Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3479/10.9TBGDM-B.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: DUPLA CONFORME
ARTº 671º Nº3 NCPC
FUNDAMENTAÇÃO SUBSTANCIALMENTE IDÊNTICA
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ - Nº 259 - A. XXII - T. III/2014 - P. 132-134
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REJEITADA A RECLAMAÇÃO DO DESPACHO DE NÃO ADMISSÃO DO RECURSO DE REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 671.º, N.º2, 672.º.
Sumário :

1. Obsta à interposição do recurso de revista normal a confirmação pela Relação da decisão da 1ª instância, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica (art. 671º, nº 3, do NCPC).

2. Para efeitos de aplicação do art. 671º, nº 3, do NCPC, que restringiu o conceito de dupla conforme, apenas relevam as divergências das instâncias relativamente a questões essenciais, sendo insuficientes as que se apresentem com natureza meramente complementar ou secundária, sem carácter decisivo para o julgamento do caso.

3. Julgada procedente a oposição à execução com fundamento na falta de exigibilidade da obrigação, verifica-se uma situação de dupla conforme impeditiva da interposição do recurso de revista normal se, na substância, a Relação também confirmou a ausência dessa condição de exequibilidade.

A.G.

Decisão Texto Integral:

1. Do despacho do ora relator que rejeitou o recurso de revista por verificação de uma situação de dupla conforme entre o acórdão recorrido e a sentença da 1ª instância reclamou a exequente para a conferência alegando que as instâncias sustentaram as decisões em fundamentação substancialmente diferente.

No caso concreto, a Relação confirmou, sem voto de vencido, a sentença de 1ª instância. Porém, a recorrente argumenta que tal confirmação foi sustentada numa motivação substancialmente diversa da adoptada pela 1ª instância, situação que, nos termos do art. 671º, nº 3, do NCPC, abriria o caminho à admissibilidade do 3º grau de jurisdição, sem necessidade de ultrapassar as exigências da revista excepcional previstas no art. 672º.

2. Vejamos:

A execução, no âmbito da qual foi deduzida a oposição, funda-se numa declaração de assunção de dívida de terceiros (de uma sociedade) pelos executados que da mesma eram sócios-gerentes.

Nos termos de tal declaração, a dívida seria “paga no acto da venda do imóvel identificado na cláusula 2ª, o qual está à venda, obrigando-se os primeiros contraentes a mantê-lo à venda através de agências imobiliárias e por anúncios expostos permanentemente no prédio, por preço adequado às condições de mercado”. E que “caso os primeiros contraentes deixem de manter o citado imóvel à venda ou não o vendam por um preço adequado às condições de mercado imobiliário, a segunda contraente poderá, igualmente, exigir o pagamento imediato da importância referida na cláusula primeira”.

A acção executiva foi proposta depois da exequente ter fixado directamente aos executados um prazo para a realização da venda do imóvel, invocando os executados na oposição a inexigibilidade da obrigação, por falta de verificação da condição suspensiva acordada, isto é da realização da venda do imóvel. Alegaram ainda que mesmo que não se considerasse a existência de uma condição suspensiva, a obrigação seria inexigível, uma vez que o prazo deveria ser fixado judicialmente, sendo insuficiente a sua fixação unilateral e extrajudicial.

A oposição foi julgada procedente pela 1ª instância com fundamento na inexigibilidade da obrigação exequenda, considerando que não se provou que os executados tivessem faltado ao cumprimento da obrigação acessória de manter à venda o imóvel hipotecado. Por outro lado, conclui-se que a fixação de prazo para a efectivação da venda cuja realização despoletaria a exigibilidade da obrigação exequenda deveria ser feita por via judicial e não extrajudicial.

A exequente interpôs recurso de apelação e a Relação confirmou, sem voto de vencido, a sentença da 1ª instância.

A admissibilidade da revista depende, assim, da existência de fundamentação substancialmente diversa, o que não se verifica.

3. Com a reforma do regime dos recursos de 2007, a necessidade de racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça determinou a consagração de uma restrição assente na dupla conforme: confirmação, sem voto de vencido e ainda que com fundamento diverso, da decisão da 1ª instância.

Esta medida foi objecto de largo debate entre os defensores da manutenção do sistema anterior que não previa este impedimento ao terceiro grau de jurisdição e aqueles que sublinhavam a necessidade de reduzir a quantidade de recursos, como forma de racionalizar o uso dos meios processuais e de valorizar a intervenção do Supremo, proporcionando reais condições para a criação de correntes jurisprudenciais estáveis.

Se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição constitui elemento potenciador de maior segurança jurídica, também é certo que os meios disponíveis para a tarefa de Administração da Justiça são limitados e que a necessidade de alcançar uma decisão definitiva em tempo razoável não é compatível com o esgotamento da multiplicidade de recursos.

Foi consagrada no âmbito daquela revisão do regime de recursos cíveis a regra da inadmissibilidade de recurso em situações de dupla conforme, com excepção das três situações particulares enunciadas no nº 1 art. 721º-A do anterior CPC.

O regime entretanto foi modificado.

Inicialmente a aludida medida restritiva era totalmente independente da fundamentação de cada uma das decisões: a dupla conforme verificava-se sempre que a Relação confirmasse, sem voto de vencido, e mesmo com fundamentação diversa, a decisão da primeira instância. Já com o NCPC o regime restritivo deixa de se aplicar quando a Relação empregue para a confirmação da decisão da 1ª instância “fundamentação essencialmente diferente” (art. 671º, nº 3).

Efectivamente, em tais circunstâncias, embora o resultado final seja idêntico, o facto de as instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão que se mostre verdadeiramente decisiva para o atingir é revelador de uma cisão que deve permitir, nos termos gerais, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, sem necessidade de invocar alguma das situações típicas da revista excepcional. Intervenção, aliás, justificada pela missão que é especialmente atribuída ao Supremo no campo da identificação, interpretação e aplicação do regime jurídico ajustado aos casos.

O quotidiano forense é susceptível de nos revelar diversas situações que impedem a verificação de uma situação de dupla conforme com aquele motivo.

Assim ocorre designadamente:

- Quando, depois de a 1ª instância assumir uma determinada qualificação contratual, a Relação adopte uma outra distinta ou envolva a decisão num enquadramento jurídico substancialmente diverso;

- Quando uma eventual condenação tenha sido sustentada na aplicação das regras de um determinado contrato, sendo a decisão confirmada ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa ou de normas que regulam os efeitos da nulidade do mesmo contrato;

- Quando um determinado resultado tenha sido sustentado na apreciação da validade de um contrato e a Relação, oficiosamente, reconheça a existência de nulidade que nenhuma das partes invocou;

- Ou ainda, nos casos em que a primeira decisão tenha absolvido o réu da instância com fundamento numa determinada excepção dilatória e a Relação tenha encontrado motivo para a mesma decisão noutra excepção.

Em cada uma destas situações que nos limitámos a exemplificar, posto que o resultado final seja idêntico, a diversidade do percurso seguido acaba por infirmar as razões que levaram o legislador de 2007 a restringir o acesso ao terceiro grau de jurisdição, justificando que, nos termos gerais, a parte vencida suscite a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça como órgão jurisdicional que tem a primazia na aplicação do direito.

4. Todavia, a atenuação do condicionalismo legal de que depende a verificação de uma situação de dupla conforme não pode ser interpretada como um regresso ao modelo recursório anterior à reforma de 2007, fazendo depender o recurso de revista unicamente do valor do processo ou da sucumbência em conexão com a alçada da Relação. O relevo atribuído à fundamentação jurídica para evitar a formação de uma situação de dupla conformidade decisória não pode servir de pretexto para, na prática, restaurar de pleno o terceiro grau de jurisdição que o legislador de 2007 limitou, sustentado nas vantagens que uma tal restrição assegura, na medida em que evita o recurso indiscriminado ao Supremo Tribunal de Justiça, só porque o valor do processo ou da sucumbência o permitem.

Assim, a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação implica que prevaleça o seu núcleo fundamental, ou seja, os aspectos que verdadeiramente se mostram decisivos para a obtenção do resultado, levando a desconsiderar, para este efeito, as divergências marginais, secundárias, periféricas, que não representam efectivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo acontece nas situações em que a diversidade de fundamentação se traduza apenas na não aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado pela 1ª instância ou que não tenha sido admitido e que sirva para reforçar o mesmo resultado.

Se, como é natural, a sistematização das decisões ou a variedade dos argumentos jurídicos empregues numa e noutra das decisões é susceptível de conduzir a resultados formalmente diversos ou não inteiramente coincidentes, releva unicamente para o caso a essencialidade da fundamentação que, seguindo trilhos diversos, sustente uma e outra das decisões.

Para o efeito importa não devem confundir-se questões jurídicas com argumentos jurídicos, sendo relevante que os resultados tenham sido motivados por respostas diversas à mesma questão de direito essencial para ambos os resultados.

5. Não está em causa neste momento apreciar o mérito da solução que foi declarada pela 1ª instância e confirmada pela Relação.

Neste momento o que unicamente importa é apreciar se se verifica ou não o pressuposto da recorribilidade que permita à exequente aceder a este Supremo Tribunal de Justiça, pois só depois de ultrapassada essa fase é legítimo sindicar o acórdão recorrido e a respectiva fundamentação.

Como já se anunciou, não se configura no caso uma diferença substancial da fundamentação de modo que, não tendo a recorrente alegado, nem sequer em termos subsidiários, algum dos requisitos de admissibilidade da revista excepcional, nos termos do art. 672º do NCPC, mais não resta do que rejeitar o recurso de revista.

Na verdade, a fundamentação empregue pela Relação para julgar a apelação que foi interposta pela exequente revela-se substancialmente idêntica à que foi utilizada pela 1ª instância para declarar a procedência da oposição, verificando-se uma mera divergência de natureza marginal na argumentação jurídica sem relevo para fazer ceder a situação de dupla conformidade em função do resultado.

Com efeito, no acórdão recorrido foi negada a violação por parte dos executados da obrigação assessória que, nos termos da declaração de assunção de dívida, poderia despoletar a exigibilidade da obrigação exequenda. Para o efeito concluiu-se que “não se afigura que seja inexigível submeter a satisfação dos interesses da exequente a um período de espera mais longo, na expectativa de que surja uma proposta mais vantajosa para os executados” e que “a recusa de venda pelo indicado preço de € 250.000,00, com referência ao dia 16-3-10, não constituiu, nessa data, violação das obrigações assumidas no contrato”.

Tal conclusão assentou no mesmo pressuposto em que se fundou a sentença de 1ª instância, isto é, na afirmação de que a exigibilidade da obrigação exequenda depende da efectivação da venda do imóvel ou do incumprimento da obrigação assessória de manter o imóvel no mercado.

É verdade que não é totalmente rigorosa a afirmação feita pela Relação em torno do incumprimento de obrigações, na medida em que nos situamos simplesmente no campo da exigibilidade da obrigação dependente da verificação de um dos eventos que foram previstos na declaração de assunção de dívida que serve de título executivo.

Porém, independentemente do rigor dessa argumentação jurídica, a verdade é que a confirmação da procedência da oposição foi sustentada, em termos materiais, na não verificação do pressuposto da exigibilidade da obrigação, tal como o fez a decisão da 1ª instância.

Por conseguinte, não é de admitir o recurso de revista normal que a exequente interpôs, devendo ser confirmado o despacho do relator.

6. Face ao exposto, acorda-se em rejeitar a reclamação do despacho de não admissão do recurso de revista.

Custas a cargo da reclamante.

Notifique.

Lisboa, 20-11-14

Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

João Bernardo