Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B4521
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
NULIDADE PROCESSUAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: SJ200612190045217
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO.
Sumário : 1. O erro na apreciação das provas livremente feita pelo julgador, a que se reporta o artigo 655º, n.º 1, do Código de Processo Civil, excede o âmbito do recurso de revista.
2. A omissão de apreciação no recurso de apelação da prova em que o recorrente baseou a impugnação da matéria de facto não integra a nulidade geral dos actos processuais a que se reporta o artigo 201º, nº 1, do Código de Processo Civil.
3. A escassez ou insuficiência ou a mediocridade da fundamentação não integra a nulidade do acórdão prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
4. Não ocorre a mencionada nulidade se a Relação expressou não poder proceder a pretensão do recorrente de alteração da decisão de facto porque o julgador tinha que de ter em conta a totalidade da prova produzida e, face aos depoimentos transcritos e aos documentos, tinha concluído bem no sentido de que se não fizera prova do que afirmara.
5. Sob pena de violação do disposto nos 712º, nºs 1, alínea a), e 2 e 713º, n.ºs 5 e 6, do Código de Processo Civil, a Relação só pode remeter para a decisão da matéria de facto proferida na primeira instância ou limitar-se a negar provimento ao recurso e a remeter para os fundamentos de facto e de direito da sentença a remeter para a sentença se aquela decisão não tiver sido impugnada.
6. Diversas dos argumentos ou razões de facto e de direito, as questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
7. É questão lato sensu com o sentido acima referido a de saber da verificação de factos por via da reapreciação das provas produzidas no tribunal da 1ª instância, cuja omissão de conhecimento pela Relação implica a nulidade do acórdão e a remessa àquela do processo a fim de operar a sua necessária reforma. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

"AA" e BB, intentaram, no dia 15 de Maio de 2002, contra CC, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração do seu direito de propriedade sobre identificada faixa de terreno do prédio rústico "..." e a condenação do réu a devolver-lha e a indemnizá-las, desde Julho de 1998, até entrega, no valor correspondente a € 750 mensais, com base na sua ocupação por ele com um stand de veículos automóveis.
O réu, em contestação, afirmou a caducidade do direito de acção, não fazer parte do prédio das autoras a parcela de terreno reivindicada, não confrontar o seu prédio com a mesma e, em reconvenção, a título subsidiário, pediu a declaração do seu direito de propriedade sobre a mencionada parcela, com fundamento na sua aquisição por usucapião, ou a condenação das autoras a pagar-lhe € 75 000 por virtude de benfeitorias nela realizadas.
Na réplica, as autoras negaram a caducidade da acção e a aquisição pelo réu da parcela de terreno por usucapião, acrescentando que o prédio comprado pelo réu só tem 680 metros quadrados e o terreno que ele ocupa tem a área de 2 343 metros quadrados, e que, não sendo necessárias as benfeitorias por ele realizadas, não tinha direito à indemnização pretendida.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 15 de Setembro de 2005, por via da qual as autoras foram declaradas proprietárias da referida parcela de terreno com cerca de 1 666 metros quadrados e condenado o réu a restituir-lha e a pagar-lhe indemnização a liquidar em execução de sentença, e, no âmbito da reconvenção, as autoras foram condenadas a indemnizar o réu no que se liquidasse em execução de sentença relativamente às benfeitorias úteis que não pudessem ser levantadas.
Apelou o réu, impugnando a matéria de facto e a de direito, e a Relação, por acórdão proferido no dia 23 de Maio de 2006, negou-lhe provimento ao recurso
Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o disposto no artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil não dispensa a análise crítica dos fundamentos e factos que o recorrente aduziu em defesa da sua tese;
- impugnada a matéria de facto e apresentadas as provas, devia a Relação, no julgamento, analisar crítica e ponderadamente toda a prova produzida e averiguar do mérito da fundamentação aduzida e da correcção da decisão final;
- a Relação não fundamentou as razões por que não valorou os documentos autênticos onde constam as confrontações do prédio do recorrente no confronto com a presunção legal a seu favor;
- devia fundamentar a decisão e expressar por que a prova por documento particular - o levantamento topográfico - prevalece sobre as certidões juntas e as presunções legais a elas associadas;
- o acórdão é nulo, nos termos do artigo 668º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, por não especificar as razões de facto e de direito justificativas da decisão;
- o acórdão baseou-se nas alegações do apelante e na sentença, nada mais referindo quanto à restante prova, salvo a referência genérica aos documentos juntos;
- não resulta do acórdão que a Relação tenha apreciado toda a prova, salvo a transcrição das alegações do apelante e da sentença e sua fundamentação;
- a não apreciação de toda a prova em que assentou a parte impugnada da decisão, em violação do disposto no artigo 690º, nº 5, do Código de Processo Civil, significa omissão que influenciou o exame do recurso, integrando a nulidade do tipo previsto no artigo 201º daquele diploma;
- a Relação não usou dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 712º do Código de Processo Civil, sendo que a simples adesão configura como que a negação do duplo grau de jurisdição, constitucionalmente consagrado;
- o recorrente fez abundante prova de que a faixa de terreno que ocupa foi amanhada e possuída por DD, avó dos vendedores, e seus sucessores, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de que não lesavam direitos de terceiros;
- o recorrente provou que a posse foi continuada por si e os factos da usucapião, e a Relação, não usou da mencionada faculdade legal, não dando como provado esse facto, apesar da prova assim o determinar;
- face à prova produzida, deve o recorrente ser declarado proprietário da faixa de terreno em causa por a haver adquirido por escritura pública e por usucapião.

Responderam as recorridas em síntese de conclusão de alegação:
- não há no acórdão falta de análise da prova ou de fundamentação, porque, nos termos do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, fez suas as da sentença confirmada;
- não pode sindicar-se no recurso de revista tal procedimento, porque o recorrente não invocou contradição na decisão sobre a matéria de facto nem a necessidade de a ampliar;
- o recorrente pretende a alteração das respostas aos quesitos com base em documentos desactualizados, ignorando a demais prova documental, testemunhal e por inspecção;
- não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça alterar os factos materiais fixados pela Relação.


II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido
1. Na freguesia de Caneças, Odivelas, existe um prédio misto, denominado ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº 01164/960402, sendo a parte urbana composta por sub-cave, cave, rés-do-chão, ... e ...andares, com a área coberta de 280 metros quadrados, inscrita na matriz sob o artigo 1825º, e a parte rústica composta por uma parcela de terreno com a área de 78 279, 55 metros quadrados, inscrita na matriz sob parte do artigo 37º, Secção D, pendente de rectificação desde 22 de Junho de 1981.
2. No dia 12 de Julho de 1971, em escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Loures, EE, que também usava o nome de EE, por um lado, e FF, por outro, declararam, a primeira vender e o último comprar, por 300 000$, uma parcela de terreno com a área de 78 559,55 metros quadrados, desanexada da parte rústica do prédio misto sito no ...., freguesia de Caneças, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures, 2ª Secção, sob o nº 1565 do Livro B-5, estando a parte rústica inscrita na respectiva matriz sob o artigo 37º-Secção D.
3. A referida parcela de terreno passou a constituir um prédio autónomo, o mencionado sob 1, antes de nele ter sido construído o edifício urbano.
4. No dia 23 de Fevereiro de 1973, no Cartório Notarial de Loures, em escritura pública, a referida EE, por um lado, e FF, por outro, declararam, a primeira vender ao último, por 125 000$:
- um lote de terreno para construção urbana, com a área de 4 064 metros quadrados, sito no ...., ou assim denominado, freguesia de Caneças, a confrontar do Norte com GG, do Sul com a Estrada de Montemor, do Nascente e Poente com o comprador, inscrito na matriz sob parte do artigo 37º, Secção D;
- um prédio urbano, no mesmo sítio e freguesia, inscrito na matriz cadastral sob o artigo 334;
- um prédio urbano sito no mesmo ....., freguesia de Caneças, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 335º, que, no conjunto, constituíam o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Loures sob o nº 1565, a folhas 129 verso do Livro B-5, cuja aquisição estava, então, registada a favor da vendedora EE pela inscrição nº 1521, a folhas 194 do Livro C-2.
5. O prédio do artigo 37º,Secção D, tem, no respectivo mapa cadastral, sete parcelas, tendo a parcela com o nº 7 a área de 2480 metros quadrados.
6. No dia 29 de Junho de 1998, no 21º Cartório Notarial de Lisboa, o Doutor YY, como procurador de GG e de HH, de II, de JJ, de KK e de LL, de MM, de NN e OO e PP, por um lado, e QQ, como procurador de CC, por outro, declararam, os primeiros vender e o último comprar, por 3 100 000$, o prédio rústico denominado ... do ..., composto de parcela de cultura arvense com oliveiras, com a área de 680 metros quadrados, sito na freguesia de Caneças, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 43º, Secção D, descrito na Conservatória do Registo Predial de Odivelas sob o nº 01329/980512 da dita freguesia de Caneças.
7. Está inscrita sob a designação G-3.Ap.11/2000.06.19, na titularidade das autoras, AA e BB, a aquisição, sem determinação de parte ou direito, por dissolução da comunhão conjugal quanto à primeira, e por sucessão hereditária quanto a ambas, do prédio mencionado sob 1, pela inscrição G-3, Ap. 11/2000.06.19.
8. O réu, além da parcela de terreno, com a área de 680 metros quadrados, que adquiriu, ocupa, deste então, uma parte da faixa de terreno identificada com o nº 7 - 37/7 - da inscrição matricial e da planta cadastral inserta a folhas 10, ocupação que se mantém, apesar de as autoras terem interpelado o réu, arrogando-se proprietárias dessa faixa de terreno ocupada.
9. A área do prédio inscrito na matriz sob o artigo 37º, Secção D, era originariamente de 113 120 metros quadrados.
10. O prédio mencionado sob 6 também confina com o prédio mencionado sob 1 pelo lado assinalado na planta cadastral junta com a petição inicial como documento nº 2, inserta a folhas 10 e cuja cópia está certificada a folhas 200, e a faixa de terreno mencionada sob 7 faz parte do prédio identificado sob 1.
11. A área do prédio inscrito na matriz sob o artigo 37º, Secção D, prolonga-se, do lado poente, para lá da Estrada Nacional nº 250, que o atravessa, e para nascente da mesma Estrada.
12. A área total de terreno que o réu ocupa é de cerca de 2 343 metros quadrados, da qual 1 666 metros quadrados pertencem à parcela nº 7, referida sob 8 e 10.
13. O prédio mencionado sob 6, desde data indeterminada, até 1967, foi amanhado por DD e seus sucessores, como seus donos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que não lesavam direitos de terceiros.
14. No terreno que ocupa, o réu praticou os seguintes actos: vedou-o com uma rede plastificada colocada sobre um murete a todo o comprimento, limpou-o, instalou energia eléctrica, fez um furo para captação de água, comprou a respectiva bomba e o balão de pressão, que instalou numa cabine que mandou fazer para o efeito, compactou o terreno, fez um novo murete junto à vedação, instalou um sistema de rega automático, comprou e instalou um escritório tipo pré-fabricado, em cujas obras despendeu montante não apurado
15. Se as autoras tivessem arrendado a faixa de terreno em causa obteriam uma renda mensal de montante não apurado.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrente adquiriu ou não por usucapião a faixa de terreno com a área de mil seiscentos e sessenta e seis metros quadrados que ocupa.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente e pelas recorridas, sem prejuízo de a solução de uma prejudicar a de outra ou de outras, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- competência do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à apreciação da decisão da matéria de facto;
- ocorre ou não na espécie a nulidade geral relativa aos actos processuais?
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por falta de fundamentação?
- cumpriu ou não a Relação o regime relativo à impugnação da decisão da matéria de facto?
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por omissão de pronúncia?
- deve ou não o recorrente ser declarado titular do direito de propriedade sobre a questionada faixa de terreno?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise da competência do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à apreciação da decisão da matéria de facto.
A competência deste Tribunal circunscreve-se, em regra, ao conhecimento da matéria de direito (artigos 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro).
Com efeito, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, este Tribunal aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado (artigo 722º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Assim, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode, em regra, ser objecto do recurso de revista (artigo 722º, n.º 2, 1ª parte, do Código de Processo Civil).
A excepção a esse princípio só ocorre quando houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigo 722º, n.º 2, 2ª parte do Código de Processo Civil).
Por exclusão, o erro na apreciação das provas livremente feita pelo julgador, a que se reporta o artigo 655º, n.º 1, do Código de Processo Civil, excede o âmbito do recurso de revista.

2.
Atentemos agora na questão de saber se ocorre ou não na espécie a nulidade geral a que se reporta o artigo 201º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
O recorrente alegou que a não apreciação da prova em que assentou a parte impugnada da decisão da matéria de facto, por ter influenciado o exame do recurso, implicou ter a Relação cometido a nulidade prevista no artigo 201º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Em regra, isto é, quando a lei não preveja para o acto processual em causa alguma nulidade especialmente regulada, a prática de um acto que a lei não admita ou a omissão de um acto ou de alguma formalidade que a lei prescreva produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (artigo 201º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Trata-se de vícios dos actos processuais em geral consubstanciados em desvios à forma legalmente prevista para o efeito.
Ora, a omissão de apreciação do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto nada a ver com as referidas omissão ou excesso no que concerne à forma do mencionado acto processual.
Não tem, por isso, fundamento legal a alegação do recorrente no sentido de que a não apreciação pela Relação de toda a prova em que assentou a parte da decisão da matéria de facto impugnada integra a nulidade geral prevista no artigo 201º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

3.
Vejamos agora se o acórdão recorrido afectado de nulidade por falta de fundamentação.
O recorrente alegou ser acórdão é nulo por não especificar as razões de facto e de direito justificativas da sua decisão.
O acórdão da Relação é nulo, além do mais, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (artigos 668º, nº 1, alínea b), 716º, n.º 1 e 726º do Código de Processo Civil).
A Constituição prescreve deverem as decisões judiciais que não sejam de mero expediente ser fundamentadas nos termos estabelecidos pela lei ordinária (artigo 205º da Constituição).
A lei ordinária estabelece, por seu turno, por um lado, que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas (artigo 158º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
E, por outro, que a motivação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (artigo 158º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
A razão de ser dos referidos normativos centra-se na necessidade de controlo do sentido das decisões judiciais, em termos de serem envolvidas de objectividade, e de as partes conhecerem as razões do decidido, com vista, além do mais, a decidirem sobre a conveniência ou não da sua impugnação.
Todavia, apenas a absoluta falta de fundamentação - não a mera falta relativa dela - gera a nulidade a que se reporta a alínea b) do n.º 1, do artigo 668º do Código de Processo Civil.
Assim, a fundamentação escassa, insuficiente ou medíocre não integra o referido vício de nulidade.
Ora, no caso vertente, a Relação expressou, a título de fundamentação, por um lado, que a pretensão do recorrente de ver provados os factos relativos à aquisição do direito de propriedade sobre a faixa se terreno em causa não podia proceder porque o julgador tinha que de ter em conta a totalidade da prova produzida.
E, por outro que, apesar dos depoimentos transcritos pelo recorrente, o julgador haver concluído bem no sentido de que se não se fez prova do por ele defendido, não merecer a decisão qualquer censura, incluindo na parte relativa aos documentos.
E, finalmente, por dever manter-se a decisão sobre a matéria de facto, não haver fundamento para a alteração da decisão de direito.
Perante este quadro, sem prejuízo do que abaixo se referirá acerca da omissão de decisão, apesar da insuficiência da fundamentação que o acórdão revela, não estamos perante a sua falta absoluta integrante da nulidade a que se reporta o artigo 668º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.

4.
Atentemos agora sobre se a Relação cumpriu ou não o regime relativo à impugnação da decisão da matéria de facto?
O recorrente alegou que a Relação não usou dos poderes conferidos pelo artigo 712º do Código de Processo Civil, que se limitou a aderir aos fundamentos da sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância, e que isso se traduzia na negação do duplo grau de jurisdição consagrado na Constituição.
Ao invés do que o recorrente alegou, a Constituição não garante o duplo grau de jurisdição por ele referido. Tal não exclui, porém, verificados os respectivos pressupostos, que a Relação não reaprecie a prova produzida com vista a confirmar ou infirmar a decisão da matéria de facto que seja impugnada.
Ora, no caso vertente, o recorrente indicou no recurso de apelação pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, bem como os meios probatórios, designadamente documentos e depoimentos de testemunhas gravados, alguns deles transcritos, que no seu entender impunham decisão diversa.
Impunha-se, por isso, à Relação, face ao âmbito da impugnação da matéria de facto, além da análise da prova documental e da testemunhal transcrita, a audição dos depoimentos gravados indicados pelo recorrente em julgamento de reapreciação das provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e das recorridas (artigos 690º-A, n.º 5, 712º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim não procedeu, porém, certo que se limitou essencialmente a remeter, nos termos do n.º 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil, para os termos da decisão do tribunal da 1ª instância que decidiu aquela matéria.
Com efeito, a Relação só pode remeter para os termos da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância quando a mesma não tenha sido objecto de impugnação (artigo 713º, n.º 6, do Código de Processo Civil).
Acresce que a Relação só pode limitar-se a negar provimento ao recurso e a remeter para os fundamentos de facto e de direito da sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância se a decisão da matéria de facto não tiver sido impugnada (artigo 713º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
Ora, como houve impugnação da decisão da matéria de facto, e a Relação se limitou a negar provimento ao recurso por concordar com a fundamentação da sentença proferida no tribunal da 1ª instância, certo é que infringiu o disposto no artigo 713º, n.ºs 5 e 6, do Código de Processo Civil.
Pelos mesmos motivos, infringiu a Relação o disposto no n.º 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, certo que, apesar da impugnação no recurso de apelação da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância, não reapreciou em concreto a prova produzida, e, nessa medida, não cumpriu o disposto na alínea a) do n.º 1 daquele artigo.

5.
Vejamos agora sobre se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por omissão de pronúncia.
O recorrente não referiu nas conclusões de alegação a violação pelo acórdão recorrido do artigo 668º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, do Código de Processo Civil.
Todavia, nas referidas conclusões, expressou ter a Relação omitido a reapreciação da prova que lhe incumbia por virtude de o recurso de apelação abranger a impugnação de parte da decisão da matéria de facto.
Por isso, importa concluir que o recorrente invocou, na realidade, o mencionado vício do acórdão recorrido.
Resulta da lei ser o acórdão da Relação nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
As questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Julgada procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia pela Relação, se for caso disso, impõe-se a baixa do processo a fim de aquele Tribunal operar a reforma do acórdão (artigo 731º do Código de Processo Civil).
Conforme resulta do que acima se expôs, a Relação devia conhecer dos pontos da matéria de facto em causa, reapreciando as provas produzidas no tribunal da 1ª instância, ponderando e decidindo se deviam manter-se ou alterar-se os factos indicados pelo recorrente.
Trata-se, assim, de omissão pela Relação do conhecimento de uma questão lato sensu suscitada pelo recorrente de modo processualmente adequado no recurso de apelação, em relação à qual ela se não pronunciou.
Ora, como Relação não conheceu da referida questão, está o acórdão recorrido, nessa parte, afectado da nulidade por omissão de pronúncia, a que se reportam os artigos 660º, nº 2, 1ª parte, 668º, nº 1, alínea d), 1ª parte, 713º, nº 2, 716º, nº 1 e 726º do Código de Processo Civil.
Impõe-se, por isso, a sua anulação e a remessa do processo à Relação a fim de o reformar por via do conhecimento da aludida questão.

6.
Atentemos agora na questão de direito de saber se o recorrente deve ou não ser declarado titular do direito de propriedade sobre a questionada faixa de terreno em razão de a ter adquirido por usucapião.
Como a decisão desta questão depende da prévia decisão da referida impugnação da matéria de facto, está naturalmente prejudicado o respectivo conhecimento (artigos 660º, n.º 2, 1ª parte, 713º, n.º 2 e 726º do Código de Processo Civil).

7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.
A reapreciação da prova produzida por meios de livre apreciação pelo tribunal excede o âmbito do recurso de revista.
Não ocorre, na espécie, a nulidade geral de actos processuais prevista no artigo 201º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e o acórdão recorrido não está afectado de nulidade por falta de fundamentação.
A Relação ao decidir a impugnação da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da 1ª instância por mera adesão, infringiu o regime processual a que se reportam os artigos 690º-A, n.º 5, 712º, n.ºs 1, alínea a), e 2 e 713º do Código de Processo Civil.
Acresce, por isso, estar o acórdão recorrido afectado de nulidade por omissão de pronúncia a que aludem os artigos 668º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, 716º, n.º 1, e 726º do Código de Processo Civil.
Impõe-se, por isso, a sua anulação e a remessa do processo à Relação a fim de esta proceder à sua reforma, nos termos acima referidos, com a consequência de ficar prejudicado o conhecimento das questões de direito suscitadas pelo recorrente.

Procede, nos referidos termos, o recurso.
Por isso, a responsabilidade pelo pagamento das custas respectivas é da parte vencida a final (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido e determina-se que a Relação o reforme, além do mais, por via do conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto, e condena-se a parte que venha a ficar vencida a final no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2006.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís