Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A2680
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: REFORMA DE DECISÃO
ERRO MATERIAL
ERRO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: SJ20090212026801
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: INDEFERIDO
Sumário :
1) Proferida a decisão, e, em consequência, esgotado o poder jurisdicional do julgador é lícita – para alem da aclaração, do suprimento de nulidades e da reforma quanto a custas e multa – a sua rectificação ou a sua reforma.
2) A rectificação pressupõe um erro material, a reforma um lapso manifesto, aquele não comprometendo o mérito e esta tendo o perfil substancial do recurso por implicar uma reapreciação do julgado.

3) Há erro material quando se verifica inexactidão na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, sendo que a divergência entre a vontade real e a declarada não deve suscitar fundadas dúvidas, antes ser patente, através de outros elementos da decisão, ou, até, do processo. É o equivalente ao erro-obstáculo tratado no direito substantivo.

4) Não ocorrendo erro material mas lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na desconsideração de documentos ou de outros elementos constantes do processo, o incidente de reapreciação desse segmento do julgado é a reforma da decisão.

5) Como faculdade excepcional que é, deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão “manifesto lapso”, reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa.

6) O lapso manifesto tem a ver com uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter na base o desconhecimento.

7) O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar “error in judicando” (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou “aberratio legis”, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

O recorrente, e também, recorrido AA vem pedir a reforma do Acórdão que negou provimento ao seu recurso e deu provimento ao recurso interposto pelos Réus “Imobiliária Construtora BB”, CC e DD.

Alega, nuclearmente, que o Acórdão reformando, na parte em que considerou que “nada nos autos aponta, sequer para negligência grosseira” e que considerou que a denúncia se traduziu no regular exercício de um direito, “incorreu em manifesto lapso que determinou numa errada qualificação jurídica dos factos”; que dos factos provados decorre o conhecimento da falsidade da imputação; e que “a denúncia criminal foi apresentada pelos RR contra o A com intuitos de represália, lesando a honra do mesmo A”; que existiu “utilização maliciosa e abusiva do processo” (…) “ultrapassando os parâmetros do direito de acesso aos Tribunais”; que a este direito constitucional (artigo 20.º da CRP) se sobrepõem os direitos ao “bom-nome e reputação e à imagem” (artigo 26.º, n.º 1 CRP), sendo que os artigos 70.º a 81.º, 483.º e 484.º do Código Civil transpõem para o direito civil a protecção da pessoa humana; que os Réus incumpriram “de forma manifesta e com violação do princípio da boa-fé, os mais elementares direitos à honra, ao bom-nome e reputação social do A”; que estão presentes os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, tendo havido errada qualificação jurídica dos factos, por lapso manifesto.

Na sua resposta os recorrentes-réus, defendem a bondade do Acórdão.

Foram dispensados os vistos.

Conhecendo,
1- Reforma da decisão.
2- Lapso manifesto e figuras afins.
3- “In casu”.
4- Conclusões.

1- Reforma da decisão

Ponderando a data da propositura da acção, vamos situar-nos no âmbito do n.º 2, alínea a) do artigo 669.º do Código de Processo Civil (na redacção do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, surgido na esteira do Decreto-Lei n.º 329/A/95, de 12 de Dezembro).

Desconsidera-se, por isso, a alteração ao corpo do n.º 2 – quase só terminológica – introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, por só aplicável ás acções intentadas a partir de 1 de Janeiro de 2008.

Como regra – n.º 1 do artigo 666.º CPC – o poder jurisdicional do juiz fica esgotado com a prolação da sentença/decisão.

Mas sempre é lícita a rectificação de erros materiais, a aclaração, o suprimento de nulidades e a reforma (que é, afinal, a situação que aqui releva).

Debruçando-nos sobre este instituto, (com afastamento, por transcender a economia deste Acórdão do n.º 1, alínea b) (custas e multas) do citado artigo 669.º, colocamo-nos apenas perante o n.º 2.

É pressuposto desta reforma a existência de “lapso manifesto”, ou na determinação da norma aplicável, na subsunção dos factos (alínea a)), ou, finalmente, (alínea b)) na desconsideração de elementos de prova (documental ou outra) constantes dos autos e que, se atendidos, bastariam para conduzirem a solução diversa.

Deixando para mais tarde a análise dos pressupostos da alínea a) do n.º 2 daquele artigo 669.º, dir-se-á que a situação da alínea b), a ocorrer, é reveladora de um menor zelo no estudo do processo ou de falta de cuidado na preparação da decisão, sendo, por isso, verificável com menor grau de probabilidade.

Já o lapso manifesto na escolha da norma ou na subsunção dos factos pode acontecer com mais frequência, embora tenha de ser aferido com cuidado extremo por situado entre duas figuras muito próximas – o lapso material e o erro de julgamento – com tratamentos completamente diversos.

Por isso é que o legislador terá criado o incidente da reforma, quiçá para dar abertura a situações não resolúveis pela via da simples rectificação e, que, de outra banda, justifiquem uma maior celeridade incompatível com a via recursória.

Escreveu-se, a propósito, no Acórdão de 24 de Outubro de 2006 – 06 A2735 – desta mesma secção e relator:

“Dizendo buscar maior economia processual, no evitar a interposição de recursos, ou suprir a impossibilidade legal de recorrer, o legislador conferiu ao juízo ‘a quo’ a possibilidade de corrigir uma situação de erro notório e, assim, repor a legalidade. Refere-se no relatório preambular do citado DL n° 329/A/95 que esta solução ‘será mais útil à paz social e ao prestigio e dignidade que a administração da Justiça coenvolve, corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável (...) embora em termos necessariamente circunscritos e com garantia do contraditório.’

Mas, como nota, e bem, o Cons. Amâncio Ferreira tratou-se de instituir mais um recurso, ‘sob a capa de uma reforma’. ‘Não se pode aceitar no nosso ordenamento jurídico este recurso esdrúxulo e espera-se que o legislador na melhor oportunidade o elimine.’ (apud “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 6a ed , 62)”.

Concordando com esta douta opinião, constata-se que o legislador não acatou a sugestão na oportunidade do DL n.º 303/2007.

Note-se, no entanto, que a reforma da decisão não é um recurso – nem na modalidade de reapreciação ou reponderação, nem da de reexame (aqueles, ao contrário destes, sem possibilidade de “jus novarum”), pelo que não pode servir para mera manifestação de discordância do julgado, mas apenas, e sempre perante o juízo decisor – tentar suprir uma deficiência notória.

Terá, assim, mais a estrutura da reclamação acerca um erro sobre a previsão, nas suas modalidades de erro na qualificação ou na subsunção, afinal a violação primária da lei que tem de ter como causa um lapso manifesto.

2- Lapso manifesto e figuras afins

Deixámos dito que os incidentes suscitados após a prolação da decisão (momento em que fica esgotado o poder jurisdicional do julgador) não se destinam, como nos recursos, a uma reapreciação ou a um reexame do decidido, situações que têm ínsito o desacordo sobre o mérito do julgado (o “error in judicando”).

Trata-se, antes, de corrigir erros ou lapsos que afectam a decisão mas não põem em causa a sua substância (“error in judicio”).

Por isso é que o incidente de reforma do n.º 2 do artigo 669.º do CPC surge ao arrepio da dogmática adjectiva, desinserindo-se da fisiologia processual e aparecendo como extravagância.

Mas estando na lei, há que acatá-lo e traçar rigorosamente os seus limites.

Quando o decisor se “engana”, tal pode ter como causa o erro material, o lapso manifesto ou o erro de julgamento.

O primeiro (como se escreveu no Acórdão desta secção, com o mesmo relator, P.º 87/09):“na sua modalidade escrita (‘lapsus calami’) consiste na inexactidão, na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, mais frequentemente traduzido em erros de escrita ou de cálculo.

Mas é necessário que resulte evidente do texto essa decisão.

Haverá, pois, uma divergência, clara e ostensiva, entre a vontade real do decisor e o que veio a ser exarado no texto.

É um tipo de erro, tal como o descrito na lei substantiva (artigo 249.° do Código Civil) ‘...revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita...’.

É tratado como uma sub-espécie de erro-obstáculo, que terá de ser constituído por um lapso ostensivo, não podendo existir fundada dúvida sobre o que se quis declarar. (cf. Prof. Manuel de Andrade — “Teoria Geral da Relação Jurídica”, n.° 134, VI; Conselheiro Rodrigues Bastos, “Das Relações Jurídicas”, III, 94).

Na visão processual do Prof. Castro Mendes, o ‘erro material ou lapso é a inexactidão ou omissão verificada em circunstâncias tais que é patente, através dos outros elementos da sentença ou até do processo, a discrepância com os dados verdadeiros e se pode presumir por isso uma divergência entre a vontade real do juiz e o que ficou escrito.’ (“Direito Processual Civil”, 1969, II, 313).”

Já no erro de julgamento (ou erro judicial) ocorre uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão.

O erro material – artigo 667.º do Código Civil – é corrigível por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.

Mas nunca interfere, decisivamente, com o mérito da decisão, tanto mais que terá de ser evidenciado pelo seu contexto cuja leitura atenta o torna perceptível face às permissas do silogismo judiciário.

Já o erro de julgamento, por contender com o mérito, só pode ser motivador de recurso (impugnação perante instância superior).

É, aqui, que reside a dificuldade da reforma do n.º 2 do artigo 669.º do CPC.

Não se trata de verdadeiro recurso, do qual tem apenas o perfil substancial, mas de maneira de corrigir o que mais não é do que um erro de julgamento.

Terá, contudo, de ser erro resultante de “lapso manifesto”, quer na determinação da norma, quer na subsunção dos factos, quer na preterição de elementos probatórios já constantes dos autos.

Porém, aqui, a determinação do direito só pode ser o resultado de erro grosseiro, por total e errada interpretação dos preceitos legais, consequência de desconhecimento (“ignorantia facti et juris”), de menor atenção ou, até, de leviandade, que não de adesão a esta ou àquela corrente jurisprudencial ou doutrinária, ou mesmo de inovação desde que seja patente ter sido ponderada e não resultado de óbvia inconsideração.

Será, tão-somente, resultado de lapso grosseiro e patente, ou de “aberratio legis”, “por desconhecimento ou flagrante má compreensão do regime legal” (cf. o citado Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Outubro de 2006, onde ainda se diz não ser “abundante a jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre o “thema decidendum”, embora “una voce sine discrepante” alinhe neste sentido (v.g os Acórdãos de 9 de Junho de 2005- 05B1422 - decidiu que ‘a reforma da sentença (ou acórdão) a que alude o n°2 do artigo 669° do CPC não abrange qualquer erro de julgamento; mas apenas aquele que foi resultante de lapso do julgador na fixação dos factos ou na interpretação e aplicação da lei.’; de 11 de Fevereiro de 2004-03S1784 -julgando que ‘a reforma da sentença (...) tem como desiderato suprir os lapsos ou erros manifestos assinalados naquelas alíneas a) e b), não se destina a corrigir eventuais erros de julgamento.’; cf., ainda, ‘inter alia’ os Acórdãos de 18 de Setembro de 2003- 03B1855 - e de 3 de Fevereiro de 1999 – 98B789).”

3- “In casu”

O requerente mais não faz do que manifestar o seu desacordo sobre o julgado na parte em que concluiu pela inexistência da responsabilidade extra contratual, tecendo várias considerações para concluir em sentido oposto ao Acórdão reformando.

Mas não aponta – nem o poderia fazer, uma vez que o Acórdão exauriu todos os argumentos das partes e ponderou o que considerou ser a melhor doutrina e jurisprudência – qualquer lapso manifesto (eventualmente resultado de desatenção ou desconhecimento) na qualificação jurídica, na aplicação das normas ou na desconsideração de elementos dos autos.

E o Acórdão foi claro, e incisivo, ao afirmar que:

“Toda a participação criminal dirigida contra pessoa certa contém, objectivamente, ainda que a nível de suspeita sustentada por argumentos meramente indiciários, uma ofensa à honra e consideração do denunciado; por se traduzir na imputação de factos penalmente ilícitos.

O acesso aos tribunais para fazer valer um direito é constitucionalmente garantido, e o direito de participar criminalmente pode, em certos casos constituir um dever cujo incumprimento será, por si, a comissão de um ilícito penal. Mas a participação não pode ser feita com a consciência da falsidade da imputação ou é crime de denúncia caluniosa.

No crime de denúncia caluniosa os interesses protegidos pela incriminação são a administração da justiça, a não ser perturbada por impulsos inúteis e infundados e dos acusados a serem protegidos contra imputações falsas e temerárias lesivas da sua honra.

Trata-se de um crime doloso, inadmitindo, sequer, o dado eventual como elemento subjectivo.

Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como ‘iter’ de acesso a justiça e aos tribunais.

Na colisão de direitos, que são desiguais, deve prevalecer o considerado superior. Com principio, o direito de denúncia prevalece notoriamente nos casos de denúncia vinculada (ou denúncia-dever funcional) e, em geral, porque como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de Direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos.

Para alem da denúncia caluniosa, são restrições a linguagem ofensiva do texto (que não se limite à narração de factos mas lance epítetos ou emite juízos de valor sobre o denunciado) que, por si, pode ofender a honra, mas não esquecendo o princípio da necessidade do n.° 2 do artigo 154.º do CPC, sendo que, no mais (dever geral de diligência), deve ser feita uma avaliação casuística na ponderação do tipo de crime, na complexidade, sofisticação, necessidade de perícia e putativos agentes que pode servir de critério para avaliar da grosseira leviandade da denúncia.

O regular — ressalvando situações de abuso e de actividades perigosas — exercício do direito exclui a ilicitude (é causa de justificação) como pressuposto da responsabilidade civil.”

Neste incidente trata-se, enfim, de mera discordância do julgado.

A ser acolhida esta perspectiva todas as decisões passariam a ser objecto de pedido de reforma pois, e sempre, a parte vencida (e não convencida, por em desacordo com o decidido) viria alegar que o julgador se enganou manifestamente o que não foi o caso.

Daí que nenhuma razão assista ao reclamante.

3- Conclusões

Pode concluir-se que:
a) Proferida a decisão, e, em consequência, esgotado o poder jurisdicional do julgador é lícita – para alem da aclaração, do suprimento de nulidades e da reforma quanto a custas e multa – a sua rectificação ou a sua reforma.
b) A rectificação pressupõe um erro material, a reforma um lapso manifesto, aquele não comprometendo o mérito e esta tendo o perfil substancial do recurso por implicar uma reapreciação do julgado.

c) Há erro material quando se verifica inexactidão na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, sendo que a divergência entre a vontade real e a declarada não deve suscitar fundadas dúvidas, antes ser patente, através de outros elementos da decisão, ou, até, do processo. É o equivalente ao erro-obstáculo tratado no direito substantivo.

d) Não ocorrendo erro material mas lapso manifesto na determinação da norma aplicável ou na desconsideração de documentos ou de outros elementos constantes do processo, o incidente de reapreciação desse segmento do julgado é a reforma da decisão.

e) Como faculdade excepcional que é, deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão “manifesto lapso”, reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa.

f) O lapso manifesto tem a ver com uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter na base o desconhecimento.

g) O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar “error in judicando” (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou “aberratio legis”, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal.

Nos termos expostos, acordam indeferir o pedido de reforma.

Custas pelo requerente, com 8 UCs de taxa de justiça.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2009

Sebastião Povoas (relator)
Alves Velho
Moreira Camilo
Garcia Calejo
Urbano Dias