Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A2603
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO POSITIVA
INTERESSE EM AGIR
OBJECTO
FACTO JURÍDICO
Nº do Documento: SJ200811250026036
Data do Acordão: 11/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I – O autor que intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, a sua necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.

II – Tendo as acções de simples apreciação por único objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria e objectiva, de que lhe possa resultar um dano.

III – O facto cuja existência se pretende ver declarado não pode ser um facto qualquer, mas apenas um facto jurídico, ou seja, um facto de que promanem efeitos jurídicos.

IV – Não há qualquer facto juridicamente relevante, cuja declaração de existência possa ser declarada pelo tribunal em acção de simples apreciação positiva, quando se pretende a declaração da celebração de um contrato de renda vitalícia, que é nulo, por falta de forma, em virtude da nulidade impedir que o respectivo negócio produza efeitos jurídicos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 1-2-07, AA, advogado, instaurou a presente acção ordinária contra os réus BB e marido CC, pedindo que seja declarado que o autor comprou o andar onde vivem os réus, mediante a celebração de dois contratos: o de compra e venda do andar pelo preço que se fixou na respectiva escritura e o estabelecimento de uma renda vitalícia de cinquenta contos por mês, simultânea e sucessiva, estabelecida pelo comprador a favor do vendedor e sua mulher, devendo os réus serem condenados a reconhecerem essa realidade.
Em síntese, alegou que adquiriu, por escritura de 15-7-92, o andar onde residem os réus, que é a fracção D, correspondente ao ......., do prédio urbano sito na Avenida .......... nº ....., em Lisboa.


Pagou no acto da compra o preço de 7.500.000$00 e, cumulativamente, assumiu a obrigação de pagar ao vendedor DD, pai da ré mulher, e à mulher daquele, uma renda vitalícia de 50.000$00 por mês, compromisso esse assumido por carta assinada em 10-7-92, referida em todos os recibos que os beneficiários passaram.


O DD faleceu e o autor acaba de chegar a acordo com a madrasta da ré mulher, EE, no sentido da remissão da pensão que a esta também cabia, mediante o pagamento de 6.000 euros.


No total, o autor pagou ao pai e madrasta da ré BB a quantia de 86.744 euros, o que equivale a dizer que a compra do andar onde viviam e vivem os réus ficou por aquele valor.


O autor informou os réus deste duplo contrato, mas estes fingem ignorá-lo, motivo pelo qual pretende que seja declarado que a compra e venda e o estabelecimento da renda vitalícia, em cumulação, foram condição da transmissão da propriedade onde viviam e vivem os réus.
Os réus contestaram, alegando que, para existir uma renda vitalícia, seria necessária a celebração de uma escritura pública, pelo que a alegada renda vitalícia é nula, por carecer da forma legalmente prevista.
Mais requereram a condenação do autor como litigante de má fé, em multa e indemnização, no valor de 2,500 euros, bem como no pagamento dos honorários do mandatário dos réus, em montante nunca inferior a 5.500 euros.
Houve réplica.



No despacho saneador, o Ex.mo Juiz julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.


Além disso, foi julgado improcedente o pedido de condenação do autor como litigante de má fé.



Apelou o autor, mas a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 14-2-08, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.

Continuando inconformado, o autor pede revista, onde conclui:


1- O presente recurso é interposto ao abrigo do art. 2º do C.P.C., em ordem a obter uma decisão judicial que declare a existência ou inexistência de um facto.


2 - Tal facto consiste na existência ou não de um acordo escrito de renda vitalícia, prévio à celebração de compra e venda de um imóvel, sito em Lisboa.
3 – Por carta de 10-7-92, o recorrente e sua mulher escreveram ao proprietário do imóvel, propondo-lhe uma renda vitalícia ( a ele e a sua mulher ) se lhe vendesse a fracção D, correspondente ao segundo andar esquerdo do prédio sito na Avenida ..........,....., por 7.500$00.
4 – Esta proposta constituiu condição prévia da assinatura da escritura de compra e venda.


5 - A escritura de compra e venda foi assinada cinco dias depois, em 15 de Julho de 1992, tendo sido registada a transmissão a favor do comprador, em 5 de Agosto seguinte.


6 – O beneficiário marido da renda vitalícia faleceu 26-9-06, antes da distribuição desta acção, em 1-2-07, e a sua viúva rescindiu o dever de pagamento da renda, esclarecendo que o recorrente pagou de pensões 86.744 euros.


7 – O Tribunal da Relação de Lisboa nem sequer ponderou, ao contrário do decidido no Acórdão do S.T.J. de 10-5-83 (Bol. 327- 636), que era competente para se pronunciar sobre se o dever assumido pelo recorrente se devia qualificar como obrigação natural ou civil, o que no entender do recorrente constitui omissão de pronúncia, nos termos do art. 668, nº1, al. d), do C.P.C.


8 – O compromisso que existiu é um facto, cuja verificação da existência o recorrente pediu em acção declarativa de simples apreciação, nos termos do art. 4, nº2, al. a) do C.P.C.


9 – Não está em causa a validade, obrigatoriedade ou nulidade dos meios e a forma por que tal dever se formalizou, mas apenas o facto da sua existência, que os autos revelam ter existido e já ter acabado por outro escrito particular.


Não houve contra-alegações.


Corridos os vistos, cumpre decidir.



A Relação considerou provados os factos seguintes:



1- No dia 15 de Julho de 1992, no 10º Cartório Notarial de Lisboa, DD celebrou com o autor, AA, a escritura de compra e venda certificada a fls 69 e segs, nos termos da qual aquele declarou vender e este declarou comprar, pelo preço já recebido de 7.500.000$00, a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao segundo andar esquerdo, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado na Avenida .......... nºs ..... e .....-A, freguesia de S. Jorge de Arroios, concelho de Lisboa, inscrito na matriz da freguesia de S. João .......... nº ....., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº ........... do Livro ..-...

2 – Em 5-8-92, pela Apresentação 09/050892, AA, registou a referida aquisição a seu favor, por compra, na competente Conservatória do Registo Predial.



3 – DD faleceu no dia 26 de Setembro de 2006, com 95 anos de idade, no estado de casado com EE.



4 – Correu termos na 3ª Secção da 6ª Vara Cível de Lisboa, sob o nº ......./1992, uma acção declarativa em que era autor AA e réus BB e CC, na qual peticionava o reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a fracção autónoma identificada no anterior nº1, a condenação dos réus a restituírem-lhe o dito andar e bem assim a pagarem-lhe uma indemnização no valor de 200.000$00 mensais, até efectiva entrega do imóvel.

5 – Essa acção foi julgada improcedente, tendo os réus sido absolvidos de todos os pedidos, por sentença de 10-3-2000



6 – Em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa, embora reconhecendo o direito de propriedade do autor, confirmou no mais a sentença e, em recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou aquele Acórdão, negando a revista.



7 – Os réus residem na fracção autónoma identificada no anterior nº1.


Vejamos agora o mérito do recurso:



Na petição inicial, o autor pede se declare que comprou o andar onde vivem os réus mediante dois contratos: o de compra e venda do dito andar pelo preço de 7.500.000$00, fixado na respectiva escritura de 15-7-92, e o estabelecimento de uma renda vitalícia de 50.000$00 por mês, estabelecida pelo comprador, a favor do vendedor DD e mulher, compromisso este assumido por uma carta de 10-7-92.


Na revista, o recorrente pugna para que se declare que o referido compromisso da renda vitalícia existiu, como um facto cuja verificação judicial pretende.


A Relação considerou que o contrato de renda vitalícia não pode ser oposto aos réus, por ser nulo, em virtude de não ter sido celebrado por escritura pública, não podendo os réus ser condenados a reconhecer um contrato inválido.


Que dizer ?


As acções são declarativas ou executivas – art. 4, nº1, do C.P.C.
As acções declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas - art. 4, nº2.


As acções de simples apreciação visam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto –

art. 4, nº2, al. a)
.
Na acção declarativa de simples apreciação, “não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito” ( Alberto dos Reis, Cód. Proc. Civil Anotado, Vol. I, pág. 15) .


Como justificação das acções de simples apreciação, escreve ainda Alberto dos Reis (R.L.J. Ano 80º- 231): “o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da acção de simples declaração positiva ou negativa “.
O autor que intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, a sua necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Tendo as acções de simples apreciação por único objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria ou objectiva, de que lhe possa resultar um dano.


Pois bem.


No nosso caso, trata-se de uma acção de simples apreciação sob a forma positiva.


O facto cuja existência se pretende seja declarada não pode ser um facto qualquer.


Tem de ser, obviamente, um facto jurídico, ou seja, um facto juridicamente relevante (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed, pág. 21).
É facto jurídico todo aquele de que promanam efeitos jurídicos, sendo juridicamente irrelevante todo o que nenhuma alteração produz na ordem jurídica ( Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 2002, págs 9, 11 e 17).
O contrato de renda vitalícia é aquele em que uma pessoa aliena em favor de outra certa soma em dinheiro, ou qualquer outra coisa móvel ou imóvel, ou um direito, e a segunda se obriga a pagar certa quantia em dinheiro ou outra coisa fungível durante a vida do alienante ou de terceiro – art. 1238 do C.C.


No caso concreto, o invocado contrato de renda vitalícia tinha de ser celebrado por escritura pública, por a fracção autónoma alienada ter valor superior a 20.000$00, nos termos do art. 1239 do C.C., na redacção vigente na pretensa data da constituição da renda vitalícia, ou seja, em 10-7-92.
Como tal não aconteceu e a pretensa renda vitalícia foi constituída apenas por simples documento particular ( uma carta), dirigido ao vendedor, tal contrato é nulo, por falta de observância da forma que, ao tempo, era legalmente prevista – art. 220 do C.C.


Com efeito, é sabido que a forma dos actos se rege pela lei vigente à data da sua prática.


A falta de escritura pública importa a nulidade do acto, não podendo essa falta ser suprida por qualquer outro meio de prova (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 847).


A razão de ser da exigência da escritura pública “ está na importância económica singular que o acto reveste para qualquer das partes, mas especialmente para o que assume a obrigação de pagar a renda. A escritura é o processo de que se serve o legislador no intuito de chamar a atenção dos contraentes para a importância do acto, prevenindo-se contra a realização de um acto precipitado ou não suficientemente amadurecido “ ( Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 838) .
A nulidade da renda vitalícia impede que o respectivo negócio produza efeitos jurídicos, tudo se passando como se tal contrato não existisse relativamente aos réus.


A nulidade opera retroactivamente, não produzindo o negócio, desde o início, os efeitos que lhe corresponderiam, o que está em perfeita coerência com a ideia de que a invalidade do referido contrato resulta de um vício intrínseco e, portanto, contemporâneo da sua formação.


Não há, pois, qualquer facto, juridicamente relevante, cuja declaração de existência possa ser declarada pelo tribunal, em acção de simples apreciação positiva

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Decidiu-se no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10-5-83 (Bol. 327-636) estar na competência deste Tribunal qualificar uma obrigação como natural ou civil.


Tal nada tem a ver com a causa de pedir, nem com o pedido desta acção, nem com a questão fundamental de direito suscitada no recurso, que é a de saber se pode ser declarada a existência de um facto, consistente no invocado contrato de renda vitalícia, negócio que já vimos ser nulo, por falta de observância da forma legal.


Por isso, não foi cometida qualquer pretensa nulidade. por omissão de pronúncia, sobre questão de que o Acórdão recorrido devesse conhecer – art. 668, nº1, al. d) e 716, nº1, do C.P.C.


Improcedem as conclusões do recurso, que não pode deixar de soçobrar.

Termos em que negam a revista

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Custas pelo recorrente

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Lisboa, 25 de Novembro de 2008



Azevedo Ramos (Relator)



Silva Salazar


Nuno Cameira