Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3513
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MEIOS DE PROVA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTO NOTÓRIO
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ200411250035137
Data do Acordão: 11/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5278/02
Data: 04/20/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Não cabe ao STJ debruçar-se sobre o apuramento da matéria de facto quando tal teve lugar através do recurso a meios de prova livremente valoráveis pelo juiz de acordo com a convicção por ele formada.
2. O artigo 729º, nº 3, do C.Proc.Civil, na sua redacção actual, é aplicável quando o STJ, legalmente vocacionado para julgar de direito, conclui que não está em condições de cumprir a sua específica tarefa de controlar o aspecto jurídico das decisões das instâncias, por haver contradição essencial da matéria de facto ou esta carecer de ser ampliada.
3. Não se justifica que seja ordenada a ampliação da matéria de facto apenas para aditamento de factos que, embora não enunciados, são notórios porque do conhecimento de todas as pessoas e entidades envolvidas num acidente ferroviário.
4. Não tem a mínima justificação invocar contradições entre as decisões acerca da matéria de facto proferida em acções diferentes (de mais a mais tratando-se num caso de uma acção cível para apuramento de responsabilidade civil e no outro de um processo penal destinado a punir - ou não - um ilícito criminal culposo).
5. Das decisões acerca da matéria de facto não ocorre caso julgado oponível em diferente processo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e mulher B intentaram, no Tribunal Cível de Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra "Caminhos de Ferros Portugueses, EP", pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia total de 20.109.080$00, sendo 20.000.000$00 por danos não patrimoniais e 109.080$00 por danos patrimoniais, acrescida de juros à taxa 10%, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Alegaram, para tanto, essencialmente, que:
- no dia 25 de Novembro de 1994, na Estação do Caminho de Ferro de Sacavém, o comboio que circulava no sentido Sul/Norte atropelou C, filha única dos autores, que se apeara naquela estação, sendo que para sair da gare é forçoso atravessar aquela linha (Sul/Norte) como a linha Norte/Sul, não existindo aí qualquer passagem desnivelada, superior ou inferior, que permita atravessar de um para o outro lado;
- ao iniciar a marcha em direcção a Lisboa, o comboio que a referida jovem acabava de deixar apitou, sendo que o comboio que circulava no sentido Sul/Norte atravessou a referida estação, sem parar, à velocidade aproximada de 100 Km/hora, sem apitar com a devida antecipação para avisar a sua passagem, nem tendo sido anunciada a passagem do mesmo através do altifalante da Estação de Sacavém, nem através da bandeira vermelha, nem de qualquer outra forma;
- a força do embate provocou várias lesões que foram consequência directa da morte da C ocorrida nesse mesmo dia, precedida de fortes dores, tendo os autores sofrido um grande desgosto com a morte de forma trágica da sua filha.
Contestou a ré, impugnando os factos articulados pelos autores, atribuindo o acidente ao facto de a jovem C não ter tomado as devidas precauções antes de ter iniciado a travessia da linha férrea, nomeadamente não ter prestado atenção aos avisos sonoros do altifalante nem do comboio que se aproximava ou de se assegurar que podia atravessar sem perigo, sendo-lhe por isso o acidente imputável.
Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo, depois, a ser proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré a pagar aos autores a) a quantia de 109.080$00, a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral e efectivo pagamento; e b) a quantia de 11.000.000$00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a partir da data da presente decisão até integral e efectivo pagamento.
Inconformada, apelou a ré, sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 20 de Abril de 2004, decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Interpôs, então, a ré recurso de revista, pretendendo a ampliação da matéria de facto a provar ou, em todo o caso, a revogação do acórdão impugnado com a sua absolvição do pedido.
Em contra-alegações pugnaram os recorridos pela confirmação do julgado.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Nas alegações da revista formulou a recorrente as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
1. A decisão sobre a matéria de facto pode e deve ser ampliada, porque existem vícios, insuficiências e contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizam a correcta decisão jurídica do pleito.
2. A resposta aos quesitos 33° e 34°, por não respeitar o sentido da matéria de facto quesitada, deve ter-se por não escrita e, se assim se não entender, o teor dessa resposta, por não ser inequivocamente esclarecedora numa matéria essencial que é a apreciação da conduta da vítima, é insuficiente para alicerçar uma correcta decisão jurídica.
3. Sem prejuízo da conclusão anterior, a resposta aos quesitos 33° e 34° é contraditória em comparação com a resposta aos quesitos 40° e 41°.
4. É que as circunstâncias do acidente (um comboio esconde outro) que conduzem à resposta aos quesitos 33° e 34° são as mesmas que determinam a resposta aos quesitos 40° e 41°.
5. A inexistência de sinalização com a bandeira vermelha, a que a resposta ao quesito 11º faz referência, é, no contexto dos autos, ininteligível, visto que em lado algum é alegado a explicitação desse facto ou nexo de causalidade com o acidente, mas é mencionado na sentença como relevante para a culpa da ora recorrente, o que é uma avaliação não fundamentada e errónea.
6. Assim impõe-se também a ampliação da matéria de facto em ordem a permitir uma fundamentação jurídica correcta sobre o papel da bandeira vermelha e sua sinalização para a produção do acidente.
7. Deve ainda ser ampliada a matéria de facto de forma a serem provados os factos alegados pela ora recorrente nos arts. 6° e 7° da contestação, ou seja, a elevada densidade de tráfego ferroviário naquela Estação e a frequência de comboios que não tinham paragem na mesma, dada a relevância dessa matéria para a avaliação da conduta negligente da vítima.
8. Porque numa estação onde há muito movimento e onde, naturalmente, muitos ruídos se podem sobrepor é exigível que os passageiros tomem ainda mais atenção à circulação de qualquer das vias antes de atravessar, procedimento esse que a vítima não teve.
9. Em suma, a matéria de facto dos autos é insuficiente, pode e deve ser integrada com a mencionada nas conclusões anteriores e para esse efeito deve ser ordenada a baixa do processo aos tribunais de instância para ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a correcta decisão de direito.
10. Aliás, todas as insuficiências e contradições da matéria de facto invocadas são ainda mais evidentes com o confronto com a matéria provada no processo crime sobre o acidente dos autos, que correu sob o n° 289/00 na 1ª Secção do 4º Juízo Criminal de Lisboa, no qual ficou provado que não houve qualquer deficiência de sinalização, nem omissão de deveres de cuidado por parte dos trabalhadores da CP na estação.
11. Caso esse Tribunal não entenda necessária a ampliação da matéria de facto, deverá anular a decisão condenatória da ora recorrente, face à contradição da matéria de facto apurada com a decisão proferida.
12. Efectivamente, não foi devidamente ponderada a actuação da vítima, que não se certificou, como era exigível, que podia atravessar sem perigo a via férrea, o que consubstancia uma violação das regras gerais de prudência e de diligência, e por isso foi a única culpada do acidente, pelo que a sentença e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que a manteve violaram o art. 505° do CC, uma vez que, atendendo a essa factualidade, deveria ter sido absolvida a ora recorrente do pedido.
Foram havidos pela Relação como assentes os factos seguintes (que iremos enumerar, para maior compreensibilidade, de forma diferente da ordenada no acórdão recorrido):
i) - no dia 25 de Novembro de 1994, cerca das 18,15 horas, na Estação de Caminho de Ferro de Sacavém, C foi atropelada pelo comboio regional nº 4437, procedente de Lisboa (Santa Apolónia) com destino a Tomar, e que não tinha paragem em Sacavém;
ii) - a C entrara, na Estação de Santa Iria da Azóia, num comboio que circulava de Norte para Sul, e apeou-se na Estação de Sacavém;
iii) - sendo que, para sair da gare, é forçoso atravessar a linha férrea quer dos comboios que circulam no sentido Norte/Sul, quer a linha correspondente aos comboios que circulavam no sentido inverso, Sul/Norte, porquanto naquele local não existe qualquer passagem desnivelada, superior ou inferior, que permita atravessar de um para o outro lado da linha férrea;
iv) - a C e os restantes passageiros que se apearam na estação de Sacavém, aguardaram que o comboio em que viajavam avançasse, o qual, ao iniciar a marcha em direcção a Lisboa, apitou;
v) - a C iniciou o atravessamento da passadeira de peões da via férrea, mal a cauda do comboio acima aludido libertou a passadeira de peões que utilizou e onde foi atropelada;
vi) - o comboio atropelante circulava à velocidade aproximada de 98 Km/hora, sendo que a velocidade permitida para o local era de 100 Km/hora;
vii) - o apito do comboio atropelante só foi ouvido, na estação de Sacavém, quando o comboio estava mesmo junto da passagem, a escassos metros de atingir C;
viii) - alguns momentos antes, ouvira-se o apito do comboio em que tinha viajado C e que iniciara a sua marcha em direcção a Lisboa;
ix) - o maquinista do comboio atropelante só pôde ver a C quando o comboio que tripulava se encontrava a escassos metros da passadeira onde aquela se encontrava, porque a presença do comboio de onde aquela se apeara o impedia de ter visibilidade para a primeira parte da passadeira percorrida por C;
x) - logo que a avistou usou de imediato a frenagem de emergência;
xi) - na estação de Sacavém existiam três conjuntos de altifalantes em perfeito estado de funcionamento e foi, através deles, efectuado o anúncio da passagem do comboio atropelante, quando este se encontrava mesmo junto da passadeira onde C foi colhida;
xii) - mas não através de bandeira vermelha;
xiii) - no mesmo local, à mesma hora, outra jovem foi vítima do mesmo acidente, e foi com muita dificuldade que outras pessoas conseguiram evitar ser colhidas pelo mesmo comboio;
xiv) - a força do embate referido em i) trucidou a C provocando-lhe no hábito externo esmagamento do crânio, amputação do braço esquerdo, secção completa ao nível inferior do tronco, amputação dos membros inferiores, amputação do pé esquerdo, fractura da epífise distal do rádio e cúbito à direita, fractura exposta do terço distal do úmero esquerdo, fractura dos metacarpos da mão esquerda, fractura exposta de terço distal do fémur direito e fractura do terço superior da tíbia e perónio à direita e à esquerda, e no hábito interno esmagamento do crânio e encéfalo, fractura da grelha costal com esmagamento das vísceras (pulmões e coração), laceração e retalhamento das vísceras abdominais, fractura da coluna vertebral a mais que um nível com laceração da medula espinal, fractura da bacia e fractura das epífises próximas dos fémures;
xv) - em consequência directa do acidente e das graves lesões esqueléticas e viscerais sofridas, C faleceu no mesmo dia 25/11/94, tendo sofrido fortes dores nos momentos que antecederam a sua morte;
xvi) - a C nasceu em 6 de Janeiro de 1979, era uma filha adorada e era a única filha dos autores A e B, tendo falecido no estado de solteira;
xvii) - os autores sofreram enorme desgosto não só pela perda de uma filha, mas também pela forma trágica como a mesma ocorreu;
xviii) - com a despesa do funeral, os autores gastaram 109.080$00.
Como já acontecera no âmbito do recurso de apelação, a impugnação pela recorrente do acórdão em crise situa-se, essencialmente, no domínio do julgamento da matéria de facto.
Na verdade, e resumindo o conteúdo das conclusões das suas alegações, sustenta, sobretudo, que:
- a resposta aos quesitos 33° e 34°, por não respeitar o sentido da matéria de facto quesitada, deve ter-se por não escrita, além de que tal resposta é contraditória em comparação com a resposta aos quesitos 40° e 41°;
- a resposta ao quesito 11º, quando refere a inexistência de sinalização com a bandeira vermelha, é, no contexto dos autos, ininteligível, pois em lado algum é alegada a explicitação desse facto ou nexo de causalidade com o acidente, não obstante se mencionar na sentença como relevante para a culpa da recorrente;
- a decisão sobre a matéria de facto deve ser ampliada, não apenas porque existem vícios, insuficiências e contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizam a correcta decisão jurídica do pleito, mas ainda de forma a serem aditados os factos alegados pela recorrente nos arts. 6° e 7° da contestação, ou seja, a elevada densidade de tráfego ferroviário naquela Estação e a frequência de comboios que não tinham paragem na mesma, dada a relevância dessa matéria para a avaliação da conduta negligente da vítima.
- caso se não entenda necessária a ampliação da matéria de facto, deverá anular-se a decisão condenatória da recorrente, face à contradição da matéria de facto apurada com a decisão proferida com a matéria provada no processo crime sobre o acidente dos autos, que correu sob o n° 289/00 na 1ª Secção do 4º Juízo Criminal de Lisboa, no qual ficou provado que não houve qualquer deficiência de sinalização, nem omissão de deveres de cuidado por parte dos trabalhadores da CP na estação.
Importa, antes de mais, esclarecer que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico que julgue aplicável (art. 729º, nº 1, do C.Proc.Civil).
Consequentemente, não conhece de matéria de facto (1),
salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 2, do mesmo diploma).
É que, como é sabido, cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, cabe à Relação a última palavra. Daí que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresente como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material - artigo 722º, nº 2 - ou a mandar ampliar a decisão sobre matéria de facto - artigo 729º, nº 3. Aliás, não poderá esquecer-se que só à Relação compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos nºs 1 e 4 do artigo 712º. (2)
Pode, assim, afirmar-se que no âmbito do julgamento da matéria de facto se movem as instâncias, estando, em princípio, vedado ao STJ proceder à respectiva sindicância. (3)
Consequentemente, não cabe a este STJ debruçar-se sobre o apuramento da matéria de facto quando, como in casu, tal teve lugar através do recurso a meios de prova livremente valoráveis pelo juiz de acordo com a convicção por ele formada, nem, por obviamente estar contido no âmbito dos poderes conferidos à Relação pelo art. 712º, nº 4, proceder à anulação da decisão da matéria de facto, pois só à 2ª instância cumpre apreciar se as respostas aos quesitos são deficientes, obscuras ou contraditórias e, em caso afirmativo, anular o julgamento. (4) Certo que, não obstante o exposto, há que ter em consideração a redacção do art. 729º, nº 3, do C.Proc.Civil após a Reforma de 1995:
(5) "o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito".
"Trata-se de situações em que o STJ considera insuficiente ou incompleto o julgamento de facto feito pelo tribunal recorrido e em que se impõe que o tribunal recorrido complete a matéria de facto, de modo a que os factos apurados constituam base suficiente para uma decisão de mérito; mas o STJ só pode determinar essa ampliação em função dos factos articulados pelas partes ou que sejam do seu conhecimento oficioso. O DL 329-A/95 explicita esta competência ao referir a possibilidade de o STJ controlar a coerência lógica da decisão de facto, à semelhança da competência reconhecida às Relações pelo art. 712º, nº 4". (6)
O art. 729º, nº 3, é por conseguinte aplicável quando o STJ, legalmente vocacionado para julgar de direito, conclui que não está em condições de cumprir a sua específica tarefa de controlar o aspecto jurídico das decisões das instâncias, por haver contradição essencial da matéria de facto ou esta carecer de ser ampliada. (7)
Como refere Lopes do Rego" (8) os poderes agora conferidos ao Supremo estão "funcionalmente orientados para um correcto enquadramento jurídico do pleito: o Supremo Tribunal de Justiça conhece das insuficiências, inconcludência ou contradições da decisão proferida acerca da matéria de facto se e enquanto tais vícios afectarem ou impossibilitarem a correcta decisão do pleito"
Vejamos então.

Não tem qualquer razão a recorrente quando sustenta que as respostas aos quesitos 33° e 34° são contraditórias quando comparadas com as respostas aos quesitos 40° e 41°.
Aos quesitos 33º e 34º - onde se inquiria, respectivamente se "quando C iniciou o atravessamento da passadeira não tinha possibilidade de ver se aproximava qualquer comboio na 2ª linha" e se "o comboio aludido em 31° ainda lhe retirava total visibilidade" - respondeu-se que apenas se provou "o que consta das respostas dadas aos quesitos 31° e 32° do questionário". Ou seja, atentas as respostas a estes quesitos 31º e 32 apenas se provou que "C iniciou o atravessamento da passadeira de peões da via férrea, mal a cauda do comboio acima aludido libertou a passadeira de peões que utilizou e onde foi atropelada".

Em contrapartida, perguntando-se no quesito 40° se "o maquinista do comboio atropelante só pôde ver C quando o comboio que tripulava se encontrava a escassos metros da passadeira onde aquela se encontrava" e no quesito 41° se "a presença do comboio de onde aquela se apeara impedia o maquinista do comboio atropelante de ter visibilidade para a primeira parte da passadeira percorrida por C", as respostas foram no sentido de ter como "provada" tal matéria.

A contradição que a recorrente vislumbra não ocorre senão aparentemente e dada a forma estática e global com que ela encara as respostas aos quesitos, inseridas, como é óbvio, num processo contínuo e dinâmico, em que uns factos conduzem a outros, mas naturalmente, como acontece na situação em causa, dissociados no tempo e no espaço.

Justamente os factos contidos nos quesitos 33° e 34°, por um lado, e nos quesitos 40° e 41°, por outro, reportam-se a momentos diferentes. Enquanto nos primeiros se alude ao início do atravessamento da passadeira pela vítima, nos outros atende-se ao momento em que a vítima já se encontrava na passadeira. Ou seja, a vítima podia ter possibilidade de ver se se aproximava qualquer comboio quando iniciou a travessia da linha férrea, designadamente em virtude de se encontrar num local mais alto em relação a essa linha, e, por sua vez, o maquinista podia só ter visto a vítima a escassos metros, por esta se encontrar já na passadeira, tendo em conta, nomeadamente, que se trata de um local mais baixo e dada, também, a diferente posição relativa dos dois comboios. Na verdade, há uma série de circunstâncias concretas que podem influenciar a visibilidade da vítima em relação ao comboio atropelante e a visibilidade do maquinista daquele comboio em relação à vítima, sendo que, os momentos que antecedem um acidente, sucedendo-se de uma forma dinâmica, não podem ser vistos de uma forma estática.

Tudo isto demonstra, como aliás bem explicou o acórdão recorrido, que não existe uma real contradição entre as respostas dadas, por um lado, aos quesitos 33º e 34° e, por outro, aos quesitos 40º e 41º.

Igual falta de razão assiste, em nosso entender, à recorrente quando pretende ser ininteligível no contexto dos autos a resposta ao quesito 11º, na medida em que refere a inexistência de sinalização com a bandeira vermelha e em lado algum é alegada a explicitação desse facto ou nexo de causalidade com o acidente.
Antes de mais, os autores alegaram concretamente no artigo 10º da petição que "não foi anunciada a chegada do comboio rápido nem através do altifalante da Estação de Sacavém, nem através da bandeira vermelha, nem de qualquer outra forma que pudesse prevenir a jovem C e a impedisse de atravessar a linha férrea".

Tal matéria de facto, concretamente articulada, veio a ser inserida nos quesitos 10º e 11º onde, respectivamente se questionou: "não foi anunciada a chegada do comboio atropelante através do altifalante da estação de Sacavém" (10º) e "nem através da bandeira vermelha" (11º).

Assim, ambos os quesitos se mostravam directamente relacionados, aludindo à mesma invocada situação de ausência de sinalização.

Ora, sendo que a resposta ao quesito 10º foi a de "provado apenas que foi efectuado anúncio da passagem do comboio atropelante quando este se encontrava mesmo junto da passadeira onde C foi colhida", quando na resposta ao quesito 11º se considerou "provada" a matéria que o integrava, pura e simplesmente se quis afirmar que não foi anunciada a chegada do comboio atropelante através da bandeira vermelha.

O que, além de se reportar a factos alegados no contexto dos autos, é perfeitamente compreensível, não enfermado, por isso, a resposta àquele quesito de qualquer deficiência, obscuridade ou ininteligibilidade.

Pretende, também, a recorrente que seja ordenada a ampliação da matéria de facto (já vimos que não existem os vícios e contradições que ela apontava à decisão da matéria de facto inviabilizadoras de uma correcta decisão jurídica do pleito) de forma a serem aditados os factos por si alegados nos arts. 6° e 7° da contestação, ou seja, a elevada densidade de tráfego ferroviário na Estação de Sacavém e a frequência de comboios que não tinham paragem na mesma, dada a relevância dessa matéria para a avaliação da conduta negligente da vítima.
Alegou a recorrente no artigo 6° da contestação que "a Estação de Sacavém se insere na Linha do Norte, linha essa com grande intensidade de tráfego ferroviário". Acrescentando no artigo 7° que "como é público e notório e resulta de cartazes afixados nas Estações e de guias horários ao dispor do público, muitos comboios dessa linha não param em todas as Estações, designadamente em Sacavém, como a infeliz vítima tinha obrigação de saber visto que, como é alegado pelos autores, seria essa Estação que servia a sua residência, sita em Sacavém".

Como já acima referimos, de acordo com o nº 3 do art. 729º do C.Proc.Civil, o STJ só devolve o processo ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

Parece-nos, contudo, que os factos alegados pela recorrente nos artigos 6° e 7° da contestação (além de serem, como a contestante reconhece, factos notórios que sempre podem ser tidos em consideração ainda que não expressamente enunciados) não se mostram indispensáveis para decidir com rigor acerca da culpa na eclosão do sinistro (que é a questão que, neste particular, está em causa).

Com efeito, a mencionada matéria (que, já afirmamos, é notória, e que, sobretudo, a vítima não podia desconhecer já que usualmente viajava de comboio e se apeava na estação de Sacavém) não é determinante - nem mesmo a título instrumental - para a qualificação dos comportamentos concretos de que adveio o acidente.

Ademais, como bem se afirma no acórdão recorrido, tal matéria só serve para onerar, em termos de procedimentos de segurança, a conduta da recorrente, na justa medida em que da elevada densidade de tráfego rodoviário e da existência de comboios que, à velocidade permitida de 100 km/hora, atravessam, sem parar, aquela estação, apenas decorre que esta teria de redobrar os cuidados no accionamento dos meios de segurança de que dispunha.

Verdadeiramente o que sucede é que, não obstante aqueles factos de conhecimento geral, portanto também da própria recorrente, entidade que gere a actividade inerente à circulação de comboios (e que, a nosso ver, como referimos, poderiam sempre ser tomados em consideração mesmo sem se ampliar a matéria de facto) a recorrente nem se preocupou em atempadamente anunciar, através do potente conjunto de altifalantes que possui naquela Estação, a chegada do comboio atropelante, apenas o fazendo quando este se encontrava mesmo junto da passadeira onde a vítima foi colhida, nem, de igual forma, teve o cuidado de o fazer através da bandeira vermelha de sinalização.

Há, por isso, que concluir não haver lugar, in casu, à pretendida ampliação da matéria de facto por se não verificar a necessidade dessa ampliação para a correcta e adequada solução do litígio.

Referir-se-á, ainda, a inviabilidade da pretensão da recorrente quando sustenta dever, no caso de se não entender necessária a ampliação da matéria de facto, anular-se a decisão condenatória da recorrente, face à contradição da matéria de facto apurada na decisão recorrida com a matéria provada no processo crime sobre o acidente dos autos, que correu sob o n° 289/00 na 1ª Secção do 4º Juízo Criminal de Lisboa (junta em fotocópia de fls. 265 a 278). (9)
É que não faz o mínimo sentido invocar contradições entre a decisão acerca da matéria de facto proferida em acções diferentes (de mais a mais tratando-se num caso de uma acção cível para apuramento de responsabilidade civil e no outro de um processo penal destinado a punir - ou não - um ilícito criminal culposo).
Decisão esta, além do mais, meramente absolutória dos arguidos com o fundamento de que "não resultou provado que os arguidos não tenham procedido de acordo com os deveres objectivos de cuidado a que estavam obrigados". E que, sobretudo, foi proferida em processo em que nem a recorrente interveio.
Sendo que, apesar de tudo, é manifesto que não ocorre caso julgado oponível em diferente processo - neste caso, como vimos, a recorrente nem interveio no processo penal aludido - das decisões acerca da matéria de facto.
A entender-se de forma diversa, por que não recorrer à clara compatibilidade entre as decisões de facto proferidas nesta acção e na acção cível nº 204/96 da 15ª Vara Cível de Lisboa - acção em que foi discutido o mesmo acidente, embora com respeito a diferente vítima - em que a recorrente interveio como ré e foi condenada a pagar a considerada devida indemnização de 20.125.000$00 ? (junta, também em fotocópia, de fls. 300 a 332)
Revela-se, por isso, inócua, sem qualquer influência na presente acção, a decisão acerca da matéria de facto (e até de direito) proferida no processo penal n° 289/00 a que a recorrente alude.
Em termos de impugnação de direito defende, por fim, a recorrente que a vítima foi a única culpada do acidente em questão porquanto não se certificou, como era exigível, de que podia atravessar sem perigo a via férrea, violando as regras gerais de prudência e de diligência.
Ora, a este respeito, cumpre assinalar, antes de mais, que as instâncias fizeram uma exaustiva apreciação das causas do fatal evento, tendo concluído, sem qualquer margem para reparos, pela culpa da ré (que não da vitima).
Retomando, resumidamente, a análise da questão, parece-nos claro, atenta a dinâmica do acidente (e a forma progressiva como espacio-temporalmente se desencadeou) que a passagem do comboio procedente de Lisboa e com destino a Tomar, que, como era sabido, não efectuava paragem em Sacavém, não foi assinalada com a bandeira vermelha, sendo que o anúncio sonoro através de altifalante da sua passagem apenas foi efectuado quando este se encontrava mesmo junto da passadeira onde a jovem C foi colhida. Acresce que o apito desse comboio só foi ouvido, naquela estação, quando ele estava mesmo junto à passagem de peões.
Tais factos traduzem, na verdade, clara e censurável violação do dever de cuidado que, atentas as demais circunstâncias apuradas, a ré devia ter tido.
E não obsta a que se tenha a ré como exclusiva culpada pela eclosão do sinistro o ter-se provado que a vítima iniciou o atravessamento da passadeira de peões da via férrea, mal a cauda do comboio de onde se havia apeado libertou aquela passadeira, que utilizou e onde foi atropelada.

Na verdade, esse facto, por si só, não é suficiente para se concluir pela conculpabilidade da vítima, no sentido de que esta não usou das cautelas exigíveis da pessoa normalmente diligente, segundo as circunstâncias, sobretudo se for tido na devida conta que, no mesmo local e à mesma hora, outra jovem foi vítima do mesmo acidente, e, ainda, que foi com muita dificuldade que outras pessoas conseguiram evitar ser colhidas pelo mesmo comboio.

Não é, pois, a nosso ver, a conduta da vítima susceptível de qualquer censura e, muito menos, causal do fatal acidente que a vitimou. Agiu como agiria qualquer outra pessoa medianamente diligente colocada na sua situação (já aludimos ao facto de outra jovem ter sido colhida e várias pessoas terem escapado a custo) pensando, naturalmente que, não existindo na Estação de Sacavém qualquer passagem desnivelada (aérea ou subterrânea) para os passageiros, obrigados para saírem da gare a atravessar a linha férrea dos comboios que circulam em ambos os sentidos, a ré tomaria todas as providências necessárias para garantir a segurança dos seus utentes.
Também neste aspecto, portanto, improcede a pretensão da recorrente, uma vez que, em nosso entender, se impõe a confirmação do acórdão em crise.
Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré "Caminhos de Ferro Portugueses, EP";
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 25 de Novembro de 2004
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Art. 26º da LOFTJ, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro.
(2) Cfr. Acs. STJ de 22/11/94, no Proc. nº 85752, da 1ª secção (relator César Marques); de 30/01/97, no Proc. nº 751/96, da 2ª secção (relator Miranda Gusmão); de 31/03/98, no Proc. 265/98 da 1ª secção (relator Silva Paixão); de 19/09/2002, no Proc. 2047/02, da 7ª secção (relator Miranda Gusmão); e de 29/02/2002, no Proc. 3/00 da 1ª secção (relator Garcia Marques).
(3) Cfr. Acs. STJ de 25/05/2000, no Proc. 319/00 da 2ª secção (relator Costa Soares); de 11/10/2001, no Proc. 2492/01 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro); de 18/04/2002, no Proc. 725/02 da 2ª secção (relator Simões Freire); de 15/05/2003, no Proc. 1314/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); de 06/11/2003, no Proc. 2960/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); e de 09/10/2003, no Proc. 1168/03 da 7ª secção (relator Araújo Barros).
(4) Acs. STJ de 21/05/85, no Proc. 72532 da 1ª secção (relator Joaquim Figueiredo); e de 23/09/99, no Proc. 397/99 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos).
(5) Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro (alterado pelo Dec.lei nº 180/96, de 25 de Setembro).
(6) José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 3º, Coimbra, 2003, pag. 137.
(7) Ac. STJ de 16/03/2004, no Proc. 4257/03 da 1ª secção (relator Faria Antunes).
(8) Comentários ao Código de Processo Civil", Coimbra, 1999, pag. 497. Cfr. também Fernando Amâncio Ferreira, "Manual dos Recursos em Processo Civil", 4ª edição, Coimbra, 2003, pags. 255 e 256.
(9) A qual, além de tudo o mais, segundo alegam os recorridos, não terá ainda transitado em julgado.