Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1388/05.2TAVRL.P1-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
NOTIFICAÇÃO
ARGUIDO
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
IRREGULARIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 02/20/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: REJEITADO
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS, 416.º, N.º1, 417.º, N.ºS 1 E 2, 437.º, 440.º, N.º1, 445.º, N.º1, 448.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14.9.2011 (PROC. Nº 344/04.2GTSTR.S1-A) E DE 5.12.2012 (PROC. Nº 105/11.2TBRMZ.E1-A.S1).
Sumário :

I - O CPP não prevê a notificação do parecer do MP, elaborado ao abrigo do art. 440.°, n.º 1, do CPP, ao recorrente. A lei estabelece uma tramitação própria para o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, na qual não está incluída essa notificação. Não há qualquer lacuna legislativa, pelo que não é possível apelar à aplicação subsidiária do processo do recurso ordinário, por via do art. 448.° do CPP.

II - O que se pretende com o recurso para fixação de jurisprudência é fixar um entendimento que ponha termo a divergências jurisprudenciais sobre uma certa questão de direito, contribuindo assim para a certeza na sua aplicação. Embora a decisão que resolver o conflito tenha eficácia no processo (art. 445.°, n.º 1, do CPP), é a fixação abstrata do entendimento a seguir quanto à questão de direito controversa que constitui o núcleo deste recurso. É, em síntese, a declaração do direito, no quadro estabelecido pela oposição de julgados, que caracteriza este recurso extraordinário.

III -Sendo assim, o recurso não assume as características típicas do recurso ordinário, que se destina a reapreciar um litígio concreto, opondo o MP, enquanto titular da ação penal, e o arguido, e portanto a decidir a solução do caso. Ao invés, no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, é a decisão de uma questão de direito que é o objeto do procedimento, é a fixação da interpretação de uma norma, a definição de um certo conteúdo normativo que se pretende, com consequências não só naquele processo como em todos os demais em que se coloque a mesma questão de direito.

IV -Por isso, o MP não intervém neste tipo de recurso como titular da ação penal. Ele não tem interesse num certo resultado, mas apenas na boa administração da justiça. Ele intervém numa posição de neutralidade, como amicus curiae. Por estas razões, não existe violação do princípio do contraditório.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. RELATÓRIO

            AA, com os sinais dos autos, notificado do acórdão de fls. 54-63, que rejeitou o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência por ele interposto, vem arguir a irregularidade do mesmo, ao abrigo do art. 123º do Código de Processo Penal (CPP), nos seguintes termos:

1. De harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 416°-1 e 417º-1 e 2, ambos do Código de Processo Penal (CPP), que, encontrando-se, como se encontram, sistematicamente colocados no Capítulo II (Da tramitação unitária), do Título I (Dos recurso ordinários), do Livro IX (Dos recursos), se aplicam aos recursos ordinários, quer eles estejam a ser tramitados nas Relações, quer no Supremo, resulta que, antes de ser apresentado ao relator, o processo vai com vista ao Ministério Público, junto do tribunal de recurso (Relação ou Supremo, consoante o caso), e que, se nessa vista, o Ministério Público não se limitar a apor o seu visto, o arguido, como aliás também os demais sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso, são notificados, para, querendo, responder, no prazo de 10 dias.

2. Isto, por um lado, enquanto que, por outro lado, nos termos do estatuído no artigo 448°, do CPP, que, como da respectiva epígrafe, e do próprio conteúdo, resulta, é de aplicação subsidiária, tais dois artigos aplicam-se ao recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, na medida em que este não tem qualquer norma que expressamente determine quanto à notificação referida no número 1 anterior, notificação essa cuja obrigatoriedade, de qualquer forma, não poderia, nem pode, deixar de resultar do Princípio do Contraditório, e da estrutura contraditória, que informam, no direito português, quer o processo penal, quer o processo civil, aplicando-se também este subsidiariamente aquele (artigo 4º do CPP).

3. No caso sub iudicio, o Senhor Procurador Geral Adjunto, junto do Supremo Tribunal de Justiça, quando os autos lhe foram com vista, nos termos previstos no  número 1, do artigo 440°, do CPP, não se limitou a apor o seu visto, tendo emitido parecer, no sentido de que o recurso interposto devia em conferência ser rejeitado, em virtude de não ocorrer a oposição de julgados invocada pelo recorrente (artigo 441º-1-1ª parte, do CPP).

4. O que chegou ao conhecimento do requerente apenas quando lhe foi notificado o Acórdão em causa, que se refere amplamente a tal parecer, transcrevendo até significativas, quer sob o ponto de vista quantitativo, quer sob o ponto de vista qualitativo, partes de tal parecer, mas não a totalidade do mesmo, que o requerente continua a ignorar.

5. Só que esse douto parecer, e como do processo, embora o requerente o não tenha consultado, não pode certamente deixar de resultar também, não foi notificado ao arguido, para este, querendo, ao mesmo parecer responder.

6. Houve assim violação ou inobservância de disposições da lei do processo penal, disposições essas que foram, mais precisamente, os já atrás referidos artigos 416º - 1, 417º - 1 e 2, e 448°, todos do CPP.

7. E, não cominando a lei, como não comina, essa violação ou inobservância com a nulidade, ela constitui uma mera irregularidade (artigo 118°-1 e 2, do CPP).

8. Sendo certo que tal irregularidade, isto é, tal violação ou inobservância dos artigos do CPP atrás referidos, é susceptível de ter tido influência no exame ou na decisão da causa, ou seja, no caso, de ter tido influência em o Acórdão atrás referido, seguindo o parecer do Ministério Público, ter decidido, como decidiu, não julgar verificada a oposição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, com a consequente rejeição do presente recurso, nos termos previstos no artigo 441º-1-1ª parte do CPP.

9. Pois que, se essa violação ou inobservância dos artigos 416º-1, 417º-1 e 2, e 448°, todos do CPP, não tivesse ocorrido, tendo o parecer do Ministério Público atrás referido, sido, como legalmente devia, notificado ao arguido, bem poderia este ter aduzido argumentos, que, eventualmente, levassem a que o sentido do acórdão em análise, fosse diferente daquele que foi, ou seja, a que tal Acórdão em lugar de ter, como atrás se disse já, rejeitado, como rejeitou, o recurso, ao abrigo do artigo 441º - 1-1° parte do CPP, tivesse antes determinado o prosseguimento do mesmo recurso, nos termos previstos no artigo 441º -.1.-2° e última parte, do CPP,

10. Arguindo-se agora e aqui tal irregularidade.

11. Arguição esta que é feita pelo arguido/recorrente, que é naturalmente interessado no acto (notificação) em causa, tendo pois para tal arguição total legitimidade (artigo 123º-1, do CPP).

12. E, via telecópia, dia 14 de Fevereiro de 2013, ou seja, tempestivamente, na medida                em que, dentro do prazo de três dias, a que alude o artigo 123°-1, do CPP, pois que a primeira notificação que ao requerente foi feita, após a irregularidade em causa, foi a do atrás referido Acórdão desse Supremo Tribunal de Justiça, de 06 de Fevereiro de 2013.

13. Notificação esta levada à cabo através de carta, dirigida ao advogado signatário, datada do dia 07 de Fevereiro de 2013, e nesse dia registada numa estação dos CTT - Correios de Portugal S.A., presumindo-se pois tal notificação, nos termos         previstos no artigo 113°-2, do CPP, feita, na hipótese mais desfavorável ao arguido (dentro das duas possíveis, correspondentes a interpretações diferentes de tal artigo 113º-2, do CPP, interpretações diferentes essas que constituem precisamente o objecto do presente recurso de uniformização de jurisprudência), no dia 11 de Fevereiro de 2013 (na hipótese menos desfavorável, ou, se se preferir, mais favorável ao arguido, a notificação em causa ocorreria no dia 12 de Fevereiro de 2013).

14. Sendo por isso a irregularidade que tem vindo a ser mencionada determinativa da invalidade do acto a que a mesma irregularidade se refere, ou seja, da invalidade da não notificação ao aqui requerente do parecer, que tem vindo a ser falado (artigo 123º-1, do CPP).

15. Requerendo-se pois a V, Exa. que aprecie desde já a irregularidade agora arguida e que, na procedência de tal arguição, determine que, em obediência ao estatuído nos artigos 416º-1, 417º-1 e 2 e 448°, todos do CPP, seja notificado ao recorrente/requerente o parecer do Ministério Público em questão cujo conteúdo, e como atrás se referiu já o requerente ainda não conhece na sua totalidade.

16. Declarando-se nulo ou anulando-se (o artigo 123º-1, do CPP, fala em invalidade, não especificando se se trata de nulidade ou de anulabilidade) tudo o que, após a prática da irregularidade em causa, se tenha processado nos autos, e que tal irregularidade possa ter afectado.

17. Nessa declaração de nulidade ou anulação não podendo pois deixar de se incluir o atrás referido douto acórdão de 06 de Fevereiro de 2013, pois que, e como anteriormente se disse já, o seu sentido pode ter sido afectado pela irregularidade em questão.

18. Sendo ainda de referir que qualquer interpretação dos artigos 416º-1, 417°-1 e 2, e 448°, todos do CPP, que vá no sentido de que eles não determinam e obrigam, neste caso, a notificação ao arguido, do parecer do Senhor Procurador Geral Adjunto atrás mencionado, sempre violaria manifestamente o Princípio do Contraditório, e a estrutura contraditória do processo penal português.

19. Sendo pois tal interpretação, e porque esses Princípio e estrutura têm dignidade constitucional, estando plasmados no artigo 32°-5, da Constituição da República Portuguesa (CRP), inconstitucional, por violação desse artigo 32°-5, da norma normarum.

20. Podendo o Tribunal Constitucional sindicar uma determinada interpretação ou dimensão normativa de normas, como a jurisprudência constitucional vem defendendo sistematicamente, e resulta aliás, expressamente, do artigo 80º-3, da Lei do Tribunal Constitucional, que se reporta a verdadeiras e próprias decisões interpretativas do Tribunal Constitucional, abrangendo portanto o caso a que aqui nos estamos a referir, que se pode considerar como uma decisão interpretativa imprópria, equiparável a uma decisão de inconstitucionalidade parcial vertical ou qualitativa.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Argui o requerente de irregular o acórdão proferido por este Supremo Tribunal nos autos, por não ter sido notificado do parecer emitido pelo Ministério Público (MP) a fls. 44-51, no qual se pronuncia pela rejeição do recurso.

            Entende o requerente que é aplicável ao recurso extraordinário para fixação de jurisprudência o disposto nos arts 416º, nº 1, e 417º, nºs 1 e 2, do CPP, por força do art. 448º, também do CPP, sendo assim obrigatória a notificação ao recorrente do parecer do MP.

            E acrescenta que qualquer interpretação daqueles preceitos que vá no sentido de que eles não determinam a notificação ao recorrente do referido parecer viola o princípio do contraditório consagrado no art. 32º, nº 5, da Constituição.

             2. Há, desde logo, que refutar a aplicação ao recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, p. e p. pelo art. 437º do CPP, do disposto no art. 416º, nº 1, do CPP.

            Na verdade, a vista ao MP está expressa e especificamente prevista na regulação do processamento deste recurso, no art. 440º, nº 1, do CPP. Foi ao abrigo deste preceito, e não do art. 416º, nº 1, que os autos foram com vista ao MP. E, não sendo aplicável tal artigo, também não se justificava a aplicação do dispositivo do art. 417º, nº 2, do CPP, que remete precisamente para aquela mesma norma, ambas incluídas no processamento dos recursos ordinários.

            Não se ignora que o art. 448º do CPP estabelece que ao recurso para fixação de jurisprudência se aplicam subsidiariamente as disposições que regulam os recursos ordinários. Mas essa aplicação subsidiária pressupõe obviamente a existência de uma lacuna. E tal lacuna não se verifica porque o processamento do recurso extraordinário não segue os mesmos trâmites do recurso ordinário

            Na verdade, o recurso para fixação de jurisprudência tem um procedimento especial. O processo vai com vista ao MP por 10 dias e depois é concluso ao relator para exame preliminar, por idêntico prazo. Esse exame destina-se à verificação da admissibilidade formal e da existência de oposição de julgados, questão que deverá ser decidida por acórdão no prazo de 10 dias. Sendo reconhecida a oposição de julgados o recurso segue para uma nova fase, na qual os sujeitos processuais são notificados para produzir alegações em 15 dias, não havendo lugar a resposta.

            É, pois, inequívoco que o CPP não prevê a notificação do parecer do MP, elaborado ao abrigo do art. 440º, nº 1, do CPP, ao recorrente. A lei estabelece uma tramitação própria para este recurso, na qual não está incluída essa notificação. Não há qualquer lacuna legislativa, pelo que não é possível apelar à aplicação subsidiária do processo do recurso ordinário, por via do art. 448º do CPP.

                3. Defende o requerente que a inexistência do dever de notificação do parecer inicial do MP ao recorrente constitui violação do princípio do contraditório, previsto no art. 32º, nº 5, da Constituição.

Porém, as especificidades de que se reveste a tramitação do recurso em referência (não só aquela, como também a inexistência de contra-alegações na fase subsequente à declaração de oposição de julgados) justificam-se pela natureza específica deste recurso.

Na verdade, o que se pretende com este meio de impugnação é fixar um entendimento que ponha termo a divergências jurisprudenciais sobre uma certa questão de direito, contribuindo assim para a certeza na sua aplicação. Embora a decisão que resolver o conflito tenha eficácia no processo (art. 445º, nº 1, do CPP), é a fixação abstrata do entendimento a seguir quanto à questão de direito controversa que constitui o núcleo deste recurso. É, em síntese, a declaração do direito, no quadro estabelecido pela oposição de julgados, que caracteriza este recurso extraordinário.

            Sendo assim, o recurso não assume as características típicas do recurso ordinário, que se destina a reapreciar um litígio concreto, opondo o MP, enquanto titular da ação penal, e o arguido, e portanto a decidir a solução do caso.

            Ao invés, no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, é a decisão de uma questão de direito que é o objeto do procedimento, é a fixação da interpretação de uma norma, a definição de um certo conteúdo normativo que se pretende, com consequências não só naquele processo como em todos os demais em que se coloque a mesma questão de direito.

            Por isso, o MP não intervém neste tipo de recurso como titular da ação penal. Ele não tem interesse num certo resultado, mas apenas na boa administração da justiça. Ele intervém numa posição de neutralidade, como amicus curiae.

            Por estas razões, não existe violação do princípio do contraditório.[1]

            III. DECISÃO

            Com base no exposto, indefere-se a arguição.

            Vai o requerente condenado em 1 (uma) UC de taxa de justiça.

 Lisboa, 20 de Fevereiro de 2013


Maia Costa (Relator)
Pires da Graça
Pereira Madeira

____________________
[1] Em sentido idêntico, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 14.9.2011 (proc. nº 344/04.2GTSTR.S1-A, Cons. Armindo Monteiro) e de 5.12.2012 (proc. nº 105/11.2TBRMZ.E1-A.S1, Cons. Henriques Gaspar).