Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
9180/07.3TBBRG.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA CAMILO
Descritores: FUNÇÃO JURISDICIONAL
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I – Em matéria de natureza cível, só com a entrada em vigor da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, faz sentido responsabilizar o Estado, por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, mas apenas nos apertados limites da previsão do seu artigo 13º, e nunca antes, ou seja, com base no articulado do revogado Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967.
II – Assim, carece de sentido e de fundamento legal a acção proposta contra o Estado Português pelo Autor de uma acção, intentada contra uma Seguradora com fundamento no instituto da responsabilidade civil, julgada improcedente, em último grau, pelo Supremo Tribunal de Justiça, antes da entrada em vigor daquela Lei, por, alegadamente, ter sido desconsiderada, fruto apenas de mera interpretação, a aplicação, ao caso, de uma Directiva Comunitária, concretamente a Directiva Comunitária, de 14 de Maio de 1990 (90/232/CEE), vulgarmente conhecida por 3ª Directiva Automóvel.
III – Tal acção intentada contra o Estado Português nunca deveria ter passado o crivo do saneador, com natural improcedência.
IV – Na verdade, aceitar-se a tese, que vingou nas instâncias, de apreciação crítica de uma decisão tomada, em último grau, pelo Supremo Tribunal de Justiça, representaria uma total e inaceitável subversão da regulamentação do nosso sistema judiciário.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – Na Vara de Competência Mista de Braga, AA, em acção com processo ordinário, intentada contra o Estado Português, pediu que, com a procedência da acção, seja o Réu condenado a pagar ao Autor a importância global de € 554.831,57, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados da presente data (propositura da acção) e até efectivo e integral pagamento.

Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, o seguinte:
BB instaurou, no 1º Juízo Cível de Santo Tirso, uma acção declarativa de condenação contra a então denominada Companhia de Seguros CC, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de PTE 85.000.000$00 (€ 423.978,21), acrescida de juros desde a citação, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos quando seguia como passageiro de um automóvel, seguro naquela Companhia, que se despistou por culpa exclusiva do respectivo condutor.

A essa acção foi apensada uma outra (nº 541/2000, do 4º Juízo Cível de Santo Tirso), intentada pelo aqui Autor contra a mesma seguradora, em que aquele pediu a condenação desta a pagar-lhe a quantia de PTE 91.927.850$00 (€ 458.534,18), com juros desde a citação, para ressarcimento dos danos que lhe advieram em consequência do mesmo acidente, dado que seguia também como passageiro na mesma viatura que se despistou, de sua propriedade, e que era conduzida por DD.
Para assegurar a legitimidade processual singular da seguradora demandada, atenta a limitação da respectiva responsabilidade, reduziu o Autor o seu pedido à importância que, adicionada àquela que fosse atribuída ao demandante BB, esgotasse completamente o capital de PTE 120.000.000$00.
Na 1ª instância, foi julgada totalmente improcedente a acção do aqui Autor, por ser o próprio segurado, com a consequente absolvição do pedido da Ré, e parcialmente procedente a acção do demandante BB, sendo a seguradora condenada a pagar-lhe € 75.000,00, a título de indemnização pelo dano não patrimonial, com juros desde 04.10.2000.

Dessa decisão apelaram ambos os demandantes, fazendo-o também a CC por via subordinada, mas a Relação do Porto negou provimento aos recursos principais, confirmando o decidido pela 1ª instância, e julgou prejudicado o recurso subordinado.
Inconformados com o decidido pela Relação, interpuseram recurso de revista o demandante BB e o aqui Autor, aí alegando este último, em síntese, que, à luz do disposto nos artigos 5º e 7º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 130/94, de 19 de Maio, que visou adaptar o primeiro dos referidos diplomas à Directiva do Conselho de 14 de Maio de 1990 (90/232/CE), vulgarmente conhecida por 3ª Directiva Automóvel, dúvidas não há de que, com a nova redacção, deixaram de estar excluídos do âmbito da garantia do seguro obrigatório os danos decorrentes de lesões corporais sofridas pelo proprietário do veículo e tomador do seguro, quando não seja ele o seu condutor, ficando apenas excluídos da cobertura os danos resultantes de lesões materiais sofridas pelo proprietário transportado.
Admitindo, ainda assim, serem fundadas as dúvidas interpretativas quanto a saber se a legislação nacional sobre seguro obrigatório automóvel – SOA – cobre ou não, em caso de acidente de viação, os danos advindos de lesões corporais do proprietário do veículo e tomador do seguro que segue como passageiro no seu próprio veículo, cuja condução confiou a outrem, alertou o Autor para a obrigatoriedade do reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça (TJCE), nos termos do artigo 234º do Tratado da União Europeia, por o Supremo Tribunal de Justiça ser um órgão jurisdicional nacional cujas decisões, segundo o direito interno, não comportam recurso judicial.
Para o caso de se dar, desde logo, como assente a responsabilidade da seguradora recorrida pelo pagamento da indemnização devida ao recorrente, pediu o Autor a revogação do acórdão recorrido e a consequente condenação da seguradora a pagar-lhe a peticionada indemnização de € 458.534,18, acrescida de juros moratórios legais a contar da citação.
Todavia, o Supremo Tribunal acabou por coonestar o entendimento sufragado pelas instâncias «de que o segurado nunca pode ser considerado terceiro, visto que responsável originário é ele, e a seguradora apenas responsável indirecta, por via do contrato de seguro», e que «solução diferente não é imposta pelas alterações introduzidas no art. 7º, nºs 1 e 2, do DL nº 522/85, devidas à directiva Comunitária nº 90/232/CEE, conhecida por 3ª Directiva Automóvel, e ao DL nº 130/94, de 19 de Maio, porque aí apenas se pretende fazer melhor a demarcação de terceiros (os passageiros ficam cobertos pela garantia), que não o segurado, deste modo definindo melhor que fica excluído da garantia».
Acrescentou o nosso mais Alto Tribunal que «uma vez que estamos ainda perante um seguro de responsabilidade civil, e não em face de um seguro de danos (…), a mesma pessoa não pode figurar, simultaneamente, como beneficiário da garantia (…) e como beneficiário da indemnização».
No que concerne à obrigatoriedade do reenvio prejudicial, afirmou o Supremo Tribunal de Justiça que «ele só teria lugar se se tratasse de aplicar directamente direito comunitário e se este Tribunal tivesse dúvidas sobre o sentido da Directiva – o que não acontece, quer porque não estamos a aplicar directamente direito comunitário, mas direito nacional (art. 7º, nºs 1 e 2, do DL nº 522/85, na redacção do DL nº 130/94), quer porque não temos justificadas dúvidas sobre a interpretação a adoptar».
Em face de tal decisão (certificada nestes autos a fls. 179-197), diz o Autor ter como certo que, dessa forma, o nosso Supremo Tribunal violou censurável e frontalmente o Direito Comunitário aplicável in casu, quer ao fazer errada interpretação e aplicação da chamada 3ª Directiva Automóvel, por si e através dos diplomas legais que a transpuseram para o nosso direito interno, quer ao não determinar o reenvio prejudicial para o TJCE, como impõe o § 3º do art. 234º do Tratado da União Europeia, e que foi expressamente requerido pelo ora Demandante.

Na sua contestação, o Réu defendeu-se por excepção, invocando ser competente para o conhecimento da presente acção os Tribunais Administrativos e Fiscais, pedindo a sua absolvição da instância, e por impugnação, pugnando a improcedência da acção, com a sua absolvição do pedido, para o que, resumidamente, alegou o seguinte:
No respeitante à exclusão do direito a uma indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório, resulta do objecto das Primeira, Segunda e Terceira Directivas, bem como do teor das suas disposições, que as mesmas não visam harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados-Membros e que, no estado actual do direito comunitário, estes continuam livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação automóvel.
Admitindo embora que o art. 1º da 3ª Directiva consagra o direito à indemnização dos danos corporais do passageiro que seja simultaneamente o proprietário do veículo, afirma não ser conhecida qualquer jurisprudência comunitária que sustente que o proprietário do veículo e também tomador do seguro, que é transportado como passageiro no seu próprio veículo, esteja coberto pela garantia do seguro obrigatório automóvel.
Acrescenta que, à data em que o STJ proferiu o acórdão em causa, não existia, como não existe, qualquer acórdão do TJCE, ou outro acto comunitário, que interpretasse a 3ª Directiva Automóvel no sentido de que a situação jurídica do proprietário do veículo e também tomador do seguro, que naquele viaja no momento do acidente, não como condutor mas como passageiro, seja equiparada à de qualquer outro passageiro vítima do acidente, e que, mesmo entendendo-se que, ao decidir como o fez, o STJ violou normas de direito comunitário, é por demais evidente que não se pode considerar que essa mais que duvidosa violação tem carácter manifesto, não se descortinando desvalor jurídico na actuação do STJ.

Replicou o Autor, respondendo à arguida excepção dilatória no sentido da sua improcedência.

Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção de incompetência material suscitada e, considerando-se que o processo continha todos os elementos necessários à prolação duma decisão de mérito, foi proferida sentença em que se julgou a acção improcedente e se absolveu o Estado do pedido, nela se sustentando não poder afirmar-se que a interpretação acolhida no acórdão proferido no processo nº 541/2000 seja proibida pelas regras da hermenêutica jurídica, nomeadamente, face aos regimes da responsabilidade aquiliana e do seguro automóvel, tanto mais que, na data da sua publicação, não existia qualquer aresto, nacional ou comunitário, que sufragasse o entendimento que, entretanto, veio a prevalecer no Acórdão Candolin, proferido cerca de seis meses depois (30.06.2005).
Considerou-se ainda, na sentença recorrida, que a obrigação do reenvio prejudicial, que recai sobre o juiz nacional, não é absoluta e comporta excepções, como quando a norma a aplicar é de tal forma evidente que não deixa lugar a dúvida razoável, sendo por isso de rejeitar a tese do reenvio automático, falecendo então os pressupostos de que depende a responsabilização do Estado pela reparação dos danos sofridos pelo Autor.

Após recurso do Autor, foi, no Tribunal da Relação de Guimarães, proferido acórdão, segundo o qual, na procedência da apelação, se decidiu revogar a sentença recorrida e julgar a acção parcialmente procedente, condenando-se o Estado Português a pagar ao Autor a indemnização de € 479.091,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação.

Inconformado com tal decisão, dela veio o Réu interpor o presente recurso de revista, o qual foi admitido.

O recorrente apresentou as suas alegações e respectivas conclusões, acabando por referir o seguinte:
“Com o devido respeito por melhor opinião, entende o Ministério Público que, com a prolação do douto acórdão recorrido, e nos termos e com os fundamentos acabados de alegar e concluir, ocorreu violação de lei, por erro de interpretação e de aplicação, que sinteticamente se subsumem às seguintes normas: art. 668º, nº 1, al. d), do CPC (nulidade do acórdão por omissão de pronúncia); art. 1º da Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, e sua transposição para o direito interno português do art. 504º do CC, bem como o art. 503º, nº 1, do CC e arts. 5º e 7º, nºs 1 e 2, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção do DL 130/94, de 19 de Maio”.

Contra-alegou o recorrido, concluindo que “devem colocar-se ao TJCE as enunciadas questões prejudiciais e outras que se julguem também pertinentes, negando-se a final provimento ao presente recurso, com todas as legais consequências”.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – No acórdão recorrido, foi considerada a seguinte factualidade:
A factualidade dada como assente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2004, proferido na acção declarativa de condenação nº 541/2000, do 4º Juízo Cível de Santo Tirso, é a seguinte:
A) BB intentou uma acção declarativa de condenação (Acção de Processo Ordinário n.º 357/2000, do 1.º Juízo Cível de Santo Tirso) contra a então denominada “Companhia de Seguros CC”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de Esc. 85.000.000$00 (equivalente a € 423.978,21), com juros desde a citação, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos quando seguia como passageiro de uma viatura segura naquela companhia e a mesma se despistou, por culpa do seu condutor;
B) A essa acção foi apensada uma outra (Acção de Processo Ordinário n.º 541/2000, do 4.º Juízo Cível de Santo Tirso), intentada pelo aqui A. contra a mesma seguradora, a pedir a condenação desta a pagar-lhe a quantia de Esc. 91.927.850$00 (equivalente a € 458.534,18), com juros desde a citação, para ressarcimento dos danos que lhe advieram em consequência do mesmo acidente, dado que seguia também como passageiro na viatura que se despistou, de sua propriedade, e conduzida por DD;
C) Mas, para assegurar a legitimidade processual singular da seguradora demandada, atenta a limitação da respectiva responsabilidade, aquele pedido deduzido pelo aqui A. foi por ele reduzido à importância que, adicionada àquela que fosse atribuída ao demandante BB, esgotasse completamente o capital de Esc. 120.000.000$00;
D) Na 1.ª instância a acção intentada pelo aqui A. foi julgada totalmente improcedente, por ele ser o próprio segurado, com a consequente absolvição da seguradora do pedido formulado;
E) Inconformado, o aqui A. interpôs recurso de apelação dessa sentença para o Tribunal da Relação do Porto, que, todavia, lhe negou provimento;
F) A factualidade dada definitivamente como provada no âmbito dessa acção, na parte pertinente, foi a seguinte:
I - LOGO NO SANEADOR:
1 - Na madrugada do dia 25/10/97, pelas 2 horas e 30 minutos, em Covelas, no concelho e comarca de Santo Tirso, mais concretamente ao Km 15,325 da auto-estrada A-3, atento o sentido Sul-Norte (Porto-Braga), ocorreu um acidente de viação em que foi único interveniente o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …-…-EA;
2 - Na altura do acidente o “EA” era propriedade do aqui A;
3 - Nele seguiam, para além do condutor, ambos os autores (BB e o aqui A.), como passageiros transportados gratuitamente;
4 - No local da ocorrência, aquela hemi-faixa de rodagem da A-3 permite duas filas de trânsito no mesmo sentido (Porto-Braga), cuja separação é feita por uma linha longitudinal descontínua, pintada a branco no pavimento;
5 - Essa hemi-faixa de rodagem, sempre atento o sentido de marcha Porto-Braga, tem 7,40 metros de largura e é ladeada, à esquerda, por um separador central delimitado por uma barreira metálica (“rails”) de protecção e, à direita por uma berma com 2,50 metros de largura;
6 - Sendo certo que, no local onde essa berma termina, tem início o talude de protecção à A-3, em cujo topo está implantada a vedação que delimita a área concessionada à “BRISA, S.A.”;
7 - Nas imediações do local, para quem vem do Porto em direcção a Braga, a via assume a configuração de um troço em recta, com extensão superior a 500 metros e inclinação descendente, logo seguido de uma curva que se desenha para a esquerda;
8 - O piso, em betuminoso, encontrava-se em perfeito estado de conservação, mas estava molhado devido à chuva que se fazia sentir;
9 - O condutor do “EA”, ao chegar perto do local onde finda o troço em recta aludido em 7), perdeu por completo o controle da viatura;
10 - O “EA” invadiu a berma direita, embatendo de seguida com a respectiva traseira no talude de protecção referido em 6), tendo destruído a vedação metálica que delimita a área pertencente à “BRISA, S.A.”;
11 - Todos os vestígios do acidente, designadamente vidros partidos e bocados de peças e acessórios deixados pelo “EA”, bem como terra removida na zona do talude, ficaram depositados na berma direita e no terreno contíguo à A-3;
12 - O veículo “EA” circulava no dia, hora, local e sentido de marcha referido em 1), pela via de trânsito mais à direita da referida auto-estrada;
13 - O veículo “EA” saiu da faixa de rodagem, galgou toda a largura da sua berma direita, visto o sentido Porto-Braga;
14 - Sempre com o auxílio dos bombeiros, enfermeiros e dos agentes presentes, o A. foi colocado dentro da ambulância e transportado para o Hospital de S. João, do Porto, onde deu entrada no serviço de urgências pelas 5 horas da madrugada desse mesmo dia;
15 - Nessa unidade de saúde, foi devidamente observado e submetido aos primeiros cuidados médicos, com a colocação de algalia e realização dos mais diversos exames, entre os quais radiografias à coluna vertebral, à bacia, às duas ancas, ao ombro direito, ao crânio e aos pulmões, bem como T.A.C. (tomografia axial computorizada) lombar e ecografia abdominal;
16 - Foi então determinado o seu internamento na Unidade de Cuidados Intermédios, integrada no serviço de Traumatologia daquele Hospital, onde ele deu entrada com o diagnóstico de politraumatizado, com fractura do terço distal da clavícula direita, sem desvio significativo, fractura e achatamento do corpo da vértebra L1, sem lesões neurológicas, fractura da bacia, no ramo iliopúbico direito, com a extensão acetabular, e no ramo isquiopúbico direito, fractura da perna esquerda na zona do tornozelo, e traumatismo crânio-encefálico;
17 - Tendo ficado sujeito à adequada medicação, com repouso em leito duro e tracção cutânea com 3 Kg ao membro inferior direito;
18 - Nesse mesmo dia obteve alta a pedido, tendo sido transferido – como era seu desejo – do Hospital de S. João para a Casa de Saúde da Boavista, também sita no Porto, a fim de aí continuar o tratamento, acompanhado de perto por um médico amigo;
19 - E a verdade é que, desde tal data e até 16 de Dezembro de 1997 esteve internado na mencionada Casa de Saúde, onde permaneceu acamado e devidamente medicado e assistido;
20 - Foi seguido nesse estabelecimento de saúde pelas diferentes especialidades médicas e só obteve alta de internamento em 16 de Dezembro de 1997;
21 - Como consequência directa e necessária do acidente, e para além de variadas escoriações e contusões em diversas partes do corpo, sofreu o A. as seguintes lesões:
- traumatismo crânio-encefálico;
- luxação acromio-clavicular direita;
- fractura do corpo da vértebra L1;
- fractura bilateral dos ramos isquio-púbicos, com ruptura do anel pélvico;
- fractura sem desvio do maleólo peroneal esquerdo.
22 - Uma vez findo o período de internamento, passou à fase da reabilitação, devidamente medicado e com prescrição do uso de canadianas e de colete ortopédico, que só largou em finais de Abril de 1998;
23 - Porém, ainda durante o ano de 1997, ao longo dos meses de Novembro e Dezembro, foi já submetido a inúmeras sessões de fisioterapia, cinesoterapia respiratória, ultra-sons com deslocação do aparelho, calor húmido, massagem, treino da marcha, mobilização e fortalecimento muscular;
24 - Ao longo de todo o ano de 1998, sempre por determinação médica, continuou a fazer recuperação, mediante fisioterapia, com aplicação de ultra-sons e ultra-sons subaquáticos, calor húmido e lama-para-fina, massagens manuais e massagens subaquáticas, mobilização articular passiva e fortalecimento muscular, tudo acompanhado da prática regular de natação, cinco vezes por semana;
25 - No ano de 1999 e até ao final do mês de Maio do ano de 2000, sempre por determinação médica, continuou com a prática regular de natação, acompanhada de hidroginástica, massagens sub-aquáticas e massagem fisioterapêutica;
26 - Por meio de carta datada de 15 de Março de 1999, a Ré comunicou ao A. que os seus serviços clínicos o haviam considerado clinicamente curado, tendo-lhe atribuído uma I.P.P. de somente 28,8%;
27 - O A. sofreu intensas e prolongadas dores físicas, tanto no momento do acidente, como no decurso dos quase três anos de tratamentos a que foi sendo submetido;
28 - Nasceu a 27 de Janeiro de 1955;
29 - Na altura do acidente trabalhava – e trabalha ainda – por conta própria, exercendo a actividade de gestor de empresas, para além de ser consultor de gestão e de negócios, auferindo um rendimento médio mensal nunca inferior a Esc. 750.000$00 (setecentos e cinquenta mil escudos);
30 - Por virtude das lesões sofridas, esteve internado desde a data do acidente até 16 de Dezembro de 1997;
31 - Até finais de 1998, a Ré reembolsou-o das importâncias gastas com o Hospital de S. João, consultas de especialidades, exames médicos, sessões de fisioterapia, frequência de natação e de massagens manuais e subaquáticas;
32 - Contudo, desde início de 1999 e até à presente data (sendo certo que a última factura em poder do autor AA refere-se a 30/MAI/2000), a Ré não mais reembolsou o autor do que quer que fosse;
33 - Por contrato de seguro válido e em vigor à data do acidente, titulado pela apólice n.º 9.008.011, o proprietário do “EA”, aqui A. AA, havia transferido para a Ré a sua responsabilidade por danos causados a terceiros e às pessoa transportadas, emergentes da circulação desse veículo até ao limite de Esc. 120.000.000$00 (cento e vinte milhões de escudos);
II - RESULTANTES DAS RESPOSTAS AO QUESITOS:
1 - Nas circunstâncias referidas em I-1) o “EA” circulava à velocidade de 170 Km/hora (resposta ao artigo 1.º da base instrutória);
2 - O condutor do “EA”, ao tentar abordar a curva para a esquerda a que se alude em 7), foi completamente incapaz de a descrever e entrou em despiste (2.º), acabando o “EA” por rodar várias vezes sobre si próprio, fazendo piões, enquanto atravessava perpendicularmente a faixa de rodagem da esquerda para a direita, sempre atento o seu sentido de marcha (3.º);
3 - O “EA” acabou por transpor o talude referido em I-6), bem como a vedação que delimita a área concessionada à “BRISA, S.A.” e foi cair num campo situado à direita da A-3, sempre atento o referido sentido de marcha, o qual fica alguns metros abaixo do plano em que se envolve essa via (5.º);
4 - No acidente o “EA” partiu alguns vidros (resposta ao 6.º), tendo o A. sido projectado para o exterior do veículo após o embate no talude (resposta ao 7.º) e tendo vindo a cair a cerca de três metros do local onde o veículo veio a parar (resposta ao 8.º);
5 - O condutor do “EA” conduzia sem atenção à sua condução e ao estado da estrada (11.º), só muito tardiamente se apercebendo da curva que se desenvolvia para a sua esquerda (12.º);
6 - O “EA” perdeu aderência à estrada (resposta ao 16.º) despistando-se e acabando por sair da estrada (17.º);
7 - Ambos os autores (BB e AA) não faziam uso do cinto de segurança (18.º);
8 - O A. desmaiou (19.º), ficando inconsciente e com o corpo ocultado pelo mato e demais vegetação ali existente (20.º) durante cerca de uma hora (21.º);
9 - Apesar de ter recuperado os sentidos, devido às dores que sentia, viu-se impossibilitado de erguer-se (22.º), bem como arrastar-se para local visível (23.º), tendo por isso ficado mais de meia hora aos gritos a pedir socorro (24.º) e apercebendo-se da chegada da Brigada de Trânsito ao local, cujos tripulantes recolheram e transportaram o Autor BB (25.º);
10 - Só volvidos mais alguns minutos é que os bombeiros o encontraram no meio do mato (26.º), onde teve de aguardar mais de 15 minutos pela chegada de outra ambulância, pois nenhum dos bombeiros presentes se arriscou a movê-lo, com receio de prejudicar ou agravar a sua condição clínica (27.º);
11 - Assim que essa outra ambulância chegou, o A. foi de imediato colocado numa maca própria para lesões na coluna e nela transportada pelo monte acima até à auto-estrada (28.º);
12 - Desde a data do acidente até à data da alta do internamento, ou seja, durante quase dois meses, foi o A. forçado a uma total imobilização, já que não podia efectuar qualquer movimento, por mais ligeiro que fosse (29.º);
13 - Dadas as lesões sofridas, principalmente ao nível da bacia e da coluna vertebral, com ruptura do anel pélvico, era desaconselhável qualquer intervenção cirúrgica, a qual poderia comprometer a respectiva função sexual (resposta ao 30.º);
14 - Passou a sofrer de lapsos de memória, bem como a sentir dificuldade de concentração e diminuição da sua capacidade de memorização (resposta ao 32º), tendo-lhe advindo, como sequela directa e necessária do acidente, síndrome pós-traumático residual (33.º), o qual lhe acarreta uma incapacidade parcial permanente de 10 % ao nível neurológico (34.º);
15 - Apesar dos tratamentos a que sucessivamente foi sujeito, passou a ser portador das seguintes sequelas, todas elas decorrentes do acidente e sua consequência directa e necessária:
- Traumatismo crânio-encefálico (TCE);
- Fractura cuneiforme de L 1;
- Disfunção acrómio-clavicular esquerda;
- Rigidez ligeira tíbio-társica esquerda; e,
- Fracturas de Melgaigne (35.º);
16 – As sequelas referidas nas respostas aos quesitos 33.º e 35.º acarretaram uma incapacidade parcial permanente de 45 % (resposta ao 36.º);
17 - Imediatamente a seguir à ocorrência, o A. sofreu um fortíssimo abalo psicológico ao ver-se sozinho e prostrado no meio do mato, completamente impossibilitado de se mexer e temendo pela sua própria vida e pela dos seus companheiros de viagem (37.º);
18 - Enquanto aguardou por socorro, sentiu uma profunda angústia, sentimento esse que com o passar do tempo se foi transformando em pânico e desespero, por recear seriamente que ninguém se apercebesse da sua pessoa e ali ficasse votado ao abandono (38.º);
19 - Durante o período da recuperação, andou permanentemente deprimido e angustiado (resposta 39.º), quer pela incerteza quanto ao seu estado de saúde uma vez finda a recuperação, quer pelas limitações a que foi forçado em termos de mobilidade o que lhe determinou processo depressivo (40.º);
20 - Tal depressão agravou-se à medida que se foi apercebendo do carácter permanente de algumas das lesões ortopédicas que o deixariam irreversivelmente diminuído (41.º);
21 - Mercê da fractura ao nível da anca e da ruptura do anel pélvico, nos seis meses que se seguiram ao acidente, o Autor AA viu-se completamente privado da prática de qualquer acto sexual (43.º) e passado esse período, quando começou a tentar ter relações de sexo, passou a ser acometido de violentíssimas dores e de forte ardência na zona da próstata (44.º), situação que se manteve inalterada durante mais cerca de meio ano (45.º);
22 - Por essa razão, durante cerca de um ano, esteve totalmente impedido de ter qualquer tipo de actividade sexual, o que o deixou profundamente abatido e em estado de completa angústia e sofrimento (46.º);
23 - Mesmo nos dias de hoje, já depois de uma relativa melhoria desse seu estado, o A. ainda tem que procurar as posições menos dolorosas de cada vez que mantém uma relação sexual, dado que não raras vezes volta a sentir a mesma ardência e dor (47.º);
24 – O A. era uma pessoa saudável, fisicamente bem constituída e sem qualquer defeito aparente, alegre, dinâmica, trabalhadora e amiga de confraternizar (50.º);
25 - As lesões sofridas provocam-lhe profundo desgosto, já que lhe reduzem o seu dinamismo de vida e de relação social e lhe afectam a alegria de viver (51.º);
26 - Durante os primeiros meses de recuperação e até largar as canadianas e o colete ortopédico (em finais de Abril de 1998) continuou afectado de incapacidade absoluta para o trabalho (52.º);
27 - Mesmo depois de largar as canadianas e o colete ortopédico e até ser considerado clinicamente curado, continuou a sofrer um prejuízo médio mensal de Esc. 200.000$00 por virtude das suas limitações no exercício da actividade profissional e ainda pelo tempo que gastava diariamente na recuperação (53.º).

III – 1. O Autor, ora recorrido, pretende, com a presente acção, a condenação do Estado a indemnizá-lo dos danos resultantes de lesões corporais que sofreu em consequência de um acidente de viação, pelo facto de, no âmbito de uma outra acção que correu termos perante os tribunais e que teve o seu desfecho final neste STJ (Revista nº 3902/04, desta 1ª Secção, onde se confirmaram as decisões das instâncias de improcedência da acção, com a consequente absolvição da Ré Seguradora do pedido), ter sido efectuada, alegadamente, errónea interpretação e aplicação de uma directiva comunitária, por si e através do diploma que a transpôs para a ordem jurídica interna, e recusado o reenvio prejudicial que, então, sugeriu e que, a ter sido acolhida tal sugestão, teria determinado a procedência da sua pretensão.

Na 1ª instância, foi proferida decisão a julgar improcedente a acção, enquanto que a Relação teve entendimento diferente, condenando o Estado Português a pagar ao Autor a indemnização de € 479.91,00, acrescida de juros, à taxa legal, a contar da data da citação.

Para chegar à referida solução, escreveu o Senhor Juiz no despacho saneador-sentença:
“E, efectivamente, o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa consagra a responsabilidade civil do Estado pelos danos resultantes do exercício, entre outras, da função jurisdicional, sendo certo que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a considerar que essa norma é directamente aplicável, por integrar um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
Todavia, é igualmente pacífico, no plano do direito interno, que “para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar de que não foi justa ou melhor a solução encontrada”, antes se impondo “que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis” – cfr. acórdão do STJ de 20.10.2005, disponível na Internet, no site www.dgsi.pt.
Como se escreveu no acórdão do nosso Supremo Tribunal de 15.2.2007, publicado no mesmo endereço, “O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente”.
A responsabilidade civil extracontratual do Estado por erro na interpretação e aplicação do direito pressupõe, pois, conforme explicitado no primeiro aresto citado, “a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave e indesculpável do julgador”.
Não é, obviamente, neste plano que o A. funda a sua pretensão indemnizatória.
Simplesmente, a par do apontado regime, específico do nosso ordenamento jurídico, o Tribunal de Justiça das Comunidades tem vindo a delinear e aperfeiçoar progressivamente um regime de responsabilidade civil extracontratual dos Estados-membros pela violação do direito comunitário, regime esse para o qual contribuíram decisivamente os acórdãos proferidos nos casos Francovich, de 19.11.1991, Brasserie du Pêcheur e Factortame, de 5.3.1996, British Telecommunications, de 26.3.1996 e Hedley Lomas, de 23.5.1996.
De harmonia com a formulação decorrente desses acórdãos, sobretudo a partir dos proferidos nos casos Brasserie du Pêcheur e Factortame, os particulares lesados têm direito a reparação desde que estejam reunidas três condições, a saber:
1 – que a disposição comunitária violada tenha por objecto conferir direitos aos particulares;
2 – que a violação seja suficientemente caracterizada;
3 – que exista um nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelos lesados.
Por serem aquelas que concretamente assumem maior relevo, sendo certo que a última não merece tratamento especial por parte do TJC, reportar-me-ei apenas às duas primeiras condições.
A primeira prende-se com o primado do direito comunitário e com o efeito directo das respectivas normas, ainda que se revistam de natureza de direito derivado, sendo praticamente consensual que as directivas comunitárias produzem efeito directo nas ordens internas (e, como tal, podem ser invocadas directamente pelos particulares perante os órgãos jurisdicionais dos Estados-membros) desde que sejam suficientemente claras e precisas, sejam incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores medidas complementares por parte dos Estados-membros ou das instituições comunitárias ou, pelo menos, impõem uma interpretação do direito nacional conforme o direito comunitário – nesse sentido Maria João Palma, em “Breves Notas sobre a Invocação das Normas e Directivas Comunitárias perante os Tribunais Nacionais”, edição da AAFDL, 2000, página 17 e seguintes.
Por sua vez, o preenchimento da segunda condição pressupõe, como refere Maria Chantal da Cunha Machado Ribeiro, em “O Regime da Responsabilidade Civil Extractontratual dos Estados-Membros pela Violação do Direito Comunitário (…)”, disponível na Internet, no endereço www.almedina.net, “(…) a existência de uma violação manifesta e grave, tanto por um Estado-Membro, como por uma instituição comunitária, dos limites que se impõem ao seu poder de apreciação”, o que ocorre sempre que a violação perdurou, “apesar de ter sido proferido um acórdão em que se reconhecia o incumprimento imputado ou um acórdão num reenvio prejudicial, ou apesar de existir uma jurisprudência bem assente do Tribunal de Justiça na matéria, dos quais resulte o carácter ilícito do comportamento em causa”. Fora dessas situações paradigmáticas, têm vindo a ser apontadas uma série de pistas que o juiz nacional pode considerar para, entre outras, qualificar uma violação como suficientemente caracterizada, tais como:
- o grau de clareza e de precisão da regra violada;
- o âmbito da margem de apreciação que a regra violada deixa às autoridades nacionais ou comunitárias;
- o carácter intencional ou voluntário do incumprimento verificado ou do prejuízo causado;
- o carácter desculpável ou não de um eventual erro de direito;
- o facto de as atitudes adoptadas por uma instituição comunitária terem contribuído para a omissão, a adopção ou a manutenção de medidas ou de práticas nacionais contrárias ao direito comunitário.
Em todo o caso, entende-se que “não basta demonstrar a mera ilegalidade para que daí resulte a obrigação de indemnizar” e, por outro lado, que “também não é exigível a demonstração de dolo ou negligência por parte da autoridade em questão, optando-se, em certos casos, por uma noção objectiva de culpa que corresponde a uma ilegalidade agravada”, como sucederá “quando a ilegalidade do comportamento do Estado resultava já de um acórdão ou de jurisprudência assente sobre a matéria” – cfr. Miguel Moura e Silva, em “ A Responsabilidade dos Estados Membros por Violação do Direito Comunitário à Luz dos Recentes Desenvolvimentos Jurisprudenciais”, Revista da AAFDL, n.º 21, Junho de 1997.
Ora, no caso vertente, afigura-se-me que não se mostram reunidas as condições de que depende a efectivação da responsabilidade civil do Estado pela violação do direito comunitário.
Com efeito, dando de barato que a melhor interpretação da Directiva do Conselho de 14 de Maio de 1990 (90/232/CEE), vulgarmente conhecida por 3ª Directiva Automóvel, por si e através do diploma que a transpôs para o direito interno (DL 130/94, de 19 de Maio), seja a preconizada pelo A., em conformidade, aliás, com a orientação mais recente do Supremo Tribunal de Justiça, sufragada nos acórdãos proferidos em 16.1.2007, este com um voto de vencido, e em 22.4.2008, disponíveis na Internet, no endereço WWW.dgsi.pt, correspondendo aos documentos SJ0070116028921 e SJ0080422007422, respectivamente, não pode afirmar-se que a interpretação acolhida no acórdão proferido na acção n.º 541/2000 seja proibida pelas regras de hermenêutica jurídica, designadamente tendo em conta a dogmática jurídica da responsabilidade aquiliana, dos acidentes causados por veículos e do seguro de responsabilidade civil automóvel.
Acresce que, contrariamente ao afirmado pelo A., na data em que o Supremo decidiu o recurso interposto na ajuizada acção não existia, ao que julgo saber, qualquer aresto, nacional ou comunitário, que sufragasse o entendimento que entretanto veio a prevalecer, nomeadamente o acórdão Candolin, que foi proferido cerca de seis meses depois.
Sendo assim, penso, com o devido respeito por opinião contrária, que a violação do direito comunitário, decorrente da errónea interpretação do artigo 7º, números 1 e 2, alínea a), do DL 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção introduzida pelo DL 130/94, de 19 de Maio, e da Directiva Comunitária que o inspirou, a existir, nunca poderia ser qualificada como suficientemente caracterizada, à luz do que acima se escreveu, para efeitos de responsabilizar o Estado pelos prejuízos sofridos pelo A..
Sustenta ainda o A. que o STJ, cuja decisão não era susceptível de recurso ordinário, desrespeitou a obrigação de suscitar a questão prejudicial, sendo certo que, se a tivesse acatado, o acórdão interpretativo do Tribunal de Justiça seria certamente idêntico ao proferido no caso Kandolin e vinculava os juízes nacionais.
Todavia, penso que também neste particular não lhe assiste razão.
É verdade, como já se sublinhou, que o Tribunal de Justiça considerou que o proprietário do veículo, enquanto passageiro, tem direito a ser indemnizado, mas também o é que nunca se pronunciou sobre se esse direito é extensivo ao tomador do seguro.
Acresce que o cotejo entre a 3ª Directiva Automóvel e a que a antecedeu abona o entendimento contrário, na medida em que esta alargou a cobertura do seguro aos familiares do tomador, do condutor e de outras pessoas cuja responsabilidade civil se encontre garantida, deixando, portanto, em aberto a possibilidade de exclusão destes por contraposição àqueles seus familiares.
Creio, pois, que nada impedia que os Senhores Juízes Conselheiros entendessem, como entenderam, que a interpretação do artigo 7º, números 1 e 2, alínea a), do DL 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção introduzida pelo DL 130/94, de 19 de Maio, não suscitava “justificadas dúvidas” e que, com esse fundamento, recusassem o reenvio prejudicial.
Com efeito, é pacífico que a obrigação de suscitar a questão prejudicial por parte do juiz nacional não é absoluta, comportando excepções, designadamente se a norma a aplicar for de tal modo evidente que não deixe lugar a qualquer dúvida razoável, o que pressupõe, como ensinam Fausto de Quadros e Ana Maria Guerra Martins, em “Contencioso Comunitário”, Almedina, 2005, página 68, que a “evidência se imponha aos tribunais dos outros Estados membros e ao próprio TJ”, o que, por sua vez, implica que se levem em conta as várias versões linguísticas de tal norma.
Acresce que, não obstante as críticas que a teoria do acto claro tem merecido, tem sido igualmente rejeitada a tese do reenvio automático, pelo que o juiz nacional só deve recorrer a esse mecanismo se “em consciência e de boa fé processual concluir que a norma suscita dificuldades de interpretação e aplicação no ordenamento interno” (acórdão da Relação de Coimbra de 16.1.2008, publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2008, Tomo I, páginas 45 e 46).
Mas, porque assim é, tem, obviamente, de rejeitar-se a responsabilidade civil do Estado pelo eventual erro de avaliação cometido, de boa fé e segundo o critério de um bom pai de família, pelo juiz nacional, sob pena deste, como avisa lucidamente Jorge de Jesus Ferreira Alves, em “Lições de Direito Comunitário”, II Volume, “O Contencioso Comunitário”, Coimbra Editora, 1989, página 39, “para não se sujeitar à violação do Tratado (…) recorrer sempre ao TCE”.
Falecem, por conseguinte, os pressupostos de que depende a responsabilização do Estado pela reparação dos danos sofridos pelo A., pelo que terá de se julgar improcedente a presente acção”.

2. O acórdão recorrido, numa longa exposição, onde foram focadas diversas decisões do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), teve entendimento diferente, tendo o Senhor Desembargador-Relator elaborado, a fls. 484, um sumário, onde, sob a designação “Acidente de viação/danos do proprietário do veículo não condutor/responsabilidade do Estado-Juiz por violação do Direito comunitário”, pode ler-se:
“1. Os arts. 2º, nº 1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) do Conselho, de 30.12.1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e 1º da Terceira Directiva (90/232/CEE) do Conselho, de 14.05.1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório, sendo que o facto de o passageiro em causa ser o proprietário de veículo, cujo condutor provocou o acidente, é irrelevante.
2. Em face dos postulados da Terceira Directiva Automóvel (90/232/CEE), não podem os tribunais portugueses inverter o princípio do primado do direito europeu, continuando a sobrepor as normas de direito interno às regras definidas pela legislação comunitária, nessa e noutras matérias, sob pena de colocarem em crise o efeito útil da Directiva transposta, o pleno efeito do Direito Comunitário, a uniformidade na interpretação e aplicação desse direito em todos os Estados-Membros, que se impõe a todas autoridades nacionais incluindo as jurisdicionais e, acima de tudo, a tutela jurisdicional efectiva dos direitos do particular que tal Directiva quis garantir.
3. Segundo a mais recente jurisprudência do TJCE, designadamente a partir dos Acórdãos Köbler, de 2003, e Traghetti del Mediterraneo, de 2006, resulta das exigências inerentes à protecção dos direitos dos particulares que invocam o direito comunitário, que os mesmos devem ter a possibilidade de obter, junto de um órgão jurisdicional nacional, o ressarcimento do prejuízo causado pela violação destes direitos por uma decisão de um órgão jurisdicional nacional decidindo em última instância, afirmando-se que o princípio da autoridade do caso julgado se não opõe ao reconhecimento do princípio da responsabilidade do Estado, por uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância e que este princípio diz respeito não à responsabilidade do juiz mas à do Estado; pelo que se não afigura que a possibilidade de ver accionada, sob certas condições, a responsabilidade do Estado por decisões judiciais contrárias ao direito comunitário comporte riscos especiais de que seja posta em causa a independência de um órgão jurisdicional decidindo em última instância. Tanto mais que a existência de uma via de direito que permita a reparação dos efeitos danosos de uma decisão judicial errada pode também ser vista como sinónimo de qualidade de uma ordem jurídica e, portanto, finalmente, também da autoridade do poder judicial.
4. Evidenciada que está a obrigatoriedade do reenvio e também a manifesta insuficiência da fundamentação com que se justificou a sua recusa, sem apelo às condicionantes contempladas no Acórdão CILFIT, temos como demonstrada a violação suficientemente caracterizada, necessária ao reconhecimento da responsabilidade do Estado-Juiz”.

3. AA intentou acção contra a Companhia de Seguros CC, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, pretendendo obter a sua condenação no pagamento de 91.927.850$00, com juros desde a citação, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação, quando seguia como passageiro na sua viatura, ao lado do condutor, sendo ele o próprio tomador do seguro firmado com a Ré.

A sua pretensão foi julgada improcedente, logo na fase do saneador, pela razão de ele ser o próprio segurado.

Inconformado, recorreu, sem êxito, sucessivamente, para o Tribunal da Relação do Porto e para este Supremo Tribunal de Justiça, suscitando neste a questão prévia do reenvio prejudicial.

O Supremo Tribunal de Justiça, sufragando as posições das instâncias, negou revista ao recorrente, reafirmando que o segurado nunca pode ser considerado terceiro, visto ser ele o originário responsável e a Seguradora a responsável indirecta, por via da celebração do contrato de seguro – “uma vez que estamos perante um seguro de responsabilidade civil, e não em face de um seguro de danos (…), a mesma pessoa não pode figurar, simultaneamente, como beneficiário da garantia (…) e como beneficiário da indemnização”.

Quanto à pretensão do reenvio prejudicial, o Supremo considerou, então, que “ele só teria lugar se se tratasse de aplicar directamente direito comunitário e se este Tribunal tivesse dúvidas sobre o sentido da Directiva – o que não acontece, quer porque não estamos a aplicar directamente direito comunitário, mas nacional (…), quer porque não temos justificadas dúvidas sobre a interpretação a adoptar”.

Face ao decidido, na cadeia normal de apreciação jurisdicional que o seu pedido mereceu, veio o Autor intentar a presente acção contra o Estado, com vista a obter a almejada indemnização, argumentando que os tribunais fizeram, então, errónea interpretação e aplicação de uma directiva comunitária, e, referindo-se em concreto à decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que recusou injustificavelmente o reenvio.

Perante este pedido, o Juiz do Tribunal da Comarca de Braga, depois de ter apreciado a bondade do decidido nas diversas instâncias, maxime no Supremo Tribunal de Justiça, acabou por julgar a acção improcedente, argumentando com a inexistência de erro grave nas decisões proferidas.

Para tanto, estribou-se na orientação jurisprudencial que defende que, no caso de responsabilização do Estado, se exige que haja, da parte do juiz, um erro grosseiro, palmar, crasso, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.

E, entrando na análise do que tem sido a interpretação da Directiva Comunitária, de 14 de Maio de 1990 (90/232/CEE), vulgarmente conhecida por 3ª Directiva Automóvel, aceitando, mesmo, como sendo a preconizada pelo Autor a mais seguida, não deixou de sublinhar a irrelevância de tal facto em termos de caracterização de erro grosseiro, nos termos assinalados.

Comentando a posição assumida no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça que recusou o reenvio prejudicial, não deixou de salientar que a posição assumida não era passível de censura, na medida em que a mesma não suscitava dúvidas, certo que “o juiz nacional só deve recorrer a esse mecanismo se «em consciência e de boa fé processual concluir que a norma suscita dificuldades de interpretação e de aplicação no ordenamento interno»”.

Na medida em que, portanto, não visualizou qualquer erro grosseiro, palmar, indesculpável, acabou, como se disse, por não acolher a pretensão do Autor, aqui recorrente.

Insatisfeito como esta decisão, o Autor apelou, de seguida, para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, revogando-a, acabou por lhe dar total razão.

Foi a vez de o Estado manifestar o seu desacordo com o julgado, pedindo, por isso, revista do aresto prolatado.

Fê-lo, apresentando as devidas conclusões, nas quais, em resumo, levanta as seguintes questões:
1ª – Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia relativamente ao que foi objecto de impugnação, em sede de contestação, e que, por via do julgamento ter ocorrido em sede de saneador, nem sequer foi alvo da devida instrução. Isto, como é evidente, para o caso de a sua pretensão revogatória não proceder.
2ª – Inexistência dos pressupostos de natureza substantiva que, a verificarem-se, poderiam justificar a tutela requerida, nomeadamente, a falta do, já assinalado, erro grosseiro.

Em contra-alegações, o recorrido defendeu, como acima já dissemos, a manutenção do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães.

Cumpre, agora, apreciar a decisão proferida e censurada na presente revista, balizando o nosso conhecimento pelas questões vertidas nas conclusões.

Cumpre, desde já, dizer que a questão do cometimento da nulidade, por omissão de pronúncia, só terá relevância no caso de improceder toda a argumentação do recorrente.
Conhecer, desde já, a nulidade obrigaria, no caso de procedência, a reenviar o processo para a Relação (e, quiçá, para a 1ª instância, com vista à instrução dos pontos controvertidos), facto que, a proceder a questão de fundo, se nos antolha como prejudicada e, consequentemente, inútil.

Analisemos, pois, com o detalhe possível, o mérito do acórdão da Relação de Guimarães.

Pensando e repensando os doutos argumentos vertidos na decisão recorrida, não podendo deixar de salientar o brilho da argumentação alcançado, a verdade é que não podemos de, desde já, manifestar a nossa total discordância com a mesma.

A nossa posição é, desde já o dizemos, de adesão à decisão sufragada pela 1ª instância, o que não significa – longe disso – concordância com a argumentação.

Vamos, pois, directamente à questão.

Atenta a temporalidade dos factos, não restam dúvidas de que não tem aplicação aqui o preceituado na recente Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, com a rectificação que lhe foi feita pela Lei nº 31/2008, de 17 de Julho.

Mas isso não significa total desprezo pelo que em tal diploma legal está agora claramente regulado.

A questão que se nos coloca é simplesmente esta: poderia o Estado, à data dos factos, ser responsabilizado, como acabou por o ser, com a decisão ora em apreciação?

Entra em jogo a Lei supra citada, com vista a obtermos resposta.

O seu artigo 13º, nº 1, referindo-se à responsabilidade do Estado por actos praticados no exercício da função jurisdicional, prescreve:
“Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação de liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”.

A leitura deste normativo leva-nos a concluir que, até à entrada em vigor da Lei de que faz parte, o Estado não era responsável pelos danos decorrentes das situações nele tipificadas.

Conforta-nos esta asserção a interpretação que surpreendemos na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 56/X que, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 197º da Constituição da República Portuguesa, foi apresentada à Assembleia de República e que, por força da sua entrada em vigor, a suportou.

Lê-se na mesma:
“…Avança-se, por outro lado, no sentido do alargamento da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes do exercício da função jurisdicional, fazendo, para o efeito, uma opção arrojada: a de estender ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regime da responsabilidade da Administração, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário e com a restrição que resulta do facto de não se admitir que os magistrados respondam directamente pelos ilícitos que cometam com dolo ou culpa grave, pelo que não se lhes aplica o regime de responsabilidade solidária que vale para os titulares de órgãos, funcionários e agentes administrativos, incluindo os que prestam serviço na administração da justiça”.

E, pormenorizando, quanto ao erro judiciário, o legislador logo acrescentou o seguinte:
“No que se refere ao regime do erro judiciário, para além da delimitação genérica do instituto, assente num critério de erro de direito ou na apreciação dos pressupostos de facto, entendeu-se dever limitar a possibilidade de os tribunais administrativos, numa acção de responsabilidade, se pronunciarem sobre a bondade intrínseca das decisões jurisdicionais, exigindo que o pedido de indemnização seja fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.

Foi esta “justificação” que deu azo à redacção do nº 2 do supra citado artigo 13º:
“O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”.

Ora bem.
Paradoxalmente, a Lei citada, não sendo, como evidentemente não é, de aplicação ao caso sub iudice, não deixa de nos abrir o caminho certo para a solutio da presente vexata quaestio.

É o próprio legislador que afirma a sua intenção de alargar o campo de responsabilidade do Estado aos danos resultantes do exercício da função jurisdicional, “estendendo-a ao domínio da responsabilidade da Administração, dizendo mesmo que é uma opção arrojada”.
Ou seja, é o próprio legislador que aceita com toda a clareza que, até então, o Estado não podia ser responsabilizado pelos danos resultantes da função jurisdicional.

Esta posição é arrojada, na medida em que, exceptuados os casos de responsabilização do Estado relativos a sentenças penais por condenação injusta e de privação injustificada de liberdade, antes nada havia, ao nível legislativo, a suportar um pedido de indemnização por danos causados … por erro grosseiro na área da jurisdição civil.

É que, em relação à jurisdição penal, concretamente aos danos causados por condenação injusta ou por prisão ilegal, já a Constituição previra o direito à indemnização, ao dizer, na sequência do proclamado no artigo 22º, de modo bem claro, que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer” (artigo 27º, nº 5) e que “os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos” (artigo 29º, nº 6).

Consciente de que era necessário precisar aqueles dois direitos, o legislador não perdeu tempo a concretizá-los na lei ordinária.

Assim, o nº 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, estabelecia que “quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação de liberdade”, sendo que, segundo o nº 2 do mesmo artigo, “O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a privação da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular gravidade. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro”.

A citada Lei nº 48/2007 deu nova redacção ao referido artigo, embora em termos semelhantes, alargando, porém, o regime à situação de obrigação de permanência na habitação.

Por outro lado, o artigo 462º, nº 1, do mesmo diploma legal, referindo-se aos casos absolutórios resultantes de recurso de revisão, prescreve que “… a sentença atribui ao arguido indemnização pelos danos sofridos e manda restituir-lhe as quantias relativas a custas e multas que tiver suportado”.

Não se ignora que a jurisprudência, na sua maioria, não navegou nestas águas, indo buscar apoio ao Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro, para justificar a atribuição de indemnizações devidas por danos causados, pela actividade da função jurisdicional, em virtude de erro grosseiro.

Mas cremos bem que, face à clarificação legislativa apontada, outra não pode ser a conclusão a tirar.

Este é, aliás, o sentido que se colhe da comunicação que Salvador da Costa apresentou no Colóquio “Carreira dos Juízes – Perspectivas de Futuro”, organizado pelo Fórum Permanente Justiça Independente, no dia 23 de Janeiro de 2009, em Lisboa. Daí que tenha dito que o artigo 22º da Constituição não previa e não prevê a responsabilidade do Estado pelos danos causados no exercício da função jurisdicional, certo que “ainda que devesse interpretar-se o artigo 22º da Constituição no sentido de ele abranger a responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, esta não poderia ser considerada por virtude de falta de lei ordinária substantiva caracterizadora”.

Mais recentemente, José Manuel M. Cardoso da Costa, em artigo publicado na Revista Decana, não deixa de enfatizar esta mesma ideia, ao analisar o novo Regime constante da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, ao dizer que o mesmo estende a responsabilidade estadual, embora em certos e limitados termos, aos danos decorrentes do «erro judiciário», excepcionando-se deste, porém, «regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade», na medida em que aí “continua a vigorar, sem modificação, o que se dispõe, respectivamente, no artigo 462º e nos artigos 225º (neste se prevendo, de acordo com a redacção dada pela Lei nº 48/2007, as três hipóteses contempladas, as quais vão desde a privação ilegal de liberdade e as demais de mera privação injustificada) e 226º do Código de Processo Penal (artigo 13º, nº 1) (Ano 138º, Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função jurisdicional, páginas 156 a 168).

Postas as coisas nestes termos, que temos por perfeitamente correctos e inequívocos, face à clareza posta na feitura da Lei que, presentemente, nos rege, nesta matéria concreta da responsabilidade pelos danos causados no exercício da função jurisdicional, queda, por prejudicado, tudo o mais que pudesse ser dito, em termos de verificação dos pressupostos da responsabilidade civil aquiliana, tal como estão previstos no artigo 483º do Código Civil.

4. Concluindo-se não poder haver lugar à condenação do Estado, perde toda a utilidade, como assinalado já, a apreciação da nulidade arguida pelo recorrente e prevista no artigo 668º, nº 1, alínea d), 1ª parte, do Código de Processo Civil.

Não poderemos, porém, acabar sem deixar uma palavra que serve de alerta para situações similares.

É que esta acção não é uma acção qualquer.
Ela configura mais que um recurso de revisão, tal como está previsto nos artigos 771º e seguintes do Código de Processo Civil, em que nos surgem como censores de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça os próprios tribunais de instância.

O legislador, naquele recurso, não foi tão longe.

E deixou bem marcada a sua posição no supra mencionado artigo 13º, nº 2, da nova Lei.

Aceitar isto é subverter toda a lógica que rege a nossa estrutura judiciária.

Será que o facto de a pretensão do recorrente não ter recebido acolhimento, mesmo ao nível do mais alto Tribunal do país, é motivo para ter mais garantias de avaliação do que lhe são dadas pelo recurso de revisão?

Não pode ser.

Nem pode acontecer que os juízes se arvorem em censores de decisões que o próprio legislador teve por bem não as sujeitar a tal (citado nº 2 do artigo 13º da nova Lei).

A não ser assim, bem poderia o Estado ser, agora, duplamente responsabilizado, pagando a indemnização peticionada por alegados danos sofridos, em consequência da perda da acção.

No fundo, entrar-se-ia na grande angústia: quid custodiet custodes?

Esta última ideia encontra conforto na opinião avalizada de José Manuel M. Cardoso da Costa, que, no artigo supra citado, não deixa de realçar o facto de o novo Regime exigir, como condição prévia, da responsabilização do Estado por actos jurisdicionais, que “o pedido de indemnização deva ser fundada na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente” (artigo 13º, nº 2).
E a este respeito não deixou de lançar três importantes notas, a merecerem meditação, a saber:
1ª – A «revogação» da decisão danosa, exigida pelo nº 2 do artigo 13º, há-de ser naturalmente uma revogação definitiva, ou seja, constante de uma decisão transitada em julgado.
2ª – Tal revogação há-de, por via máxima, provir de um tribunal superior, e ser obtida através de recurso, não sendo de excluir que possa provir deste próprio que proferiu a decisão questionada, quando isso seja admissível processualmente.
3ª – Há-de ser na decisão revogatória que terá de reconhecer-se o carácter «manifesto» do erro de direito ou o carácter grosseiro na apreciação dos factos, que são pressupostos substantivos da responsabilidade do Estado.

Perante estas exigências contidas na nova Lei, que dizer da oportunidade da presente demanda?
Que não faz o mínimo sentido, à luz das regras que norteiam o nosso sistema judiciário.
Aceitá-la significa, pura e simplesmente, subvertê-lo.

A acção não deveria, por isso mesmo, passar o crivo do saneador, com a sua rejeição total.
Admiti-la, como acabou por acontecer, teve o seguinte resultado: permitiu-se às instâncias a apreciação do mérito de uma decisão definitiva tirada pelo … Supremo Tribunal de Justiça!

5. Infere-se, assim, do exposto, e sem necessidade de qualquer outra consideração, que colhem as conclusões do recorrente, tendentes ao provimento do recurso, embora com argumentação bem diversa da por ele apresentada, pelo que o acórdão recorrido não poderá manter-se, devendo-se, antes, fazer-se prevalecer a decisão da 1ª instância, embora com fundamentação não totalmente coincidente.

IV – Nos termos expostos, acorda-se em conceder a revista e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida, fazendo-se subsistir a decisão proferida na 1ª instância.

Custas, aqui e nas instâncias, pelo Autor, ora recorrido.


Lisboa, 3 de Dezembro de 2009

Moreira Camilo (Relator)
Urbano Dias
Paulo de Sá