Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A4033
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Nº do Documento: SJ200302040040331
Data do Acordão: 02/04/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 434/02
Data: 05/21/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - A e mulher B intentaram acção com processo ordinário contra C, pedindo que seja declarado nulo o contrato de compra e venda celebrado com o réu, com as legais consequências.

Alegaram que por escritura pública declararam vender e o réu comprar um terço indiviso de um prédio, sendo certo que tal negócio é simulado.

O réu, citado editalmente, não contestou.

Falecido o autor, foram habilitados os herdeiros.

Teve lugar audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela procedência da acção.

Apelou o réu.

O Tribunal da relação confirmou o decidido.

Não se conformando, recorre o réu para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- A acção em causa nos presentes autos está sujeita a registo predial (artigo 3º nº 1, alínea a)) que não foi promovido pelos autores/recorridos;
- Em face da referida omissão, a instância deveria ter sido suspensa no fim da fase dos articulados;
- Nada obsta que a instância seja agora declarada suspensa, ordenando-se o registo da acção pelo recorridos, mantendo-se a suspensão da instância enquanto não se demonstrar nos autos a efectivação da inscrição no registo predial;
- Os autores peticionaram a declaração de nulidade por simulação absoluta do negócio titulado pela escritura de 31.05.1990 constante de fls. 7 a 9 dos autos; dado não terem ocorrido quaisquer modificações ao pedido e à causa de pedir, a instância manteve-se estável nos termos constantes da petição anteriormente referidos;
- A noção de simulação absoluta é definida no artigo 240º nº 1 do C. Civil, impondo este a verificação cumulativa dos três requisitos ali mencionados: acordo simulatório ou "pactum simulations", divergência intencional entre a vontade real e a declarada e o intuito de enganar terceiros ou "animus dicipiendi";
- O ónus da prova do "pactum simulations" (neste se incluindo a divergência intencional de vontade declarada e querida) incumbe aos autores/recorridos;
- Dadas as limitações em matéria de prova da simulação quando invocada pelos simuladores resultantes da lei (artigos 394º nº 2 e 351º do C. Civil), a prova dos factos consubstanciadores da simulação limita-se, na prática, à prova documental e à confissão, sendo insusceptível a prova testemunhal e por presunções;
- Não obstante, o acórdão da Relação em sindicância expressamente sustenta a sentença da 1ª instância com base na prova por presunção judicial, quando refere "o que levou os Srs. Juízes a presumir que o intuito dos autores e do réu foi apenas o de com um só prédio conseguir mais facilmente a aprovação do loteamento";
- A prova produzida nos presentes autos limitou-se às duas testemunhas inquiridas e aos documentos juntos quer com a petição, quer posteriormente;
- Na interpretação dos documentos constantes dos autos manda a lei que se faça uma interpretação objectivista da declaração negocial, temperada por uma salutar restrição de inspiração subjectivista, exigindo-se que ela encontre no documento uma expressão reconhecível ou, então, que resulte provada a vontade real das partes;
- No contexto legal interpretativo anteriormente referido, relativamente aos documentos juntos aos autos (fls. 7 a 9: a escritura pública de 31.05.1990; fls. 10 e 11: acordo de 04.04.1989; fls. 12 a 19: contrato promessa de compra e venda de 31.05.1990) - ao contrário do decidido pelas instâncias intermédias - tais documentos revelam a existência do negócio de compra e venda constante da escritura pública de 31.05.1990, não constituindo documentos em sinal contrário, "contre lettres", infirmadores da vontade negocial expressa pelas partes em tal escritura de fls. 7 a 9 cuja nulidade por simulação, foi pedida e declarada;
- Relativamente ao documento de fls. 53 a 56 (contrato promessa de permuta e venda de 28.03.1991), o mesmo também não pode ser entendido como "contre lettre" da declaração negocial que consta da escritura de compra e venda de 31.05.1990 cuja nulidade foi declarada, porquanto ele se reporta a uma relação negocial estranha à matéria em discussão nos autos e não tem como parte o réu recorrente, que não subscreveu tal documento;
- Acresce, ainda, em relação a tal documento, que, como resulta da resposta aos quesitos e da sua fundamentação (fls. 70 dos autos) o julgador da 1ª instância, para além de ter confundido indevidamente o réu/recorrente com a sociedade "D", sustentou a verificação de simulação do negócio representado pela escritura de compra e venda de fls. 7 a 9 dos autos no depoimento de duas testemunhas inquiridas, facto que lhe estava vedado pelas razões já aduzidas;
- Acresce que o julgador da 1ª instância deu como provada da matéria assente a existência de uma compra pela sociedade "E" titulada por uma escritura pública outorgada em 28.03.1991, facto só susceptível de ser provado pela certidão de tal escritura;
- Resulta que se deva ter por não escrita a matéria de facto proveniente dos artigos 31º, 32º e 33º da petição levada ao ponto 6 da matéria assente;
- As instâncias anteriores não poderiam ter como provado o facto 2 da matéria assente no que concerne à falta de pagamento e de recepção do preço de 35 000 contos da compra e venda entre as partes constante da escritura de fls. 7 a 9 dos autos;
- É que para além do mais já alegado quanto à convergência entre a vontade expressa e a querida, aquela escritura constitui um documento autêntico que, como tal, faz prova plena quanto aos factos atestados pelo notário, não tendo sido alegada nem provada pelos recorridos a falsidade de tal escritura ;
- Também ao contrário do decidido até ao momento não resulta dos autos a verificação do terceiro requisito do instituto da simulação, ou seja, o intuito de enganar terceiros;
- De facto, no que respeita ao alegado engano à banca, os autores/recorridos não alegam factos integradores do ludíbrio, limitando-se a alegar matéria meramente conclusiva, o que impede o julgador de utilizar tal alegação para fundamentar a sua decisão;
- Relativamente ao alegado ludíbrio à Câmara Municipal os documentos juntos aos autos revelam exactamente o contrário do alegado pelos autores/recorridos, ou seja, demonstram que não existiu qualquer vantagem ou facilidade ou simplificação administrativa ou burocrática resultante da concentração da totalidade do prédio no réu/recorrente consequente negócio de compra e venda de 31.05.2002, constante da escritura pública de fls. 7 a 9 dos autos;
- Tendo em conta que são os próprios autores/recorridos a alegar em 15º da petição a existência de um negócio dissimulado por detrás do aparente, tanto bastaria para declarar improcedente o pedido de nulidade por simulação absoluta do negócio titulado pela escritura pública de 31.05.1990, a fls. 7 a 9 dos autos;
- É entendimento pacífico o de que o Supremo Tribunal de Justiça pode sindicar o uso feito pelo Tribunal da Relação dos poderes conferidos pelo artigo 712º do CP Civil, nem por isso deixando de funcionar como Tribunal de revista, uma vez que a sua actividade se situa ainda no estrito domínio da observância da lei, limitando-se ao reconhecimento da existência de obstáculo legal ao apuramento dos factos;
- Foram violados os comandos legais insertos nas disposições que foram sendo invocadas.

Contra-alegando os recorridos defendem a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.




II - Vem dado como provado:

Por escritura pública de 31.05.1990, celebrada no 2º Cartório da Secretaria Notarial de Barcelos, os autores declararam vender ao réu, e este declarou comprar, 1/3 indiviso do prédio constituído por um barracão e terreno de mato, sito no lugar de Barreiras, freguesia de Tamel S. Veríssimo, Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 243 e inscrito na respectiva matriz sob os artigos 308º urbano e 51º rústico, pelo preço de 35.000.000$00, que os autores declararam ter recebido do réu;

Em momento algum, os autores quiseram vender aquele prédio, nem o réu quis comprar, ou os autores receberam deste a quantia de 35.000.000$00;

Os autores e o réu haviam já requerido à Câmara Municipal de Barcelos o loteamento das porções de terreno correspondentes às suas quotas no referido prédio, visando assim destiná-lo à construção urbana;

Dada a reduzida dimensão das porções de terreno de que eram proprietários, com a consequente diminuição do seu aproveitamento urbanístico, os autores e o réu combinaram que aqueles transferissem para este o terço indiviso que lhes pertencia, para que o réu se apresentasse como dono da totalidade do prédio, o que, além de permitir melhor aproveitamento na urbanização do terreno, acarretaria, como acarretou, facilidades administrativas e de simplificação burocrática, e permitiria ao réu obter mais facilmente financiamentos particulares, designadamente da Banca;

Este acordo foi reduzido a escrito em 4 de Abril de 1989, e confirmado por documento assinado pelos autores e pelo réu, através de um contrato-promessa que os mesmos outorgaram no próprio dia em que celebraram a escritura pública de compra e venda;

Por escritura de compra e venda de 28 de Março de 1991, o prédio foi transmitido à empresa E, que aceitou, em documento por ela subscrito, cumprir relativamente aos autores o acordo que estes tinham feito com o réu, e que aquela bem conhecia.

III - Os autores, invocando ser simulado o negócio jurídico de compra e venda celebrado com os réus, pediram que fosse declarada a nulidade do mesmo.

As instâncias deram como assente a existência da simulação e consideraram nulo o negócio.

Recorre o réu.

Em síntese suscita duas questões:

A instância deve ser declarada suspensa, ordenando-se o registo da acção, já que não foi oportunamente realizado;

Não foi feita prova, pela forma legalmente admissível, da existência da simulação.

É esta a problemática a resolver.

Deve começar por salientar-se que a pretendida suspensão da instância é uma questão nova só agora colocada, e os recursos, como é sabido, destinam-se, em princípio, a apreciar questões equacionadas e resolvidas pelo Tribunal recorrido, sob pena de supressão de uma instância (artigos 676º nº 1 e 684º nº 3 do C. Processo Civil).

Poderá admitir-se, contudo, que se trata de uma situação em que, eventualmente, está em causa matéria de conhecimento oficioso, pelo que se apreciará a mesma.

As acções sujeitas a registo não terão seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição, salvo se o registo depender da respectiva procedência. A acção em causa está sujeita a registo por se pretender o reconhecimento do direito de propriedade (artigos 3º nº 1, alínea a) e nº 2 e artigo 2º nº 1, alínea a) do C. Registo Predial).

O fim visado pela imposição do registo das acções é, na essência, aquele que é assinalado no artigo 1º do referido diploma, ou seja, dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário e, implicitamente, a protecção de terceiros, isto, não obstante, o registo predial ter entre nós, fundamentalmente, uma eficácia meramente declarativa.

Sendo a acção sujeita a registo e não tendo este tido lugar, está-se face a uma irregularidade, uma vez que se omitiu um acto que a lei prescreve.

A omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (artigo 201º nº 1 do CP Civil).

Tal não acontece no caso em apreço.

Não só a lei não impõe qualquer sanção para a não observância, como a referida irregularidade não influi na causa, destinando-se a exigência, como está dito, a conceder uma certa segurança no comércio jurídico e a proteger terceiros - Ac. RL de 02.03.89, CJ 2.

Aliás, a existir qualquer nulidade, desde há muito que estaria sanada (artigo 205º do C. Processo Civil). Não só nenhuma das partes a arguiu tempestivamente, como a questão não foi por qualquer forma suscitada a não ser em via de recurso para este Tribunal.

Não há assim qualquer justificação para anular o processado ou para proceder a uma intempestiva suspensão.

Vejamos então a problemática de fundo.

Foi pedida a nulidade do negócio jurídico com base na simulação.

Por escritura pública, os autores declararam vender ao réu e este declarou comprar 1/3 indiviso de um prédio.

Na tese dos autores, que as instâncias consideraram provada, nem os autores quiseram vender, nem o réu quis comprar, nem foi entregue ou recebida qualquer importância a título de pagamento. Tudo se passou para os intervenientes conseguirem facilidades administrativas, na urbanização do terreno e na obtenção de financiamentos, designadamente da Banca.

A simulação é uma das modalidades de divergência intencional entre a vontade real e a declarada; consistindo num conluio entre o declarante e o declaratário, com o fim de celebrarem um negócio que não corresponde à sua vontade real e no intuito de enganarem terceiros (artigo 240º do C. Civil).

Tal como a factualidade apurada chega a este Tribunal, dúvidas não se oferecem de que ocorrem os elementos necessários para que se possa falar de simulação.

Estão efectivamente provados os elementos integradores do conceito, ou seja:

Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração;

Acordo ou conluio entre as partes;

Intenção de enganar terceiros.

A consequência é, no caso da simulação absoluta, a nulidade do negócio simulado (artigo 240º nº 2 do CC). Solução que se compreende, uma vez que não há que respeitar quaisquer expectativas do declaratório, pois este teve intervenção no "pactum simulationis".

O recorrente centraliza, porém, o cerne da questão numa outra perspectiva. Na sua tese, as instâncias não poderiam ter considerado provada a matéria constante de parte dos quesitos, atenta a limitação que a lei coloca por serem os próprios simuladores a arguir a simulação.

A legitimidade dos simuladores para arguirem a simulação está hoje expressamente consagrada no artigo 242º nº 1 do C. Civil, pondo-se assim fim à discussão doutrinal e jurisprudencial anteriormente existentes e que originaram mesmo a feitura do Assento de 10.05.1950, que admitiu os simuladores a invocar a própria simulação, mesmo que fraudulenta.

A prova da simulação pelos simuladores está, contudo, sujeita a duas limitações.

O artigo 394º nº 1 do C. Civil determina que é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.

Por outro lado, o artigo 351º do mesmo Código estipula que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e nos termos em que é admitida a prova testemunhal.

No rigor literal dos artigos, quando os simuladores pretendam invocar a simulação, só lhes estaria facultada a prova por confissão e a prova documental.

Este entendimento literal é, contudo, posto em causa pela doutrina e pela jurisprudência.

Tem-se entendido que é permitido o recurso à prova testemunhal em complemento da prova documental.

A razão de ser da proibição do artigo 394º é a necessidade de afastar os riscos próprios da falibilidade da prova testemunhal, contra o valor que o documento deve ter.

Se o recurso às testemunhas for um complemento da prova documental, tal risco desaparece em grande medida.

Note-se, aliás, que a não ser assim perderia o interesse a possibilidade que a lei concede aos próprios simuladores de arguirem a simulação, já que um deles ficaria, na prática, dependente do outro.

Saliente-se ainda que a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo dos documentos, não impede o recurso àquele meio de prova para demonstrar a falta ou os vícios da vontade com base nos quais se impugna a declaração documentada, nos termos do nº 3 do artigo 393º do C. Civil.

A prova testemunhal pode ser admitida para determinar o sentido das declarações contidas em documentos relativos ao negócio e pode ainda ter uma função complementar quando exista um "começo de prova" documental da simulação. Admitindo-se nestes termos a prova testemunhal, será igualmente admitido o recurso às presunções judiciais.

Sendo a base da prova documental, os restantes elementos probatórios permitirão ao Juiz cimentar uma convicção da existência da simulação - Prof. Vaz Serra - RLJ 107, pág. 311 e segs; Prof. Mota Pinto e Pinto Monteiro em CJ Ano X, Tomo 3, pág. 11 e segs; Prof. Carvalho Fernandes - "Teoria Geral do Direito Civil", 2ª ed., II, pág. 237/238.

Em concreto, os documentos juntos foram correctamente completados pela prova produzida, não existindo qualquer motivo para censura.

Recorde-se, aliás, que ao Supremo, como Tribunal de revista, só cumpre, em princípio, decidir questões de direito e não julgar matéria de facto. No recurso é admissível apreciar a violação da lei adjectiva, mas só no caso de erro na apreciação de provas ou na fixação dos factos materiais da causa (artigos 729º e 722º do C. Processo Civil).

Não tendo as instâncias atribuído aos meios de prova valor que eles não comportam, como já está dito, nem tendo deixado de conceder a esses meios o seu valor legal, a factualidade apurada está a coberto da censura deste Supremo.

Dos factos considerados provados só se poderia tirar a conclusão a que se chegou no acórdão recorrido, ou seja a nulidade do negócio.

Pelo exposto, nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003.

Pinto Monteiro

Lemos Triunfante

Barros Caldeira (prescindi de visto)