantendo-se a constitucionalidade dos n.ºs 2.°,3.° e 4.° do artigo 1817.° do Código Civil, e por consequência, a validade da prova produzida em audiência de julgamento, e não havendo erro de Julgamento, caducou o direito do autor, porque a acção foi proposta fora do prazo aí referido.
R - O Tribunal da 1.ª instância entendeu e muito bem, não haver lugar a inversão de ónus da prova, antes valorou livremente a prova.
S - Na acção, não é a filiação biológica que se discute, mas a acção redigida nos termos e conforme o estipulado no artigo 1817. ° n. ° 3 e 4 do Código Civil, e aqui, nestes tipos de acções, não é nem absolutamente essencial nem determinante, este tipo de prova pericial. A acção fundou-se em presunções, não em cópula.
T - O R/ Apelante não obstaculizou a produção da verdade material, antes pelo contrário, sempre colaborou com o Tribunal; o que não fez, porque a lei assim o permite, foi fazer exames, 42 anos depois, só porque alguém tem desejo de ter um idoso, sem filhos, como pai.
U - Conforme se verifica pelos autos o R/Apelante foi sujeito a multa, pela sua recusa em fazer os exames hematológicos, e reagiu contra a marcação desses exames, logo é legitima a sua recusa, conforme diz o n. °3 do artigo 519.° do Código Processo Civil.
V - O n.º 2 do artigo 344° do C. Civil para que remete o n.º 2 deste artigo 519° do CP Civil, prescreve «que há inversão do ónus de prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ou onerado...» Ora conforme se verifica, o R/Apelante não tornou impossível a prova, pelo simples facto que competia ao A. fazer prova das presunções por si invocados, independentemente de a recusa ser legítima e independentemente de o R/Apelante ter em devido tempo agravado da decisão da marcação dos exames hematológicos.
X - A apreciação de recurso, ao abrigo do n.º 2 do artigo 519 do CP Civil, não pode sustentar, por si só, a resposta afirmativa aos quesitos integradores da paternidade biológica atribuída ao recusante – www.dgsi.pt
Z - Nas acções de investigação de paternidade, vigora o sistema da prova livre e como tal, o exame de sangue é mais um elemento a ter em conta, mas não é o único, pelo que a sua realização não é obrigatória, www.dgsi.pt
Y - O autor só beneficia do prazo do exercício da acção estipulada pelo n. o 4. o do artigo 1817. o do Código Civil se alega e prova factos que integram o conceito de "tratamento como filho", sendo irrelevante o exame hematológico.
W - Diz o acórdão da Relação de Lisboa de 9/12/93, que «« II- em caso de recusa justifica-se a aplicabilidade do artigo 344 n. o 2 do CC desde que se verifiquem os respectivos pressupostos»» obviamente que a parte contrária não tornou impossível a prova, da competência do A. quanto ao tratamento deste como "tratamento como fllho", pois só desse modo, poderia haver inversão do ónus de prova.
A1 - O R/Apelante já foi penalizado com a sua recusa ao ser-­lhe aplicada a multa prevista no art. 519 n. o 2 do CP Civil, e neste pormenor a jurisprudência é unânime, a penalização, quando a recusa é ilegítima (o que não é o caso) será a aplicação da multa, até porque há quem defenda que o investigado, o ora apelante sequer é parte.
Violou o Acórdão recorrido, entre outros, os artigos 12.º, 341.°, 342.°, 344.º 346.° e 394.° do Código Civil e artigos 668. o e 513.0 do Código do Processo Civil.”


II. Âmbito do recurso

As questões colocadas na presente revista são as seguintes:

a) nulidade do Acórdão recorrido por não se ter pronunciado sobre questões enunciadas nos dois agravos do Apelante
b) Efeitos da recusa em submeter-se o investigado a exame pericial
c) Violação dos poderes da Relação ao ter alterado as respostas aos quesitos sem que os Apelados delas tivessem reclamado oportunamente e imputando ao R. indevidas consequências do facto de se ter recusado a efectuar exames hematológicos.
d) Caducidade da acção ( discordância da inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 1817.º, sua aplicação no tempo, e a sua não extensão aos demais números do mesmo artigo, designadamente aos n.ºs 3 e 4.


III. Fundamentação

III-A) Os factos fixados pelo Tribunal da Relação

O Tribunal da Relação de Guimarães reapreciou a prova, fixando-a da forma seguinte: (transcrevem-se a itálico os factos alterados ou aditados aos indicados na Sentença proferida na 1.ª instância):

“1. Em 1962.04.10, na freguesia de ..., concelho de Felgueiras, nasceu o A. AA, o qual se encontra registado como filho de BB, solteira (Alínea A) dos factos assentes)
2. O respectivo nascimento foi objecto de assento n.º 616, lavrado no ano de 1962 na Conservatória do Registo Civil de Felgueiras, estando a paternidade omissa (alínea B) dos factos assentes)
3. A mãe do A., BB, faleceu em 1988.12.03 (alínea C) dos factos assentes)
4. A BB quando conheceu o R. era doméstica (resposta ao art. 5.º da b.i.)
5. E cuidava de sua (própria) mãe, DD, por esta se achar acamada (resposta ao quesito 6.º da b.i.)
6. Na noite de 27 para 28 de Agosto de 1960 decorriam em ... as festas em honra de Santa Águeda e de Nossa Senhora da Paz (resposta ao quesito 7.º da b.i.)
7. Entre essa ocasião e 23 de Outubro de 1961, o R. e a mãe do investigante mantiveram entre si, por diversas vezes, relações sexuais de cópula completa.(alteração das respostas aos quesitos 1.º e 2.º da base instrutória, que haviam sido considerados como não provados)
8. Foi em consequência delas que sobreveio a gravidez à BB, tendo acabado por nascer o A. (alteração à resposta ao quesito 3.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
9. No apontado período temporal, apenas com o R. manteve a BB trato sexual. (alteração da resposta ao quesito 4.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
10. Em ..., designadamente, no lugar de Assento e em Felgueiras, todos os conhecidas do R., da BB e do A. sempre, consideraram este como filho do R. (alteração da resposta ao quesito 11.º da b.i.- quesito que só parcialmente havia sido considerados provados)
11. Diziam amiúde: “És como ele, direitinho no andar; és como ele na fala; és a cara chapada do ....”. (alteração das respostas aos quesitos 12.º e 13.º da b.i. – quesitos só parcialmente considerados provados)
12. O R., até ao dia de finados (2 de Novembro de 2003), sempre tratou o A. por filho. (alteração da resposta ao quesito 14.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
13. Por mais que uma vez, o A. perguntou à sua mãe quem era o seu pai, ao que esta lhe respondeu ser o R. (alteração à resposta ao quesito 15. da b.i.º, que havia sido considerado como não provado)
14. O A. sempre chamou o R. de pai.(alteração ao quesito 16.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
15. Quando se cruzavam, o A. dirigia-se ao R. dizendo-lhe: “como vais, pai”(alteração ao quesito 17.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
16. E o R. respondia: “vou bem, filho”(alteração à resposta ao quesito 18.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
17. O R. prometia ajudar o A. no que este precisasse.(alteração à resposta ao quesito 19.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
18. Em 2 de Novembro de 2003, o A. e o R. encontraram-se, como era habitual, no cemitério de ..., para orarem pela BB. (alteração à resposta dada ao quesito 20.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
19. Foi então que o R. proibiu o A. de voltar a chamar-lhe pai e de voltar a falar-lhe.(alteração à resposta dada ao quesito 20.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)
20. E disse então ao A. que não lhe aparecesse mais e que, se voltasse a procurá-lo, o metia na Justiça. (alteração à resposta dada ao quesito 20.º da b.i., que havia sido considerado como não provado)

III-B) Análise da revista

a) Da nulidade do Acórdão recorrido

Refere-nos o art. 721.º-2 do CPC que “O fundamento específico do recurso de revista é a violação da lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como no erro de determinação da norma aplicável; acessoriamente pode alegar-se, porém, alguma das nulidades previstas nos arts. 668.º e 716.º do CPC.”

Sustenta o ora recorrente/R. que o Acórdão é nulo (art. 668.º-1-d) do CPC) por não se ter pronunciado sobre a questão da inexistência (ou pelo menos nulidade) do despacho a admitir a prova pericial, e se haver ordenado esta com preterição de formalidades essenciais previstas no art. 578.º e ss do CPC.

Esta crítica é no entanto inconsistente pois que nos autos existe um despacho a ordenar a perícia legal.- fls. 102
Se existe esse despacho a requisitar tal exame a laboratório ou estabelecimento apropriado, é porque a perícia em causa foi admitida como meio de prova, julgando-a pertinente.- art. 568.º e 578.º do CPC.
Só por lide temerária, sofisma ou má fé se pode sustentar o inverso.

É certo que a perícia foi ordenada sem que previamente tivesse o Juiz ouvido o R. sobre o objecto proposto, facultando-lhe aderir ao seu objecto ou propor a sua ampliação ou restrição.
No entanto, não pode o R. vir invocar nulidade do Acórdão da Relação por não se pronunciar propriamente sobre esse facto colocado nas alegações do recurso da Sentença da 1.ª instância, em virtude de ele mesmo ter vindo a declarar expressamente que se recusava a sujeitar-se ao enunciado exame.
Recusando-se ele aos exames, carece-lhe toda e qualquer legitimidade para vir arguir supostas nulidades processuais por alegadamente não ter sido cumprido o ritualismo previsto nos arts. 578.º e ss. do CPC, cujo exame não chegou a realizar-se pura e simplesmente porque a tal se recusou.

b) Dos efeitos da recusa em submeter-se o investigado a exame pericial:

Entende o recorrente/R. que, tendo a acção como causa de pedir a posse de estado, da sua recusa a submissão a recolha de sangue nenhum efeito contrário aos seus interesses lhe pode advir, uma vez que tal recusa era legítima.
Há neste entendimento grande equívoco por parte do recorrente:
Em primeiro lugar, a acção foi estruturada com dupla causa de pedir:
a) A relação biológica pura (cuja causa de pedir está explanada na petição inicial até ao art. 19.º),
b) e a decorrente da “posse de estado”, dos arts. 20.º a 31.º .
Quer numa quer noutra situação, o objectivo é sempre o mesmo: tornar possível a prossecução do objectivo da identidade pessoal e o estabelecimento da filiação, um dos objectivos dos direitos fundamentais, consagrados na Constituição.- art. 26.º

Para a prossecução de tal objectivo assume extraordinária relevância o apuramento da relação biológica por meios científicos, muito mais eficazes do que a “verdade formal” a que em tempos idos por vezes se chegava com a simples produção de prova testemunhal e com recursos a presunções judiciais.
É certo que ninguém é obrigado a submeter-se a exames para recolha de sangue, mas o que não pode é ignorar que tal recusa, quando desacompanhada de uma justificação plausível, passará a ser valorada livremente pelo Tribunal, designadamente depois de advertido que assim acontecerá se a tal não quisesse submeter-se.
Ora, não tendo o investigado querido sujeitar-se a tal exame nem requerido ao menos que fosse substituído por qualquer outro exame pericial não invasivo (designadamente através da determinação do ADN colhido em saliva, cabelos ou unhas), e conhecendo as consequências da recusa, não pode depois vir a lamentar-se pelo facto de o Tribunal ter considerado essa recusa como instrumento de prova a par dos outros meios, e que contribuíram no seu conjunto para criar no julgador a sua convicção face à matéria em crise.

Não se pode sustentar, por outro lado, que a realização de tal exame seria irrelevante quando a causa de pedir da acção assentasse apenas na “posse de estado”. É que mesmo que nos encontrássemos apenas perante essa situação – o que não é o caso – sempre seria de considerar que a convicção do Tribunal a respeito da “posse de estado” pode sair reforçada ou descridibilizada consoante o resultado da investigação científica sobre a relação biológica, à qual só se chega com a realização de exame pericial.
Muitas vezes são os factos instrumentais que levam o Tribunal a dar ou a negar credibilidade a outras provas sobre factos essenciais determinantes de uma relação jurídica, e a inviabilização voluntária desse meio de prova por parte daquele de quem ele unicamente depende, é um contributo muito forte para abalar a credibilidade do recusante ou dos meios de prova que este apresente se porventura não forem suficientemente fortes para se imporem por si mesmos.

c) Da violação dos poderes da Relação ao sindicalizar a prova

Se bem percebemos, entende o recorrente/R. que a Relação não podia alterar a matéria de facto considerada provada na primeira instância porque o A. não reclamou da decisão da matéria de facto, aquando da sua leitura, a que o A. esteve presente. – fls. 255.
Esta objecção não faz sentido, uma vez que a reclamação a que se reporta o art. 653.º-4 do CPC não tem um objectivo cogente, antes de mais porque deixa à disponibilidade das partes a sua utilização ou não :
Veja-se a redacção do n.º citado:
“ Voltando os juízes à sala (...), facultará para exame a cada um dos advogados (...) para uma apreciação ponderada; feito o exame, qualquer deles pode reclamar contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão ou contra a falta da sua motivação (...) ”.
Com isto pretende atalhar-se desde logo supostos vícios formais, sem que no entanto o âmbito desta reclamação seja extensiva a supostos erros de julgamento, fundados na desconformidade do julgamento com a decorrente dos meios probatórios produzidos.
A impugnação da matéria de facto tem a sua sede própria na impugnação da Sentença, através de recurso, devendo então o recorrente fazê-lo nos termos do art. 690.º-A do CPC., indicando quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados; quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida; e indicando o recorrente, nesta segunda hipótese, os depoimentos em que se funda por referência ao assinalado na acta (...) incumbindo à parte contrária indicar os depoimentos gravados que infirmem tais declarações...
Ora o recorrente foi ainda mais longe, porque transcreveu, inclusive, depoimentos concretos, portanto contraditáveis.

Acontece que a Relação podia exercer in casu o seu poder sindicalizante – como de resto exerceu - pois tinha ao seu dispor todos os meios de prova utilizados.- art. 712.º-1-a) do CPC:
Tinha as cassetes, tinha a transcrição d depoimentos, procedeu à análise crítica dos depoimentos, e fez depois a conjugação de todos esses elementos com o facto de o R/Apelante se ter recusado a submeter a exame pericial com vista à investigação da paternidade.
E da conjugação desses factores, concluiu que se lhe impunha prova diversa.

Não foi, por outro lado, apenas por suposta aplicação de inversão do ónus da prova decorrente da recusa do R. em submeter-se a exame hematológico que veio o Tribunal da Relação a convencer-se de forma diferente da que fora assumida na primeira instância, mas antes pela reanálise crítica das provas produzidas (sobre as quais se pronunciou, rebatendo os fundamentos utilizados pelo Juiz da 1.ª instância), ainda que em conjugação com a recusa do R. em submeter-se ao exame pericial.

Pois bem:
Em relação ao apuramento da matéria de facto a intervenção do STJ é residual, limitada a averiguar da observância das regras de direito probatório material (art. 722.º-2 do CPC) e a determinar a ampliação da matéria de facto (art. 729.º-3), só podendo exercer censura se tiver sido violada disposição expressa da lei que exija determinado tipo de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
Não se verificando qualquer das situações excepcionais que permitiriam ao STJ intervir para poder alterar a matéria de facto fixada na Relação, os factos a ter em conta para aplicação do Direito, são aqueles que a Relação já fixou, pois que dessa decisão não cabe recurso. – arts. 712.º-6 do CPC.

d) Da caducidade da acção

Entende o Apelante/R. que, apesar do Tribunal Constitucional se ter já pronunciado sobre a inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 1817.º (com força obrigatória geral) o Tribunal da Relação não podia ter deixado de aplicar ao caso em presença o disposto no enunciado artigo ( verificação de caducidade do direito de accionar, por não ter a acção sido proposta no prazo de dois anos após o investigante ter atingido a maioridade), uma vez que esse reconhecimento de inconstitucionalidade foi posterior à instauração da presente acção, e, até lá, toda a doutrina e jurisprudência ia no sentido de que tal preceito não violava a Constituição.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional não se pronunciou a respeito da inconstitucionalidade dos números seguintes desse mesmo artigo, designadamente sobre o n.º 4, fundado na existência de posse de estado, pelo que não pode o Tribunal recusar a sua aplicação.

Também aqui não damos razão ao R/recorrente.
A declaração ou reconhecimento de constitucionalidade de uma norma reporta-se à sua conformidade com a Constituição vigente. O que vai determinar se determinada norma é constitucional não é pois a data em que a norma foi criada, mas sim a do confronto com a Constituição vigente, à data dos factos em que o direito é exercido ou se pretende exercer.
Assim, se nos feitos submetidos a julgamento aos Tribunais for apresentada uma situação conforme a uma norma jurídica mas esta for desconforme à Constituição vigente ou aos princípios nela consignados relativamente ao momento em que o direito é exercido, o que o Tribunal tem a fazer é recusar a aplicação dessa norma. - art. 204.º da Constituição.
Ora, tendo o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 23/06, de 2006.01.10, já declarado com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do art. 1817.º-1 do CC. no que toca ao prazo da caducidade aí proposto, por entender que o prazo estabelecido para a obtenção da identidade pessoal e antecedentes biológicos e genealógicos tem natureza imprescritível, dada a natureza dos direitos à identidade e dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica.- art. 26.º 1 e 3 da Constituição, ser incompatível com as condições temporais para o seu exercício– cfr. www.tribunalconstitucional.pt /jurisprudência

As mesmas razões, salvo o devido respeito, se colocam face aos demais números do art. 1817.º, pois nuns e noutros casos, o que sempre está presente é o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação, à dignidade pessoal e genética do investigante, direitos de tal modo elevados que não podem ser limitados por prazos curtos.
Não se colocam de resto aos investigados situações de risco de caírem nas malhas dos “caças fortunas”, pois os avanços científicos, designadamente na área do ADN, são de tal maneira elevados que não dão margem a prémios por jogos oportunísticos na determinação científica da cadeia biológica, nem conduzem à determinação da paternidade/maternidade com base em elementos inseguros de prova
A lei ordinária acabou já com a indicação no registo com a enunciação de filho de pai ou mãe incógnito.
Com a inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 1817.º foram postos em causa as últimas résteas, a nível de restrições legais, que inviabilizavam a investigação da paternidade ou maternidade para além de um curto prazo de tempo.

No caso em presença, mesmo que porventura viesse a entender-se que o art. 1817.º-4 não era inconstitucional – situação que não sustentamos, mas que só academicamente formulamos – nem por isso poderia considerar-se caducado o direito de accionar.
Na verdade, o simples facto de a acção ter duas causas de pedir e a matéria de facto provada comportar os elementos que integravam essas causas, faz com que não se possa colocar a questão da caducidade face ao n.º 1 do art. 1817.º (pela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral) e a do n.º 4 (pelo simples facto de nem sequer ter decorrido um ano entre o momento em que ficou provada a cessação do tratamento como filho por parte do investigado (2003.11.02) e a data em que a acção foi proposta.(2004.10.21)

Improcedem por isso todas as questões suscitadas.

IV. Deliberação
De tudo o exposto, nega-se a revista e confirma-se o douto Acórdão recorrido.
Custas pelo R. na revista e nas instâncias.

Lisboa, 23 de Outubro de 2007

Mário Cruz (relator)
Faria Antunes
Moreira Alves

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(1) Alegações a fls. 132 a 136.
(2) Alegações de recurso a fls. 193. e despacho de sustentação a fls. 202