Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B2168
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
TRANSCRIÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
GRAVAÇÃO DA PROVA
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
Nº do Documento: SJ200303200021687
Data do Acordão: 03/20/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 12265/01
Data: 04/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Na acção declarativa, com processo ordinário, que A e mulher B intentaram, no Tribunal da comarca de Loures, contra C, foi proferida sentença que declarou os autores proprietários do prédio urbano sito na Rua da Paz, nºs 183, 184 e 184-A, em Pedreiras, freguesia de Ramada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº 00805/991105, declarou nulo e caducado o contrato de arrendamento celebrado com o réu em Novembro de 1993 relativo ao barracão destinado a oficina que faz parte do mencionado prédio, condenou o réu a entregar aos autores o espaço do referido barracão, bem como os anexos que ocupa no mesmo prédio, e condenou ainda o réu a pagar aos autores a quantia mensal de 52.531$00 desde 13/11/98 até à entrega efectiva do espaço e dos anexos reivindicados.

Da sentença apelou o réu para o Tribunal da Relação de Lisboa, vindo este, na sequência, em acórdão de 9 de Abril de 2002, decidindo da questão prévia da admissibilidade do recurso, com fundamento na impropriedade da junção aos da transcrição manuscrita, e ilegível, da prova, dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e na respectiva extemporaneidade, a julgar o recurso deserto por falta de alegações.

Do acórdão proferido interpôs o réu recurso, recebido como de revista, se bem que qualificado neste tribunal como agravo de 2ª instância, pretendendo que deve ser aceite e prosseguir o recurso.

Não foram deduzidas contra-alegações.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos, cumpre decidir.

Concluiu a recorrente as suas alegações pela forma seguinte (sendo, em princípio, pelo seu conteúdo que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso (arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. O art. 690º-A do Código do Processo Civil exige a junção às alegações da transcrição dos depoimentos, sob pena de rejeição do recurso.

2. Não se pode interpretar que essa rejeição se dará se houver junção às alegações da transcrição dos depoimentos mas na forma manuscrita e não dactilografada, sob pena de parecer que era mais importante que estivesse dactilografado do que estivesse junto.

3. A ora agravante juntou às alegações a transcrição dos depoimentos mas na forma manuscrita e não dactilografada, mas posteriormente juntou os mesmos depoimentos já na forma dactilografada.

4. Sob pena de violação dos princípios constitucionais do direito do acesso aos tribunais e da igualdade dos cidadãos, o art. 690º-A do Código do Processo Civil deve ser interpretado de forma que há rejeição do recurso se junto às alegações não for anexa a transcrição dos depoimentos, e não rejeição do recurso se junto às alegações não for anexa a transcrição dos depoimentos dactilografados.

Para chegar à decisão que proferiu teve o acórdão em crise assente a seguinte (não posta em causa) factualidade:

a) - foi proferida decisão final da acção, em 22/05/2001, notificada aos mandatários das partes, por carta registada, em 22/05/2001;

b) - em 29/05/01, foi interposto pelo réu recurso da sentença, recurso que foi admitido por despacho de 31/05/01 e notificado aos respectivos mandatários, em 05/06/01;

c) - a fls. 148 dos autos, consta um termo de entrega, que diz o seguinte: "Termo de entrega - 18-07-01, entreguei ao M. do Réu Dr. ........ três cassetes, para as alegações", assinado pelo mandatário do réu e pelo funcionário judicial;

d) - em 19/09/2001, foram apresentadas alegações do réu C, onde era requerida "a junção às presentes alegações da prova produzida, por dactilografar";

e) - notificados da junção, os autores apelados, em requerimento de 11/10/2001, dirigido ao tribunal da 1ª instância, insurgem-se contra a forma como o apelante instruiu as alegações, com cópia manuscrita dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, ininteligível, não dando cumprimento ao disposto no art. 690º-A do CPC, pelo que o recurso deve ser rejeitado, do que deram conhecimento ao mandatário do apelante;

f) - em despacho de 29/10/2001, a M.ma Juiz a quo entendeu dever ser o Tribunal Superior a decidir a questão levantada, o que foi notificado aos mandatários das partes;

g) - no seguimento deste despacho, e em requerimento dirigido ao tribunal a quo, em 09/11/2001, o apelante veio requerer a junção aos autos da transcrição dactilografada da audiência de julgamento;

h) - os apelados vieram opor-se, de novo, dizendo que o recurso deve ser rejeitado, por falta atempada de cópia dactilografada dos depoimentos das testemunhas e, sem conceder, o recurso deve, de qualquer modo, ser julgado improcedente.

A decisão deste recurso depende - tal como se infere das conclusões das alegações - de saber se o art. 690º-A do C.Proc.Civil não impõe a rejeição do recurso de apelação que versa sobre a reapreciação da prova, desde que a transcrição dessa prova seja feita e apresentada pelo recorrente, ainda que manuscrita, situação em que essa irregularidade (a constituir uma irregularidade) será suprível, a convite do tribunal, pela apresentação posterior daquela transcrição dactilografada.

Antes de entrarmos propriamente na apreciação do recurso, referiremos, tão só para retirar a ilação de que o entendimento do recorrente no que respeita ao acesso ao direito é diverso consoante a perspectiva em que se coloca, duas situações que emergem da simples análise dos autos.

Em primeiro lugar, depois de se ter insurgido - veremos se bem ou mal - contra o não atendimento da transcrição manuscrita dos depoimentos prestados em audiência de julgamento (que o acórdão recorrido entendeu ilegíveis e incompreensíveis) apressou-se, perante um despacho do relator, com 19 linhas, ordenando a baixa dos autos à Relação porque se não encontravam juntas quaisquer alegações (fls. 556) - aceitamos que de difícil leitura - a requerer cópia legível do referido despacho, se possível dactilografada (fls. 573), sem fazer o mínimo esforço de decifração do seu conteúdo, aliás inócuo em termos de processamento do recurso.

Em segundo lugar, considerando nas alegações que o preço superior a 80.000$00 que teria que ser pago pelo trabalho sério e honesto de um dactilógrafo em ordem a evitar a apresentação manuscrita da prova coarcta o acesso pleno aos tribunais, omite que muito mais caro é o pagamento do trabalho sério e honesto desenvolvido pelo advogado e nunca ninguém se lembrou de o considerar violador dos preceitos constitucionais que regulam a igualdade de tratamento dos cidadãos e o acesso ao direito e aos tribunais.
O art.712º, nº 1, al. a), do C.Proc.Civil (1), dispõe que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se ... "tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art.690º-A, a decisão com base neles proferida".

Mas para que se possa fazer uso desse poder "deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida" (art. 690º-A, nº 1).

Nesse caso, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda" (nº 2 do mesmo art. 690º). Reportamo-nos à redacção do art. 690º) (2) .

"Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder na contra-alegação que apresente, à transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente" (nº 3).

Ora, conforme estabelece o art. 698º, nºs 2 e 6, o recorrente alega, no caso em que pretende a reapreciação da matéria de facto, no prazo de 40 dias.

Assim, quando, em 19/09/2001, apresentou as alegações de recurso fê-lo atempadamente.

Ao referir que o prazo foi largamente ultrapassado - fls. 549 - o acórdão recorrido enferma de evidente lapso, já que não atentou em que a notificação da sentença apenas foi feita em 05/06/2001 (e se efectivou no dia 10 imediato) nem no facto de, correndo o prazo de forma contínua, se suspender porém durante as férias judiciais (art. 144º, nº 1).

O recorrente apresentou, todavia, como vimos, a mera transcrição manuscrita de fls. 179 a 411.

Quid juris ?

Perante a redacção originária do artigo 690º-A (aqui aplicável) e as exigências nele contidas, entendeu Abílio Neto (3) que "com o preceituado neste artigo, introduzido pelo DL nº 39/95, de 15-2, o legislador conseguiu o feito notável de tornar praticamente inviável o recurso sobre a matéria de facto, após ter consagrado, na lei, o duplo grau de jurisdição sobre o resultado da prova".

Também Pais de Sousa e Cardona Ferreira (4) advogaram que o sistema correcto seria, como previsto no Projecto de 1990, incumbir ao Estado "o serviço de certificar o conteúdo integral dos depoimentos que as partes ou o tribunal indicassem, oficiosamente ou a requerimento, o que acompanharia a cassete", mas a solução legalmente adoptada no nº 2 do artigo 690º-A "desvirtuou o sistema, não optando pela certificação (integral) dos depoimentos ditos relevantes, substituindo isso por simples inserção, nas alegações das partes, das afirmações por cada uma consideradas determinantes, em manifesto desfavor da comprovação e análise conjugada dos meios probatórios".

Reagindo a estas críticas, Armindo Ribeiro Mendes (5) depois de defender que se o recorrente não tiver especificado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, como lhe é imposto pela alínea a) do n.º 1 do artigo 690.º-A, "deverá ser convidado a aperfeiçoar as respectivas alegações nessa matéria e correspondentes conclusões (artigo 690º, nº 4, aplicável directamente ou por analogia)", refere, quanto à atribuição às partes da tarefa de proceder à transcrição das passagens relevantes dos depoimentos gravados, que "não se crê que esta solução torne inviável o recurso em matéria de facto, sendo certo que é a única que permite, de imediato, o pleno funcionamento do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não sendo realista sustentar que o Estado deveria assegurar tal transcrição, atendendo à experiência no domínio do processo penal, em que tal transcrição é causa de significativos atrasos".

A posição deste autor, no sentido de que a falta de especificação de todas as indicações exigidas no nº 1 do art. 690º-A não determina a imediata rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, antes se justificando a prévia formulação de convite a aperfeiçoamento, por aplicação directa ou analógica do disposto no nº 4 do artigo 690º, foi também seguida, por exemplo, no Ac. STJ de 01/10/08 (6), onde se entendeu que, por aplicação analógica do art. 690º, nº 4 (alegação nos recursos) - se na alegação faltarem as conclusões, deve o relator convidar o recorrente a apresentá-las, sob pena de não se conhecer do recurso - dado que o legislador não pode prever e regular com minúcia tudo e o juiz tem que interpretar todas as normas e complementar o que expressamente não foi dito, dentro dos cânones da ciência do direito, sobretudo através da descoberta da ratio legis, em que, por vezes há que considerar uma determinada norma como afloramento de um princípio geral, devendo por isso aplicar-se sempre que surjam situações merecedoras de idêntico tratamento, se impõe que ocorra prévio convite ao suprimento da falta.

De igual modo, no Ac. STJ de 12/01/99 (7) se optou por solução idêntica, com a seguinte argumentação: os artigos 690° e 690°-A do Código de Processo Civil de 1995, em que se disciplina a elaboração da alegação do recorrente, constituem um todo; de harmonia com o disposto no segundo destes preceitos legais, é fundamento de rejeição do recurso de apelação em que se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto a falta de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios que impunham decisão diferente acerca deles; todavia, quando estas especificações faltem, o relator deve convidar o recorrente a apresentá-las (ou a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, quando disso seja caso), por aplicação do disposto no artigo 690°, n° 4, do mesmo Código, visto tratar-se de uma concreta aplicação do princípio da cooperação enunciado genericamente no artigo 266°, n° 1, do Código de Processo Civil de 1995; é um dever do juiz paralelo ao do artigo 508°, nºs 1, alínea b), 2 e 3, do mesmo código; o processo destina-se à obtenção de decisão acerca do mérito da causa, devendo evitar-se que a lide acabe por se resolver com fundamento em questões puramente processuais (artigo 2°, n° 1, do Código de Processo Civil de 1995); por isto se escreve no relatório do Código de Processo Civil em apreço que o direito de acesso aos tribunais envolverá identicamente a eliminação de todos os obstáculos à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litígio, privilegiando-se assim e claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma, e procura, por outro lado, obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e da plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio.

Ainda na mesma orientação afirma-se no Ac. STJ 14 de Maio de 2002 (8) que "no prisma do despacho-convite, o facto de o art. 690º-A se lhe não referir não pode ser argumento válido para o não proferir. Com efeito, além de caber ao tribunal a promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, deve providenciar, ainda que oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, o que deve ser entendido numa compreensão muito lata (CPC - 265, 1 e 2) onde, pelo menos, houver identidade de razão, para regularizar a instância deve-se o fazer, e que, num caso como o presente, conduz ao despacho-convite aí referido (se a lei confere ao juiz esse poder para situações que, tomadas no sentido estrito do termo, são comparativamente, de uma gravidade maior, não se compreenderia que o tribunal usasse de um maior rigor para uma menos grave; é o argumento da maioria da razão). Introduziu-se uma componente que privilegia a justiça material, sempre que possível, e a propicia na resolução do litígio, tornando-a justa, em lugar de se a não alcançar por razões meramente formais ultrapassáveis.

Trata-se de um poder-dever do julgador que terá de ser exercido como administrador da justiça, para o desempenho e bom resultado do qual a lei pretende que as partes colaborem, cooperem (CPC - 266), sempre sem prejuízo do contraditório. Seja em consequência de uma norma que traduz um princípio de carácter geral (CPC - 265, 2) seja de uma outra (CPC - 690, 4) para cuja aplicação analógica existe fundamento (CC - 10, 1 e 2), é de concluir que se impunha a prolação de despacho-convite".

Em sentido divergente desta orientação jurisprudencial pronuncia-se Lopes do Rego (9) para quem "a fim de desincentivar claramente possíveis manobras dilatórias, este preceito (art. 690º-A) não previu o convite ao aperfeiçoamento da alegação que versa sobre a matéria de facto que se pretende impugnar e que, desde logo, não satisfaça minimamente o estipulado nos nºs 1 e 2: deste modo, se o recorrente impugnar a matéria de facto, sem delimitar minimamente o objecto do recurso, ou sem fundamentar, de forma concludente, as razões da discordância, através da indicação dos concretos meios probatórios que, na sua óptica, o tribunal valorou erroneamente, o recurso é logo liminarmente rejeitado. O mesmo ocorrerá quando se não cumpra o ónus de transcrição imposto pelo n° 2 - e sendo certo que, neste caso, o prazo para apresentação da alegação já se mostra alongado, a fim de permitir a realização de tal tarefa, a cargo do recorrente, pelo artigo 698°, n° 6 - cfr. acórdão da Relação do Porto, de 4 de Fevereiro de 1999, na Colectânea de Jurisprudência, 1999, tomo I, pág. 210".

Também Amâncio Ferreira (10) sustenta que "a não satisfação destes ónus (indicados nos nºs 1 e 2 do artigo 690.º-A) por parte do recorrente implica a rejeição imediata do recurso, como expressamente se refere no artigo 690°-A, nºs 1, proémio, e 2. Não há assim lugar a convite prévio, em vista a suprir qualquer omissão do recorrente. ... Fosse essa a intenção do legislador e tê-la-ia declarado como o fez para situações diversas, nos artigos 690º, nº 4, e 75º-A, nº 5, este da Lei do Tribunal Constitucional. Compreende-se a rejeição imediata do recurso na situação que analisamos por os ónus impostos ao recorrente visarem o corpo da alegação, insusceptível de ser corrigido ou completado, no nosso ordenamento processual, pela via do convite. A tese do Supremo, elevando o princípio da cooperação a patamares indefensáveis, levaria igualmente ao convite prévio ao recorrente antes de ser julgado deserto o recurso por falta de alegação."

Posto isto, vejamos a nossa posição.

Entendemos, tal como recentemente foi decidido em acórdão em que intervieram os subscritores deste (11), que, compulsadas as opiniões supra enunciadas, foi clara intenção do legislador, nos casos em que o recorrente omita completamente a menção das especificações exigidas pelo nº 1 do art. 690º-A e não proceda à transcrição imposta pelo nº 2, sancionar essa conduta com a liminar rejeição do recurso da decisão da matéria de facto.

Como no mencionado aresto se explicita, "quem recorre, pedindo essa reapreciação (da matéria de facto) não pode deixar de tomar em conta qual o segmento de matéria de apreciação pretendida; e para colocar ao tribunal para onde se recorre semelhante pretensão, não pode deixar de equacionar a matéria que visa, transcrevendo-a, para da transcrição retirar com seriedade intelectual, as inferências favoráveis à tese que, junto dele, se propõe demonstrar".

"Este juízo avaliativo, em nosso pensamento, supõe uma estrutura lógica e deontológica de consistência inatacável: se é salutar a cooperação entre as partes, também se afigura importante a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária de responsabilidade, e de saber, que não tenha no juiz o limite corrector dessa responsabilidade (ou irresponsabilidade, inconsciente ou provocada) ou desse saber (ou ignorância, inconsciente ou provocada), quando se está perante uma clara ausência de um preceito legal, e de processo que permita contar com a ajuda dos outros, suprindo faltas processuais graves, essenciais ao objecto do conhecimento, exactamente do que se pede ao tribunal que conheça".

"Fazendo de modo diverso, pode cair-se numa indisciplina de procedimento e arrastamento, tão impunes quanto aleatórios, do exercício do direito de acção (ou de recurso) que nunca mais chega ao fim, com grave prejuízo para os interesses gerais da administração da justiça e, em particular, para a contraparte - o cidadão, como pessoa singular, ou como pessoa jurídica - que outras o direito não conhece. Em desfavor destas - das pessoas - torna-se vulnerável o princípio igualmente respeitável, da preclusão processual civil, agravando o factor da incerteza do tempo da definição do direito; e introduz-se uma pedagogia processual negativa, a benefício do arbítrio ao convite, do uso e do abuso, sem critério, que em nada abona a confiança, a celeridade e a prontidão da justiça, acabando por conferir a esta a imagem perigosa geradora do deixar andar ou do erra que o Juiz corrige".

"A nosso ver, a abertura de semelhante precedente interpretativo, além de perigoso, sob o ponto de vista da justiça rápida e pronta, e da sua credibilidade junto do cidadão que a paga, perderia sentido e razoabilidade, atingindo mesmo os foros do caricato, perante os ordenamentos processuais dos Estados Membros da União Europeia, onde não conhecemos prática judiciária paralela. Precedente que teria a marca de um verdadeiro descrédito, criado por via jurisprudência (tanto pior!) ganhando na permissividade da dilação fútil, o que perde por falta de sinal ou lampejo de modernidade e de inovação, quanto ao sentido criativo de adaptação ao tempo - ao tempo útil - da administração de justiça, enquanto função pública judiciária que serve a sociedade - as pessoas faladas há pouco (ponto 8)".

Acontece, todavia, in casu, que o recorrente, nas alegações que apresentou no recurso de apelação, enunciou, quer no corpo dessas alegações, quer ainda nas conclusões que formulou, os pontos de facto que, em sua opinião, foram incorrectamente julgados pela 1ª instância, quer os meios de prova que impunham diferente julgamento. Simplesmente, não juntou às alegações transcrição dactilografada das passagens da gravação em que se fundava, mas tão só uma transcrição manuscrita (pela mera análise dessa transcrição se verifica que é correcta a afirmação contida no acórdão recorrido de que se trata de um manuscrito não identificado - em termos de referência concreta ao processo a que respeita - com desenhos à mistura, com utilização de papel de variadas procedências, até mesmo com o timbre do Hotel Tivoli).

Tal actuação mostra, na verdade, algum desrespeito pela nobre missão de quem tem o dever de julgar (e também pela parte contrária na causa), mas, sem dúvida, traduz uma situação diversa da que ocorre no caso de não apresentação, pura e simples, da transcrição exigida: representa, a nosso ver, uma apresentação deficiente (muito deficiente) da transcrição da prova, sem observância da forma - dactilografada - exigida por lei, mas não deixa de constituir uma transcrição.

Expostas as posições jurisprudenciais e doutrinais conhecidas sobre o tema - e sem embargo da posição que assumimos no citado Ac. STJ de 06/02/2003, "afigura-se-nos que a solução mais equilibrada passa pela distinção entre falta total de menção das especificações exigidas e da transcrição das passagens relevantes e o mero cumprimento defeituoso desses ónus". (12) "Na primeira hipótese, o recorrente desprezou completamente os encargos que a lei lhe atribuiu como requisito para poder beneficiar de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto; na segunda hipótese, tentou cumprir esse ónus, mas fê-lo de forma incorrecta ou incompleta. As sanções a essas falhas devem ser proporcionais à sua gravidade: na primeira hipótese, parece claro que o legislador cominou a rejeição imediata do recurso da decisão da matéria de facto, à semelhança da imediata declaração de deserção do recurso no caso de falta (absoluta) de alegação (nº 3 do art. 690º); na segunda hipótese, justificar-se-á a prévia formulação de convite para completamento ou correcção da alegação ou da transcrição, à semelhança do que ocorre quando a alegação apresente irregularidades (nº 4 do art. 690º). ... Desde que haja uma tentativa séria de cumprimento dos ónus, ainda que não inteiramente conseguida, não se justifica a liminar rejeição do recurso, mas antes o convite ao suprimento das deficiências detectadas".

No que especificamente respeita ao ónus de transcrição das passagens da gravação que o recorrente invoca para fundamentar o alegado erro na apreciação das provas, o nº 2 do art. 690º-A limita-se a referir que o recorrente deve proceder a essa transcrição mediante escrito dactilografado. Todavia, se bem que o recorrente não haja dactilografado o escrito, limitando-se (como já dissemos, de forma algo desrespeitosa e inadequada) a apresentar um manuscrito dessa transcrição, não deixou de cumprir, embora defeituosamente, o ónus imposto por aquele nº 2 do art. 690º.

Nesta medida não pode ser mantido o acórdão recorrido, quando rejeitou o recurso por não observância da forma dactilografada da transcrição, antes se impõe, de acordo com o critério atrás exposto, a formulação de convite ao recorrente para apresentar escrito dactilografado contendo a transcrição das passagens dos depoimentos invocados na sua alegação.

Em todo o caso, e não obstante não ter sido feito o convite ao recorrente para apresentar a transcrição dactilografada da prova, já este, por sua iniciativa, o fez (fls. 420 a 516), tendo, também já os recorridos, no cumprimento do nº 3 do art. 690º-A, apresentado a transcrição dos depoimentos gravados que, na sua opinião, infirmam as conclusões do recorrente.

Por isso, deve considerar-se, neste momento, suprida a irregularidade detectada, havendo que admitir o recurso e fazer seguir a tramitação subsequente a essa admissão.

Termos em que se decide:

a) - conceder provimento ao recurso de agravo interposto pelo réu C;

b) - revogar o acórdão recorrido, determinando, em consequência, que o Tribunal da Relação de Lisboa admita o recurso de apelação que aquele réu interpôs da sentença proferida na 1ª instância, fazendo seguir a subsequente tramitação processual, para o que se ordena baixem os autos àquele tribunal;

c) - não tributar o recurso, atento o disposto no art. 2º, al. o), do CCJ .

Lisboa, 20 de Março de 2003
Araújo Barros
Oliveira Barros
Sousa Inês (votei a decisão, mantendo a posição que subscrevi no acórdão de 12 de Janeiro de 1999, deste Tribunal, tirado na revista nº 1032/98, citado no texto) .
________________
(1) - Diploma a que pertencem todas as normas adiante indicadas sem outra referência.
(2) - Reportamo-nos à redacção do art. 690º-A anterior ao Dec.lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2001 (art. 8.º), mas a nova redacção dada aos artigos 522º-C e 690º-A é inaplicável ao caso dos presentes autos, por força do disposto no art. 7º, nºs 3 ("O regime estabelecido no presente diploma é imediatamente aplicado aos processos pendentes em que a citação do réu ou de terceiros ainda não tenha sido efectuada ou ordenada") e 8 ("O regime de direito probatório emergente da lei nova apenas é aplicável às provas que venham a ser requeridas ou oficiosamente ordenadas após a data da sua entrada em vigor"), uma vez que a citação do réu ocorreu em 28 de Março de 2000 (cfr. fls. 27) e as provas foram requeridas até 19 de Setembro de 2000 (cfr. fls. 100).
(3) - In "Código de Processo Civil Anotado", 13.ª edição, Lisboa, 1996, pag. 285.
(4) - In "Processo Civil - Aspectos Controversos da Actual Reforma", Lisboa, 1997, pags. 106 a 108.
(5) - In "Os Recursos no Código de Processo Civil Revisto", Lisboa, 1998, pags. 84 e 85.
(6) - In BMJ nº 480, pag. 348 (relator Nascimento Costa).
(7) - No Proc. 1032/98 da 2ª secção (relator Sousa Inês).
(8) - No Proc. 1553/02 da 1ª secção (relator Lopes Pinto).
(9) - In "Comentários ao Código de Processo Civil", Coimbra, 1999, pag. 466.
(10) - In "Manual dos Recursos em Processo Civil", 3ª edição, Coimbra, 2002, pág. 150, nota 301.
(11) - Ac. STJ de 06/02/2003, no Proc. 4739/02 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro)
(12) - Adoptamos a posição sustentada no Ac. STJ de 16/10/2002, no Proc. 2224/02 da 4ª secção (relator Mário Torres), que de muito perto seguiremos.