Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
858/19.0T8EVR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CRIME
INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO
REQUISITOS
Data do Acordão: 12/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
A interrupção da prescrição por causa da pendência de um processo penal pressupõe que a pendência do processo penal seja impeditiva da propositura da acção de indemnização cível.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. — RELATÓRIO

1. AA, BB e CC propuseram a presente acção declarativa de condenação contra a Fidelidade-Companhia de Seguros, SA.

2. Pediram que a Ré fosse condenada:

I. — a pagar ao Autor AA, os seguintes valores:

(i) 47.731,94€, a título de perdas salariais resultantes do período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho;

(ii) 376,40€ a título de despesas suportadas em consequência do sinistro a que se reportam os autos;

(iii) 7.805,00€ a título de danos futuros;

(iv) 50.000,00€ a título de dano biológico enquanto IPP - Incapacidade permanente parcial;

(v) 40.000,00€ a título de dano biológico enquanto dano não patrimonial;

II. — a pagar à Autora BB os seguintes valores:

(i) 5.280,00€ a título de danos patrimoniais futuros;

(ii) 4.832,89€ a título de dano biológico enquanto IPP - Incapacidade permanente parcial;

(iii) 30.000,00€ a título de dano biológico enquanto dano não patrimonial;

III. — a pagar ao Autor CC, os seguintes valores:

(i) 6.120,00€ a título de danos patrimoniais futuros;

(ii) 25.852,17€ a título de dano biológico enquanto IPP - Incapacidade permanente parcial;

(iii) 50.000,00€ a título de dano biológico enquanto dano não patrimonial.

3. A Ré Fidelidade-Companhia de Seguros, SA, contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção.

4. Invocou a excepção peremptória de prescrição dos direitos invocados pelos Autores.

5. O Tribunal de 1.ª instância julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré a pagar ao autor CC a quantia de 27.500,00€ a titulo de indemnização, absolvendo a ré do demais peticionado.

6. Inconformados, oa Autores AA, BB e CC e a Ré Fidelidade-Companhia de Seguros, SA, interpuseram recursos de apelação.

7. O Tribunal da Relação:

I. — julgou totalmente improcedente a apelação dos Autores.

Ii. — julgou parcialmente procedente a apelação da Ré e, em consequência, reduziu para 24.000,00 € o valor da indemnização que a Ré Fidelidade-Companhia de Seguros, SA, foi condenada a pagar ao Autor CC.

8. Inconformados, os Autores AA e BB interpuseram recurso de revista.

9. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

PRIMEIRO. O presente recurso vem interposto do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, que decidiu julgar improcedente o recurso de apelação apresentado pelos autores ora recorrentes AA e BB da decisão proferida pelo Tribunal de 1.º Instância nos autos do processo número 858/19.0T8EVR.

SEGUNDO. Entendeu o Tribunal da Relação de Évora confirmar a decisão proferida pelo Tribunal de 1.º Instância, que julgou procedente a excepção perentória invocada pela ré recorrida, nomeadamente, a prescrição do direito de indemnização peticionado pelos autores AA e BB.

TERCEIRO. Sucede que, com tal decisão, não se conformam os autores ora recorrentes AA e BB, uma vez que, ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação de Évora incorreu em erro manifesto e grosseiro na interpretação e aplicação de normas sobre a contagem e interrupção do prazo prescricional e, consequentemente, violou o disposto no artigo 498.º, número 1 do Código Civil, incorrendo em absoluta contradição com a lei e negando, de forma inadmissível, ao aos autores ora recorrentes AA e BB do seu direito constitucionalmente consagrado de acesso à Justiça – é assim a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora susceptível de recurso de revista nos termos do disposto no artigo 671.º do Código de Processo Civil.

QUARTO. Em simultâneo, é ainda a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, susceptível de recurso nos termos do disposto nos artigos 629.º, 671.º, número 1 e 672.º, número 1, alínea a), número 2 e número 3 do Código de Processo Civil,por estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, uma vez que, atenta a matéria de facto fixada nos presentes autos, a questão de fundo era a de saber quando se deu início à contagem do prazo de prescrição de cinco anos aplicável aos direitos dos autores ora recorrentes AA e BB e, consequentemente, a de saber se, à data da entrada da acção pelos mesmos intentada, o terminus daquele prazo se havia já findado ou não, impedindo a apreciação dos seus pedidos.

QUINTO. Sobre a questão descrita, é manifesta a incerteza legislativa e jurisprudencial relativa à interpretação a dar ao número 1 do artigo 498.º do Código Civil, nomeadamente quanto ao sentido a dar à previsão normativa em causa, pelo que a mesma preenche, por si só, o pressuposto de admissibilidade da revista excecional constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, impondo-se – porque assim não existe na legislação e jurisprudência portuguesa – esclarecimento cabal quanto ao sentido a dar ao conceito de conhecimento do direito e a determinação do momento em que se inicia a contagem do prazo de prescrição, evitando as consequências nefastas como as dos presentes autos, resultantes da conjugação daquela norma com os demais normativos jurídicos –como, incasu, sejam os artigos 148.º, número 1 e número 3, 144.º e 118.º, número 1, alínea c), todos estes do Código Penal

SEXTO. Conforme resulta expressamente do teor decisão ora em recurso, a questão a decidir naqueles autos de recurso centrava-se na verificação, ou não, da prescrição dos direitos indemnizatórios dos autores AA e BB.

SÉTIMO. Em causa, e conforme resulta da matéria de facto provada, estava em causa o seguinte: a. a ... de dezembro de 2011 ocorreu um acidente de viação, que fundamenta a causa de pedir dos presentes autos; o acidente de viação envolveu um veículo automóvel conduzido pelo autor ora recorrente AA, no qual circulava como passageira a autora ora recorrente BB; o acidente foi causado pelo veículo seguro na ré; b. sucede que: a ocorrência do sinistro deu lugar ao processo de inquérito número 200/11.8...-E1, no âmbito do qual o autor ora recorrente AA figurou na qualidade de arguido, tendo o mesmo findado, definitivamente, somente a 13de maio de 2014, com decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora que confirmou o despacho de não pronúncia proferido nos autos do processo número 200/11.8...-E1; uma vez notificado aquela decisão aos autores ora recorrentes AA e BB em 15 de maio de 2014, intentaram os mesmos, contra a ré ora recorrida, por ser a mesma a seguradora do veículo causador do sinistro, acção declarativa de condenação com vista ao ressarcimento dos danos sofridos a 10 de maio de 2019, tendo sido a ré ora recorrido citada para a mesma em 15 de maio do mesmo ano.

OITAVO. A acção que originou os presentes autos deu entrada dentro do prazo de prescrição de 5 (cinco) anos a que alude o artigo 498.º, número 1 número 3 do Código Civil conjugado com os artigos 148.º, número 1 e número 3, 144.º e 118.º, número 1, alínea c), estes do Código Penal.

NONO. Não obstante o pugnado pelos autores AA e BB, quer em sede de primeira instância quer em sede de instância de recurso, nomeadamente, que a contagem do prazo de prescrição dos seus direitos se havia iniciado (tão só) no momento do conhecimento, pelos mesmos, do Acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora – já que foi no âmbito daqueles autos que se definiu a responsabilidade pelo acidente sofrido a ... de dezembro de 2011 – o Tribunal da Relação de Évora, confirmando aquele que havia sido o entendimento do Tribunal de 1.º Instância, decidiu considerar que, à data da propositura da acção, já havia decorrido o prazo de prescrição de cinco anos.

DÉCIMO. Não podem os autores AA e BB aceitar tal entendimento, uma vez que, sobre o início da contagem do prazo de prescrição de 5 (cinco) anos, incorreu também o Tribunal da Relação de Évora em erro grosseiro e manifesto na interpretação e aplicação do artigo 498.º, número 1 do Código Civil, ao considerar que os lesados dos presentes autos tomaram conhecimento do seu direito – para efeitos do início da contagem de prazo de prescrição – no próprio dia em que o acidente ocorreu – e, assim, que o prazo de prescrição dos direitos decorrentes do mesmo, havia terminado 5 (cinco) anos após a ocorrência do acidente.

DÉCIMO PRIMEIRO. Sucede que, o prazo de prescrição não só não se iniciou no dia do acidente, como se interrompeu por força da existência de processo crime a correr seus autos.

DÉCIMO SEGUNDO. Os direitos ao ressarcimento dos danos sofridos pelos autores AA e BB têm a sua origem na concreta conduta da conduta da viatura segura pela ré, a qual estava a ocupar indevidamente a parte da faixa de rodagem por onde aqueles circulavam, postada de forma perpendicular à dita faixa de rodagem, pelo que, questionando-se qual o momento em que souberam, os autores AA e BB, desse facto, nomeadamente, de que o acidente se ficou a dever à conduta da condutora do veículo seguro pelaré, arespostaésó uma:a 15demaio de2014, quando o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora no âmbito dos autos do processo número 200/11.8...-E1 lhes foi notificado.

DÉCIMO TERCEIRO. Ao contrário do que sustentou o Tribunal da Relação de Évora, não é verdade que o direito dos autores ora recorrentes não dependia do apuramento, em sede de processo crime, da responsabilidade pela ocorrência do acidente que os vitimou, uma vez que, à autora BB, era possível – ao contrário da conclusão do Tribunal da Relação de Lisboa, ao afirmar que não era possível fazê-lo – nos autos do processo número 200/11.8...-E1 deduzir pedido de indemnização cível contra o autor AA, caso se verificasse a responsabilidade do mesmo pela ocorrência do acidente.

DÉCIMO QUARTO. Caso se tivesse vindo a apurar a responsabilidade do autor AA no âmbito do processo crime número 200/11.8...-E1, era no mesmo que a autora BB apresentaria o seu pedido de indemnização cível; não tendo tal ocorrido, ficou a mesma legitimada a recorrer às instâncias cíveis para o exercício do seu direito – que, apenas no momento da notificação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora a 15 de maio de 2014, ficou a conhecer de forma devida e cabal, pois só nessa data conheceu da atribuição de responsabilidades pelo mesmo.

DÉCIMO QUINTO. Eo mesmo se diga quanto ao autor AA, que tão só recorre às instâncias cíveis, uma vez tomando conhecimento do seu direito – que se verificou ocorrer quando verificada a inexistência de qualquer responsabilidade sua pelo sinistro ocorrido e, pelo contrário, se confirmando ser, a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos da ré, enquanto seguradora responsável pelo veículo causador do sinistro.

DÉCIMO SEXTO. Não obstante, mesmo se entendendo que a prescrição começou a contar na data do acidente, a ... de dezembro de 2011, a mesma sempre se interrompeu com o processo crime número 200/11.8...-E1, uma vez atento o princípio da adesão expressamente previsto no artigo 71.º do Código de Processo Penal.

DÉCIMO SÉTIMO. Atento o disposto no artigo 71.º e 72.º do Código de Processo Penal, a conclusão é simples: a. o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo; b. o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, mas não tem que o ser; c. o momento processualmente adequado à dedução do pedido civil é a fase de acusação, que antecede o julgamento; d. o efeito preclusivo do direito do lesado ocorre somente quando este notificado da possibilidade de deduzir o pedido de indemnização civil no processo penal não o faz.

DÉCIMO OITAVO. Posto isto, atento o regime processual aplicável, em concreto, ao direito da autora ora recorrente BB, é de concluir, de forma inequívoca, que a prescrição dos seus direitos não se iniciou enquanto esteve pendente um processo penal impeditivo ou que determinasse a inexigibilidade de exercício do exercício do seu direito indemnizatório, nos termos do disposto no artigo 306°, número 1, do Código Civil.

DÉCIMO NONO. Ou seja, o princípio da adesão consagrado no artigo 71.º do Código de Processo Penal determina duas realidades inquestionáveis:

- quando verificada a adesão obrigatória, o princípio da adesão determina a impossibilidade absoluta de apresentação de pedido de indemnização cível em separado; - quando verificada a adesão facultativa, o princípio da adesão determina a inexigibilidade de apresentação de pedido de indemnização cível em separado; no primeiro caso, a prescrição suspende-se em absoluto, no segundo cenário opera a suspensão da consumação da prescrição; assim o sendo, sobretudo, por razões de certeza e de segurança jurídicas.

VIGÉSIMO. Como já se disse, no caso sub judice, a autora e ora recorrente BB podia, em abstracto, deduzir pedido de indemnização cível em separado, perante uma instância cível, mas não tinha que o fazer, dado que, se fosse proferida acusação contra o seu pai no âmbito do processo crime número 200/11.8...-E1, era naquele que iria apresentar o seu pedido de indemnização cível, pelo que não é de admitir que a pendência do processo crime correspondente não assuma qualquer relevância como facto interruptivo da prescrição do direito de indemnizar ou, pelo menos, causa para a suspensão da consumação da prescrição.

VIGÉSIMO PRIMEIRO. Destarte, só depois de esgotadas as possibilidades de punição criminal – que se verificou ocorrer em 15 de maio de 2014 – é que ficou a autora ora recorrente BB, enquanto lesada, habilitada a deduzir, em separado, acção de indemnização fundada em responsabilidade civil extracontratual; o mesmo se invocando quanto ao autor ora recorrente AA, nomeadamente quanto ao momento em que toma conhecimento do seu direito.

VIGÉSIMO SEGUNDO. Não reconhecer a relevância do processo crime número 200/11.8...-E1 como causa de interrupção da prescrição ou como causa para a suspensão da sua consumação, como fez o Tribunal de 1.º Instância e o Tribunal da Relação de Évora, mais não representou que negar à autora e ora recorrente BB, o exercício da acção cível enquanto lesada, só porque viu o processo crime findar decorridos quase 3 (três) anos sobre a verificação dos factos danosos, apesar desse processo de natureza penal ter estado sempre em andamento "normal" durante aquele período de tempo.

VIGÉSIMO TERCEIRO. Tudo ponderado, tendo a acção sido intentada em 10 de maio de 2021, com a citação da ré ora recorrida para a mesma em 15 de maio de 2021, e assim, antes de decorrido o prazo de 5 (cinco) anos contados desde 14 de maio de 2014, não se encontrava ainda prescrito o peticionado direito da autora ora recorrente BB à indemnização.

VIGÉSIMO QUARTO. Há, pois assim, que censurar a decisão das instâncias na parte em que julgaram procedente a arguida excepção de prescrição do direito de indemnização da autora ora recorrente BB à indemnização, censurando igualmente as mesmas na parte em que julgaram procedente a arguida excepção de prescrição do direito de indemnização do autor ora recorrente AA à indemnização.

VIGÉSIMO QUINTO. Isto porque, resulta da conjugação do artigo 498.º, número 1 e número 3 do Código Civil com os artigos 148.º, número 1 e número 3, 144.º e 118.º, número 1, alínea c), todos estes do Código Penal, que, e no caso sub judice, o direito de indemnização ao autor ora recorrente AA prescreveria no prazo de 5 (cinco) anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.

VIGÉSIMO SEXTO. Sucede que, tal como o Julgador ad quo, também o Julgador ad quemincorreu em grave erro de interpretação e aplicação do artigo 498.º, número 1 do Código Civil, nomeadamente na interpretação e significado dado à expressão «conhecimento do direito».

VIGÉSIMO SÉTIMO. Determina a concepção normativista, quanto à interpretação a ser dada à expressão «conhecimento do direito», que esta compreende o conhecimento do direito enquanto direito, ou seja, e no caso sub judice, o conhecimento por parte do autor ora recorrente AA enquanto lesado, de que se encontra juridicamente habilitado a exigir de terceiro o ressarcimento dos danos por si sofridos e por aquele causados; noutras palavras, nomeadamente nas de Vaz Serra, compreende o conhecimento do direito nos seguintes termos: «quem não tem esse conhecimento – entenda-se, de que o direito à indemnização é juridicamente fundado – não sabe se pode exigir a indemnização, não se achando, portanto, nas condições que constituem a razão de ser da prescrição».

VIGÉSIMO OITAVO. Em sentido oposto, manda a concepção realista interpretar a expressão «conhecimento do direito» como o conhecimento dos pressupostos que condicionam a responsabilidade civil, ou seja, o conhecimento dos factos constitutivos do direito indemnizatório, independentemente da consciência da valoração jurídica que sobre eles impende.

VIGÉSIMO NONO. Recorde-se que o autor ora recorrente AA viu-se constituído arguido na sequência do acidente ocorrido a ... de dezembro de 2011, mantendo tal convicção (de que era o responsável pela produção do acidente) até 15 de maio de 2014, data em que foi notificado do Acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora cujo teor foi já supra descrito.

TRIGÉSIMO. Portanto, quer se olhe os presentes autos sob o prisma da concepção realista, quer se os olhe sob o prisma da concepção normativista, a verdade é uma só: o autor ora recorrente AA teve conhecimento do seu direito a 15 de maio de 2014, uma vez que, até então, não tinha conhecimento do seu direito de forma alguma, nem do seu direito enquanto direito, i.e., enquanto direito que o habilitasse juridicamente a exigir de terceiro o ressarcimento dos danos por si sofridos e por aquele causados; nem tão pouco tinha conhecimento do seu direito, na medida dos pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, o conhecimento dos factos constitutivos do seu direito indemnizatório, independentemente da consciência da valoração jurídica que sobre eles impenderia.

TRIGÉSIMO PRIMEIRO. O que resulta da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa mais não é que uma sanção ao autor ora recorrente AA, com a impossibilidade de exercer um direito, por não ter tido conhecimento do seu direito.

TRIGÉSIMO SEGUNDO. Mas mais! Ao referir-se ao «conhecimento do direito», o artigo 498.º do Código Civil, no seu número 1, requer não só o conhecimento de que o dano foi causado por um terceiro, como ainda, na qualidade de facto constitutivo, o conhecimento do concreto facto causador do dano, o que determina que a prescrição apenas possa iniciar quando o lesado tenha obtido um conhecimento completo sobre os pressupostos da responsabilidade civil, revelando-se o conhecimento parcial ou temporalmente segmentado insuficiente para que o prazo de prescrição se inicie.

TRIGÉSIMO TERCEIRO. É pois, inquestionável, que à data do acidente – ... de dezembro de 2011 – o autor ora recorrente AA não teve conhecimento dos factos constitutivos do direito, não tendo ocorrido, para efeitos do disposto no artigo 498.º do Código Civil e, assim, para efeitos doiníciodacontagemdo prazodeprescrição de5(cinco)anos,qualquer «conhecimento do direito», tendo tal ocorrido, tão só, a15demaio de2014.

TRIGÉSIMO QUARTO. E ainda no que respeita ao conhecimento do direito em si, importa atender ao alcance do termo conhecer, uma vez que, aa estabelecer-se que a prescrição se inicia com o conhecimento do direito pelo lesado, deve entender-se então que a prescrição se inicia não apenas com o conhecimento efetivo, mas ainda com o conhecimento exigível – conhecimento este que deve ser apurado em através de uma interpretação sistemática e em conformidade com o regime prescricional previsto no artigo 498.º, número 1 do Código Civil e com as valorações que se encontram vertidas no mesmo diploma nos artigos 334.º (referente ao abuso de direito), 570.º, número 1 (referente à culpa do lesado) e ainda no artigo 805.º, número 2, alínea c) (referente ao momento da constituição em mora).

TRIGÉSIMO QUINTO. A lei é inequívoca quanto àquele que é o conhecimento efectivo e exigível de, no caso sub judice, de um direito – veja-se a tutela intensa e efectiva do lesado através do oferecimento ao mesmo de um conhecimento efetivo acerca do seu direito, em contrapartida enfraquecendo o padrão de diligência exigível ao lesado, que resulta do artigo 75.º do Código de Processo Penal.

TRIGÉSIMO SEXTO. Com o devido respeito, ignoraram, quer o Julgador a quo quer o Julgador ad quem, a inequívoca preocupação do legislador com o conhecimento efetivo e com o conhecimento exigível do lesado quanto aos seus direitos, com relevância para o início da contagem do prazo de prescrição ou para a suspensão da consumação da prescrição.

TRIGÉSIMO SÉTIMO. Posto isto, é imperativo que se considere que o autor ora recorrente AA apenas obteve o conhecimento do seu direito indemnizatório a 15 de maio de 2014, data em que se constituiu a prescrição de 5 (cinco) anos correspondente e a qual se encontrara, até então, pendente, dando-se assim, ao artigo 498.º do Código Civil, nomeadamente ao seu número 1, o sentido que o legislador lhe pretendeu dar, nomeadamente, o da verificação de um conhecimento efectivo do direito e não apenas o da mera cognoscibilidadedo direito –o mesmo valendo, mutatismutandis, paraaautora ora recorrente BB, nos termos igualmente supra pugnados, que não se voltam a reproduzir por uma questão de economia processual.

TRIGÉSIMO OITAVO. Termos em que pugnam os autores ora recorrentes AA e BB pela revogação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora, substituindo-se a mesma por outra que julgue improcedente a excepção de prescrição invocada pela ré ora recorrida, assim se proferindo decisão quanto aos pedidos indemnizatórios formulados pelos autores ora recorrentes AA e BB.

TERMOS EM QUE, REQUEREM OS AUTORES ORA RECORRENTES AA E BB, QUE SEJA O PRESENTE RECURSO DE REVISTA JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SEJA REVOGADO O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA ORA RECORRIDO, ORDENANDO-SE A REMESSA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE 1.º INSTÂNCIA, A FIM DE PROFERIR DECISÃO QUANTO ÀS QUESTÕES E MATÉRIAS CUJA APRECIAÇÃO FICOU PREJUDICADA PELO JULGAMENTO DA PROCEDÊNCIA DA EXCEPÇÃO DE PRESCRIÇÃO QUANTO AOS DIREITOS INDEMNIZATÓRIOS DOS AUTORES ORA RECORRENTES AA E BB

POIS SÓ ASSIM DECIDINDO, SERÁ CUMPRIDO O DIREITO E SERÁ FEITA A COSTUMADA JUSTIÇA!

10. A Ré Fidelidade — Companhia de Seguros, SA, contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade e, subsidiariamente, pela improcedência do recurso.

11. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1 – Do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora não cabe revista excepcional por não se verificarem os pressupostos do n.º 1 do art.º 672,º do Código de Processo Civil, pelo que o presente recurso não deverá ser admitido.

2 - O direito dos autores AA e BB encontra-se prescrito por terem decorrida mais de sete anos entre a data do acidente que corresponde ao conhecimento destes dos seus direitos e a data da citação da ré.

3 – A existência de um processo criminal em que aqueles autores não têm a qualidade de lesados mas o primeiro de lesante e arguido não tem qualquer efeito interruptivo da prescrição.

4 – O douto acórdão recorrido não merece qualquer censura, devendo ser confirmado.

12. O recurso de revista foi admitido pela Formação prevista no artigo 672.º do Código de Processo Civil.

13. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigo 608.º, n.º 2, por remissão do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a questão a decidir, in casu, é tão-só a seguinte — de que data deve contar-se o prazo de prescrição do direito à indemnização dos Autores, agora Recorrentes, AA e BB pelos danos decorrentes do acidente de viação de ... de dezembro de 2011.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

14. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

1. - No dia ... de dezembro de 2011, pelas 10hl5m, AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca BMW com a matrícula ..-LX- .., na autoestrada n.e ..., no sentido O/E- M...-C..., concelho de ..., Distrito de ....

2. — CC, filho de AA, seguia no referido veículo, sentado no banco traseiro atrás do condutor, enquanto passageiro.

3. — BB, filha de AA, seguia naquele mesmo veículo, ocupando o lugar do passageiro ao lado do condutor.

4. — Na mesma via e sentido, circulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca PEUGEOT 207 W e de matrícula ..-EE-.. conduzido por DD.

5. — No veículo referido em 4., seguia, enquanto passageiro, EE sentado no lugar ao lado do condutor.

6. — Sucede que, ao quilómetro 117.162, enquanto o LX circulava na via de trânsito mais à direita, foi surpreendido pelo aparecimento súbito e inesperado e na perpendicular do veículo EE.

7. — Nessa altura, o LX embateu com a parte frontal na lateral direita do EE.

8. — A via onde seguiam os dois veículos configura uma reta em patamar, com duas vias de trânsito no mesmo sentidos.

9. — Na hora do sinistro fazia-se sentir nevoeiro intenso, sendo a visibilidade reduzida entre os 30 m e os 50m.

10 — No local a velocidade máxima permitida é de 120 Km/hora.

11. — Como consequência direta e necessária do embate, DD e EE faleceram.

12. — O autor CC como consequência direta do sinistro sofreu traumatismo crânio- encefálico sem perda de conhecimento, com presença de sangue na cisterna perimesencálica (nas regiões interpendular e lateral esquerda), bulbar e III ventrículo, contusão pulmonar, parésia do IV e VI pares cranianos esquerdos com consequente estrabismo convergente e diplopia, tendo sido conduzido aos serviços de urgência do Hospital ... de ..., estabilizado e transferido no mesmo dia para o Centro Hospitalar ..., EPE, Hospital de ..., serviço de cirurgia pediátrica onde ficou internado até ao dia ... .12.2021.

13. — Ainda no Hospital ... de ... realizou tomografia computorizada (TAC) da cabeça, exame que voltou a repetir no Hospital de ....

14. — Em 03 de Janeiro de 2012 foi seguido em consulta externa de neurocirurgia pediátrica.

15. — Em 13 de Janeiro e 10 de Fevereiro de 2012 foi submetido a injeção de toxina botulínica ao olho esquerdo.

16. — Assim como foi submetido, até Maio de 2012, a oclusões alternadas.

17. — Em 23 de Junho de 2015 foi observado em consulta oftalmológica apresentando perceção simultânea e fusão estereopsia, mantendo diplopia.

18. — CC antes do sinistro apresentava diminuição da acuidade visual, para a qual usava óculos de correção.

19. — As lesões sofridas pelo Autor em consequência do sinistro acima referido consolidaram-se em 21.12.2012.

20. — Tais lesões determinaram para o Autor:

a. Um período de défice funcional temporário total de 09 dias;

b. Um período de défice funcional temporário parcial de 381 dias;

c. Um período de repercussão temporária nas atividades escolares de 55 dias;

d. Um quantum doloris fixável no grau 5/7;

e. Um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 5 pontos em 100 possíveis.

21. — CC nasceu em ... de ... de 2005.

22. — À data do sinistro CC era uma criança alegre e bem-disposta.

23. — O acidente em si, o transporte para o hospital, os tratamentos, o período de doença e as lesões sofridas, provocaram a CC susto e dores.

24. — Assim como se sentiu desorientado e confuso.

25. — Na data referida em 1., encontrava-se em vigor um acordo de seguro titulado pela apólice n.Q AU2282128, pelo qual DD declarou transferir para a ré Seguradora a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula EE, que a Ré declarou aceitar.

26. — O valor da remuneração média nacional em 2019 era de € 1.005,1.

O DIREITO

15. Em relação aos pedidos dos Autores AA e BB, agora Recorrentes, o Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação concordaram em julgar procedente a excepção peremptória de prescrição.

16. O artigo 498.º do Código Civil determina:

1. — O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso.

2. — Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis.

3. — Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.

4. — A prescrição do direito de indemnização não importa prescrição da acção de reivindicação nem da acção de restituição por enriquecimento sem causa, se houver lugar a uma ou a outra 1.

17. Em concreto, o comportamento de DD era, em abstracto, susceptível de preencher o tipo legal de crime de ofensa à integridade física por negligência.

18. O artigo 148.º do Código Penal é do seguinte teor:

1. — Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2. — No caso previsto no número anterior, o tribunal pode dispensar de pena quando:

a) O agente for médico no exercício da sua profissão e do acto médico não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias; ou

b) Da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 3 dias.

3. — Se do facto resultar ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

4. — O procedimento criminal depende de queixa.

19. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que “a ampliação do prazo prescricional não depende da efectiva instauração de processo crime mas, tão-somente, da tipificação, no âmbito da acção indemnizatória de natureza cível, do comportamento do agente” 2.

20. Estando em causa o crime descrito no n.º 3 do artigo 148.º do Código Penal — logo, um crime punível com pena de prisão “cujo limite máximo [é] igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos” —, deveria aplicar-se a alínea c) do n.º 1 do artigo 118.º do Código de Processo Penal:

“o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido […] cinco anos”.

21. Em consequência, o Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação de Évora aplicaram ao caso o prazo de prescrição de cinco anos.

22. O problema está, tão-só, em averiguar se o prazo de prescrição de cinco anos deve contar-se:da data do acidente — ... de dezembro de 2011 — ou da data em que o Autor, agora Recorrente, AA, foi notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a decisão de não pronúncia — 15 de Maio de 2014.

23. O Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação de Évora consideraram que devia contar-se da data do acidente.

24. Como a presente acção só foi proposta em 10 de Maio de 2019, julgaram procedente a execepção peremptória de prescrição deduzida pela Ré.

25. Os Autores, agora Recorrentes, AA e BB alegam que deve contar-se da data em que o Autor, agora Recorrente, AA, foi notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a decisão de não pronúncia — 15 de Maio de 2014.

26. Como a presente acção foi proposta em 10 de Maio de 2019 e como a Ré foi citada para a presente acção em 15 de Maio de 2019, alegam que deve julgar-se improcedente a excepção peremptória de prescrição:

“somente a 13de maio de 2014, com decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora que confirmou o despacho de não pronúncia proferido nos autos do processo número 200/11.8...; uma vez notificado aquela decisão aos autores ora recorrentes AA e BB em 15 de maio de 2014, intentaram os mesmos, contra a ré ora recorrida, por ser a mesma a seguradora do veículo causador do sinistro, acção declarativa de condenação com vista ao ressarcimento dos danos sofridos a 10 de maio de 2019, tendo sido a ré ora recorrido citada para a mesma em 15 de maio do mesmo ano” 3.

27. O argumento deduzido é, em síntese, o seguinte:

I. — O Autor AA foi arguido em processo crime por homicídio negligente de DD e de EE. II. — O prazo de prescrição do artigo 498.º do Código Civil só teria começado a correr no dia em que o Autor, agora Recorrente, AA tivesse tomado conhecimento do seu direito. III. — O dia em que o Autor, agora Recorrente, AA teria tomado conhecimento do seu direito teria sido o dia em que foi notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a decisão de não pronúncia — 15 de Maio de 2014.

IV. — Em todo o caso, ainda que o prazo de prescrição do direito à indemnização tivesse começado a correr no dia do acidente, sempre se teria interrompido por causa do processo penal instaurado contra o Autor, agora Recorrente, AA.

28. O artigo 323.º do Código Civil é do seguinte teor:

1. — A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.

2. — Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.

3. — A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.

4. — É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.

29. O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, constantemente, que o artigo 323.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil deve articular-se com o artigo 71.º do Código de Processo Penal:

O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.

30. Ora, articulando o 323.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil com o artigo 71.º do Código de Processo Penal deve considerar-se que o prazo de prescrição se interrompe desde o início 4 e durante a pendência 5, até ao termo do processo penal.

“Estando, por força do princípio da adesão do pedido indemnizatório à acção penal (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal), todos os lesados impedidos de deduzir aquele pedido, em separado, nos tribunais cíveis, a contagem do prazo de prescrição do direito de indemnização não se inicia antes de proferido o despacho de acusação / de arquivamento, em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil” 6.

31. Em todo o caso, a interrupção da prescrição por causa da pendência de um processo penal pressupõe que a pendência do processo penal seja, ainda que temporária ou transitoriamente, impeditiva da propositura da acção de indemnização cível, em resultado do princípio da adesão.

32. O problema está em que, em concreto, a pendência do processo penal contra o Autor AA não era impeditiva da propositura da acção de indemnização cível contra a Ré, como seguradora de DD — e, em todo o caso, nunca seria impeditiva da propositura da acção de indemnização cível contra a Ré em resultado do princípio da adesão.

33. Os factos imputados a AA e a DD são distintos — o facto imputado a AA corresponderia a um crime de homicídio por negligência e o facto imputado a DD, a um crime de ofensas corporais por negligência —, logo, o processo penal por que se averiguava se AA deve responder pelo crime de homicídio por negligência em nada impedia que propusesse uma acção de indemnização contra a Ré, como seguradora de DD.

34. O Autor AA, ainda que fosse arguido no processo penal n.º 200/11.8...-E1, sempre podia ter proposto uma acção de indemnização cível contra a Ré.

35. Com efeito, DD não era , e não podia ser, arguida em nenhum processo crime — logo, o Autor AA não estava, e não podia estar, impedido de propor uma acção de indemnização cível contra a Ré, como seguradora de DD.

36. O princípio da adesão significa que “[o] pedido de indemnização fundado na prática de um crime […] deve ser formulado em processo penal […]” 7 — ora, em concreto, o pedido de indemnização não se fundava na prática do crime discutido no processo penal n.º 200/11.8...-E1.

37. Evitando a alegação de que a pendência do processo penal contra o Autor AA era directamente impeditiva da propositura da acção de indemnização cível contra a Ré, os Autores, agora Recorrentes, sustentam que a pendência do processo penal era indirectamente impeditiva da propositura da acção de indemnização.

38. O artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil determina que o prazo de prescrição começa a correr na data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete — ora os Autores, agora Recorrentes, alegam que o lesado só teve conhecimento do direito que lhe competia no dia em que foi notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a decisão de não pronúncia, ou seja, no dia 15 de Maio de 2014.

39. O Tribunal de 1.ª instância responde á alegação dos Autores, agora Recorrentes, de forma mais analítica, dizendo que

“Em primeiro: os autores BB e CC sequer figuravam como parte no invocado processo crime [nada nesse sentido foi invocado, e sequer se retira dos documentos juntos], razão pela qual não poderiam aí deduzir qualquer pedido de indemnização cível; Em segundo: o autor AA figurava naqueles autos de inquérito na qualidade de arguido, e não de ofendido [pelo menos nada se diz quanto à eventual qualidade de ofendido, sequer se retira dos documentos juntos], razão pela qual também aí não poderia deduzir qualquer pedido de indemnização cível; Em terceiro: ainda que o autor AA estivesse a aguardar o desfecho do processo crime, nenhum impeditivo legal obstava a que, pelo menos os autores BB e CC, fizessem valer separadamente os seus direitos [ainda que se veja utilidade na instauração de uma única acção, em coligação dos Autores, não é imperativo legal]; Em conclusão: não vislumbramos, pois, qualquer obstáculo legal que, após o sinistro, impedisse os Autores de fazerem valer, em acção cível, tomaram conhecimento desse direito”.

40. O Tribunal da Relação responde-lhe de forma mais sintética, dizendo que

“[o] direito à indemnização em causa nos presentes autos emerge do evento danoso (acidente de viação) ocorrido no dia ... de dezembro de 2011 e a tomada de conhecimento dos autores desse direito ocorre, no mesmo dia, pois é nesse dia que sofrem danos, os quais atribuem a uma concreta conduta da condutora da viatura segura pela ré, a qual estava a ocupar indevidamente parte da faixa de rodagem por onde os primeiros circulavam, postada de forma perpendicular à dita faixa de rodagem.

Ao contrário do que sustentam os apelantes-autores, a sua tomada de conhecimento do direito de indemnização que lhes assistia emergente dos danos que sofreram nas respetivas esferas jurídicas não dependia, nem depende, do apuramento em sede de processo crime da responsabilidade pela ocorrência do sinistro que vitimou mortalmente a condutora do veículo seguro pela ré e, portanto, não dependia do reconhecimento judicial, em sede de processo crime, de que o aqui primeiro autor não havia cometido o ilícito penal de que era suspeito”.

41. Os argumentos deduzidos pelo Tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação devem subscrever-se sem reserva ou, em todo o caso, sem reserva sensível.

42. O lesado toma conhecimento do direito que lhe compete no sentido do artigo 498.º´, n.º 1, do Código Civil “quando se torn[a] conhecedor dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual” 8 e, em consequência, da titularidade do direito à indemnização 9 .

43. Os Autores, agora Recorrentes, tomaram conhecimento de todos os pressupostos do seu direito à indemnização na data do acidente — ... de dezembro de 2011 —. o facto de o direito à indemnização ter sido, ou não, judicialmente reconhecido é irrelevante 10.

44. O facto de estar pendente de um processo penal contra o Autor, agora Recorrente, AA só poderia porventura relevar como facto impeditivo do exercício do direito à indemnização.

45. Em todo o caso, os factos impeditivos do exercício do direito à indemnização só relevam como causas de suspensão do prazo de prescrição, de acordo com o artigo 321.º do Código Civil:

Artigo 321.º — Suspensão por motivo de força maior ou dolo do obrigado

1. — A prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo.

2. — Se o titular não tiver exercido o seu direito em consequência de dolo do obrigado, é aplicável o disposto no número anterior.

46. Ora, ainda que se considerasse que a pendência de um processo penal contra o Autor, agora Recorrente, AA era um facto impeditivo do exercício do direito à indemnização, “por motivo de força maior”, nunca a aplicação do artigo 321.º do Código Civil conflituaria com a decisão de julgar procedente a excepção peremptória de prescrição 11.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes AA e BB.

Lisboa, 12 de Dezembro de 2023

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

Nuno Ataide das Neves

Lino Ribeiro

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1. Sobre a interpretação do artigo 498.º do Código Civil, vide por todos Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao artigo 498.º, in: Código civil anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, págs. 503-505; António Menezes Cordeiro, anotação ao artigo 498.º, in. António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil comentado, vol. II — Das obrigações em geral, Livraria Almedina, Coimbra, 2021, págs. 448-449; Ana Prata, anotação ao artigo 498.º, in: Ana Prata (coord.), Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 1250.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 651-653; Gabriela Páris Fernandes, anotação ao artigo 498.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 370-382.

2. Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 2012 — processo n.º 198/96 —, de 9 de Julho de 2014 — processo n.º 369/11 — e de 5 de Julho de 2016 — processo n.º 6891/03.

3. Cf. conclusão 7.º do recurso de revista.

4. Vide, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Maio de 2013 — processo n.º 2024/05.2TBAGD.C1.C1 —, em cujo sumário se escreve: “II — Considerando o princípio da adesão consagrado no artigo 71.º do CPP, a pendência de processo crime representa uma interrupção contínua ou continuada (artigo 323.º, nos 1 e 4 do CC) do prazo de prescrição contemplado no artigo 498.º, n.º 1 do CC. III - Tal interrupção persiste desde a participação dos factos e perdura até que o lesado seja notificado do despacho final do processo crime, designadamente por arquivamento ou em decorrência de despacho que remete as partes civis para os meios comuns. IV - São interruptivos da prescrição, à luz do artigo 303.º do CC, a constituição de assistente e dedução de acusação ou a dedução de pedido cível em processo crime”.

5. Vide, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2007 — processo n.º 06A4620 —, em cujo sumário se escreve: “A pendência do processo-crime interrompe o prazo de prescrição do nº1 do artigo 498º CC, quer para o lesante quer para os responsáveis civis pela reparação dos danos, interrupção que só cessará quando o mesmo terminar por arquivamento”.

6. Vide, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2019 — processo n.º 11701/15.9T8LSR-A.L1.S2.

7. Vide, p. ex., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2007 — processo n.º 06A4620.

8. Vide, p. ex., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2019 — processo n.º 2032/16.8T8STR.E1-A.S1 —, em cujo sumário se escreve: “Para efeito de contagem do termo inicial do prazo prescricional estabelecido no artigo 498º, nº1 do Código Civil, o lesado terá conhecimento “do direito que lhe compete” quando se torne conhecedor dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual (facto ilícito, culpa, dano e relação de causalidade entre o facto e o dano) […]”.

9. Vide, p. ex., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2019 — processo n.º 2032/16.8T8STR.E1-A.S1 —, em cujo sumário se completa a afirmação citada na anterior nota com o esclarecimento seguinte: “… sabendo ter direito à indemnização pelos danos que sofreu”.

10. Vide, p. ex., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2019 — processo n.º 2032/16.8T8STR.E1-A.S1 —, em cujo sumário se escreve: “O conhecimento do direito de indemnização do autor pelos danos que alega ter sofrido em consequência do processo crime contra ele instaurado, infundadamente, pela ré não depende do reconhecimento judicial da falta de fundamento dessa acusação, ou seja, do trânsito em julgado da sentença penal que julgou improcedente essa acusação, absolvendo o autor da prática do crime imputado, pelo que o prazo de prescrição de três anos estabelecido no artigo 498º, nº1 do C. Civil inicia-se a partir da data da notificação ao autor da acusação contra ele deduzida”.

11. O artigo 321.º do Código Civil só determinaria que a prescrição se suspendesse “no decurso dos últimos três meses do prazo”. O Tribunal da Relação de Évora confirmou a decisão de não pronúncia do Autor, agora Recorrente, em 10 de Maio de 2014; e o prazo de prescrição de cinco anos da alínea c) do n.º 1 do artigo 118.º do Código de Processo Penal, aplicável por remissão do n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil, determinava que o direito invocado só prescrevesse em Dezembro de 2016. Como a decisão de não pronúncia do Autor, agora Recorrente, AA foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora mais de 18 meses antes do termo do prazo de cinco anos, a aplicação do artigo 321.º do Código Civil não determinaria que a prescrição se suspendesse, por não se estar sequer próximo dos últimos três meses do prazo