Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1262/14.1T8VCT-B.G1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
LEI APLICÁVEL
DEVER DE INFORMAÇÃO
COMUNICAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CRÉDITO BANCÁRIO / MÚTUO.
DIREITO DO CONSUMO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS.
Doutrina:
- Fernando Gravato de Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina 2007, 143 a 145.
- Heinrich E. Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, 284 e ss..
- Joaquim de Sousa Ribeiro, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra editora, Coimbra, 2007, 49, 61.
- Jorge Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, 59 e 60.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, 275.
- P. Lima e A. Varela, “Código Civil” Anotado, 4.ª ed. Vol. I, 298.
- Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, 423.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
D.L. N.º 446/85, COM AS SUAS SUBSEQUENTES ALTERAÇÕES (LCCG): - ARTIGOS 1.º, N.º2, 5.º, 6.º.
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA COMUNITÁRIA Nº 93/13/CEE.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 24/2/1999, BMJ 484º-246.
-DE 18/11/1999, , PROCESSO N.º 99B869, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 12/12/2002, , PROCESSO N.º 02A3692, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 8/7/2003, PROCESSO N.º 03A1832, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 18/4/2006, PROCESSO N.º 06A818, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 30/10/2007, PROCESSO N.º 07A303048, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 23/10/2008, PROCESSO N.º 08B2977, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 20/1/2010, PROCESSO N.º 2963/07.6TVLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 8/4/2010, PROCESSO N.º 3501/06.3TVLSB.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 2/12/2013, PROCESSO N.º 306/10.0TCGMR.G1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 2/6/2015, PROCESSO N.º 109/13.0TBMLD.P1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 9/7/2015, PROCESSO N.º 1728/12.8TBBRR-A.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - É aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais ao clausulado inserido no corpo contratual individualizado cujo conteúdo, previamente elaborado, o destinatário não pode influenciar.

II - O cumprimento das prestações impostas pelos arts. 5.º e 6.º da LCCG – cuja prova onera o predisponente – convoca deveres pré-contratuais de comunicação das cláusulas (a inserir no negócio) e de informação (prestação de todos os esclarecimentos que possibilitem ao aderente conhecer o significado e as implicações dessas cláusulas), enquanto meios que radicam no princípio da autonomia privada, cujo exercício efectivo pressupõe que se encontre bem formada a vontade do aderente ao contrato e, para tanto, que este tenha um antecipado e cabal conhecimento das cláusulas a que se vai vincular, sob pena de não ser autêntica a sua aceitação.

III - Por isso, esse cumprimento deve ser assumido na fase de negociação e feito com antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo do aderente, tendo em conta as circunstâncias (objectivas e subjectivas) presentes na negociação e na conclusão do contrato – a importância deste, a extensão e a complexidade (maior ou menor) das cláusulas e o nível de instrução ou conhecimento daquele –, para que o mesmo, usando da diligência própria do cidadão médio ou comum, as possa analisar e, assim, aceder ao seu conhecimento completo e efectivo, para além de poder pedir algum esclarecimento ou sugerir qualquer alteração.

IV - É certo que as exigências especiais da promoção do efectivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e da sua precedente comunicação, que oneram o predisponente, têm como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o aludido dever de diligência média por banda do aderente e destinatário da informação – com intensidade e grau dependentes da importância do contrato, da extensão e da complexidade (maior ou menor) das cláusulas e do nível de instrução ou conhecimento daquele –, de quem se espera um comportamento leal e correcto, nomeadamente pedindo esclarecimentos, depois de materializado que seja o seu efectivo conhecimento e informação sobre o conteúdo de tais cláusulas.

V - Porém, essa constatação, em caso algum, poderá levar a admitir que o predisponente fique eximido dos deveres que o oneram, ou a conceber como legítimas uma sua completa passividade na promoção do efectivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e, sobretudo, uma ausência de comunicação destas ao aderente com a antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo, até para que o mesmo possa exercitar aquele seu dever de diligência, nos apontados termos. Uma tal concepção conduziria à inversão não consentida da hierarquia legalmente estatuída entre os deveres do predisponente e do aderente.

VI - No caso em apreço, apenas no circunstancialismo da subscrição ou outorga do contrato foram dadas a conhecer à aderente a cláusula contratual geral em discussão, quando, por tudo o exposto, a mesma não teria, para o efeito, de desenvolver mais do que uma diligência comum e era à proponente que caberia propiciar-lhe o antecipado e efectivo conhecimento daquela cláusula.

VII - Por outro lado, o dever de atempada comunicação, face à sua identificada ratio, também não fica preenchido com as declarações constantes na escritura de que, no dia da sua celebração, esta foi lida aos outorgantes e feita a explicação do seu conteúdo, questão cuja pertinência mais se realça atentando na significativa complexidade do clausulado alusivo à «renúncia ao benefício da excussão prévia» e à sua elevada repercussão (importância) para a embargante, para quem, sendo uma funcionária administrativa, aquela é uma expressão de alcance jurídico dificilmente inteligível.

VIII - O «factum proprium» apto a violar a boa-fé ou a confiança da recorrente e a constituir o aqui invocado exercício abusivo do direito pela embargante pressuporia, enquanto facto voluntário, a ciência e a vontade dessa violação. Ora, no caso, a exequente não provou ter propiciado à embargante o efectivo conhecimento da discutida cláusula, pelo que, no contexto, assim configurado, do incumprimento dos deveres de comunicação e de informação que sobre ela impendiam, não podem ser avocados os (inverificados) pressupostos cognitivos da liberdade de contratar por parte da embargante, que integrariam, simultaneamente, o elemento subjectivo da putativa violação da confiança.

IX - Por consequência, não podendo ser subjectivamente imputado à embargante o alegado comportamento anterior, ou a referida conduta voluntária, fica arredada a invocada violação da expectativa ou confiança supostamente gerada na recorrente.

Decisão Texto Integral:                          

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
           


AA deduziu embargos à execução intentada por “Banco BB SA”, com base em contrato de mútuo com hipoteca e fiança, alegando a opoente que não lhe foi explicitado, nos termos dos artigos 5º, 6º e 8º b), da LCCG, o conteúdo e alcance do clausulado de tal contrato, designadamente o tocante às consequências da renúncia ao benefício da excussão prévia, tendo pedido a sua exclusão e, como tal, a desconsideração da sua posição de fiadora.
A exequente contestou, alegando que o contrato não é de adesão e foi precedido duma livre discussão e assinado pela embargante depois de lido e explicado a todos os seus intervenientes.
Foi proferida sentença, julgando a oposição procedente apenas na parte relativa aos juros de mora.
A Relação de Guimarães, depois de fixar os factos, considerou válida a fiança mas julgou extinta a execução contra a aqui embargante por dever ser excluída do contrato a parte inserta na cláusula (19ª) que contém a declaração de esta, com renúncia ao benefício da excussão, se constituir principal pagadora.

A exequente interpôs recurso de revista desse acórdão, delimitando o seu objecto com conclusões que colocam as questões de saber se
1. - a exequente cumpriu os deveres de comunicação e informação impostos pelos arts. 5º e 6º da LCCG relativamente à dita cláusula (19ª);
2. - o comportamento da embargante nos autos constitui abuso de direito por contender com as regras da boa-fé.
«
A Relação julgou provada a seguinte factualidade:
«1. O exequente apresentou como título executivo o contrato de mútuo com hipoteca e fiança de fls. 4 e ss dos autos principais de que os presentes são apenso, e seu aditamento de fls. 11 vº e 12.
2.No referido contrato e aditamento, a embargante constituiu-se fiadora e principal pagadora de todas as obrigações emergentes do referido contrato e seu aditamento, tendo declarado renunciar ao benefício da excussão prévia.
3. À Embargante não foi dada cópia do contrato ou do seu aditamento.
4. Os mutuários deixaram de pagar as prestações que se venceram a partir de 2/4/2014.
5. O contrato de mútuo junto como título executivo e que serviu de base à presente execução, é um contrato de mútuo formalizado através de título particular equiparado, para todos os efeitos legais, a escritura pública, e foi efetivamente assinado pela Embargante, na qualidade de fiadora.
6. Consta expressamente no referido contrato de mútuo dado à execução, que o Oficial de Títulos do Banco Exequente confirmou a presença, assinatura, e identidade da Embargante através da exibição do seu bilhete de identidade.
7. A embargante não leu o texto e cláusulas do referido contrato de mútuo, mas este foi lido e explicado o seu conteúdo a todos os seus intervenientes, no dia da celebração do mesmo, tendo-lhe aquela, pessoalmente e na presença de todos, aposto a sua assinatura e rubrica na qualidade de fiadora.
8. Tal contrato de mútuo contém e reproduz, com exactidão, as declarações na altura emitidas por todos os seus intervenientes perante o Oficial de Títulos do Banco Exequente, e a eles atribuídas, incluindo a aqui Embargante.
9. A Embargante é fiadora do contrato de mútuo dado à execução e esteve presente, juntamente com os demais outorgantes, na celebração do mesmo, que reproduz, com exactidão, as declarações atribuídas e imputadas a todos os seus intervenientes, incluindo a aqui Embargante, e o seu conteúdo foi-lhe lido e explicado, tendo ela aposto no mesmo a sua assinatura, voluntaria e conscientemente.
10. Resulta da Cláusula 19ª do contrato de mútuo dado à execução que a embargante declarou constituir-se fiadora e principal pagadora de todas as obrigações emergentes para a “Mutuária” do referido contrato de mútuo, com renúncia ao benefício de excussão prévia, e declarou aceitar o contrato de mútuo dado à execução, com todas as suas condições, obrigando-se ao cumprimento do mesmo.
11. Ficou, ainda, consignado naquela referida Cláusula Décima Nona do referido contrato de mútuo, que “Assim o disseram e outorgaram depois deste lhes ser lido e de ter sido feita a explicação do seu conteúdo, em voz alta e na presença simultânea de todos”.
12. E, do mesmo modo, nos seus aditamentos foi referido que “é celebrado e reciprocamente aceite o presente aditamento ao contrato com a referência acima, outorgado em 22.06.2007, nos termos e condições constantes dos números seguintes”.
13. O contrato de mútuo dado à execução e seus aditamentos foram precedidos de uma livre discussão entre o Banco Exequente e a Mutuária, CC, sobre o teor e alcance de cada cláusula, sem a participação da aqui embargante/fiadora.
14. Os conteúdos do referido contrato de mútuo e seus aditamentos foram previamente negociados, junto do Exequente, pela Mutuária e pela Embargante, e, por sua vez, foram lidos e explicados também pelo Exequente, à aqui Embargante e à referida Mutuária, que declararam aceitar todas as suas cláusulas, sem quaisquer reservas, por corresponderem à vontade real das partes.
15. A Mutuária CC não se limitou a aceitar os textos do mencionado contrato de mútuo e dos seus aditamentos, que o Banco Exequente lhes apresentou.
16. Foi explicado pelo Exequente quais as consequências que lhe adviriam em caso de incumprimento do contrato de mútuo e seus aditamentos, designadamente das penalizações, taxas de juros e demais encargos.
17. As despesas judiciais e extrajudiciais no valor de Euros 8.000 foram calculadas sobre o capital mutuado, nos termos da cláusula 11ª do contrato dado à execução, e a taxa de juro, acrescida de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, nos termos da cláusula 10.ª do contrato, fixadas por mútuo acordo do Exequente e Mutuária e de acordo com o regime legal em vigor à data, nesta matéria.».
«
Importa apreciar as questões enunciadas e decidir.

1. O (in)cumprimento dos deveres de comunicação e informação.
A debatida cláusula 19º é do seguinte teor: «O fiador, com renúncia ao benefício da excussão prévia, constitui-se fiador e principal pagador de todas as obrigações emergentes para o mutuário do presente contrato».
A aplicabilidade ao contrato que serve de fundamento à execução dos autos do regime das cláusulas contratuais gerais aprovado pelo DL 446/85 com as suas subsequentes alterações (LCCG) não é controvertida no recurso antes é pressuposta pelo respectivo objecto, atendendo à primeira das questões por ele suscitadas. E, na verdade, o nº 2 do art. 1º desse diploma ([1]) prevê a sua aplicabilidade «igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar», sendo certo que não está em causa que aquele contrato é constituído por cláusulas contratuais gerais inseridas no corpo contratual individualizado, pois essa realidade não só não é contrariada pela recorrente como ressuma da factualidade assente. Por conseguinte, a questionada cláusula 19ª está abarcada pelo citado regime ([2]).
  Posto isto, tudo se resume em saber se a recorrente logrou provar que cumpriu efectivamente os deveres de comunicação e informação impostos pelos arts. 5º e 6º da LCCG relativamente à dita cláusula.
Nos termos desse art. 5º, a integração de cláusulas gerais no contrato está sempre dependente da comunicação ao aderente, que, como é consensual, terá que ser integral e adequada, para poder conduzir a um conhecimento completo e efectivo de tais cláusulas, cabendo ao ofertante o ónus da prova dessa comunicação ([3]). No quadro da formação do contrato, estes deveres de comunicação e informação radicam, evidentemente, no princípio da autonomia privada, cujo exercício efectivo pressupõe que se encontre bem formada a vontade do aderente ao contrato e, para tanto, que este tenha um prévio e cabal conhecimento das cláusulas a que se vai vincular, sob pena de não ser autêntica a sua aceitação ([4]) ([5]).
Como é fácil de entender, são, assim, convocados deveres pré-contratuais de comunicação das cláusulas (a inserir no negócio) e de informação (prestação de esclarecimentos), como meios ordenados à apropriada formação da vontade do aderente. A obtenção desse objectivo requer, desde logo, que a comunicação do clausulado contratual seja feita com antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo do aderente, tendo em conta as circunstâncias (objectivas e subjectivas) presentes na negociação e na conclusão do contrato – a importância deste, a extensão e a complexidade (maior ou menor) das cláusulas e o nível de instrução ou conhecimento daquele –, para que o mesmo, usando da diligência própria do cidadão médio ou comum, as possa analisar e, assim, aceder ao seu conhecimento completo e efectivo, para além de poder pedir algum esclarecimento ou sugerir qualquer alteração ([6]).
Bem sabemos que as exigências especiais da promoção do efectivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e da sua precedente transmissão ou comunicação, decorrentes dos deveres que oneram o predisponente, para que estes possam ser completamente cumpridos, têm como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o aludido dever de diligência média por banda do aderente e destinatário da informação: deste se espera um comportamento leal, correcto e diligente, nomeadamente pedindo esclarecimentos, uma vez materializado que seja o seu efectivo conhecimento e informação sobre o conteúdo de tais cláusulas.
Porém, essa constatação, em caso algum, poderá levar a admitir que o predisponente fique eximido dos deveres que o oneram, ou a conceber como legítimas uma sua completa passividade na promoção do efectivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e, sobretudo, uma ausência de comunicação destas ao aderente com a antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo, até para que o mesmo possa exercitar aquele seu dever de diligência, p. ex., pedindo esclarecimentos. Foi o que o Ac. desta Secção de 18/4/2006 esclareceu lapidarmente: «O dever de comunicação das cláusulas contratuais constante do artigo 5º do Decreto-lei nº 466/85 de 25 de Outubro destina-se a que o aderente conheça antecipadamente o conteúdo contratual, isto é, as cláusulas a inserir no negócio. Esse dever acontece na fase de negociação, ou pré-contratual, e deve ser acompanhado de todos os esclarecimentos necessários, possibilitando ao aderente conhecer o significado e as implicações das cláusulas([7]).
Pode sustentar-se que a intensidade e o grau do dever de diligência que recai sobre o aderente são maiores ou menores em função das particularidades de cada caso, sobretudo as atinentes à extensão e complexidade das cláusulas e ao nível de instrução ou conhecimento do mesmo. Mas já não é aceitável que, perante esse dever de diligência, o proponente seja dispensado dos seus próprios deveres. Como parece evidente, essa concepção conduziria à inversão não consentida da hierarquia legalmente estatuída entre os deveres do predisponente e do aderente.
Ora, sucedeu no caso em apreço que apenas no contexto da subscrição ou outorga do contrato foram dadas a conhecer ou noticiadas à embargante aderente a cláusula contratual geral em discussão, quando, por tudo o exposto, a mesma não teria, para o efeito, de desenvolver mais do que uma diligência comum e era à proponente que caberia propiciar-lhe o antecipado e efectivo conhecimento daquela cláusula.
Por outro lado, face à identificada ratio do dever de atempada comunicação, este também não fica preenchido com as declarações constantes na escritura de que esta, no dia da sua celebração, foi lida aos outorgantes e feita a explicação do seu conteúdo (pontos 7 e 9 dos factos), de que a embargante declarou aceitar o contrato de mútuo dado à execução, com todas as suas condições, obrigando-se ao cumprimento do mesmo (item 10) ou de que «Assim o disseram e outorgaram depois deste lhes ser lido e de ter sido feita a explicação do seu conteúdo, em voz alta e na presença simultânea de todos» (item 11).
Com efeito, diferentemente do que sucedeu com os conteúdos do referido contrato de mútuo e seus aditamentos, que foram previamente negociados (ponto 14), não se provou que a exequente, em relação à questionada cláusula 19ª, tivesse observado para com a embargante os deveres de comunicação e de informação, com os apontados requisitos. Questão cuja pertinência emerge ainda mais realçada se atentarmos na significativa complexidade do clausulado alusivo à «renúncia ao benefício da excussão prévia» e à sua elevada repercussão (importância) para a embargante, para quem, sendo uma funcionária administrativa – a crer na própria recorrente –, aquele é apenas mais uma «frase ininteligível, no meio da “algaraviada” jurídica» ([8]).

Mostrando-se, pois, omitido aquele ónus em relação a uma cláusula, fulcral para o negócio aqui em causa e para a pretensão da recorrente, terá a mesma que considerar-se excluída do contrato, pelo que improcede o argumentado no recurso nesta vertente.

2. O abuso de direito.
A recorrente sustenta que o comportamento da embargante nos autos constitui abuso de direito por contender com as regras da boa-fé, na medida em que a mesma outorgou a escritura, cujo conteúdo lhe foi, então, lido e explicado, sem que tenha pedido qualquer esclarecimento e sem que tenha, antes ou depois da celebração do contrato, invocado a falta de cumprimento dos deveres de comunicação e de informação, só o tendo feito agora para se eximir às suas obrigações contratuais.
Segundo parece, a recorrente entende que a referida conduta do embargante violaria a expectativa ou a confiança nela gerada de que o contrato continuaria a ser respeitado. E, realmente, o abuso de direito ([9]), previsto no art. 334º do CC ([10]), confronta-se, nomeadamente, com o conceito da boa fé ([11]): a violação do princípio da confiança revela normalmente um comportamento com que, razoavelmente, não se conta, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Em geral, tem-se entendido que o «venire contra factum proprium» consiste no exercício de uma posição jurídica em manifesta contradição com uma conduta anteriormente assumida pelo agente, que suscitou, justificadamente, a confiança da outra parte.
Contudo, a recorrente não tem razão, emergindo como descabida esta invocação do abusivo exercício do direito pela embargante.
Com efeito, o «factum proprium» apto a violar a boa-fé ou a confiança da outra parte pressuporia, enquanto facto voluntário, a ciência e a vontade dessa violação. Sucede, porém, que a exequente não provou ter propiciado à embargante o efectivo conhecimento da discutida cláusula. Ora, no contexto, assim configurado, do incumprimento dos deveres de comunicação e de informação que sobre ela impendiam, não podem ser avocados os (inverificados) pressupostos cognitivos da liberdade de contratar por parte da embargante, que integrariam, simultaneamente, o elemento subjectivo da putativa violação da confiança.
Por consequência, não podendo ser subjectivamente imputado à embargante o alegado comportamento anterior, ou a referida conduta voluntária, fica arredada, desde logo, a invocada violação da expectativa ou confiança supostamente gerada na recorrente ([12]).

Portanto, improcede também esta pretensão recursiva.
«
Síntese conclusiva:
1. É aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais ao clausulado inserido no corpo contratual individualizado cujo conteúdo, previamente elaborado, o destinatário não pode influenciar.
2. O cumprimento das prestações impostas pelos arts. 5º e 6º da LCCG – cuja prova onera o predisponente – convoca deveres pré-contratuais de comunicação das cláusulas (a inserir no negócio) e de informação (prestação de todos os esclarecimentos que possibilitem ao aderente conhecer o significado e as implicações dessas cláusulas), enquanto meios que radicam no princípio da autonomia privada, cujo exercício efectivo pressupõe que se encontre bem formada a vontade do aderente ao contrato e, para tanto, que este tenha um antecipado e cabal conhecimento das cláusulas a que se vai vincular, sob pena de não ser autêntica a sua aceitação.
3. Por isso, esse cumprimento deve ser assumido na fase de negociação e feito com antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo do aderente, tendo em conta as circunstâncias (objectivas e subjectivas) presentes na negociação e na conclusão do contrato – a importância deste, a extensão e a complexidade (maior ou menor) das cláusulas e o nível de instrução ou conhecimento daquele –, para que o mesmo, usando da diligência própria do cidadão médio ou comum, as possa analisar e, assim, aceder ao seu conhecimento completo e efectivo, para além de poder pedir algum esclarecimento ou sugerir qualquer alteração.
4. É certo que as exigências especiais da promoção do efectivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e da sua precedente comunicação, que oneram o predisponente, têm como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o aludido dever de diligência média por banda do aderente e destinatário da informação – com intensidade e grau dependentes da importância do contrato, da extensão e da complexidade (maior ou menor) das cláusulas e do nível de instrução ou conhecimento daquele –, de quem se espera um comportamento leal e correcto, nomeadamente pedindo esclarecimentos, depois de materializado que seja o seu efectivo conhecimento e informação sobre o conteúdo de tais cláusulas.
5. Porém, essa constatação, em caso algum, poderá levar a admitir que o predisponente fique eximido dos deveres que o oneram, ou a conceber como legítimas uma sua completa passividade na promoção do efectivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e, sobretudo, uma ausência de comunicação destas ao aderente com a antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo, até para que o mesmo possa exercitar aquele seu dever de diligência, nos apontados termos. Uma tal concepção conduziria à inversão não consentida da hierarquia legalmente estatuída entre os deveres do predisponente e do aderente.
6. No caso em apreço, apenas no circunstancialismo da subscrição ou outorga do contrato foram dadas a conhecer à aderente a cláusula contratual geral em discussão, quando, por tudo o exposto, a mesma não teria, para o efeito, de desenvolver mais do que uma diligência comum e era à proponente que caberia propiciar-lhe o antecipado e efectivo conhecimento daquela cláusula.
7. Por outro lado, o dever de atempada comunicação, face à sua identificada ratio, também não fica preenchido com as declarações constantes na escritura de que, no dia da sua celebração, esta foi lida aos outorgantes e feita a explicação do seu conteúdo, questão cuja pertinência mais se realça atentando na significativa complexidade do clausulado alusivo à «renúncia ao benefício da excussão prévia» e à sua elevada repercussão (importância) para a embargante, para quem, sendo uma funcionária administrativa, aquela é uma expressão de alcance jurídico dificilmente inteligível.
8. O «factum proprium» apto a violar a boa-fé ou a confiança da recorrente e a constituir o aqui invocado exercício abusivo do direito pela embargante pressuporia, enquanto facto voluntário, a ciência e a vontade dessa violação. Ora, no caso, a exequente não provou ter propiciado à embargante o efectivo conhecimento da discutida cláusula, pelo que, no contexto, assim configurado, do incumprimento dos deveres de comunicação e de informação que sobre ela impendiam, não podem ser avocados os (inverificados) pressupostos cognitivos da liberdade de contratar por parte da embargante, que integrariam, simultaneamente, o elemento subjectivo da putativa violação da confiança.
9. Por consequência, não podendo ser subjectivamente imputado à embargante o alegado comportamento anterior, ou a referida conduta voluntária, fica arredada a invocada violação da expectativa ou confiança supostamente gerada na recorrente.
«

Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.          


Lisboa, 13 Setembro de 2016
Alexandre Reis (Relator)

Sebastião Póvoas

Paulo Sá
____________________
[1] Que foi introduzido pelo legislador através do DL 249/99 de 7/7 com o propósito expresso de conformar o regime das cláusulas contratuais gerais – até então, com um campo de aplicação material circunscrito às cláusulas destinadas a serem utilizadas por sujeitos indeterminados – à Directiva Comunitária nº 93/13/CEE, de modo a obter um sentido mais favorável aos consumidores, alargando a protecção que lhes era conferida por esse regime (cf. preâmbulo do diploma).

[2] Assim entendeu, para uma situação semelhante, o Ac. deste STJ de 9/7/2015 (p. 1728/12.8TBBRR-A.L1.S1-Ana Paula Boularot): «Os deveres de comunicação e de informação decorrentes da LCCG, abrangem as cláusulas das quais resultam obrigações para o fiador, sendo irrelevante que as mesmas tenham como destinatário principal e originário o devedor principal (aqui os mutuários), cfr neste sentido Fernando Gravato de Morais, in Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina 2007, pág.s 143 a 145 onde cita Januário Gomes no sentido de que «as razões que estão na génese da constituição de um regime específico para os contratos de adesão são inteiramente transponíveis para a fiança acoplada a tais contratos».

[3] Cf., por todos, o Ac. deste STJ de 8/7/2003 (p. 03A1832-Araújo de Barros).

[4] Tais deveres já resultariam, genericamente, do art. 227º nº 1 do CC. Com efeito, a comunicação, na íntegra, dos projectos negociais é, no fundo, uma elementar imposição do princípio da boa-fé contratual.

[5] Foi o que ponderou, mais detalhadamente, o anterior Ac. desta Secção de 2/12/2013 (p. 306/10.0TCGMR.G1.S1-Clara Sottomayor):

«O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais constitui um regime especial tutelador, em face do direito comum dos contratos que continua centralizado nos princípios da liberdade e da auto-responsabilidade, presumindo a igualdade entre os sujeitos.

Este regime especial visa conter os efeitos disfuncionais da liberdade contratual e proteger determinada categoria de sujeitos, os aderentes, os quais se encontram integrados em formas estruturais que geram situações de poder a favor de organizações, numa situação que tipicamente os impossibilita de uma autotutela dos seus interesses. Estão, assim, desprovidos de qualquer poder negocial em relação à fixação do conteúdo dos contratos que assinam, sem possibilidade de negociar ou de fazer contrapropostas, e sem alternativas à aceitação formal de cláusulas redigidas pela contraparte, que encaram como uma «inevitabilidade» necessária para terem acesso a bens ou serviços essenciais à sua sobrevivência e qualidade de vida.

Dada a disparidade de poder entre as partes do contrato de adesão, assume um papel decisivo a garantia do “modelo de informação” ou “imperativo de transparência”, cuja finalidade é potenciar a formação consciente e ponderada da vontade negocial, parificando posições de disparidade cognitiva, quer quanto ao objecto, quer quanto às condições do contrato [Cf. Joaquim de Sousa Ribeiro, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 49.].

Reconhece-se que a liberdade de contratar assenta em pressupostos cognitivos e que a necessidade de transparência e de informação, reportada à fase da formação da vontade, permite combater «a estrutural assimetria informativa entre as partes», e exige ao profissional «deveres positivos de informação, de acordo com parâmetros quantitativos e qualitativos capazes de afiançarem a integralidade, a exactidão e a eficácia de comunicação»[\idem, p. 61.]. O princípio da transparência adequa-se, ainda, ao discurso argumentativo próprio do pensamento civilista, pois a sua função é instrumental à autonomia privada, permitindo criar condições para o seu exercício. O objectivo deste modelo é, assim, o de melhorar a qualidade do consentimento do consumidor, e também, corrigir o desequilíbrio das prestações, bem como promover a defesa da justiça interna do contrato [Cf. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, p. 423.].».

[6] A necessidade de concessão de “tempo suficiente”, enquanto requisito inerente ao dever de informar, tem sido uniformemente apontada por este Tribunal. Assim, v., p. ex., para além do já citado de 2/12/2013, os Acs. de 2/6/2015 (p. 109/13.0TBMLD.P1.S1- Hélder Roque), de 8/4/2010 (P. 3501/06.3TVLSB.C1.S1-Lopes do Rego), de 20/1/2010 (p. 2963/07.6TVLSB.L1.S1-Alves Velho), de 30/10/2007 (07A303048-Fonseca Ramos), de 12/12/2002 (p. 02A3692-Silva Salazar), de 18/11/1999 (p. 99B869-Ferreira de Almeida) e de 23/10/2008 (p. 08B2977-Salvador da Costa), tendo concluído este último: «As cláusulas contratuais gerais…, inseridas em propostas de contratos singulares, devem ser comunicadas na íntegra e de modo adequado e com a antecedência necessária aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, incluem-se nos contratos por via da aceitação, e o ónus de prova daquela comunicação incumbe ao contraente predisponente.».

[7] (P. 06A818-Sebastião Póvoas). Vem aqui também a muito a propósito evocar o voto de vencido que o Cons. Júlio Gomes apôs no já citado Ac. de 9/7/2015, em termos muito impressivos: «Os deveres de comunicação e de informação não se reduzem, estamos em crer, a um dever de prestar esclarecimentos se os mesmos forem solicitados (que corresponde apenas a uma faceta do dever de informação prevista no n.º 2 do artigo 6.º). Aliás sem essa comunicação prévia o leigo muitas vezes nem sequer sentirá necessidade de pedir mais esclarecimentos. Um exemplo: a exclusão do benefício da excussão prévia. Para um leigo - mormente com a 4.ª classe como a Autora - é apenas mais uma frase ininteligível, no meio da "algaraviada" jurídica. Em suma, o leigo muitas vezes não sabe sequer o suficiente para se aperceber das cláusulas ou de todas as cláusulas que lhe são prejudiciais. Acresce que o momento da escritura não é, na realidade o adequado para pedir grandes esclarecimentos. Não o é pela pressão social – se a Autora falasse e questionasse muito punha em risco a realização da escritura de que os devedores necessitavam – e porque é delicado nesse momento colocar os cenários do incumprimento em cima da mesa.».

[8] Para usar, com a devida vénia, a expressão tirada do extracto citado na nota anterior.

[9] «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito». «O abuso do direito abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quando à intensidade ou à sua execução de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular, e as consequências que outros têm que suportar» (Ac. do STJ de 24/2/1999, BMJ 484º-246).

[10] O nosso código adopta a concepção objectiva de abuso de direito, a qual, desligando-se da intenção ou da atitude psicológica do titular do direito, dá relevância ao alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública. «Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites» (P.Lima e A.Varela, CC Anot., 4ª ed. Vol. I, p. 298).

[11] Como já dissemos, também aqui, apenas relevará o alcance objectivo da conduta censurada pela recorrente, de acordo com o critério da consciência pública. A boa-fé pode ser vista como um estado de espírito que se exprime pelo convencimento da ignorância da ilicitude de certo comportamento ou como exigindo que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros. «(...) a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de “hipóteses típicas” ou “figuras sintomáticas” concretizadoras da cláusula geral da boa fé» (v. Jorge Coutinho de Abreu, Do Abuso do Direito, p. 59 e 60). Heinrich E. Horster (A Parte Geral do CC Português, pp 284 e ss) destaca como algumas dessas hipóteses: «O “venire contra factum proprium” (ou comportamento contraditório), onde foi adoptado pelo titular do direito um comportamento positivo no sentido de não querer exercer o mesmo, tendo esta atitude como consequências as correspondentes disposições da outra parte...»; «a perda do direito (“Verwirkung”)», correspondendo, aproximadamente, à caducidade, quando o titular do direito não invoca o mesmo durante bastante tempo; «a exigência injustificada...»; «um comportamento desleal...»; «a inobservância dos princípios gerais das obrigações...».

[12] Em sentido idêntico, o já citado Ac. desta Secção de 2/12/2013 : «A mudança de atitude do sujeito viola a confiança gerada, na contraparte, pelo comportamento anterior, quando não tem nenhum factor que a justifique [Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 275.]. Ora, sendo o factum proprium um facto voluntário, ao qual se aplicam as disposições respeitantes às declarações de vontade, deve entender-se que um factum proprium, que foi praticado num contexto de falta de liberdade negocial e de falta de informação, pode