Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B2654
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
PROVA PLENA
CERTIFICADO DE ÓBITO
DOENÇA GRAVE
MORTE
RESPONSABILIDADE MÉDICA
ILICITUDE
Nº do Documento: SJ200810020026547
Data do Acordão: 10/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1. O certificado de óbito emitido pelo médico que atesta os factos relativos à causa da morte não é documento autêntico nem é susceptível de produzir a sua prova plena.
2. O serviço médico, pela sua natureza de meio de prevenção da doença ou da recuperação da saúde das pessoas deve pautar-se pela diligência, atenção e cautela, na envolvência das boas práticas da profissão e dos conhecimentos científicos existentes.
3. Em quadro de pluralidade de patologias e de falta de clareza da sintomatologia do paciente, não pode ser imputada a causa da sua morte ao médico que logo mandou realizar exames clínicos com vista à definição do respectivo diagnóstico.
4. Não tendo autor provado que o decesso do paciente resultou de erro de diagnóstico face ao estado em que aquele se apresentou no hospital, não pode concluir-se pela ilicitude da acção ou omissão dos médicos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA - com o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, e de patrocínio judiciário assumido pela advogada M... J... C... - intentou, no dia 7 de Outubro de 2003, contra BB, o Hospital A... S..., S... G..., SA, CC, DD, EE e I... B...-C... de S..., SA, pedindo a sua condenação no pagamento de € 31.033,50 e juros de mora, com fundamento em danos patrimoniais e não patrimoniais derivados do decesso de seu pai, FF, no erro de diagnóstico médico e no contrato de seguro celebrado com a última ré, e todos eles, salvo a primeira, apresentaram instrumento de contestação.
O Hospital A... S..., SA invocou a prescrição do direito de crédito invocado pelo autor, a nulidade do processo por virtude de aquele não ter provado o seu parentesco com o falecido, e a impossibilidade de se defender por a matéria de facto controvertida respeitar à intimidade da vida privada.
CC afirmou a ilegitimidade do autor, por não ter comprovado ser o único titular do eventual direito à indemnização, o diagnóstico de quadro abdominal de FF não agudo ou complicação motivada pela diabetes, por virtude de estar vigil, eupneico, lúcido, sem vómitos, ter sido pedido o RX do abdómen para excluir alguns tipos de patologias, serem os exames complementares de diagnóstico solicitados adequados à necessidade de esclarecimento do quadro abdominal e de possíveis complicações das patologias coexistentes.
DD afirmou, por seu turno, não ser o vómito fecalóide causa de morte, não terem os exames a FF revelado a sua oclusão intestinal, serem as medidas prescritas adequadas, não ser previsível, face aos resultados dos exames, o agravamento do seu estado clínico, ser a sua situação urgente mas não emergente, por virtude de o diagnóstico ser a obstrução e não a oclusão.
EE alegou a prescrição do direito à indemnização, não ter o médico radiologista de estar presente no exame radiológico, mas apenas disponível para a interpretação de imagens, e não lhe poder ser imputada responsabilidade pelo atraso na sua realização.
I... B... SA invocou a prescrição e ter-se CC limitado na sua intervenção a procedimentos adequados à situação clínica do doente.
No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias de nulidade do processo por falta de prova do parentesco do autor com o falecido, da ilegitimidade do autor e a peremptória da prescrição, e o autor desistiu do pedido formulado contra a ré BB.
Seleccionada a matéria de facto e realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 7 de Outubro de 2003, por via da qual os réus foram absolvidos do pedido.
Apelou o autor, e a Relação, por acórdão proferido no dia 24 de Janeiro de 2008, negou-lhe provimento ao recurso.

Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões
- tendo o médico que subscreveu o certificado de óbito indicado a causa da morte é de concluir não ter tido dúvidas sobre ela;
- no âmbito do registo civil, o certificado de óbito faz prova plena dos factos nele contidos, designadamente a causa da morte, certo que a prova derivada do registo não pode ser ilidida por outra, salvo nas acções de estado ou de registo;
- por razões de certeza jurídica, não pode o certificado de óbito ter força probatória plena para uns efeitos e não para outros, como a causa da morte a que se refere, não sendo cindível a verdade do documento;
- os pontos terceiro a quinto da base instrutória deveriam ter sido julgados provados com base na prova plena derivada do certificado de óbito;
- os documentos revelam dever ter sido feito um exame mais completo a FF, nomeadamente através do toque rectal e equacionado o diagnóstico presuntivo de oclusão intestinal e ter requisitado, com urgência, os meios complementares de diagnóstico, certo que CC suspeitou de tal oclusão, e não o foi;
- deveriam ter sido considerados provados os quesitos 11º e 15, e não provados os quesitos 51º, 55º, 65º e 66º;
- verifica-se a prática de actos ilícitos e culposos pelos recorridos CC, DD e o Hospital, que foram causais da morte de FF;
- ao não considerar o certificado de óbito de FF documento autêntico, o acórdão violou o disposto nos artigos 371º e 372º, e, no restante, infringiu os artigos 483º e 487º, todos do Código Civil, pelo que deve ser revogado e declarada a responsabilidade dos recorridos pela morte em causa.

Respondeu I...-B...-C... de S..., SA, em síntese de conclusão:
- a causa da morte consubstancia prognose póstuma e é insusceptível, por se tratar de matéria de facto, de alteração no recurso;
- no recurso de revista não pode alterar-se a resposta aos quesitos indicados pelo recorrente, por ela ter assentado em prova testemunhal e documental de livre apreciação pelo tribunal;
- o certificado de óbito não é documento autêntico porque o juízo pessoal de valor do documentador, incluindo a causa da morte, não é abrangido pela sua força probatória, ficando sujeito à livre apreciação do tribunal;
- ele não preenche os requisitos dos documentos autênticos a que se reporta o artigo 369º do Código Civil, pelo que não faz prova plena da causa da morte de FF.
- a aspiração do vómito no circunstancialismo de consciência em que o doente se encontrava, não era previsível, e não foi excessivo o tempo de realização dos exames;
- não foi praticado algum acto ilícito culposo por parte dos recorridos CC, DD ou pelo Hospital.

Respondeu, por seu turno, DD, em síntese de conclusão:
- a causa da morte de FF referida no certificado de óbito é mero juízo pessoal do documentador, sujeito à livre apreciação do tribunal;
- ele não preenche os requisitos do artigo 369º do Código Civil, pelo que não pode ser considerado documento autêntico;
- as declarações nele inseridas não fazem prova plena, podendo ser impugnadas, cabendo ao recorrente produzir a sua prova;
- trata-se de paciente com antecedentes clínicos e patologia associados importantes e variados, e ignora-se a patologia que desencadeou o processo e a causa da morte;
- no recurso de revista não pode alterar-se a resposta aos quesitos indicados pelo recorrente, por ela ter assentado em prova testemunhal e documental de livre apreciação pelo tribunal;
- actuou com respeito pelas legis artis, não praticou facto ilícito culposo, pelo que não se verificam quanto a si os pressupostos da responsabilidade civil.

A advogada M... J... C... pediu escusa de patrocínio, pedido não decidido antes da apresentação das alegações de recurso.

II
É a seguinte a factualidade considerada provada no acórdão recorrido, inserida por ordem lógica e cronológica:
1. Representantes do Hospital A... S..., S... G..., SA, por um lado, e da I... B...-C... de S..., SA, declaram por escrito, consubstanciado na apólice nº ..., esta última assumir, mediante prémio a pagar pela primeira, a sua responsabilidade por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e ou materiais causados a terceiros pela exploração do Hospital Professor Doutor F... da F....
2. O Hospital Professor Doutor F... da F... foi entregue, com base em contrato de gestão, ao Hospital A... S..., S.... G..., SA.
3. FF nasceu no dia 26 de Março de 1926, filho de Á... L... D... e de A... dos A... D..., e faleceu no dia 8 de Março de 1999, e AA, nascido no dia 31 de Agosto de 1961, é filho de FF, e de M... E... B... L... .
4. A ré BB era a chefe de equipa do serviço de urgência do hospital, e esteve aí de serviço no dia 8 de Março de 1999, e a ré EE era, nesse dia, directora e responsável pelo serviço de radiologia daquele hospital.
5. FF deu entrada no serviço de urgência do Hospital Doutor F... da F..., no dia 8 de Março de 1999, pelas 01h55m, acompanhado pela sua filha, apresentando o ventre visivelmente inchado, foi triado pela enfermeira às 01h56, e a primeira observação médica ocorreu às 02h00.
6. O réu CC fez a apalpação do ventre de FF e ordenou que se fizessem análises clínicas, RX simples do abdómen e ecg, e associou ainda o pedido de bmt glicemia e prescrição de soro fisiológico, metaclopramida e insulina de acordo com o resultado da glicémina capilar (bmt), e prescreveu algaliação.
7. O quadro clínico não referia a entubação naso-gástrica do doente, e este mostrou-se vigil, orientado, eupneico; à auscultação cardíaca revelou arritmia e à auscultação pulmonar revelou murmúrio vesicular rude, o abdómen estava globoso, com timpanismo, depressivel e mole, com ausência de dores, não revelando edemas nos membros inferiores.
8. FF tinha neoplasia da próstata e diabetes descompensada, e, quando deu entrada no serviço de urgência, não existiam alterações de trânsito intestinal no sentido da obstipação ou paragem de emissão de fezes ou gases, tendo sido feito diagnóstico presuntivo, consubstanciado no pedido de RX simples do abdómen de pé ou tangencial.
9. A situação de FF era urgente, mas não emergente, pois o diagnóstico era de obstrução e não de oclusão, e as medidas que lhe foram prescritas eram as adequadas, e perante os resultados dos exames não era previsível o agravamento do seu estado clínico.
10. Logo após a consulta médica, FF foi conduzido por maca, de imediato, aos cuidados de enfermagem, onde fez a colheita de sangue e urina e cumprida a terapêutica prescrita, ficando, posteriormente, à espera da sua chamada para a radiologia e ecg, e, na ficha que o acompanhara para a sala de tratamentos estava escrita a palavra "maca".
11. Os exames complementares de diagnóstico solicitados pelo réu CC eram os adequados à necessidade de esclarecimento, não só do quadro abdominal, como de possíveis complicações das patologias coexistentes.
12. Foram procedimentos adequados à situação clínica, pois o doente negou: febre e alteração do trânsito intestinal; referiu lipotimia sem perda de conhecimento, retenção urinária de três dias e vómitos alimentares há mais ou menos cinco dias; e revelou diabetes mellitus, bronquite asmática, fibrilhação auricular e carcinoma prostático; e à palpação abdómen globoso, timpanismo, depressível e indolor, não tendo sido registada a ocorrência de vómitos no momento, bem como, posteriormente.
13. Para esclarecimento da obstrução intestinal era necessário o exame radiológico simples de pé ou tangencial, que foi requisitado, tendo o réu CC suspeitado de oclusão intestinal, razão pela qual requisitou o exame radiológico simples de pé ou tangencial.
14. FF esteve cinco horas e meia a aguardar a realização dos exames prescritos pelo réu CC, sendo que os primeiros exames e análises clínicas foram colhidos às 02h45, deram entrada no laboratório às 02h57, e os resultados impressos às 04h08 do dia 8 de Março de 1999, e o ecg foi feito às 03h30.
15. Às 04h00 houve mudança de turno dentro da equipa médica de urgência, tendo o réu DD recebido do réu CC o doente FF, que foi chamado, pelas 04h00, através do altifalante dos serviços.
16. Os exames radiográficos foram realizados cerca das 06h00, e entregues ao réu, DD às 07h30, e o RX mostrava níveis de líquido, indiciando uma oclusão intestinal.
17. Tal quadro clínico aconselhava o encaminhamento do FF para a cirurgia, entubação naso-gástrica e consequente internamento, e, às 08h00, o réu DD comunicou-lhe o resultado dos exames efectuados e a decisão de internamento, para ser encaminhado para entubação naso-gástrica e para os especialistas de cirurgia.
18. Mesmo no caso de FF padecer de suspeita de oclusão intestinal, não entraria de imediato para cirurgia e para o bloco operatório, pois haveria que hidratá-lo parentericamente devido à desidratação com que se apresentou.
19. FF foi encaminhado para a cirurgia, a entubação naso-gástrica e internamento, o médico radiologista não tem de estar presente na realização de um exame radiológico, só intervindo quando para tal solicitado pelo médico que tem o doente a seu cargo, e unicamente para prestar a sua colaboração na interpretação das imagens radiológicas.
20. Para esclarecer o desfecho do quadro clínico de FF foi requisitada autópsia, que não foi efectuada, por solicitação da família.
21. FF auferia uma pensão de reforma de € 516,75, o autor tomava as suas refeições e habitava a mesma casa com ele, não se encontrava a trabalhar, sendo o pai quem provia a todas as suas despesas com a alimentação, vestuário, calçado e habitação e demais pequenas despesas, as quais ascendiam a € 139,89.
22. O autor, que tem uma deficiência física ao nível da face, sendo intensa a sua relação com FF, pela entreajuda e afectividade que este sempre lhe dedicou, e teve um forte abalo psicológico com a morte súbita e inesperada do seu pai, recorrendo a medicação para reduzir o estado de ansiedade e enervamento em que passou a andar constantemente.
23. O sentimento de perda de seu pai tem provocado um profundo desgosto e angústia no autor, estado este do qual ainda não se recompôs.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrente tem ou direito a ser indemnizado ou compensado no confronto dos recorridos.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente e pelos recorridos, a resposta à referida questão essencial pressupõe a análise da seguinte problemática:
- regime processual dos recursos aplicável;
- infringiu ou não o acórdão recorrido alguma norma de direito probatório substantivo?
- deve ou não alterar-se a decisão da matéria de facto proferida pela Relação?
- os contornos da situação de responsabilidade civil em causa;
- revelam ou não os factos provados os pressupostos da referida situação?
- devem ou não os recorridos ser condenados a indemnizar ou compensar o recorrente ?

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões

1.
Comecemos por uma breve referência ao regime processual aplicável ao recurso.
Considerando que a acção em causa foi instaurada no dia 7 de Outubro de 2003, ao recurso ainda não é aplicável o novo regime decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
É-lhe, por isso, aplicável o regime dos recursos anterior ao decorrente do mencionado diploma (artigos 11º, nº 1, e 12º, nº 1).

2.
Continuemos, ora, com a análise da problemática de saber se o acórdão recorrido infringiu alguma norma de direito probatório substantivo.
O recorrente entende que devia ser considerada a causa da morte de FF que o médico que subscreveu o certificado de óbito nele mencionou, sob o argumento de se tratar de prova plena decorrente de documento autêntico.
Este Tribunal deve conhecer desta questão de impugnação da decisão da matéria de facto, porque vem alegada a violação de uma norma que fixa a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O óbito das pessoas é, naturalmente, um facto sujeito a registo civil, que deve ser comunicado verbalmente por determinadas pessoas no prazo de quarenta e oito horas, declaração acompanhada do certificado de óbito emitido pelo médico que o houver verificado, em que indique a causa da morte (artigos 1º, alínea f), 232º, 233º e 236º do Código do Registo Civil).
A prova que resulta dos factos inscritos ou averbados no registo civil não pode ser afectada por outro tipo de prova, salvo em acções de estado ou de registo; mas a causa da morte não tem de ser mencionada no respectivo assento (artigos 4º, 67º e 240º do Código do Registo Civil).
No caso vertente, não está em causa a prova de algum facto constante do registo civil, mas de um documento, o certificado médico de óbito, instrumental à elaboração de um assento do registo de óbito.
Estamos, pois, perante uma questão de prova por documento escrito, ou seja, de objecto elaborado com vista a reproduzir ou representar um facto (artigo 362º do Código Civil).
Na dualidade de espécies de documentos, autênticos ou particulares, os primeiros elaborados pelas autoridades públicas competentes nos limites da sua competência ou pelos notários no círculo de actividade que lhe é conferido ou outro oficial público provido de fé pública, e os últimos caracterizados por exclusão de partes (artigo 363º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
A qualificação do documento como autêntico depende, porém, de a autoridade ou o oficial público que o exara não estar impedido de o exarar e ser competente em razão da matéria e do lugar para o efeito (artigo 369º, nº 1, do Código Civil).
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivos, bem como dos que neles são atestados com base na percepção do documentador, sendo que o mero juízo pessoal dele apenas vale como elemento sujeito à livre apreciação do tribunal (artigo 371º, nº 1, do Código Civil).
A força probatória dos documentos autênticos – plena qualificada - só pode ser ilidida com base na sua falsidade, ou seja, por virtude de neles se referirem, como tendo sido objecto da percepção do notário ou oficial público algum facto que não ocorreu, ou praticado por eles acto que não o foi (artigo 372º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Passemos, ora, a considerar o que resulta da lei quanto ao âmbito da prova decorrente de documentos particulares.
A letra e a assinatura, ou só esta, dos documentos particulares são consideradas verdadeiras se reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem são apresentados (artigo 374º, nº 1, do Código Civil).
Os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos referidos fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, salvo no caso de serem considerados falsos (artigo 376º, nº 1, do Código Civil).
Os factos compreendidos na declaração constante do documento particular apenas se consideram provados, em termos de prova plena, na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante (artigo 376º, nº 2, do Código Civil).
Todavia, a referida prova plena apenas ocorre tratando-se de declaração produzida por uma das partes no confronto da outra, ou seja, não abrange os documentos continentes de declarações produzidas por terceiros.
Tratando-se de documentos particulares continentes de declarações produzidas por terceiros, a prova respectiva fica sujeita à livre apreciação do tribunal.
Aproximemos as referidas considerações de ordem jurídica, extraídas da lei, aos factos sob a apreciação.
Relembremos que o recorrente alegou que a Relação, ao não considerar o certificado de óbito de FF como documento autêntico, violou o disposto nos artigos 371º e 372º do Código Civil.
No caso de o certificado de óbito em causa dever ser qualificado como documento autêntico, porque a menção nele da causa da morte de FF resultou do juízo pessoal da pessoa que o subscreveu, era insusceptível de implicar a prova plena desse facto causal do decesso.
Acresce que, na realidade, o referido certificado de óbito, elaborado por um médico, não pode ser qualificado de documento autêntico, porque não subscrito por qualquer das entidades a que se reporta o artigo 363º, nº 1, do Código Civil).
Do que se trata, com efeito, é de um documento particular elaborado por um terceiro, isto é, por nenhuma das partes, pelo que, como tal, é insusceptível de relevar como derivante de prova plena dos factos indicados como tendo sido a causa da morte de FF.
A conclusão é, por isso, no sentido de que a Relação, ao não atribuir ao mencionado documento a eficácia de produção de prova plena dos factos que estiveram na origem da causa da morte de FF, não infringiu qualquer das normas indicadas pelo recorrente, os artigos 371º ou 372º do Código Civil ou quaisquer outras de direito probatório material.

3.
Analisemos agora a questão de saber se deve ou não alterar-se a restante decisão da matéria de facto proferida pela Relação.
Trata-se da matéria de facto integrada nos quesitos terceiro a quinto, décimo-primeiro, décimo-quinto, quinquagésimo-primeiro, quinquagésimo-quinto, sexagésimo-quinto e sexagésimo-sexto.
A regra é a de que cabe às instâncias apurar a factualidade relevante para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Com efeito, não tem este Tribunal, em regra, competência funcional para alterar, designadamente ampliar a matéria de facto, certo que, em regra, só conhece de matéria de direito (artigos 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 729º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
A referida excepção apenas ocorre se a Relação, na fixação dos factos disponíveis, infringir alguma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência de algum facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil).
No caso vertente, estamos perante factos, integrados na base instrutória, cuja resposta positiva ou negativa, resultou de prova testemunhal e documental, alguma envolvente de parecer de entidades, toda ela de livre apreciação pelo tribunal (artigos 396º, 399º do Código Civil e 655º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Não estamos, por isso, nesta parte, na situação excepcional de apreciação da decisão sobre a matéria de facto proferida pela Relação, a que se reportam os artigos 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Em consequência, por falta de competência funcional para o efeito, não pode este Tribunal sindicar a decisão da mateira de facto proferida pela Relação no que concerne aos factos objecto dos quesitos acima mencionados.

4.
Façamos agora uma breve referência aos contornos da situação de responsabilidade civil em causa.
Trata-se do decesso de FF num Hospital, depois de ter sido examinado por um médico e de lhe terem sido realizados os exames clínicos por ele prescritos, a que recorrera em estado de saúde gravemente afectado, com vista ao seu diagnóstico e recuperação.
O referido Hospital era gerido por uma entidade privada, com base em contrato de gestão celebrado com o Estado, em termos de se considerar integrado no Serviço Nacional de Saúde, com as mesmas obrigações de prestação de cuidados de saúde aos cidadãos dos outros estabelecimentos de saúde que daquele Serviço faziam parte (artigo 28º, nº 1, do Decreto-Lei nº 11/93, de 15 de Janeiro).
A causa de pedir que o recorrente articulou na acção envolve o decesso de FF imputado, a título de omissão da diligência em função dos sintomas daquele, dos conhecimentos técnicos e científicos e das boas práticas da profissão, aos recorridos CC, DD e EE.
Trata-se, assim, de uma situação de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, enquadrável nos artigos 73º, nº 1, 483º, nº 1, 496º, nº 1, 562º, 563º, todos do Código Civil.
Com efeito, o serviço médico, pela sua natureza de meio da prevenção da doença ou da recuperação da saúde dos pacientes, deve pautar-se, como é natural, por uma acção de extrema atenção e cautela, na envolvência boas práticas da profissão e dos conhecimentos científicos então existentes.
A inobservância de quaisquer deveres objectivos de cuidado é susceptível de implicar a ilicitude dos actos médicos envolventes e a censura ético-jurídica dos seus agentes, ou seja, a ilicitude e a culpa conexas com o dano decorrente para os pacientes.
A utilização da técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais traduz a chamada imperícia do médico, susceptível de fundar a sua obrigação de indemnização do dano causado ao paciente.

5.
Atentemos agora na questão de saber se os factos provados revelam ou não os pressupostos da referida situação de responsabilidade civil.
As instâncias, com base nos factos provados, consideraram a inverificação dos mencionados pressupostos, salientando que impendia sobre o recorrente, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil, o ónus de prova dos factos integrantes daqueles pressupostos.
Vejamos a noção do primeiro dos referidos pressupostos, ou seja, a ilicitude da acção ou da omissão,
Numa acepção muito ampla, a ilicitude consiste na violação da ordem jurídica ou de um dever jurídico, e diz-se formal se o facto infringe normas jurídicas, e material se ofende interesses legalmente protegidos, pressupondo que o facto seja voluntário, isto é, dominável pela vontade do respectivo agente.
Os actos clínicos e de diagnóstico empreendidos pelos referidos médicos envolvem, como é natural, a prática de actos voluntários controláveis pela sua vontade.
O recorrente alegou que deveria ter sido feito a FF um exame mais completo, através de toque rectal e o equacionar do diagnóstico presuntivo de oclusão intestinal e requisição urgente dos meios complementares de diagnóstico.
No caso, porém, era complexo o estado de doença de FF, porque eram várias as suas patologias e não clara a sua sintomatologia, quadro em que o médico que primeiramente o assistiu optou requisitar a realização de exames clínicos.
Perante este quadro de facto, tal como foi considerado nas instâncias, não é possível imputar ao referido médico e ou ao outro que assistiu depois dele FF o erro de diagnóstico invocado pelo recorrente, que não logrou provar.
A conclusão, face aos factos provados, é no sentido de que a actuação médica não pode ser considerada ilícita, primeiro dos pressupostos da responsabilidade civil por acto médico a que se fez referência.
Prejudicada fica, por isso, a análise dos restantes pressupostos daquele instituto, ou seja, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre este e aquele (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2, e 726º do Código de Processo Civil).
6.
Vejamos agora se os recorridos devem ou não ser condenados a indemnizar ou compensar o recorrente.
Tendo em conta o que se escreveu no ponto anterior, a conclusão é no sentido negativo, essencialmente porque o recorrente não logrou provar a ilicitude da acção médica de quem assistiu no hospital o paciente FF.

7.
Finalmente, a síntese da solução para o caso-espécie decorrente dos factos provados e da lei aplicável.
Ao recurso é aplicável o regime processual anterior ao que decorre do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
Ao não considerar a prova plena da causa da causa da morte de FF constante do respectivo certificado de óbito, a Relação não infringiu qualquer norma de direito probatório material.
Este Tribunal não pode conhecer da restante impugnação da decisão da matéria de facto proferida pela Relação, visto que ela assentou em prova de livre apreciação pelo tribunal.
A causa de pedir da acção envolve uma situação de responsabilidade civil extracontratual relativa ao decesso de um paciente num hospital por incumprimento médico das boas regras da prática da medicina.
Os factos provados não revelam a ilicitude da acção dos médicos em causa, pelo que prejudicada fica a análise dos restantes pressupostos da responsabilidade civil.
Inexiste, por isso, fundamento de facto e de direito para a revogação do acórdão da Relação que assim concluíra.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencido, seria o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de custas, tendo em conta o disposto nos artigos 15º, alínea a), 37º, nº 1 e 54º, nºs 1 a 3, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que seja condenado no pagamento das referidas custas.
A advogada M... J... C..., porque ao recorrente foi o concedido o apoio judiciário na modalidade patrocínio judiciário, tem direito a perceber honorários, pagos pelo erário público, relativos ao instrumento do recurso de revista que subscreveu (artigos 3º, nº 1, 15º, alínea c) e 48º, nº 1, da Lei nº 30-E/, 2000, de 20 de Dezembro).
Ela tem, pois, direito a perceber do Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, IP os honorários a que se reporta o ponto 2.4.1. da Tabela aprovada pela Portaria nº 150/2002, de 19 de Fevereiro, que regulamentou a Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro (artigo 12º, nº 1, do Código Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e fixam-se os honorários devidos pelo do Instituto de Gestão Financeira e das Infra-Estruturas da Justiça, IP à advogada M... J... C... no montante de cento e noventa e dois euros.

Lisboa, 2 de Outubro de 2008.

Salvador da Costa (Relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luís