Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6987/13.6TBALM.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: REGULAMENTO (CE) 2201/2003
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
RESIDÊNCIA HABITUAL
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
Data do Acordão: 01/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: "CADERNOS DE DIREITO PRIVADO", Nº 55 (JUL-SET.2016); COM ANOT. DE ANABELA SUSANA DE SOUSA GONÇALVES, FLS. 33-46
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO EUROPEU - RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DE DECISÕES EM MATÉRIA DE RESPONSABILIDADE PARENTAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAL / GARANTIAS DE COMPETÊNCIA / INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA - PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA.
Doutrina:
- Maria Helena Brito, in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, vol. I, Almedina, p. 323.
- Moura Ramos, in Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, II, Coimbra Editora, 2007, p. 146.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 96.º, AL. A), E 99.º, N.º 1, 988.º, N.º2.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (CE) N.º 2201/2003, DE 27-11 (QUE REVOGOU O REGULAMENTO (CE) N.º 1347/2000, DE 29-05): - ARTIGOS 2.º, N.º7, 8.º, N.ºS 1 E 2, 9.º, N.º1, 10.º, ALÍNEAS A) E B), 11.º, N.º2, 12.º, N.ºS 1 E 3.
Legislação Estrangeira:
CÓDIGO CIVIL ITALIANO:
-ARTIGOS 155.º, 316.º E 317.º-BIS.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 20.01.2009, PROC. Nº 08B2777, ACESSÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Jurisprudência Internacional:
ACÓRDÃOS DO TJUE:
- DE 2/4/2009 E DE 22/12/2010, ACESSÍVEIS EM HTTP://CURIA.EUROPA.EU/JÚRIS/DOCUMENT.JSF;JSESSIONID .
Sumário :
I - O Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27-11, que revogou o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, de 29-05, alargou o âmbito da competência no tocante às questões de responsabilidade parental, com a finalidade de garantir igualdade de tratamento entre crianças, dispondo em relação a todos os filhos menores, independentemente da existência, ou não, de um vínculo matrimonial entre os pais e da conexão da questão relativa a responsabilidades parentais com eventual processo de dissolução do casamento.

II - Tal Regulamento – directamente aplicável na nossa ordem jurídica – contém, entre o mais, regras directas de competência internacional quanto às matérias nele abrangidas, estabelecendo, como regra geral, no seu art. 8.º, n.º 1, a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança resida habitualmente à data em que seja instaurado processo relativo a responsabilidade parental.

III - O TJUE, por Acórdão de 22-12-2010, considerou que a determinação do conceito de residência habitual há-de ser feita à luz das disposições do dito Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando 12.º, daí resultando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.

IV - De acordo com esta jurisprudência, o conceito de “residência habitual” corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar, sendo que para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta num Estado-Membro, outros factores suplementares (v.g. a duração, a regularidade, as condições e as razões de permanência num território de um Estado-Membro ou da mudança, a nacionalidade da criança, a idade e, bem assim, os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado-Membro) devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional.

VI - Resultando da factualidade apurada, em sede de processo de regulação das responsabilidades parentais, que: (i) a criança nasceu no dia 02-03-2011, em Milão, Itália, cidade onde os pais contraíram casamento; (ii) após o seu nascimento, o pai decidiu passar a residir em Portugal, exercendo funções de médico especialista no hospital de ..., cidade onde reside; (iii) a criança tem nacionalidade italiana e brasileira e fixou residência com a mãe em Milão, em Setembro de 2012, juntamente com a irmã uterina, em resultado de acordo dos pais; (iv) também por acordo dos pais e necessitando a mãe de estudar para um exame a ter lugar em Junho de 2013, veio para Portugal, em finais de Março de 2013, onde ficou em casa do pai; (v) permaneceu em território nacional em Agosto de 2013, por acordo dos pais, para conviver com os avós paternos, seguindo-se uma viagem ao Brasil para participar num convívio com a família paterna; (vi) ter a mãe, no regresso da criança e do pai, em Outubro de 2013, exigido que a criança regressasse a Itália, o que o pai não aceitou e; (vii) tendo sido proferida decisão no processo de entrega judicial de menor apenso a ordenar a entrega da criança à mãe, na sua residência, em Itália, deve decidir-se pela incompetência internacional dos tribunais portugueses, em virtude da residência habitual da criança se situar em Itália.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório:


AA, de nacionalidade brasileira, requereu no Tribunal de Família e Menores de Almada, em 13 de Dezembro de 2013, contra BB, de nacionalidade colombiana e italiana, a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas à menor CC, filha de ambos, de nacionalidade italiana e brasileira.

Alegou, em síntese, que requerente e requerida casaram em Itália e se encontram separados de facto, tendo a menor ficado aos cuidados e guarda da requerida, que continuou a residir naquele país, quando o requerente fixou residência em Portugal, onde trabalha. Mais alegou que a filha do casal tem estado a morar, de forma ininterrupta, com o requerente desde Março de 2013 em território nacional e não existe acordo sobre a forma de exercerem as responsabilidades parentais pelo que carece de ser estabelecido um regime que atribua ao requerente a guarda e os cuidados da filha menor.

       Realizou-se uma conferência de pais.

       Com data de 4 de Junho de 2014 foi proferida decisão que declarou os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer da presente acção, absolvendo a requerida da instância. 

         Inconformado, apelou o requerente.

          O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 19 de maio de 2015, julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida.

          Mais uma vez irresignado, recorreu o requerente de revista, pugnando pela afirmação da competência internacional dos tribunais portugueses.

Na alegação apresentada aduziu as seguintes conclusões:

«1º- O Apelante, ora Recorrente, apenas continua a pedir a regular observância das regras legais aplicáveis ao caso em análise.

2º- Torna-se premente a última instância superior do sistema judicial definir de forma clara a aplicação e a amplitude das regras processuais que permitiam ter ao Recorrente um julgamento justo e uma decisão igualmente justa. Ou seja,

3º- Estão reunidas as condições de revista excepcional da decisão que determina e confirma a incompetência absoluta dos tribunais nacionais.

4º- Com a concordância da Recorrida, o Recorrente e a sua filha menor tinham residência fixa e contínua no tempo em território português, desde Março de 2013.

5º- Com aplicação directa através do art.º 8.º n.º 2 da C.R.P., a “Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças” adoptada em Haia, em 19 de Outubro de 1996 e aprovada pelo Decreto n.º 52/2008 de 13 de Novembro e o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 sobre a “Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria matrimonial e em Matéria de Responsabilidade Parental”, em vigor, tanto em Portugal como na Itália (local de nascimento da menor), desde 01 de Agosto de 2004, aplicável desde 01 de Março de 2005, prevalecendo sobre o direito interno, nos termos do art.º 8.º n.º 4 da C.R.P. . E,

6º- Neste Regulamento, coincidindo com o art.º 1.º n.º 1 alínea c) e 3.º da Convenção de Haia, inscrevem-se nos termos do art.º 1.º n.º 1 alínea a) e n.º 2, a atribuição, o exercício, delegação, limitação ou cessação da responsabilidade parental, nomeadamente, no que respeita ao direito de guarda e ao direito de visita.

7º- De acordo com o art.º 2.º n.º 7 do mencionado Regulamento entende-se por “responsabilidade parental” o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular por decisão judicial relativo a uma criança, compreendendo-se aqui o direito da guarda e de visita.

8º- Nos art.ºs 8.º do dito Regulamento e 5.º da Convenção de Haia conferem aos Tribunais de um Estado-membro a competência em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-membro à data em que o processo é instaurado.

9º- Está factualmente demonstrada um mútuo acordo para uma total interligação com Portugal das partes e da própria menor, atendendo à sua residência estável e legalmente autorizada em território nacional desde Março de 2013.

10º- Ao surgir a divergência entre os progenitores da menor, o Recorrente tinha legitimidade para accionar a Recorrida nos Tribunais portugueses atendendo ao facto de se encontrar a residir com a filha em Almada, legalmente autorizado para tal, de forma habitual e duradoura, sendo para todos os efeitos à data da propositura da acção o local de residência da menor.

11º- O foro judicial em causa não podia, pura e simplesmente, eximir-se da sua obrigatoriedade decisória e limitar-se a ordenar o regresso da menor a Itália, sem averiguar qual era o seu superior interesse e o que era melhor para o futuro da pequena CC.

12º- Com aplicação directa ao caso concreto e divergente da decisão em recurso invoca-se o Ac. do STJ de 28 de Setembro de 2010. (doc. 1) inhttp://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/398836832f01c4a4802577ac0048da99?OpenDocument

 “A Lei 61/2008, de 31.10, veio alterar não só a terminologia legal, substituindo a designação de poder paternal por responsabilidades parentais, assim pretendendo em nome dos superiores interesses dos menores afectados por situações familiares dos seus pais, defendê-los e envolver os progenitores nas medidas que afectem o seu futuro dos filhos, coenvolvendo-os e co-responsabilizando-os, não obstante a ruptura conjugal, preservando relações de proximidade e consagrando um regime em que mesmo o progenitor que não detenha o poder paternal deve ser informado e, assim, ser co-responsável pela educação e destino do filho, pelo que tais normativos são preceitos de interesse e ordem pública.

A recorrida ao tomar por si, única e exclusivamente a decisão de abandonar Portugal para se fixar com o filho menor na Suíça, ancorada no facto de o ter à sua guarda, não só violou o dever de informação e participação do recorrente, num aspecto da maior relevância para o futuro do menor, obrigação a que estava obrigada por força do nº6 do art. 1906º do Código Civil, na redacção da Lei 61/2008, de 31.10, como também privou o Tribunal de se pronunciar, ante a patente discordância do progenitor que não tem a guarda do filho.” Deste modo,

13º- Está colocada em causa a certeza na aplicação do direito e a geração do costume jurisprudencial quando o douto Acordão em recurso se encontra em contradição com o douto Acórdão supra invocado, com incidência essencial sobre a mesma questão fundamental de direito, cfr. al. c) do n.º 1 do art.º 672.º do C.P.C. .

14º- Por uma questão de economia processual, de confiança na segurança do sistema judicial e de boa aplicação do Direito e da Justiça, outra solução tem de ser encontrada.

15º- A decisão final neste caso é essencial à definição do regime legal aplicável à determinação da residência da menor CC e de delineação do seu futuro imediato.

16º- A Justiça nacional ao determinar que a menor fosse para Itália com a mãe, sem a concordância do pai, quando até então, todas as matérias relevantes da vida da menor tivessem sido adoptadas em conjunto entre os progenitores viola os superiores interesses daquela.

17º- Quando nasceu a divergência, o Recorrente socorreu-se dos Tribunais nacionais como era o seu mais legítimo e básico direito enquanto cidadão estrangeiro residente em Portugal, beneficiando dos direitos legais civis existentes.

18º- Determina-se no douto Acórdão invocado que: “Ora, tratando-se, inquestionavelmente, de preceito de interesse e ordem pública e estando em vigor à data em que foi requerida a regulação do poder paternal, ditada pela superveniente alteração das circunstâncias com a partida da mãe para a Suíça, não poderiam as instâncias, a nosso ver, deixar de ponderar se tais alterações e a ratio delas contenderia com a decisão a tomar.”

19º- O antigo Tribunal de Família e Menores de Almada limitou-se a decidir por si próprio e em exclusivo, que, embora a menor estivesse legitimamente a viver com o pai em território português desde Março de 2013 até ao momento da conferência de pais, esta deveria ser entregue à mãe para retorno a casa em Itália.

20º- Violando o princípio constitucional da igualdade, foi o Recorrente privado de qualquer poder de decisão em defesa dos interesses da criança, sendo que o local do destino passou a constituir o da residência permanente ou habitual da filha e essa residência permanente ou habitual não foi objecto de informação nem sequer tentativa de consenso junto do Recorrente, tendo o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, no douto Acórdão ora em recurso confirmado tal posição.

21º- A douta decisão em apreço violou o disposto nos art.ºs 14.º; 19.º; 20.º; 82.º; 85.º; 1906.º n.º 3; 1909.º todos do C.C., 155.º do O.T.M.; 62.º do C.P.C.; 5.º da “Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças” adoptada em Haia, em 19 de Outubro de 1996; 8.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 sobre a “Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria matrimonial e em Matéria de Responsabilidade Parental” e art.º 13.º da C.R.P. Para tanto,

Deve, pois, a douta sentença ser revogada e substituída por douto acórdão que consagre a posição articulada do Recorrente com as legais consequências».


Não houve contra-alegação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. Fundamentos:

De facto:

As Instâncias julgaram provada a seguinte facticidade:

1 - CC, com nacionalidade italiana e brasileira, filha de AA de nacionalidade brasileira e de BB, de nacionalidade colombiana e italiana, nasceu em Milão, em 02/03/2011.

2 - A presente acção de regulação das responsabilidades parentais da menor CC foi instaurada pelo progenitor em 13/12/20l3 contra a progenitora.

3 - Deu entrada em juízo, no Tribunal de Milão (Itália), secção cível, em 13/11/2013, acção de divórcio e pedido de regulação das responsabilidades parentais referentes à menor CC, instaurada pela progenitora contra o progenitor.

4 - O progenitor é médico especialista de ginecologia/obstetrícia, exercendo funções no Hospital DD em … e reside na Rua de …, n° …, ….

5 - A progenitora é funcionária administrativa e exerce a sua profissão no Instituto EE na cidade de …, Itália, cidade onde reside na Via …, n° …, Opera.

6 - Os progenitores contraíram casamento entre si em 08 de Setembro de 2011 em Opera, …, Itália.

7 - Em Março de 2011, após o nascimento da menor, o progenitor decidiu residir em Portugal para onde veio exercer a sua profissão, tendo a menor ficado com a mãe em Itália.

8 - Em Setembro de 2012, por acordo entre os progenitores, a menor CC fixou residência juntamente com mãe e a irmã uterina FF, em Itália.

9 - Por acordo entre os progenitores e, designadamente, com o objectivo que a mãe estudasse para um exame a ter lugar em Junho e Julho de 2013, em finais de Março de 2013 a menor veio para Portugal onde ficou em casa do progenitor.

10 - Para que a menor convivesse com os avós paternos que se deslocaram a Portugal para estar com o filho e a neta, os progenitores acordaram que a menor permaneceria em território nacional no mês de Agosto de 2013.

11 - Datado de 31 de Julho de 2013 o progenitor enviou um mail à progenitora com o seguinte teor:

BB

A ideia era encontrar uma solução para que pudesses trabalhar até 6a-feira á tarde e vir para Portugal 5ª-feira à noite, pelo menos até encontramos um lugar mais perto de Milão. Terias de perguntar ao departamento de pessoal ou ao teu chefe, ou ao teu amigo GG. Acho que esta seria a solução menos dispendiosa. A creche custaria 350 Euros mais os teus bilhetes. Ainda por cima não teria de pagar os impostos em Itália porque a CC estaria aqui. Já vi escolas americanas, alemãs e inglesas que dão uma excelente preparação a preços que posso pagar. (..) se finalmente achas que é melhor a CC voltar, diz-me que eu pago o mestre cuco até Agosto e procuro os bilhetes para a levar em setembro, ok. Depois falamos no skype ou pessoalmente.

Beijinhos

AA.”

12- Por acordo entre os progenitores a menor viajou ao Brasil na companhia do pai para participar num convívio da família paterna.

13- No regresso de ambos, em Outubro de 2013 a progenitora exigiu que a menor regressasse a Itália.

14- Nos autos apensos de entrega judicial de menor foi ordenada a entrega de CC à progenitora na sua residência sita em Via …, …, Milão, Itália.


            De direito:

Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente e tendo presente que este se circunscreve à apreciação de questões de legalidade, de harmonia com o disposto no artigo 988º nº 2 do Código de Processo Civil, a questão nuclear a apreciar é a de saber se deve ser deferida, no caso, aos tribunais portugueses a competência internacional para decidir os presentes autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais.

Está em causa aferir da competência internacional dos tribunais portugueses em face do regime instituído pelo Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.

Em vigor desde 1 de Agosto de 2004 e aplicável a partir de 1 de Março de 2005, o Regulamento (CE) nº 2201/2003, que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000, alargou o âmbito da competência no tocante às questões de responsabilidade parental com a finalidade de garantir igualdade de tratamento entre as crianças, dispondo em relação a todos os filhos menores, independentemente da existência, ou não, de um vínculo matrimonial entre os pais e da conexão da questão relativa a responsabilidades parentais com eventual processo de dissolução do casamento.

Caracterizado por Moura Ramos como um direito «inclusivo», o direito comunitário constitui um sistema de normas disciplinadoras da vida jurídica da sociedade «comunitária», cuja aplicação se torna directamente vinculativa na ordem interna dos Estados-Membros (Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, II, Coimbra Editora, 2007, p. 146). Assim, o Regulamento (CE) nº 2201/2003, directamente aplicável na nossa ordem jurídica, contém, entre o mais, regras directas de competência internacional quanto às matérias nele abrangidas, estabelecendo, como regra geral, no seu artigo 8º nº 1 a competência dos tribunais do Estado-Membro em que a criança resida habitualmente à data em que seja instaurado processo relativo a responsabilidade parental, definida no seu artigo 2º nº 7 como “o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou bens de uma criança”, conceito que abrange, como expressamente afirmado, “o direito de guarda e o direito de visita”.

O princípio geral fundado no critério da «residência habitual» da criança mostra-se bem vincado no ponto 12 dos considerandos que antecedem a parte dispositiva do Regulamento (CE) nº 2201/2003, no qual se consagrou que:

As regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”.

Na verdade, a «residência habitual» da criança, enquanto critério atributivo da competência internacional, sofre desvios nos casos de prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança (artigo 9º nº 1) – caso em que a criança se desloca legalmente e passa a ter residência habitual noutro Estado-Membro e o primeiro Estado-Membro conserva a competência durante os três meses seguintes à data da deslocação com vista a eventual alteração da decisão quanto ao direito de visita – de extensão da competência fixada para as acções de divórcio, de separação ou de anulação do casamento (artigo 12º nº 1) – hipótese em que é dada prevalência à competência por conexão – ou de extensão da competência por razão de especial ligação da criança a um Estado-Membro – o que pode acontecer caso exista acordo das partes no processo e essa competência seja exercida no superior interesse da criança (artigo 12º nº 3).

Para além das situações acabadas de enunciar, uma outra afasta a referida regra geral de competência contida no artigo 8º nº 1, como o evidencia o disposto no nº 2 do mesmo artigo 8º do Regulamento (CE) nº 2201/2003.

Trata-se do rapto da criança (artigo 10º), ou seja, de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, situação em que os tribunais do Estado-Membro onde residia habitualmente, antes da deslocação, se mantêm competentes, só cessando essa competência quando a criança passa a ter a sua residência noutro Estado-Membro e o titular do direito de guarda dá o seu consentimento à deslocação ou retenção ou desde que a criança esteja a residir no novo Estado-Membro durante, pelo menos, um ano e se encontre integrada no seu novo ambiente, sem que exista qualquer decisão que determine o seu regresso (alíneas a) e b)).

Em qualquer dos casos, a questão que se coloca é a da determinação do conceito aberto de «residência habitual» da criança para efeitos de aplicação da regra geral de competência estabelecida no Regulamento (CE) nº 2201/2003, cuja concretização se impõe, posto que esta constitui a questão nuclear colocada pelo recorrente.

A propósito do conceito de «residência habitual» à luz do referido Regulamento (CE) nº 2201/2003, escreveu Maria Helena Brito (in Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, vol. I, Almedina, p. 323) que, na ausência de uma definição (cfr. artigo 2º), o mesmo “deve interpretar-se autonomamente, de acordo com a jurisprudência do TJCE (se bem que em domínios diferentes do da Convenção de Bruxelas de 1968), como «o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir carácter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos».

Pronunciando-se no âmbito de um pedido de reenvio prejudicial sobre a interpretação do conceito de residência habitual na acepção dos artigos 8º e 10º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 para efeito de determinação do tribunal competente para se pronunciar sobre questão relativa ao direito de guarda de uma criança deslocada licitamente pela mãe para Estado-Membro diferente daquele onde tinha a sua residência habitual, considerou o Tribunal de Justiça (Primeira Secção), por Acórdão de 22 de Dezembro de 2010 (acessível em http://curia.europa.eu/júris/document.jsf;jsessionid), que, não remetendo o regulamento expressamente para o direito interno dos Estados-Membros, a determinação daquele conceito há-de ser feita à luz das disposições e do objectivo do dito regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando décimo segundo, daí ressaltando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.

Prosseguindo, escreveu-se no mesmo aresto que, “A fim de que este superior interesse da criança seja respeitado da melhor forma, O Tribunal de Justiça já declarou que o conceito de «residência habitual», na acepção do artigo 8º nº 1 do regulamento, corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar”. E mais adiante, que “para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta num Estado-Membro, outros factores suplementares devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional”.

Como factores suplementares podem considerar-se, nomeadamente, a duração, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro e da mudança, a nacionalidade da criança, a idade e, bem assim, os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado (neste sentido o Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção), de 2 de Abril de 2009).

Também este Supremo Tribunal definiu já o conceito de «residência habitual» no mesmo sentido, conforme acórdão de 20.01.2009, proc. nº 08B2777, acessível em www.dgsi.pt/jstj.

Perante os contornos do conceito de residência habitual da criança acabados de definir para efeitos de determinação da competência internacional do tribunal relativamente a processo de regulação de responsabilidades parentais, que se acolhem por inteiro, será em função da facticidade concretamente apurada, das circunstâncias concretas relevantes de cada caso, que se concluirá pela existência ou não de «residência habitual» da criança no Estado-Membro onde se encontra na data em que o respectivo processo ou processos foram iniciados.

No caso em apreço, defende o recorrente que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes porque a menor CC, sua filha, tem residência habitual em Portugal, concretamente naquela que é a residência do mesmo no nosso país.

Os factos provados não apontam, contudo, nesse sentido, como as decisões proferidas nas instâncias deixaram bem evidenciado.

Está em causa um processo que visa a regulação das responsabilidades parentais, em particular o direito de guarda e o direito de visita, relativamente a uma criança nascida no dia 2 de Março de 2011, em Milão, Itália, cidade onde os pais contraíram casamento entre si, em 8 de Setembro de 2011.

Em Março de 2011, após o nascimento da menor, o pai decidiu passar a residir em Portugal, exercendo funções de médico especialista de ginecologia/obstetrícia no Hospital DD, em …, cidade onde reside, tendo a criança, de nacionalidade italiana e brasileira, fixado residência com a mãe em …, Itália, em Setembro de 2012, juntamente com a irmã uterina FF, em resultado de acordo dos pais.

Também por acordo dos pais e, designadamente, com o objectivo de a mãe, funcionária administrativa a exercer a sua profissão no Instituto EE na cidade de …, estudar para um exame a ter lugar em Junho e Julho de 2013, a menor CC veio para Portugal, em finais de Março de 2013, onde ficou em casa do pai. Os pais acordaram ainda que a criança permaneceria em território nacional no mês de Agosto de 2013 para conviver com os avós paternos, que se haviam deslocado a Portugal para estarem com o filho e a neta, tendo a CC, com a anuência da mãe, viajado ao Brasil na companhia do pai para participar num convívio da família paterna. No regresso de ambos, em Outubro de 2013, a mãe exigiu que a criança regressasse a Itália, o que o pai não aceitou, mantendo-a consigo até que, por decisão proferida no processo de entrega judicial de menor apenso a estes autos, foi ordenada a entrega da CC à mãe, na sua residência sita em Via …, …, Milão, Itália.

A facticidade acabada de enunciar é reveladora de que a menor CC, actualmente com quatro anos de idade, viveu com a mãe, em Itália, desde o seu nascimento e ali permaneceu por acordo dos pais, apesar de o pai ter decidido fixar residência e trabalhar em Portugal, até que, com cerca de dois anos de idade, se deslocou a Portugal com o objectivo de permitir melhor preparação da mãe para um exame.

A estadia da criança no nosso país prolongou-se com a concordância da mãe apenas para proporcionar, numa primeira fase, o convívio com os avós paternos e, numa segunda fase, com a família alargada do pai no Brasil. Contudo, após a viagem ao Brasil a mãe reivindicou o regresso da criança a Itália e, não o conseguindo alcançar voluntariamente, accionou os respectivos mecanismos processuais, tendo corrido por apenso a estes autos processo que culminou com decisão a determinar o regresso da CC a Itália, à casa materna.

Considerando a motivação e o circunstancialismo que rodeou a vinda da criança com tenra idade a Portugal e a sua permanência junto do pai até Outubro de 2013, num clima de entendimento com a mãe, pode afirmar-se que a CC tinha em Itália a sua «residência habitual». Nesse país viveram os pais e casaram, ali nasceu e viveu de forma estável com a sua mãe e a sua irmã uterina, deslocando-se com cerca de dois anos de idade a Portugal com a perspectiva de uma estadia meramente transitória. Nada nos autos aponta no sentido de os pais terem acordado na alteração do local da residência da filha.

Aliás, o mail datado de 31 de Julho de 2013 enviado pelo recorrente à recorrida é revelador de que, não obstante o desejo de que a filha permanecesse consigo, o recorrente tinha perfeita noção de que a sua estadia em Portugal tinha carácter temporário, prontificando-se no final do mesmo a fazê-la regressar ao afirmar: “se finalmente achas que é melhor a CC voltar, diz-me que eu pago o mestre cuco até Agosto e procuro os bilhetes para a levar em setembro, ok”.

Como se dá nota no acórdão recorrido, tendo a criança a sua residência habitual em Itália imediatamente antes da sua deslocação a Portugal e sendo nesse país o exercício das responsabilidades parentais conjunto, nenhum dos pais poderá decidir individualmente sobre aspectos essenciais da vida da criança, concretamente sobre a escolha do local da sua residência, à revelia do acordo previamente estabelecido entre ambos. Assim, nenhum dos pais da menor CC podia, unilateralmente, introduzir qualquer alteração ao que fora instituído por acordo entre ambos, o qual só poderia ser alterado por um novo acordo ou por decisão judicial.

É o que também preconizam os arts. 155, e 316 e 317-bis do “Codice Civile” italiano, como salienta, igualmente, o acórdão recorrido, estabelecendo que o poder paternal é exercido de comum acordo por ambos os pais.

O que significa que não caberá a nenhum dos pais decidir individualmente sobre aspectos essenciais da vida do filho, como o local da fixação da sua residência, a não ser que o exercício desse poder lhe caiba em exclusivo. Logo, se à luz da lei italiana aplicável competia aos pais, em conjunto, o direito de escolher a residência da filha, nenhum deles podia, unilateralmente, introduzir qualquer alteração ao decidido por acordo entre ambos.

Donde se infere, à luz do estabelecido no nº 11 do artigo 2º do Regulamento (CE) nº 2201/2003, que a permanência da menor CC em Portugal a partir de Outubro de 2013 se configurou como retenção ilícita.

Logo, tendo a menor CC residência habitual em Itália na data em que ocorreu a sua deslocação a Portugal, não ocorrendo qualquer desvio à regra geral de competência internacional contida no nº 1 do artigo 8º do aludido regulamento e não determinando o superior interesse da criança solução que a afaste, tem de concluir-se, em sintonia com o doutamente decidido nas instâncias, pela incompetência internacional dos Tribunais Portugueses para julgar o presente pleito, incompetência absoluta que conduz à absolvição da instância da requerida, aqui recorrida em conformidade com o disposto nos artigos 96º al. a) e 99º nº 1 do Código de Processo Civil.


3. Decisão:

Termos em que se nega a revista e se confirma o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Janeiro de 2016


Fernanda Isabel Pereira (Relatora)

Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Beleza