Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19222/20.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
GARANTIA AUTÓNOMA
ORDEM DE NÃO PAGAMENTO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Num procedimento cautelar pode ser proferida ordem judicial que determine o não pagamento de uma garantia autónoma e à primeira solicitação e no âmbito do processo cautelar há-de ser devidamente considerada a sua autonomia relativamente ao contrato subjacente.

II - Sendo admissível no procedimento cautelar apreciar a resolução extrajudicial do contrato por alteração anormal das circunstâncias nos termos do art. 437.º do CC, é o resultado dessa análise e consequente decisão que constituirá a prova inequívoca e manifesta exigível para se apurar se existe fraude, abuso ou má-fé do beneficiário que pode obstar ao accionamento da garantia autónoma e à primeira solicitação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

Modarte, LDA., instaurou o presente procedimento cautelar comum contra o Banco Comercial Português S.A., e Real Added Value PN – Fundo de Investimento Imobiliário  Fechado (gerido e representado por Institutional Investment Partners GMBH, por sua vez representado por Lace Investment Partners, Lda.), pedindo que:

«a. Seja o 1.º Requerido condenado a abster-se de pagar qualquer quantia ao 2.º Requerido, ao abrigo da garantia bancária on first demand emitida a pedido da Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal;

b. Seja o 2.º Requerido condenado a abster-se de acionar a garantia bancária on first demand prestada pela Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal».

Para tanto alegou que é arrendatária da loja com o n.º …-.. do prédio sito a ……, em ….., do qual é proprietário do 2.º requerido. Prestou a favor do 2.º requerido uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação, como garantia de todas as obrigações para si decorrentes do cumprimento ou incumprimento do contrato de arrendamento de que é locatária;

em consequência do actual surto pandémico e da profunda crise económica que se lhe seguiu, resolveu o referido contrato de arrendamento por alteração anormal das circunstâncias, ao abrigo do art. 437.º do Código Civil, com efeitos reportados a partir de 31.08.2020, tendo procedido ao pagamento das rendas vencidas até essa data e à entrega do locado.

Assim, em face do termo do vínculo contratual e da extinção da obrigação garantida, deixou de existir qualquer fundamento que sustente a manutenção da relação jurídica existente entre as partes. O accionamento da garantia bancária prestada, numa altura em que os valores das vendas faturadas pela requerente não chegam sequer para cobrir os custos mínimos da atividade, irá colocá-la numa situação de insolvência, atentando perigosamente e de uma forma irreparável à sua capacidade de sobreviver e de ultrapassar a crise e colocando em causa o cumprimento integral dos seus compromissos face a trabalhadores e fornecedores.

Conclui alegando que, permitir o acionamento da garantia bancária autónoma num contexto de excepcional crise económica e sanitária, configuraria atribuir ao 2.º requerido um verdadeiro papel de carrasco da requerente e à garantia bancária, in se, o papel de pedra tumular.

O primeiro Requerido interveio nos autos, constituindo mandatário, mas não deduziu oposição.

O segundo Requerido deduziu oposição, defendendo a improcedência do procedimento cautelar, porquanto:

- a garantia prestada pelo 1.º requerido é uma garantia bancária à primeira solicitação, que abdica de qualquer discussão por parte do garante das relações subjacentes à sua emissão e de qualquer comprovação de incumprimento;

- a doutrina e a jurisprudência são extremamente exigentes na admissão do procedimento cautelar que visa obstaculizar o acionamento dessa garantia, exigindo que se esteja perante abusos ou fraudes clamorosas e evidentes e que resultem inequívocos;

- foi a requerente que decidiu resolver o contrato de arrendamento, pelo que o acionamento da garantia não é subsumível a qualquer actuação fraudulenta do 2.º requerido;

- a resolução do contrato por parte da requerente é ilícita, pelo facto de o art. 437.º do CC não ser aplicável aos contratos de arrendamento, a resolução ser extemporânea (por ter ocorrido numa altura em que a requerente já dispunha de possibilidade de ter o seu estabelecimento aberto ao público) e não estarem preenchidos os pressupostos previsto no referido artigo;

- o sucesso ou insucesso da actividade comercial da requerente está dentro dos riscos próprios do contrato e corre por sua conta, não violando a manutenção do contrato os princípios da boa fé e sendo certo que a requerente estava em mora no momento da resolução, não gozando desse direito (art. 438.º do CC);

- a requerente não fundamenta a lesão grave e dificilmente reparável decorrente do acionamento da garantia, não tendo feito prova da sua situação económica, sendo que foram tomadas medidas legislativas mitigadoras dos efeitos decorrente da declaração do estado de emergência, não existindo, também, qualquer perigo iminente de lesão do direito da requerente, atento o estabelecimento legal de moratórias no pagamento de créditos bancários.

Inquiridas as testemunhas indicadas pelas partes, foi proferida sentença que julgou o procedimento cautelar improcedente e absolveu os Requeridos das providências contra si requeridas.

Interposta Apelação veio a ser esta julgada procedente, apreciando a impugnação da matéria de facto, aditando nova matéria à fixada como provada, decidindo-se a procedência do recurso e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, condenam-se os Requeridos no pedido, ou seja:

O 1.º Requerido a abster-se de pagar qualquer quantia ao 2.º Requerido, ao abrigo da garantia bancária on first demand emitida a pedido da Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal;

O 2.º Requerido a abster-se de accionar a garantia bancária on first demand prestada pela Requerente no âmbito do contrato de arrendamento resolvido, até ao trânsito em julgado da ação principal. 

… …

 Desta decisão interpôs revista a recorrente concluindo que:

“I. O presente recurso de revista, que tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação ….. e através do qual se pugna pela sua revogação e repristinação da sentença prolatada pela 1.ª instância, funda-se no disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d) do CPC.

II. Para considerar abusivo o chamamento da garantia bancária on first demand pelo Fundo e considerar legítima a recusa do BCP em pagá-la, o Tribunal a quo não se bastou com a mera comunicação de resolução do contrato pela Modarte, tendo para o efeito apreciado prova testemunhal e, com base nela, dado por provados factos que entendeu levarem à conclusão de estarem verificados, no caso concreto, os pressupostos da alteração anormal das circunstâncias.

III. O entendimento sobre a licitude da resolução do contrato teve a sua génese nos factos n.ºs 27 e 29 da matéria de facto indiciariamente provada, factos que foram dados por provados pelo Tribunal a quo, em sentido contrário à decisão da matéria de facto do Tribunal da 1.ª instância, através dos depoimentos das testemunhas AA e BB.

IV. O Tribunal a quo entendeu que, para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário no accionamento da garantia bancária on first demand, podia e devia ser apreciada prova suplementar que não a documental, com destaque para a prova testemunhal.

V. O acórdão recorrido está em contradição com outro acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 2013, Proc. 863/12.7TVLSB-A.L1-2, proferido no domínio da mesma legislação – artigos 762.º e 334.º do Código Civil - e sobre a mesma questão fundamental de direito – saber se a prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia se coaduna com a produção de provas suplementares, nomeadamente a prova testemunhal para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário.

VI. Sobre a questão em causa não existe jurisprudência uniformizada por este Venerando Tribunal, sendo que deverá prevalecer a interpretação seguida no acórdão fundamento.

VII. Nos termos do acórdão fundamento entendeu-se, ao contrário do acórdão recorrido, que a prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia não se coaduna com a produção de provas suplementares, nomeadamente a prova testemunhal: “IV – A prova dessa fraude ou abuso, será líquida ou inequívoca quando permite a percepção imediata e segura daqueles, quando os torna óbvios.

 – E pronta ou preexistente quando não se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares, proceder a medidas de instrução, ou ouvir terceiros para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário.”

VIII. Tanto no caso sub judice como no que esteve na base do acórdão fundamento, verifica-se a existência de contrato celebrado entre as partes, de natureza sinalagmática e execução continuada, e a invocação, pelo ordenante da garantia, de circunstância que levaria a concluir-se como fraudulento ou abusivo o seu chamamento pelo beneficiário.

IX. Tem sido seguido pelo Tribunal da Relação de Lisboa o entendimento de que, para que seja decretada procedência cautelar destinada a evitar o pagamento de garantia bancária on first demand, a prova líquida e inequívoca da fraude ou abuso tem de resultar de prova documental de “segura e imediata interpretação”. Nesse sentido, por todos: “A fraude manifesta e o abuso evidente implicam a prova pronta e líquida, sendo que, a prova é pronta (preconstituída) quando não se mostra necessário requerer a produção de provas suplementares e é líquida (inequívoca) quando permite a percepção imediata e segura da fraude ou do abuso, tornando-os óbvios.”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.01.2010, Proc. 2720/09.5TVLSB.L1-7 e de 08.09.2015, Proc. 74/14.7T8LSB.L17;

X. A garantia bancária sub judice prevê o direito de o Fundo accioná-la quando a Modarte falte ao cumprimento das obrigações assumidas no âmbito do contrato, designada, mas não exclusivamente, quanto ao pagamento das rendas e/ou indemnizações, por mora e/ou pelo incumprimento dos prazos previstos para o arrendamento, cfr. Doc. n.º 3 do Requerimento Inicial.

XI. A mera resolução do contrato não é prova líquida e imediata que faça saltar à vista qualquer actuação fraudulenta ou abusiva do Fundo ao exigir o pagamento da garantia, uma vez que o contrato de arrendamento prevê que é devida indemnização ao Fundo pela Modarte em caso de resolução com produção de efeitos em data anterior a 31.10.2021 e a própria garantia bancária estipula que está abrangido pelo seu objecto o pagamento de indemnização por incumprimento dos prazos de vigência do contrato.

XII. Bem havia andado o Mmo. Juiz do Tribunal de 1.ª instância ao concluir que, se para verificar se o chamamento da garantia pelo Fundo se deveria ter por abusivo, fraudulento ou atentatório da boa-fé era necessário apreciar a licitude ou ilicitude da resolução do contrato ao abrigo do disposto no artigo 437.º do Código Civil (necessariamente com recuso outras diligências probatórias), então é inequívoco concluir pela não verificação dos pressupostos que poderiam levar ao decretamento da providência.

XIII. Com o devido respeito, admitir que providência cautelar destinada a evitar o accionamento de garantia bancária on first demand possa ser concedida, com base na produção de prova testemunhal para verificação da licitude do não cumprimento de obrigações contratuais e/ou na verificação dos pressupostos do artigo 437.º do Código Civil, gerará enormes e gravosas consequências na fiabilidade e segurança das garantias bancárias on first demand, importante instrumento jurídico que tem obtido forte adesão no comércio jurídico precisamente pela circunstância de o garante não poder opor ao beneficiário os meios de defesa do ordenante.

XIV. Face a tanto, deve ser revogado o acórdão recorrido, por não ter feito a melhor interpretação do disposto nos artigos 762.º e 334.º do Código Civil, em sentido contrário ao acórdão fundamento, repristinando-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, concluindo-se pela inexistência dos pressupostos do fumus bonis iuris e consequente improcedência do procedimento cautelar.

XV. Caso não se entenda que se encontra contradição de acórdãos quanto à questão acima identificada e/ou que o entendimento a seguir deva ser o do acórdão recorrido, sempre se acrescenta que o Tribunal a quo decidiu ser admissível a resolução de contrato, por alteração das circunstâncias, por mera interpelação extrajudicial dirigida à contraparte, verificando-se, também aqui, contradição com outro acórdão de Tribunal da Relação.

XVI. O acórdão recorrido está em contradição com acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13 de Abril de 2010, Proc. 1913-08/2 Apelação, proferido no domínio da mesma legislação - artigo 437.º, n.º 2 do Código Civil - e sobre a mesma questão fundamental de direito – saber se a resolução de contrato por alteração das circunstâncias, ao abrigo do disposto no artigo 437.º, n.º 2 do Código Civil, pode operar por simples declaração extrajudicial.

XVII. Sobre a questão em causa não existe jurisprudência uniformizada por este Venerando Tribunal, sendo que deverá prevalecer a interpretação seguida no acórdão fundamento.

XVIII. Nos termos do acórdão fundamento: “Não concedendo o artº 437º do CC à parte o direito potestativo de resolver extrajudicialmente o contrato, mas apenas o direito de requerer a sua resolução, conforme prevê o nº 2, desse artº, que pode ou não ser-lhe concedida, não podia o Mmo Juiz “a quo” considerar resolvidos os contratos, nos termos do art. 437º, por simples declaração dos autores à R., em 24 e 30 de Outubro de 2003” (negrito e sublinhados nossos)

XIX. No âmbito do quadro factual do caso subjacente ao acórdão fundamento, os Autores peticionaram a condenação das Rés no cumprimento de diversas obrigações de facto e pagamento de quantia certa, tendo os pedidos por pressuposto o reconhecimento da lícita resolução, pelos Autores, dos contratos de edição celebrados com uma das Rés.

XX. O entendimento seguido no acórdão fundamento – de que a resolução do contrato por alteração das circunstâncias deve operar através de pedido judicial e não por comunicação extrajudicial – já havia sido adoptado noutros arestos de Tribunais Superiores. Nesse sentido: “a resolução do contrato com base em alteração anormal das circunstâncias não pode efectuar-se extrajudicialmente”, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.1996, Proc. 96A470, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt.

XXI. O artigo 437.º, n.º 2 do Código Civil é claro ao estipular que a resolução deve ser requerida pela parte lesada e que a parte contrária pode opor-se ao pedido, sinal inequívoco de que a resolução por alteração das circunstâncias opera em termos distintos dos previstos no regime geral previsto no artigo 436.º do Código Civil.

XXII. Do disposto no artigo 439.º do Código Civil sai reforçado o entendimento de que a resolução do contrato por alteração das circunstâncias tem um regime especial, já que se prevê que só após a resolução do contrato, i.e. depois de decretada judicialmente, é que são aplicáveis as disposições previstas nos artigos 432.º a 435.º do Código Civil.

XXIII. Uma vez que a Modarte não podia ter resolvido o contrato de arrendamento celebrado com o Fundo por simples comunicação extrajudicial, deve ser revogado o acórdão recorrido, por não ter feito a melhor interpretação do disposto no artigo 437.º, n.º 2 do Código Civil, em sentido contrário ao acórdão fundamento, repristinando-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, concluindo-se pela inexistência dos pressupostos do fumus bonis iuris e consequente improcedência do procedimento cautelar.

Requer a V. Exas. que seja admitido e concedido provimento ao presente recurso de revista, revogando-se a decisão do Tribunal a quo e repristinando-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.”


A recorrida contra-alegou defendendo a inadmissibilidade da revista e, em qualquer caso, a improcedência da mesma com a confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

… …

Fundamentação

As instâncias fixaram como provada a seguinte matéria de facto:

“1 - A requerente tem por objecto a importação, distribuição e comércio de malas e acessórios de viagem, marroquinaria, sapatos e acessórios de moda.

2 - O 1.º requerido tem por objecto o exercício da atividade bancária.

3 - A Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., na qualidade de “senhoria”, e Gateleven, Unipessoal, Lda., na qualidade de “arrendatária”, subscreveram o acordo escrito cuja cópia consta de fls. 30 a 36, e que se dá por reproduzido, datado de 04.11.2014, intitulado “Contrato de Arrendamento Comercial com Prazo Certo”, tendo por objecto o espaço com o n.º …-.. do prédio sito a ….., em …..;

4. Tal prédio veio a ser adquirido pelo 2.º requerido, que, no acordo referido no n.º 3, sucedeu na posição de locador.

5. O 2.º requerido, a sociedade Gateleven, Unipessoal, Lda., e a ora requerente, subscreveram o acordo cuja cópia consta de fls. 37 a 44, datado de 02.11.2017, intitulado “Cessão de Posição Contratual e Aditamento a Contrato de Arrendamento”, que se dá por reproduzido, datado de 02.11.2017, pelo qual a sociedade Gateleven, Unipessoal, Lda., cedeu à ora requerente a posição contratual de arrendatária no acordo referido no n.º3.

6. No acordo mencionado, ficou estabelecido que a arrendatária entregaria à senhoria uma garantia bancária autónoma e à primeira solicitação, como garantia de todas as obrigações que para arrendatária decorram do cumprimento ou incumprimento do contrato;

7. Nessa sequência, o 1.º requerido emitiu em 20.10.2017 a garantia bancária n.º 125-02-2080132, cuja cópia consta de fls. 45 e 46 e se dá por reproduzida, pela qual declara «prestar a favor de REAL ADDED VALUE PN FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO (…) uma garantia bancária autónoma, irrevogável incondicional e à primeira solicitação (“on first demand”), no montante de Eur 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), responsabilizando-se, dentro da citada importância, por fazer o pagamento à BENEFICIÁRIA de quaisquer quantias exigidas por esta à ORDENANTE no âmbito do contrato de arrendamento celebrada entre ambas, respeitante ao piso 0 do prédio urbano designado “......... …”, sito na ......... …, em ….., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …01 da freguesia ......., …... O BANCO obriga-se de forma irrevogável e incondicional, como principal pagador e com expressa renúncia ao benefício da excussão, a pagar, no prazo de cinco dias úteis após recepção do pedido da BENEFICIÁRIA, a efetuar por simples comunicação escrita sem necessidade de reconhecimento de assinatura, as importâncias que lhe venham a ser solicitadas, por uma ou mais vezes e até ao montante garantido, caso a sua afiançada falte ao cumprimento das obrigações assumidas, designada mas não exclusivamente, quanto ao pagamento das rendas e /ou indemnizações, por mora e /ou pelo incumprimento dos prazos previstos para o arrendamento (…) a presente garantia permanece válida e em vigor desde a presente data até 31/01/2025, expirada a qual cessa a sua produção de efeitos e, por consequência, nada mais poderá ser exigido ao Banco com fundamento na mesma. A presente garantia apenas poderá ser cancelada antes da data limite assinalada, mediante declaração emitida pela BENEFICIÁRIA, autorizando o seu cancelamento».

8.  No dia 11.03.2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de pandemia em face do impacto causado pelo surto pandémico de COVID-19 à escala global;

9.   O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18.03, declarou o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de   calamidade pública;

10. Nessa sequência, o Decreto da Presidência do Conselho de Ministros n.º 2-A/2020, de 20/03, que entrou em vigor no dia 22.03.2020, determinou a suspensão de atividades no âmbito do comércio a retalho, com exceção daquelas que disponibilizem bens de primeira necessidade ou outros bens considerados essenciais na presente conjuntura e que constam em anexo, não se aplicando essa suspensão aos estabelecimentos de comércio por grosso nem aos estabelecimentos que pretendam manter a respetiva atividade exclusivamente para efeitos de entrega ao domicílio ou disponibilização dos bens à porta do estabelecimento ou ao postigo, estando neste caso interdito o acesso ao interior do estabelecimento pelo público;

11. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30/04, que produziu efeitos a partir das 00:00h do dia 03.05.2020, decretou o levantamento da suspensão de acesso ao interior do estabelecimento pelo público, para os estabelecimentos de comércio a retalho com a área igual ou inferior a 200m2 e uma entrada autónoma e independente pelo exterior;

12. O Despacho n.º 3427-A/2020, de 18/03, interditou o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal de todos os voos de e para países que não integram a União Europeia, com algumas excepções, com efeitos a partir das 24 horas do dia 18.03.2020, o que foi, posterior e sucessivamente, prorrogado.

13. As vendas realizadas a turistas representavam, pelo menos, 70% do volume de vendas registadas na loja referida no n.º 3;

14. Parte dessas vendas eram vendas em TaxFree, enquanto vendas realizadas a turistas residentes em Estados Terceiros;

15. BB, inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados, certificou, na qualidade de contabilista da requerente, que as quebras de facturação ocorridas na loja referida no n.º 3, face ao período homólogo do ano de 2019, foram, no mês de Março de 2020, de 73%, no mês de Abril de 2020, de 100%, no mês de Maio de 2020, de 94%, no mês de Junho de 2020, de 83%, e que, à data de 31.07.2020, o acumulado anual totalizava uma quebra de faturação de 65% face ao período homólogo do ano anterior;

16. Entre a requerente e o 2.º requerido, foram trocadas as seguintes missivas:

a) carta enviada pela requerente em 11/03/2020, cuja cópia consta de fls. 49 a 51 e se dá por reproduzida, na qual refere uma quebra de vendas insustentável, que a situação é muito grave e que brevemente entrará em contacto com o 2.º requerido;

b) carta enviada pela requerente em 25/03/2020, cuja cópia consta de fls. 52 a 55 e se dá por reproduzida, na qual informa ter sido forçada a encerrar a loja no dia 19.03.2020 e que não poderá pagar as rendas enquanto a loja estiver encerrada;

c) carta enviada pela requerente em 14/04/2020, cuja cópia consta de fls. 56 a 58  e se dá por reproduzida, na qual discorre sobre a situação extraordinária de forte crise económica, da forte exposição do estabelecimento ao sector do turismo e onde propõe, nomeadamente, um desconto de 50% das rendas desde a data em que seja possível reabrir o estabelecimento e até ao final do ano de 2020;

d) carta enviada pelo 2.º requerido em 23/04/2020, cuja cópia consta de fls.59  e 60 e se dá por reproduzida, na qual recusa tal proposta, solicita o pagamento das rendas vencidas desde 01.04.2020 ou o envio de urgente comunicação sobre a eventual aplicação do regime leal de diferimento de pagamento de rendas, caso a requerente entenda que o mesmo lhe é aplicável;

e) carta enviada pela requerente em 30/04/2020, cuja cópia consta de fls. 61 a 63 e se dá por reproduzida, na qual comunica a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento, com cessação de efeitos a partir da data de 31/10/2020, e solicita ao 2.º requerido que proceda ao cancelamento da garantia bancária emitida;

f) carta enviada pelo 2.º requerido em 06/05/2020, cuja cópia consta de fls. 64 a 65 e se dá por reproduzida, na qual declara a aceitação da extinção do contrato de arrendamento, mas para a data de 31/10/2021, em face da cláusula 3.ª do contrato;

g) carta enviada pela requerente em 04/06/2020, cuja cópia consta de fls. 66 a 69 e se dá por reproduzida, pela qual reitera a sua carta de 30/04/2020;

h) carta enviada pelo 2.º requerido em 05/06/2020, cuja cópia consta de fls. 70 a 71 e se dá por reproduzida, na qual reitera a sua carta de 06.05.2020;

i) carta enviada pela requerente ao 2.º requerido em 07/08/2020, cuja cópia consta de fls. 71-A a 75 e se dá por reproduzida, na qual informa das quebras de vendas nos meses de Março a Julho de 2020, apresenta uma proposta de isenção e redução dos valores das rendas e concede o prazo de 8 dias ao 2.º requerido para aceitar essa proposta, sob pena de invocar o direito de resolver o contrato nos termos do ar. 437.º do CC, com efeitos reportados ao final do mês de Agosto de 2020, data em que entregará o locado livre de pessoas e bens;

j) carta enviada pelo 2.º requerido à requerente em 12/08/2020, cuja cópia consta de fls. 76 a 78 e se dá por reproduzida, na qual refere não aceitar a proposta da requerente e apresenta uma outra proposta;

k) carta enviada pela requerente ao 2.º requerido em 17/08/2020, cuja cópia consta de fls. 79 e 83 e se dá por reproduzida, na qual rejeita a proposta do 2.º requerido, comunica que procede à resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 437.º do Código Civil, com efeitos reportados a 31/08/2020, e junta comprovativo de pagamento dos valores das rendas devidas até à data de 31/08/2020;

l) carta enviada pelo 2.º requerido à requerente em 19/08/2020, cuja cópia consta de fls. 84 a 85 e se dá por reproduzida, na qual considera que não se verificam os pressupostos de alteração anormal das circunstâncias, pelo que deverá a requerente manter o cumprimento integral do contrato até ao seu termo, isto é, 31.10.2021;

m) carta enviada pela requerente ao 2.º requerido, em 01/09/2020, cuja cópia consta de fls. 86 e 87 e se dá por reproduzida, pela qual procede à entrega das chaves da loja e refere que o local arrendado está livre de pessoas e bens.

17. A Requerente procedeu à desocupação do local referido no n.º 3, deixando-o totalmente livre de pessoas e bens, no final do mês do Agosto de 2020;

18.A cláusula 3.ª do contrato de arrendamento referido no n.º 3 dispõe que:

«3 - Nenhuma das partes poderá denunciar ou resolver o presente contrato durante os primeiros sete anos de vigência do mesmo, os quais são, assim, de duração efectiva.

4 - No caso da Arrendatária proceder à denúncia ou resolução do contrato nos primeiros sete anos de vigência ficará obrigado a pagar à Senhoria o valor das rendas que se venceriam até final do referido prazo».

19. De acordo com dados retirados da internet, a despesa média diária por turista aumentou de € 33,90, em 2014, para € 48,60 em 2019;

20. Em Agosto de 2019, foi anunciado num artigo publicado na internet que “o número de turistas a visitar Portugal aumentou para 12,1 milhões” e que as “receitas com o turismo totalizaram 1,78 mil milhões de euros”;

21. A cláusula 5.ª do contrato de arrendamento referido no n.º 3 dispõe que:

«1 - A Arrendatária obriga-se a pagar à Senhoria uma renda mensal, que s evence no primeiro dia útil do mês anterior a que disser respeito (...)»;

22. A requerente não remeteu qualquer comunicação ao 2.º requerido nos termos do e para os efeitos da Lei n.º 4-C/2020, de 06/04, que estabeleceu um regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional e não habitacional, atendendo à situação epidemiológica;

23. A requerente pagou as rendas referentes aos meses de Abril a Agosto de 2020, no dia 17.08.2020.

24. A requerente possui uma rede de 35 lojas.

25-A Requerente tem como actividade comercial a venda ao público de malas e artigos de viagem, sendo distribuidora exclusiva da marca SAMSONITE.

26. As vendas TaxFree a que se alude no n.º 14 representavam cerca de 40% do volume de vendas da loja referida no n.º 3 dos factos provados.

27. No período compreendido entre Março e Julho de 2020, a requerente registou perdas acentuadas superiores a 85% em comparação com o período homólogo do ano de 2019.

28. As vendas registadas pela requerente no período de Março a Julho de 2020 e reconduzíveis ao imóvel locado, atingiram o valor de 25.113,00 €”.

29. O valor das vendas facturadas pela requerente, nos meses de Março a Julho, não chegam sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade”.

… …

Foi considerado “não provado” o seguinte:

b) que o 2.º requerido tenha como desígnio comercial a valorização crescente do capital e obtenção de um rendimento estável, através da constituição e gestão de uma carteira de valores predominantemente imobiliários;

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas alegações, importa em apreciar e decidir se existe contradição entre o acórdão recorrido e os dois acórdãos identificados como fundamento pela recorrente relativamente à questão de saber se para conhecer da má-fé e abuso de direito do credor, que admitem ao garante não pagar a garantia autónoma on first demand, é admissível outra prova que não a documental e relativamente à questão de decidir se é legalmente admissível a resolução extrajudicial do contrato com base na alteração anormal das circunstancias do art. 437  do CC.

Por outro lado, é prévio ao conhecimento destas questões de decidir se o recurso é admissível e, na afirmativa, se existe a contradição sinalizada pela recorrente entre o acórdão recorrido e os que apresenta como fundamento.

Apreciando a questão da admissibilidade do recurso, lembra-se que proferido acórdão numa apelação no âmbito de uma providência cautelar, nos termos do art. 370 nº 2 do CPC, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça excepto quando se verifique uma das situações previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados. Por esta razão, invocada na presente revista pela recorrente a oposição de julgados é a mesma admissível.

A recorrida opõe à admissão do recurso que a matéria objecto do mesmo exorbita o que é possível conhecer-se no âmbito das providências cautelares, porque “o núcleo fundamental do recurso não se coloca em relação a qualquer circunstância ou pressuposto de natureza cautelar, centrando-se, pelo contrário, na questão de mérito, deixa, consequentemente, de se visar uma solução cautelar provisória para, na prática, se pretender uma decisão definitiva sobre a questão substantiva de mérito.”

Apreciando esta observação, tendo a recorrente alegado a oposição de julgados como fundamento da revista quanto ao que entende dever ser a prova admissível da “fraude ou abuso de direito” do beneficiário no acionamento da garantia (com irrelevância que à prova testemunhal deve caber), e quanto à admissibilidade da resolução contratual por alteração das circunstâncias, mediante comunicação extrajudicial dirigida à contraparte, julgamos que ambos os segmentos recursivos importam, em tese, ao conhecimento do que é pressuposto na providência cautelar, designadamente no domínio em que a decisão recorrida situou essas matérias, ou seja, na apreciação e conhecimento da existência da titularidade de um direito ou de um interesse legalmente protegido que é requisito do procedimento cautelar intentado.

Neste mesmo sentido já se decidiu neste STJ que o garante não pode ignorar “uma ordem judicial que determine o não pagamento da garantia, ainda que proferida no âmbito da justiça cautelar. O que implica que, verificada aquela condição ou desrespeitada esta ordem, o garante possa correr o risco de não conseguir reaver o que pagou.

Estando em causa uma garantia autónoma e à primeira solicitação, é no âmbito do processo cautelar que há-de ser devidamente considerada a sua autonomia relativamente ao contrato subjacente, de forma a evitar que, através de uma decisão baseada em prova de primeira aparência e respeitante a esse contrato, se altere a natureza da garantia prestada. - STJ 21/4/2010 no proc. 458/09.2YFLSB (relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) in dgsi.pt. Ou seja, para o que aqui nos interessa, na providência cautelar pode discutir-se e decretar-se uma ordem judicial que determine a abstenção de pagar uma garantia, mesmo que esta seja on first demand, devendo obviamente acautelar-se a natureza própria desta garantia e o particular regime do seu accionamento. 

Decidindo-se que não obsta à admissibilidade da revista o que a recorrida lhe opõe, adverte-se, no entanto, que o conhecimento do recurso se debruça exclusivamente sobre as questões que se dizem ter tido resposta contraditória nos acórdãos indicados como fundamento, desde que tal oposição exista.

Analisando a existência da contradição de julgados que admite a revista especial do art. 629 al.d) do CPC, como é jurisprudência constante do STJ, a contradição jurisprudencial imprescindível implica que, cumulativamente se verifique:

 - o não cabimento de recurso ordinário impugnativo do acórdão recorrido por motivo alheio à alçada do tribunal;

- a existência de, pelo menos, dois acórdãos em efetiva oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito fundamental, tendo por objeto idêntico núcleo factual, ali versados;

- a anterioridade do acórdão-fundamento, já transitado em julgado;

- a não abrangência da questão fundamental de direito por jurisprudência anteriormente uniformizada pelo STJ.

Acresce ainda como importante que a contradição de julgados que releva como condição da admissibilidade do recurso de revista é a oposição frontal sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de que as decisões em confronto tenham convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos e tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

A identidade exigível, como sublinha Abrantes Geraldes – in Recursos em processo civil , 6º edição p. 74 – tem de se “situar “entre a questão de direito apreciada no acórdão da relação que é objecto de recurso e no outro aresto (acórdão da Relação ou do Supremo que sirva de contraposto), não bastando que neles se tenha abordado o mesmo instituto jurídico, tal pressupõe que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes , isto é que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória”. Por isso a contradição “deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta, a questão de direito deve apresentar-se com essencial para o resultado que foi alcançado em ambos os acórdãos sendo irrelevante a divergência que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou em torno de meros obiter dicta.”

Analisando agora o objecto das contradições apontadas, de acordo com estas exigências de requisitos, são duas as questões relativamente às quais a recorrente sustenta haver oposição entre o acórdão recorrido e outros que identifica como fundamento.

No primeiro momento refere que, para considerar abusivo o chamamento da garantia bancária on first demand e considerar legítima a recusa do banco em pagá-la, o Tribunal a quo não se bastou com a mera comunicação de resolução do contrato pela Modarte, tendo para o efeito apreciado prova testemunhal e, com base nela, dado por provados factos que entendeu levarem à conclusão de que estavam verificados, no caso concreto, os pressupostos da alteração anormal das circunstâncias.

Por sua vez o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Fevereiro de 2013, Proc. 863/12.7TVLSB-A.L1-2, quanto a saber se a prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia se coaduna com a produção de provas suplementares, nomeadamente a prova testemunhal para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário, entendeu que a prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia não se coaduna com a produção de provas suplementares, nomeadamente a prova testemunhal.

Esclarecendo a situação, em primeiro lugar deve ter-se presente que no acórdão recorrido, depois de apreciar a impugnação da matéria de facto suscitada no recurso procedeu à alteração da fixada em primeira instância e deu como provado, com base na prova testemunhal, que:

25 - A Requerente tem como actividade comercial a venda ao público de malas e artigos de viagem, sendo distribuidora exclusiva da marca SAMSONITE.

26 - As vendas TaxFree a que se alude no n.º 14 representavam cerca de 40% do volume de vendas da loja referida no n.º 3 dos factos provados.

27 - No período compreendido entre Março e Julho de 2020, a requerente registou perdas acentuadas superiores a 85% em comparação com o período homólogo do ano de 2019.

28 - As vendas registadas pela requerente no período de Março a Julho de 2020 e reconduzíveis ao imóvel locado, atingiram o valor de 25.113,00 €”.

29 - O valor das vendas facturadas pela requerente, nos meses de Março a Julho, não chegam sequer para cobrir 1/5 dos custos mínimos da sua actividade”.

Não só com base nesta matéria provada, bem assim como na restante igualmente fixada como assente (designadamente a referente à pandemia e proibição de abertura dos estabelecimentos), veio a decisão recorrida a julgar preenchidos os requisitos da alteração anormal das circunstâncias que nos termos do art. 437 do CC admitem a resolução do contrato por parte da recorrida com esse fundamento, considerando legalmente admissível essa resolução extrajudicial.

Decorre desta breve exposição que a prova que o tribunal recorrido aditou como provada a destinou, juntamente com outra, à apreciação da eventual existência de alteração anormal das circunstâncias em que as partes tinham celebrado o contrato para daí extrair a legalidade da resolução e não para se pronunciar relativamente à prova da “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário no accionamento do exercício da garantia.

Como se escreveu na decisão recorrida, não é “possível apreciar a questão fulcral deste processo, ou seja, a existência de um comportamento abusivo, por parte da Beneficiária da garantia bancária, sem avaliar da existência dos pressupostos da resolução por alteração anormal das circunstâncias. (…).

Na verdade, se chegarmos à conclusão de que foi lícita a resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto no art.º 437.º do Código Civil, então a Requerente nada deve à Requerida e, por conseguinte, a exigência do pagamento da garantia bancária é inequivocamente abusiva.”

Cremos ser correcto distinguir, como se distinguiu, o momento da análise e decisão, mesmo no juízo de aparência que nas providências cautelares é possível realizar, quanto à existência de alteração anormal das circunstâncias, daquele outro, posterior e no qual, aceite e decidida essa alteração e a admissibilidade da resolução esta se apresente como oponível ao garante em termos de o acionamento da garantia ser considerado abusivo.

Com esta explicação concluímos que, no acórdão recorrido, não se configurou como admissível outra prova que não a líquida e inequívoca para demonstrar a existência de fraude manifesta e abuso de direito ou má-fé patente por parte do credor, prova essa que como se refere no acórdão fundamento só poderia ser documental. O que se referiu e decidiu (no acórdão recorrido), diferentemente, foi que se impunha em primeiro lugar na providência cautelar averiguar a existência de alteração anormal das circunstâncias, nos termos do art. 437 do CC, para decidir se a resolução extrajudicial era válida e só depois, perante esse juízo de validade e legalidade, concluir que, nessa conformidade, essa resolução é oponível ao garante como evidência da má fé por parte do credor. Isto é, a prova inequívoca, que o acórdão recorrido não desmentiu nem desautorizou como necessária, situou-a na existência válida de resolução extrajudicial.

Como o configuramos, com esta distinção, não existe contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento neste primeiro segmento suscitado quanto à exigência probatória. Na decisão recorrida, repete-se, a prova fixada, quer a que tem origem documental quer a testemunhal, é mobilizada para a questão de apreciar e decidir a alteração anormal das circunstâncias. Ao invés, no acórdão fundamento não se discute a validade da resolução do contrato em geral, nem por alteração anormal das circunstâncias em especial, antes se problematiza a alegação de, tendo sido prestada a garantia no âmbito de um contrato de agência, e sido accionada “a garantia bancária”, existir ou não abuso manifesto de direito, dada a existência de créditos e contra créditos recíprocos, bem como a novação da dívida (garantida). E o essencial da decisão proferida foi de não se ter provado o contrato/acordo novatório que se dizia existir como obstáculo ao accionamento da garantia, por não se ter feito prova segura e líquida da conclusão de tal acordo não bastando testemunhas a referir que o tinha sido.

Em resumo, o acórdão fundamento, versando sobre a possibilidade de o garante recusar a soma objecto da garantia em caso de “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário apenas em face de prova líquida ou inequívoca que permita a percepção imediata e segura, sem necessidade de outras provas ou ouvir terceiros, para estabelecer a fraude ou o abuso do beneficiário, pronunciou-se no sentido de a alegação de um contrato/acordo com essa finalidade não ter sido julgado provado na sua existência por inexistência de uma prova manifesta e documental.

Na decisão recorrida, admitindo-se como se admitiu na providência cautelar a apreciação de alteração anormal das circunstâncias nos termos do art. 437 do CC (e não estando esta questão concreta suscitada no recurso porque a contradição de decisões suscitada pela recorrente a ela não reporta), é o resultado dessa análise e consequente decisão, a admissão e legalidade da resolução extrajudicial efectivada, que constituirá a prova de que existe fraude, abuso ou má-fé do beneficiário que pode obstar ao accionamento da garantia.

Por estas razões se entende não existir contradição de acórdãos entre o recorrido e do TRL de de 21 de Fevereiro de 2013, Proc. 863/12.7TVLSB-A.L1-2, por não verificar nos termos sobreditos oposição sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de as decisões em confronto terem convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos e terem subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

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Quanto ao segundo segmento de contradição apontado pela recorrente, refere esta que o acórdão recorrido decidiu ser legalmente admissível a resolução extrajudicial com fundamento na alteração anormal das circunstâncias enquanto o acórdão do TRP proferido em 13-4.2010 no proc. 1913/08-2 teria decidido que “o art. 437 do CC não concede à parte o direito potestativo de resolver extra judicialmente o contrato, mas apenas o direito de requerer a sua resolução conforme prevê o nº2 desse artigo , que pode ou não ser-lhe concedida , não podia o Mmo juiz considerar resolvidos os contratos nos termos do art. 437 por simples declaração dos autores.”

É verdade que esse acórdão apresentado como fundamento contém essa expressão, porém, a mesma não pode ser tomada de modo avulso, mas tem de ser enquadrada relativamente ao objecto, á questão suscitada nesse processo, porquanto, como antes se referiu, a questão de direito deve apresentar-se como essencial para o resultado que foi alcançado em ambos os acórdãos sendo irrelevante a divergência que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou em torno de meros obiter dicta.

Ora, de imediato a afirmar no acórdão fundamento, como se transcreveu, a adesão a um entendimento segundo o qual a resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias não pode ser efectivada extrajudicialmente, pode e deve ler-se que “para que possa haver resolução ou modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias tem de haver requerimento nesse sentido (cfr. ac. STJ de 18-3-1993 CJ STJ II p.122). A resolução carece de ser invocada pela parte que dela pretenda aproveitar não podendo o tribunal a quo fazer accionar de forma oficiosa as consequências da alteração anormal das circunstâncias em que contrataram, assim considerando legítima e licita a recusa do cumprimento dos contratos que os autores celebraram, com a ré.

Ora foi isso que fez o Mmo Juiz a quo porquanto os autores não invocaram a alteração anormal das circunstâncias em que contrataram. Muito diversamente sustentaram na petição inicial a inexistência de contratos. 

(…) Finalmente, mesmo que os autores quisessem mediante as suas comunicações declarar a resolução do contrato por alteração das circunstâncias e que o Mmo juiz, conhecendo, poderia convolar para tal causa extintiva, indispensável seria que que demonstrassem – por se tratar de factos extintivos do seu direito – que os requisitos substantivos do direito à resolução do contrato.”

Resulta desta transcrição que na economia da decisão e do objecto do recurso a questão da inadmissibilidade da resolução extrajudicial do contrato por alteração anormal das circunstâncias nos termos do art. 437 do CC não contribui em nada para a decisão que foi proferida e constitui aquilo que se pode qualificar como uma alusão lateral, dispensável ao conhecimento da questão de direito e sem qualquer significado decisivo nela.

Deste modo, não existe também contradição de julgados quanto a esta questão e, assim sendo, a inexistência de oposição de julgados sinalizada pela recorrente impõe que se tenha por inadmissível a revista por falta de fundamento legal decorrente da não verificação dos requisitos exigíveis quanto à contradição de julgados.

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Síntese conclusiva

- Num procedimento cautelar pode ser proferida ordem judicial que determine o não pagamento de uma garantia autónoma e à primeira solicitação e no âmbito do processo cautelar há-de ser devidamente considerada a sua autonomia relativamente ao contrato subjacente;

- Sendo admissível no procedimento cautelar apreciar a resolução extrajudicial do contrato por alteração anormal das circunstâncias nos termos do art. 437 do CC, é o resultado dessa análise e consequente decisão que constituirá a prova inequívoca e manifesta exigível para se apurar se existe fraude, abuso ou má-fé do beneficiário que pode obstar ao accionamento da garantia autónoma e á primeira solicitação.

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Decisão

Pelo exposto, acorda-se em não admitir a revista.

Custas pelas recorrentes.

Lisboa, 14 de Julho de 2021


Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade do Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva e da Srª. Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.

Manuel Capelo (relator)