Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
789/16.5T8VRL.G1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE QUE IMPUGNE A DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3.ª Edição, Almedina, p. 136 e ss. e 142.)
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º, N.ºS 1, ALÍNEA B) E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 03-12-2015, PROCESSO N.º 3217/12.1TTLSB.L1.S1;
- DE 11-02-2016, PROCESSO N.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1;
- DE 18-02-2016, PROCESSO N.º 558/12.1TTCBR.C1.S1;
- DE 03-03-2016, PROCESSO N.º 861/13.3TTVIS.C1.S1;
- DE 12-05-2016, PROCESSO N.º 324/10.9TTALM.L1.S1;
- DE 07-07-2016, PROCESSO N.º 220/13.8TTBCL.G1.S1;
- DE 13-10-2016, PROCESSO N.º 98/12.9TTGMR.G1.S1;
- DE 27-10-2016, PROCESSO N.º 110/08.6TTGDM.P2.S1;
- DE 09-02-2017, PROCESSO N.º 471/10.7 TTCSC.L1.S1;
- DE 20-12-2017, PROCESSO N.º 299/13.2TTVRL.C1.S2.
Sumário :

I. A exigência, imposta pelo artigo 640.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.

II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a transcrever as declarações, a mencionar documentos, tomando como referência determinados tópicos que elencou.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:



                                                           I

Relatório:

1. O Ministério Público instaurou ação declarativa, sob a forma de processo especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 186.º-K do Código de Processo do Trabalho, contra AA, Lda., pedindo a declaração de existência de um contrato de trabalho entre esta e BB.

2. A ré contestou a ação, pugnando pela inexistência de contrato de trabalho.

3. BB apresentou requerimento declarando aderir à posição do Ministério Público.

4. Frustrada a conciliação, realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação procedente, declarando a existência de um contrato de trabalho entre a ré e BB, desde inícios de maio de 2011.

5. Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1º O Recorrente não se conforma com a sentença proferida pela Ilustre Juiz a quo.

2º A sentença em crise considerou que o contrato existente entre o Sr. BB e a Recorrente é um contrato de trabalho.

3º Todavia não foi isto que resultou da prova documental e da prova testemunhal.

4º Pelo que, no presente recurso, a Apelante impugna a matéria de facto que foi dada como provada e a interpretação e aplicação do Direito ao caso sub judice.

5º O Tribunal a quo julgou como provados os artigos 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º e 14º, todos da petição inicial.

6º Todavia, os factos dados como provados deveriam ter sido dados como não provados, atendendo à prova produzida e incorretamente apreciada pelo tribunal a quo.

7º A sentença recorrida deu como provado que o Sr. BB tinha um horário de trabalho e que estava obrigado a observar o horário de funcionamento da Recorrente.

8º A Recorrente impugna por completo este facto, por não corresponder à realidade.

9º Aliás, resultou tanto da prova documental como da prova testemunhal que o Sr. BB não tinha um horário de trabalho.

10º Conforme já se disse supra e, tendo em conta as declarações de IRS juntas aos autos, o Sr. BB está coletado nas Finanças desde o ano 2000 como mediador de seguros que exerce a sua profissão como profissional liberal.

11º Assim, desde o ano 2000 que o Sr. BB exerce a profissão de mediador de seguros.

12º O Sr. BB em Maio de 2011 passou a prestar os seus serviços à Recorrente.

13º E prestava tais serviços de mediador de seguros de uma forma totalmente independente e autónoma, sendo o próprio Sr. BB que organizava o seu tempo de trabalho.

14º Pelo que não tinha qualquer horário de trabalho.

15º É isto que resulta do depoimento da Testemunha CC no ficheiro ….., ao tempo 00:01:11, reproduzido nas alegações.

16º Deste depoimento, resulta que o Sr. BB, alegadamente, prestava os seus serviços à Recorrente ao Sábado, pois também neste dia permanecia no escritório da Recorrente, quando o sócio gerente da empresa não se encontrava a trabalhar.

17º E prossegue, “Não tinha horário de trabalho algum. (…) O horário dele era de manhã à noite. Ele entrava às 08:00h ou 07:30h da manhã e saía às 19:00h, 20:00h, 21:00h ou 22:00h e ia Sábado, Domingo e tudo. A casa dele era ali.”

18º Ou seja, o Sr. BB permanecia no escritório da Recorrente mais do que as 40 horas semanais, pois estava lá mais do que as 8 horas diárias e também aos Sábados e, até Domingos, quando mais ninguém se encontrava no escritório.

19º Também a testemunha DD, no ficheiro …._...._... ao tempo 00:02:00 questionado sobre quando é que o Sr. BB se dirigia ao seu estabelecimento, para alegadamente arranjar o seu carro respondeu que “Ia às 15:00h, 16:00h e estava ali a tarde inteira.”

20º Ora, entre as 15:00h ou 16:00h, ainda estamos perante o horário de expediente, pelo que, se o Sr. BB tivesse de cumprir um horário de trabalho, jamais podia ausentar-se do mesmo, com a frequência que o fazia naquele período de tempo.

21º Contudo, como era o próprio Sr. BB que organizava o seu horário de trabalho, ele podia ausentar-se do escritório da Recorrente quando entendesse, desde que, prestasse os serviços a que se tinha proposto.

22º Com efeito, o Sr. BB não observava o horário de funcionamento da Recorrente, nem tinha qualquer horário de trabalho.

23º Para que estejamos perante um contrato de trabalho é necessário que a entidade patronal fixe um horário de trabalho, dentro do qual o trabalhador vai prestar a sua atividade (vide artigos 197º e seguintes do CT).

24º E de acordo com o artigo 203º n.º 1 do CT o período normal de trabalho não pode exceder as 8 horas diárias e as 30 semanais.

25º Ora, se o Sr. BB se apresentava no escritório da Recorrente por volta das 07:30h e apenas saía por volta das 20:00h, 21:00h ou 22:00h e ia para o escritório da Recorrente ao Sábado e Domingo, este excedia claramente os limites previstos no artigo 203º n.º 1 do CT.

26º Pelo que, tendo em consideração todo o exposto, o Sr. BB não tinha qualquer horário de trabalho.

27º Importa ainda referir que, o Tribunal a quo deu como provado que a Recorrente não tinha um registo de ponto. Nem tinha de o ter, pois o Sr. BB não era seu funcionário/trabalhador.

28º Se o Sr. BB fosse trabalhador dependente da Recorrente, com certeza que esta teria de ter um livro de ponto onde registasse as horas de trabalho do Sr. BB.

29º A sentença, ora recorrida acaba por ser até contraditória, em nosso entender, uma vez que deu como provado que a Recorrente não tinha um livro de ponto e deu também como provado que o Sr. BB tinha um contrato de trabalho.

30º Em segundo lugar o tribunal a quo deu como provado que o Sr. BB estava sujeito a ordens ou instruções provenientes da Recorrente.

31º A Recorrente impugna por completo este facto, por não corresponder à verdade.

32º Assim, o Sr. BB nunca exerceu a sua atividade em obediência a quaisquer ordens ou instruções da Recorrente.

33º Aliás, o Sr. BB sempre exerceu a sua atividade de uma forma totalmente independente e autónoma.

34º Sucede ainda que, a Recorrente nunca deu ordens ou instruções ao Sr. BB, acerca do modo como este deveria executar o seu trabalho, uma vez que o Sr. BB não era seu funcionário.

35º Foi isso mesmo que resultou da prova testemunhal produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.

36º A Testemunha DD, no ficheiro …_..._... ao tempo 00:01:11 referiu “Ele nunca recebeu ordens de ninguém”.

37º Também a Testemunha EE, no ficheiro …_..._..., ao tempo 00:01:29 afirmou que “a perceção que eu tenho é que ali não há patrão nem empregado. Há alguém que colocou lá uma carteira para colaborar e fazer dinamizar o conjunto da carteira. Nem ninguém falou comigo, nem de um, nem do outro, do meu patrão, do meu empregado.”

38º Deste modo, o Sr. BB não tinha de cumprir as ordens ou instruções que nunca lhe foram dadas, executando a sua atividade com plena autonomia e independência.

39º Em terceiro lugar o tribunal a quo deu como provado que o Sr. BB recebia a título de retribuição, mensalmente uma quantia no valor de € 900,00.

40º De facto, quando o Sr. BB foi prestar serviços para a Recorrente, ficou estipulado que a Recorrente pagaria ao Sr. BB uma quantia de € 900,00.

41º Dessa quantia, € 500,00 eram pagos ao Sr. BB em contrapartida da integração da sua carteira que tinha na FF, na Recorrente e € 400,00 diziam respeito à contrapartida pelos serviços prestados.

42º Para além da retribuição fixa, existia também uma retribuição variável que lhe era paga em função do cumprimento dos objetivos.

43º É verdade que a retribuição é uma caraterística fundamental do contrato de trabalho (vide artigo 11º do CT).

44º Ou seja, a contrapartida pela prestação do trabalho é a retribuição.

45º Nos contratos de trabalho a retribuição é obrigatória.

46º No entanto, existem outros tipos contratuais que admitem a retribuição. É o caso do contrato de prestação de serviços, em que o prestador do serviço pode ou não ter direito a uma remuneração pelos serviços que tenha prestado (vide artigo 1154º e seguintes do CC).

47º Ou seja, no contrato de prestação de serviços o prestador de serviços pode ter direito a uma retribuição pelos serviços que prestou.

48º In casu estamos perante um contrato de prestação de serviços, em que as partes acordaram estabelecer uma remuneração pelos serviços que o Sr. BB prestava para a Recorrente, conforme se irá concretizar melhor adiante.

49º Para além disso, o Sr. BB também prestava serviços de mediação para outras companhias de seguros concorrentes com a Recorrente, nomeadamente para a GG antiga HH.

50º Veja-se o depoimento da Testemunha DD, no ficheiro …_..._..., ao tempo 00:01:11, já transcrito nas alegações.

51º Veja-se também o depoimento da testemunha EE, no ficheiro …_..._..., ao tempo 00:01:39, já transcrito nas alegações.

52º Ainda a Testemunha, II no ficheiro …_..._..., ao tempo 00:25:10, já transcrito nas alegações.

53º Veja-se também o depoimento da Testemunha JJ, no ficheiro …_..._... ao tempo 00:15:09, já transcrito nas alegações.

54º Conclui-se portanto, de forma muito clara objetiva que o Sr. BB também prestava serviços de mediador a outras companhias de seguros, para além da FF que era aquela que a Recorrente representava.

55º Pelo que, se afasta a presunção de existência do contrato de trabalho, uma vez que falta o pressuposto da exclusividade.

56º O Sr. BB prestava estes serviços de mediação às outras companhias de seguros, utilizando para o efeito o escritório da Recorrente.

57º Isto porque, ficou provado que o Sr. BB permanecia constantemente no escritório da Recorrente, passando lá o dia e indo para o mesmo aos fins de semana.

58º Facilmente se depreende que, o Sr. BB não dispunha de tempo suficiente, fora daquele escritório, para tratar dos assuntos relacionados com a GG antiga HH.

59º Até porque, as atividades que o Sr. BB desenvolvia para outras companhias de seguros davam-lhe um rendimento semelhante a que auferia da Recorrente, conforme resulta das declarações de IRS juntas aos autos.

60º Pelo que, o Sr. BB carecia, aproximadamente, do mesmo tempo que precisava na prestação de serviços para a Recorrente, para desenvolver as atividades que desenvolvia nas outras companhias de seguros.

61º Também ficou provado que o Sr. BB era escritor.

62º Como tal, além dos serviços que prestava à Recorrente e a outras companhias de seguros, o Sr. BB também dedicava o seu tempo a escrever livros e a publicar os seus poemas.

63º Como se comprova pelos documentos juntos aos autos, o Sr. BB publicava os seus poemas no Facebook.

64º E fazia-o no escritório da Recorrente, no computador que se encontrava no escritório da Recorrente e que era propriedade da FF.

65º Ora, como se pode verificar, através dos documentos juntos aos autos, o Sr. BB publicava os seus poemas na sua página do Facebook em data e hora em que se encontrava no escritório da Recorrente.

66º Assim, o Sr. BB utilizava instrumentos de trabalho propriedade da FF, nomeadamente o computador, para publicar as suas poesias no Facebook.

67º Por esse motivo, o Sr. BB nunca cumpriu os objetivos propostos, nunca tendo atingido o resultado a que se propôs, quando foi prestar serviços para a Recorrente.

68º Pelo que nunca recebeu mais do que os € 900.00 mensais.

69º Posto isto e, tendo em consideração toda a prova, não se compreende nem se aceita o facto de o Tribunal a quo ter considerado que a relação existente entre o Sr. BB e a Recorrente tem cariz laboral.

70º Nos termos do artigo 11º do CT, contrato de trabalho é um contrato pelo qual uma pessoa presta a sua atividade, mediante retribuição, sob a orientação de outrem.

71º Ou seja, tem de haver uma relação de subordinação entre o empregador (que dá as instruções sobre o modo pelo qual deve ser exercida o trabalho) e o trabalhador (que obedece a tais instruções).

72º O Trabalhador tem de executar o seu trabalho de uma forma dependente, observando sempre as orientações ou ordens dadas pelo empregador.

73º Assim, é caraterística fundamental do contrato de trabalho a subordinação do trabalhador às ordens/instruções dadas pelo empregador.

74º Situação que não se verifica in casu, pois, tal como se provou, a Recorrente nunca deu ordens ou instruções ao Sr. BB.

75º O Sr. BB, enquanto mediador de seguros e, exercendo sempre as funções típicas de um mediador de seguros, prestou os seus serviços de uma forma independente e autónoma, sem observar ordens que, aliás nunca lhe foram dadas.

76º Com efeito, é juridicamente impossível qualificar o presente vínculo como um vínculo laboral.

77º Para além disso, o Sr. BB não tinha um horário de trabalho, nem tinha de observar o horário de funcionamento da empresa, também como se provou.

78º Pelo que, não estão reunidos os pressupostos para que estejamos perante um contrato de trabalho.

79º O que existiu efetivamente entre o Sr. BB e a Recorrente foi um contrato de prestação de serviços.

80º Contrato de prestação de serviços é aquele pelo qual uma pessoa se obriga a obter um determinado resultado, podendo ou não haver lugar a uma retribuição (artigo 1154º do CC).

81º O que distingue o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviços é que, no primeiro o trabalhador obriga-se a prestar a sua atividade sob a orientação do empregador; no segundo o prestador de serviços obriga-se a obter um resultado, executando a sua atividade de forma livre.

82º Tendo em conta toda a prova, podemos afirmar com certeza que, o Sr. BB obrigou-se a um resultado: o de aumentar a carteira de clientes da Recorrente e, para o efeito, exercia a sua atividade de uma forma independente, não obedecendo a instruções de ninguém, contrariamente ao que entendeu o tribunal a quo.

83º Posto isto, a relação existente entre o Sr. BB e a Recorrente, deve ser qualificada como uma relação de prestação de serviços, ao contrário do que entendeu o tribunal a quo, ao qualificar a presente relação como uma relação laboral.

84º Ora, atendendo à prova produzida, incorreu o tribunal a quo em errada interpretação e aplicação do direito ao caso concreto e em errada apreciação das provas, ao decidir da maneira que decidiu, devendo o Tribunal ad quem alterar a matéria de facto para o seguinte:

85º Considerar não provados os artigos 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º e 14º da petição inicial e por sua vez considerar provados os artigos 8º, 10º, 11º, 16º, 17º, 18º, 21º, 23º, 24º, 25º, 27º, 28º, 29º, 32º, 33º, 35º, 37º, 39º, 40º, 44º, 45º, 46º e 47º da contestação.

86º Pois só assim se alcançará uma justa decisão, atendendo quer às declarações prestadas pelas testemunhas quer à prova documental junta aos autos, o que erradamente não foi tido em consideração pelo Tribunal a quo.

87º Por todo o exposto, violou o Tribunal a quo as disposições dos artigos 413º do C.P.C. ex vi do artigo 2º, al. a) do CPT e 341º, 362º e 566º, n.º 3 do C.C.

88º Assim, o Tribunal a quo ao decidir da forma exposta violou o disposto nos artigos 413º do C.P.C. ex vi do artigo 2º, al. a) do CPT e 341º, 362º e 566º, n.º 3 do C.C., pelo que, ao invés, deveria ter concluído pela improcedência total da petição inicial.

6. O Tribunal da Relação proferiu acórdão em que rejeitou o recurso referente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto e concluiu, face aos factos dados como provados, pela existência de um contrato de trabalho entre a ré e BB, desde inícios de Maio de 2011, tal como tinha sido decidido pelo Tribunal da 1.ª Instância.

7. Inconformada com esta decisão, a ré interpôs recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu:

- Não existir dupla conforme, uma vez que houve impugnação da matéria de facto, tendo o Tribunal da Relação rejeitado a reapreciação, com o fundamento de que a recorrente não cumpriu os respetivos ónus;

- Que o recurso deve distribuído como revista nos termos do n.º 5 do art.º 672.º do Código de Processo Civil, para ser apreciado se a recorrente cumpriu na apelação os ónus de que a lei faz depender a apreciação da matéria de facto pela Relação.

8. Nas suas conclusões, a recorrente suscita a questão de saber se o Tribunal da Relação decidiu bem ao rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto por não terem sido cumpridos os ónus a cargo do recorrente, tal como impõe o art.º 640.º do Código de Processo Civil.

                                                           II

A) Fundamentação de facto:

O Tribunal da Relação manteve a factualidade dada como provada pela primeira instância, que é a seguinte:

1.º - A ré foi constituída em 1999 e dedica-se à mediação de seguros.

2.º - Em visita inspetiva realizada pela A. C. T./Douro, no dia 22-03-2016, pelas 14:10 horas, às instalações/escritório da ré, sitas no endereço da respetiva sede, verificou-se que ali se encontravam (apenas) o seu sócio gerente KK e BB.

3.º - O referido BB encontra-se ininterruptamente ao serviço da ré desde pelo menos 18-05-2011, ou seja, nessa altura e contado daquela data, há 4 anos, 10 meses e 5 dias.

4.º - Desenvolvendo, desde então, naquele local atividade essencialmente administrativa, referente a assuntos da ré e no interesse e em benefício da mesma.

5.º - Dentre a qual a consubstanciada em cobranças, simulação de seguros, emissão de contratos, contas diárias (caixa diário), preparação de depósitos bancários, atendimento a clientes e controlo de cobranças.

6.º - Para lá disso, estava também incumbido pela ré de angariar clientes, com vista à celebração de contratos de seguros em seu (ré) nome.

7.º - Utilizando na execução de todas as sobreditas tarefas/atividades meios e instrumentos pertencentes à ré, designadamente computador, cadeira, secretária, impressora, telefone, papel e canetas.

8.º - Sendo também pertença da ré o telemóvel que detinha e de que, para o mesmo efeito (atividade), fazia uso.

9.º - O trabalhador BB tinha de observar o horário de funcionamento do estabelecimento comercial da ré.

10.º - O trabalhador obedecia às instruções/ordens do legal representante da ré e estava sob o seu controlo.

11.º - Desempenhando também tal atividade aos sábados, com o conhecimento da ré e nas instalações/escritório desta (que suportava todas as inerentes despesas de manutenção).

12.º - E recebendo da ré, como contrapartida da referenciada atividade que, a mando dela, lhe prestava/vinha prestando, uma importância mensal fixa/certa (não dependente de nenhum objetivo ou resultado a apresentar/alcançar), inicialmente no valor de € 900,00 e a partir de julho de 2012 no de € 850,00.

13.º - Valores e pagamentos esses documentados, porém, não através da emissão pela ré dos correspondentes recibos de vencimento, mas por meio de "recibos de prestação de serviço" (recibos verdes), emitidos mensalmente pelo próprio BB, o primeiro dos quais datado de 18-05-2011 e o último recolhido pelo A.C.T. de 29-02-2016.

14.º -A ré é uma sociedade comercial por quotas que tem por objeto social a mediação de seguros.

15.º - No âmbito da sua atividade comercial, a ré atua de forma independente em relação às seguradoras, faz a angariação de clientes oferecendo propostas de seguros de várias seguradoras, procurando desta forma o melhor prémio para o cliente, efetua cobranças, entre outras tarefas relacionadas com o seu objeto comercial.

16.º - O trabalhador BB possuía seguro de responsabilidade civil profissional para mediadores.

17.º - Também possuiu o Sr. BB o respetivo certificado de Mediadores de Seguros, emitido pelo Instituto de Seguros de Portugal.

18.º - O Sr. BB está coletado na Autoridade Tributária e Aduaneira como profissional de mediação de seguros, como trabalhador independente.

19.º - O Sr. BB, antes de iniciar a prestação de serviços para a ré era detentor de uma carteira de clientes no valor de € 44.615,80, o que se traduzia num valor de comissão mensal na ordem dos € 500,00.

20.º - A ré acordou que pagaria ao trabalhador BB uma retribuição mensal total de € 900,00.

21.º - Ficou acordado entre a ré e o trabalhador que na eventualidade da carteira de clientes que entregou à demandada vir a aumentar a sua retribuição seria aumentada.

22.º - A ré não possuía registo de ponto.

23.º - O Sr. BB escreve poesia e tem uma página no “facebook” intitulada "BB Poesia".

24.º - O telemóvel foi cedido ao trabalhador BB pela ré.

B) Fundamentação de Direito:

B1) Os presentes autos respeitam a ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho instaurada em 9 de maio de 2016, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 4/10/2017.

Assim sendo, o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo do Trabalho, na versão operada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto;

- O Código de Processo Civil, na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

B2) A questão que importa solucionar consiste em saber se o Tribunal da Relação decidiu bem ao rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto por não terem sido cumpridos os ónus a cargo do recorrente, tal como impõe o art.º 640.º do Código de Processo Civil.

O artigo 640.º do Código de Processo Civil, com a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto» estatui o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

A atual redação desta disposição legal foi introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e encontra correspondência, embora com algumas alterações, no art.º 685.º do anterior Código de Processo Civil, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/8.

Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016-3.ª Edição, Almedina, pág. 136 e seguintes) as alterações mais salientes introduzidas na nova redação caracterizam-se pelo reforço do ónus de alegação, devendo o recorrente, sob pena de rejeição, indicar a resposta que, no seu entender, deve ser dada às questões de facto impugnadas, e relativamente a provas gravadas basta ao recorrente a indicação exata das passagens da gravação, não sendo obrigatória em caso algum a sua transcrição.

O autor citado, numa apreciação da evolução histórica do instituto da «Modificabilidade da decisão de facto», sublinha que a possibilidade de alteração da matéria de facto deixou de ter carácter excecional para se assumir como uma função normal do Tribunal da Relação, verificados que estejam os requisitos impostos pela lei. No entanto, adverte que «Nesta operação foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente».

O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou, em diversos acórdãos, sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, firmando uma linha jurisprudencial que iremos procurar sintetizar.

No que diz respeito ao enquadramento processual da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 3/12/2015, proferido no processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1.S1 (Revista-4.ª Secção), que se o Tribunal da Relação decide não conhecer da reapreciação da matéria de facto fixada na 1.ª instância, invocando o incumprimento das exigências de natureza formal decorrentes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tal procedimento não configura uma situação de omissão de pronúncia.

No mesmo acórdão refere-se que o art.º 640.º, do Código de Processo Civil exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.

Acrescenta-se que este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1e 2 do CPC.

Por fim, conclui-se que versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.

A propósito do conteúdo das conclusões, o acórdão de 11-02-2016, proferido no processo n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, refere que tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna (Cfr. no mesmo sentido acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção).

No que diz respeito à exigência prevista na alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o acórdão de 20-12-2017, proferido no processo n.º 299/13.2TTVRL.C1.S2 (Revista) - 4ª Secção, afirma com muita clareza que quando se exige que o recorrente especifique «[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», impõe-se que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.

Quanto ao caso em análise no aludido acórdão referiu-se que não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três «blocos distintos de factos» e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

Acerca da natureza do ónus de alegação, quando se pretenda impugnar a matéria de facto, o acórdão de 09-02-2017, proferido no processo n.º 471/10.7 TTCSC.L1.S1 (Revista – 4.ª Secção), sublinhou que «Ao impor um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, daí que o prazo acrescido de 10 dias só seja aplicável quando o recorrente o use efetivamente para impugnar a matéria de facto».

Finalmente, na linha da doutrina (Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016-3.ª Edição, Almedina, pág. 142), o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito (Cfr. acórdãos de 7/7/2016, proferido no processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1 e de 27/10/2016, proferido no processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, ambos da 4.ª Secção).

No caso concreto dos autos, resulta das alegações e conclusões, apresentadas pela recorrente perante o Tribunal da Relação, que a mesma ficou inconformada com a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância relativa à matéria de facto, alinhada sob os pontos 1 a 24 da fundamentação de facto.

No entanto, nas suas alegações e conclusões, quando impugna a referida decisão, não faz qualquer referência aos pontos da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da 1ª Instância.

Na verdade, como resulta das suas alegações e conclusões, nomeadamente dos pontos 5º e 85º destas últimas, é sempre feita referência aos artigos da petição inicial e da contestação.

Assim, no ponto 85.º das suas conclusões a recorrente conclui que perante a prova produzida deveriam ser dados como não provados os artigos 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º e 14º da petição inicial e por sua vez provados os artigos 8º, 10º, 11º, 16º, 17º, 18º, 21º, 23º, 24º, 25º, 27º, 28º, 29º, 32º, 33º, 35º, 37º, 39º, 40º, 44º, 45º, 46º e 47º da contestação.

No seguimento desta proposição a recorrente indica os meios de prova constantes da gravação realizada no processo, bem como os documentos, que no seu entender impunham a decisão por si preconizada. Assim, procede à transcrição parcial das declarações prestadas por EE, DD, II, JJ e DD.

De seguida, procede a uma análise da prova produzida tendo em consideração determinados tópicos que enumera: «Do horário de trabalho», «Da inexistência de ordens/Instruções», «Da retribuição», «Das outras atividades desenvolvidas pelo Sr. BB» e «Do escritório e partes integrantes e componentes onde funcionava a recorrente».

Das alegações e conclusões do recurso de apelação resulta assim que houve uma desconsideração da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de 1.ª Instância, procurando a recorrente demonstrar, de uma forma genérica, que a decisão devia ser outra, no caso a constante dos artigos 8º, 10º, 11º, 16º, 17º, 18º, 21º, 23º, 24º, 25º, 27º, 28º, 29º, 32º, 33º, 35º, 37º, 39º, 40º, 44º, 45º, 46º e 47º da contestação.

Com efeito, a recorrente não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a transcrever as declarações, a mencionar documentos, tomando como referência determinados tópicos que elencou, descurando uma impugnação pontual, tal como é imposta pela lei.

O acolhimento da pretensão da recorrente traduzir-se-ia numa total reapreciação da prova pela 2.ª Instância e a abertura do caminho à admissibilidade de recursos genéricos, o que não foi querido pelo legislador.

                                                           III

            Decisão:

           Face ao exposto acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Após o trânsito remeta-se à formação para efeitos do disposto no artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil.

Custas a cargo da recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 11 de abril de 2018

Chambel Mourisco (Relator)

Pinto Hespanhol

Gonçalves Rocha