Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4307/21.5T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: EXCESSO DE PRONÚNCIA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
FACTOS PESSOAIS
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
CONFISSÃO
DUPLA CONFORME
RECURSO SUBORDINADO
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA NÃO SE TOMANDO CONHECIMENTO DO RECURSO SUBORDINADO.
Sumário :
I- O Tribunal pode tomar em consideração, oficiosamente, os factos alegados pelas partes que estejam admitidos por acordo.

II- A declaração na contestação – pela sociedade anónima ré – de que não sabe se a anterior administração anuiu às condições contratuais constantes de e-mails trocados entre o A. e o seu Business General Diretor, equivale à confissão dos correspondentes factos, nos termos do art. 574.º, n.º 3, do CPC.

III- A admissibilidade do recurso de revista no tocante à alegada violação pela Relação das normas processuais que regulam o exercício dos seus poderes no domínio da fixação da matéria de facto não obsta a que, na parte respeitante à decisão de direito, o acórdão recorrido se encontre abrangido pelos efeitos jurídicos da dupla conforme.

IV- Se o tribunal não tomar conhecimento do recurso principal/independente, caduca o recurso subordinado.
Decisão Texto Integral:


Revista n.º 4307/21.5T8SNT.L1.S1
MBM/JG/RP

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. AA intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Lusiteca – Produtos Alimentares, S.A., e BB, pedindo que:

a) Seja declarada lícita a resolução do contrato de trabalho efetivada pelo A., calculando-se em função de 45 dias a indemnização prevista no art. 396.º do CT, atenta a gravidade dos comportamentos em causa;

b) Sejam condenadas as RR., solidariamente, no pagamento do valor da remuneração base do A. de acordo com as condições acordadas na sua admissão, no montante total de 39.500,00 €, e no pagamento dos prémios acordados aquando da admissão do A., no montante total de 32.500,00 €, e consequente regularização junto da Segurança Social (em ambos os casos);

c) Seja condenada a R. Lusiteca no pagamento ao A. das verbas que deixou de auferir por conta da sua falsa integração no regime de lay off simplificado, no montante total de 2.829,10 €;

d) Seja condenada a mesma R. no pagamento das horas de formação não ministradas ao A., no montante total de 5.047,50 €.

Alega o A., essencialmente, que a 1.ª R. não respeitou as condições remuneratórias consigo acordadas, quer quanto à retribuição mensal, quer quanto ao pagamento de prémios, invocando, quanto à 2ª R., a sua qualidade de presidente do conselho de administração da R. Lusiteca, à data da celebração do contrato de trabalho.

2. Foi proferida sentença, decidindo julgando licita a resolução do contrato de trabalho operada pelo A., absolver a 2ª R. de todos os pedidos contra si formulados e condenar a 1ª R. a pagar àquele:

a) 39.500,00 € de retribuições em falta, bem como os inerentes acréscimos nos subsídios de férias e de Natal que se mostrarem em falta;

b) 32.500,00 € de prémios não pagos, entre os anos de 2014 a 2020 (exceto 2016);

c) 3083,00 €, a título de créditos de formação profissional não gozados;

d) 16 554,02 €, relativos a indemnização por antiguidade de 16.06.2014 a 31.08.2020, calculada em função de 20 dias por cada ano de trabalho.

e) Juros de mora, à taxa legal, sobre estas quantias, desde o respetivo vencimento e até integral pagamento.
3. A 1ª R. interpôs recurso de apelação, julgado parcialmente procedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que decidiu absolvê-la do pagamento da quantia de 32.500,00 €, relativa a prémios, confirmando a sentença recorrida quanto ao mais.

4. A 1ª R. interpôs recurso de revista, dizendo essencialmente:

– Ao aditar o ponto 6-A à matéria de facto (“A administração da 1ª R. anuiu àquelas condições”), o acórdão recorrido incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia.

– O acórdão recorrido refere que a recorrente não impugnou os artigos 1º a 15º da petição inicial, o que não é verdade.

– Mesmo que assim não se entenda, sempre estaria a violar o disposto no art. 607º, nº 4, do CPC, porquanto não houve qualquer confissão da recorrente no que tange aos artigos 1º a 15º da petição inicial.

– Caso se entenda que a recorrente confessou o teor dos artigos 1º a 15º da petição inicial, é certo que o recorrido não aceitou tal confissão especificadamente (art. 465º, nº 2, do CPC), pelo que a recorrente “retira tal (alegada e inexistente) confissão”.

– Há que encontrar, de acordo com os ditames da boa-fé, a vontade hipotética ou conjetural das partes no momento em que o contrato de trabalho foi celebrado.

– O recorrido acatou os exatos e rigorosos termos previstos no contrato de trabalho, que voluntária e espontaneamente celebrou com a recorrente, durante cerca de seis anos, em momento algum tendo reclamado, por qualquer forma ou meio, que a recorrente não estava a cumprir o acordado.

– Exigindo o recorrido à recorrente o pagamento de algo que se encontra omisso no contrato e a cujos termos aderiu, totalmente e sem reservas, durante cerca de seis anos, a boa-fé exigida pelo artigo 239º do Código Civil encontra-se preterida.

– Caso assim se não entenda, sempre estaríamos numa situação de abuso de direito por parte do recorrido, ao exercer ilegitimamente um direito, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, bons costumes e pelo fim social e económico desse direito.

– Não se encontra preenchido o disposto no artigo 394º, nº 5, do Código do Trabalho, pois em momento algum, durante a pendência do contrato de trabalho, houve qualquer falta de pagamento pontual da retribuição do recorrido, da responsabilidade da recorrente.

– Inexistindo justa causa para a resolução do contrato de trabalho, a mesma é ilícita, pelo que a recorrente nada tem a pagar ao A., seja a que título for.

5. O A. interpôs recurso subordinado, pugnando pelo pagamento da quantia de 32.500,00 €, relativa a prémios não pagos.

6. Neste Supremo Tribunal, foi proferido despacho pelo relator, a suscitar a questão da inadmissibilidade do recurso de revista interposto pela R. Lusiteca na parte respeitante à decisão de direito, por, nesse âmbito, se afigurar haver dupla conforme, bem como sobre as implicações da dupla conformidade no plano da caducidade do recurso subordinado.
7. Notificadas para o efeito, ambas as partes se pronunciaram sobre as questões suscitadas.

8. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do improvimento do recurso, em parecer a que a partes não responderam.

9. As questões a decidir[1] são as seguintes: i) se deve ser eliminado o ponto 6-A, aditado pelo TRL à matéria de facto; ii) na negativa, aferir da existência de dupla conforme, quanto ao mais suscitado no recurso principal/independente; iii) implicações da existência de dupla conforme quanto ao recurso subordinado.

E decidindo.

II.

10. Foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:

1. Em Maio de 2014 o trabalhador integrou um processo de recrutamento da sociedade R. para o lugar de Export Manager.

2. O processo de recrutamento do A. foi feito por CC, no exercício das suas funções de Business General Diretor na R., com o conhecimento e acordo da R. Lusiteca [2].

3. Em 19 de Maio de 2014, CC enviou a AA, com conhecimento da 2.ª R., o e-mail junto a fls. 16 v.º e 17, onde consta:
“Estimado AA
No seguimento dos contactos mantido confirmo o total interesse na integração do AA para os quadros da Lusiteca. A proposta é para a função de Export Manager, tendo responsabilidade direta sobre todos os mercados de Exportação exceto ..., poderá também ser necessário algum apoio no mercado nacional, o reporte será diretamente a mim, junto anexo a descrição de funções.
Esperamos sinceramente que o seu desempenho profissional na Lusiteca evolua qualitativamente por forma a que os seus níveis de responsabilidade evoluam também. O foco da Lusiteca são os mercados externos, é exatamente nessa área de negócio que aspiramos o forte envolvimento, participação do AA para o desenvolvimento das nossas vendas.
A nossa proposta é a seguinte:
Salário mensal de 3,500 x 14
Bónus anual de acordo com objetivos a concordar entre as partes 10,000€
Utilização de acordo com a política da CIA:
Veículo
Suporte das despesas de deslocação ou subsídio de refeição quando em Portugal
Telemóvel
Computador portátil”

4. Ao referido e-mail respondeu o A. a CC, também dando conhecimento à 2.ª R., que: “Quanto às condições oferecidas eu só solicitaria, por favor, a analise, pela vossa parte, da alteração da retribuição de base mês para 4.000,00€, estou disponível para reduzir o bónus anual.”

5. Tendo recebido a seguinte resposta de CC, junta a fls. 16, com o conhecimento da 2.ª R.:

“Efetivamente estamos disponíveis para fazer um esforço e garantir a sua integração na Equipa da Lusiteca assim sendo propomos que:
2014
Salário mensal de 3,500 x 14
Bónus anual de acordo com objetivos a concordar entre as partes 10,000€
A partir de 1 de Janeiro 2015
Salário mensal de 4,000€ x 14
Bónus anual de acordo com objetivos a concordar entre as partes 5,000€”

6. Em 21 de Maio de 2014, o A. enviou e-mail a CC, com conhecimento da 2.ª R., onde afirmou aceitar as condições propostas e fixou a sua entrada no dia 16 de Junho de 2014.

6-A. A administração da 1.ª R. anuiu àquelas condições. (aditado pelo TRL)

7. Da cláusula quarta do contrato de trabalho que veio a ser celebrado entre as partes consta:

“1. Como remuneração pelo trabalho prestado, a primeira outorgante pagará ao segundo a retribuição mensal ilíquida de € 3500,00 (três mil e quinhentos euros) sujeito a todos os descontos estabelecidos por Lei, nomeadamente segurança social e IRS e subsídio de alimentação € 6,41 (seis euros e quarenta e um cêntimos) por cada dia completo de trabalho.
2. (…)
3. O Segundo Outorgante auferirá um bónus anual sempre que, de acordo com os objetivos estabelecidos anualmente pela primeira outorgante, reúna as condições para auferir tal gratificação como recompensa ou prémio dos bons resultados obtidos, o qual ficará sujeito a todos os descontos legais.”

8. A R. não atualizou o vencimento base do A. para os € 4.000,00 acordados durante o ano de 2015, nem durante os anos de 2016, ou 2017, ou 2018, ou 2019 ou 2020.

9. A R. não procedeu ao pagamento dos prémios de 2014 (10.000,00 €), 2015 (5.000 €), 2017 (5.000 €), 2018 (5.000 €), 2019 (5.000 €), 2020 (2,500 €).

10. Em Maio de 2018, a R. apresentou um PER neste mesmo Tribunal, que correu como proc. n.º ...8.

11. Posteriormente, em Maio de 2019, a R. apresentou-se à insolvência neste mesmo Tribunal, tendo o referido processo corrido como n.º 7352/19.....

12. Tal processo foi encerrado em 09/12/2019.

13. A R. chegou a acordo com todos os credores e aprovou assim um plano de pagamentos.

14. Já em contexto de pandemia, veio o A. a ser integrado pela sociedade R. no regime de lay off, desde 14 de Abril de 2020 até 31 de Agosto de 2020, data em que cessou o seu contrato de trabalho.

15. Em 31/08/2020, o A. resolveu o seu contrato de trabalho, enviando à R. missiva com os seguintes fundamentos:

“Assunto: Declaração de resolução de Contrato de Trabalho
Exmºs Senhores,
Serve a presente para, nos termos e para os efeitos do previsto nos arts. 394º, 395º e 396º, do Código do Trabalho, adiante CT, vos notificar da decisão por mim tomada de, com efeitos imediatos, fazer cessar, com justa causa, o contrato de trabalho que tenho mantido com essa organização empresarial.
Pesa na minha decisão, em primeiro lugar, o facto de me manterem prolongada no tempo, voluntária e dolosamente, a falta de pagamentos diversos de ordem retributiva, tais como o salário mensal convencionado aquando da minha admissão, para ser processado e pago a partir de 1 de Janeiro de 2015, pelo valor de €4.000.00; também as férias e os subsídios de férias e os subsídios de natal, respetivos, que – com a penalização das férias pelo valor legal de 3 vezes - faz corresponder tudo isto ao valor global de €51.000,00.
A outro passo, também não me foram pagos, ainda, pela atual Administração, quaisquer valores correspondentes aos bónus anuais convencionados de €5.000,00/ano, a partir de 1 de Janeiro de 2015, o que corresponde ao valor de €20.000,00, a que acresce, ainda, o diferencial não pago para os €10.000,00 estabelecidos para 2014 e €5.000,00, posteriormente, de que não se tendo disponíveis elementos fiáveis de liquidação, se estimam em mais €12.000,00; tudo perfazendo a título de bónus não pago o valor global de €32.000,00.
De igual modo é uma realidade objetiva não ter sido cumprida a legislação relativa a formação profissional (vd. Art. 131º, do CT), em todo o período da duração do contrato (7 anos) o que significa, agora, o pagamento de 250 horas, ou seja, o valor global a este propósito de €5.047,50, que o signatário também detém como crédito.
Releva, ainda, na minha decisão:
- o facto de, não tendo sido pagos corretamente os valores retributivos, ao longo do tempo, subsistir, mais tarde, para o signatário, a penalização objetiva da sua reforma;
- o facto de a Administração ter colocado o signatário numa posição complexa perante os principais Clientes com os quais negociava (S..., DD, EE, FF, etc) aquando da tramitação dos Procs. nºs 7352/19.... e 16935/18...., situação que lhe causou danos reputacionais e económicos;
- a ameaça sistemática, por parte do PCA, da substituição da Equipa por outra não identificada, nomeadamente afirmando que “a empresa não é a Santa Casa e, no final do ano, vão ser tiradas consequências…”;
- alteração das funções de GG (Assistente das Vendas) diretamente dependente do signatário, para a Contabilidade, sem discussão prévia, ou seja, como facto consumado;
- a verificação efetiva do aumento sucessivo das suas funções, sem qualquer contrapartida;
- o facto de estar a constatar desde o início do lay off –em 14 de Abril de 2020- com incómodo e bastante prejuízo económico (a liquidar, dado o desconhecimento da contribuição) que, no meu caso concreto, o regime adotado para a contribuição pública – que foi decidido pela Administração unilateralmente - não corresponder à realidade, uma vez que não existe, de facto, qualquer diminuição no meu trabalho diário normal dadas as minhas funções alargadas [Mercado Nacional (Organizado e Tradicional)/Exportação/Mercado de ...] com gestão direta de 15 Pessoas e 18 Grandes Clientes e problemas para resolver a toda a hora, como a Administração bem sabe;
- e o facto de, apesar de o ter solicitado por escrito, ninguém me ter dado até ao momento, explicações acerca do meu recibo do mês de Maio de 2020.
Aliás, de resto, afirmo não querer vir a colocar quaisquer imprecisões em relatos que me venham a ser solicitados, a propósito!
Ora, tudo isto tem provocado, pois, o incumprimento culposo das minhas garantias contratuais, convencionais e legais, nomeadamente previstas na legislação laboral aplicável (vd. Arts. 23º a 29º, 127º, 129º e 394º, do CT).
Como é natural, todas estas situações, para além da lesão culposa dos meus interesses patrimoniais [que são sérios para uma pessoa que vive, exclusivamente, do seu trabalho por conta de outrem e que tem encargos mensais fixos] pretendem, na avaliação que tenho vindo a fazer, obter o efeito de promover uma forma inaceitável de pressão, tendente a afetar a minha honra e dignidade e bem assim, também, de me criar um ambiente hostil e degradante, com base no facto, puro e simples, tanto quanto admito, de eu, signatário, ser portador do conhecimento de factos algo perturbadores, nomeadamente decorrentes dos erros dos processamentos salarias que são, sistematicamente, colocados em causa por membros da minha equipa.
Aguardarei, em contexto desta natureza, que me sejam liquidados, pois, todos os meus créditos vencidos, incluindo os relativos à indemnização/compensação por antiguidade, baseado na correta integração das verbas retributivas fixas e legais, nos termos estabelecidos na conjugação dos arts. 396º, nº 3, 392º, nº 3 e 331º, ainda do CT e aos créditos relativos às contas finais a que tenho direito.
O prazo que estabeleço para o efeito é o de oito dias, para além da remessa, que requeiro, dos documentos relativos à atribuição do Fundo de Desemprego e do Certificado de Trabalho.
Findo esse prazo recorrerei, naturalmente, aos Tribunais competentes.”

16. A 2.ª R., à data da celebração do contrato de trabalho com o A., era a Presidente do Conselho de Administração da R.

17. Ficaram por ministrar ao A. 83,5 horas de formação.


III.

a) - Se deve ser eliminado o ponto 6-A, aditado pelo TRL à matéria de facto.

11. Em primeiro lugar, refira-se que, ao contrário do sustentado pela recorrente, a Relação não incorreu, manifestamente, em “excesso de pronúncia”, ao aditar oficiosamente à matéria de facto o ponto 6-A.

Com efeito, nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC[3], aplicável à apelação (ex vi do n.º 2 do art. 663.º, n.º 2) na fundamentação da sentença, o tribunal, mesmo oficiosamente,  pode, e deve (cfr. art. 662.º, n.º 1), “tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”, mormente quando a decisão se funde em factos alegados pelas partes, como acontece no caso vertente.

Este é o sentido pacífico da doutrina[4] e da jurisprudência[5], sendo ainda certo que a consideração na decisão de factos provados por confissão e acordo das partes, que não tenham sido já incluídos na matéria assente, não está sujeita a (novo) contraditório[6] (o contraditório ocorreu no momento dos articulados e a sua consideração na sentença não constitui decisão surpresa, que exija a prévia pronúncia das partes).

12. Das decisões tomadas pelas Relações no plano dos factos não cabe recurso para o STJ (arts. 662.º, n.º 4, 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do CPC), exceto quando seja invocada uma violação das regras substantivas de direito probatório (2.ª parte do art. 674º, nº 3) e, em geral, qualquer erro de direito na (não) fixação dos factos materiais da causa.

Em bom rigor, como já notava Alberto dos Reis[7], esta última norma – praticamente idêntica à consagrada no art. 722.º, § 2.º, do CPC 1939 – até seria desnecessária, uma vez que é sempre possível recorrer de revista quando está em causa um erro de natureza jurídica (como é o caso das duas hipóteses de recorribilidade aí contempladas).

Na verdade – ao contrário do que ocorre no plano do erro na avaliação da prova livre (maxime da prova testemunhal), bem como na apreciação dos factos (mormente em matéria de presunções naturais) –, o erro na fixação dos factos decorrente da violação de uma norma jurídica (envolvendo, pois, prova legal ou vinculada) é um erro de direito.

Deste modo, compreende-se que o erro na (não) fixação de factos por acordo seja insuscetível de revista quando a concreta matéria suscitada se situe no estrito plano dos factos, como acontece (entre outras situações) no tocante à questão de saber se determinado facto foi, ou não, objeto de “posição definida” pela contraparte (cfr. art. 574.º, n.º 1, do CPC), ou à de avaliar se determinado facto está, ou não, “em oposição com a defesa considerada no seu conjunto” (para efeitos n.º 2 do mesmo art. 490.º).

Neste sentido, cfr.  Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, 1997, p. 440, e o Ac. do STJ de 27.04.93, BMJ 426/438.

Diversamente, o erro na (não) fixação dos factos por acordo é passível de censura pelo Supremo quando decorra de um erro de direito. Assim acontecerá, paradigmaticamente, considerando-se admitido por acordo um facto que não admita confissão ou que só por documento possa provar-se, por tal infringir a norma ínsita no art. 574.º, n.º 2, 2ª parte, do CPC.

13. In casu, a Relação procedeu ao aditamento em causa com base no disposto no art. 574.º, n.º 3, do CPC, invocando a recorrente que tal aditamento consubstancia um erro da lei processual. A decisão foi tomada com os seguintes fundamentos:

“(…) [D]eve considerar-se que as declarações das […] RR. – de que não sabem se a administração da 1.ª R. anuiu às condições constantes dos e-mails em apreço – equivalem a confissão. Com efeito, essa anuência da 1.ª R., mormente através da 2.ª R., é um facto eminentemente pessoal de ambas, sobre cuja correspondência com a realidade aquelas estão em posição de se pronunciar, pelo que, não o negando, e antes exprimindo dúvida sobre ele, tem-se tal facto como confessado por força do disposto no citado art. 574.º, n.º 3 do CPC.
Sobre a questão, vejam-se, entre outros: o Acórdão do STJ de 21/03/2012, processo n.º 2359/06.7TVLSB.L1.S1, em que se entendeu que não equivale a impugnação a declaração duma sociedade ré no sentido de que desconhece cláusulas de contrato que o autor alegou ter celebrado com a mesma, não obstante serem outros os seus legais representantes; e o Acórdão do STJ de 17/10/2019, processo n.º 617/14.6YIPRT.L1.S1, em que se decidiu que não equivale a impugnação a alegação de falta de lembrança sobre factos pessoais, e ainda que é inadmissível a reapreciação da prova pela Relação quanto a factos confessados nos termos da norma citada.”

Não se vislumbra qualquer violação da lei processual por parte do TRL, mormente daquela disposição legal, cuja aplicação ao caso vertente se tem por inequívoca, sendo ainda certo que não pode deixar de considerar-se que a R. devia ter conhecimento do facto em causa, pelo que também por esta razão, nos termos da mesma norma, a declaração de desconhecimento feita pela R. na contestação equivale a confissão.

Ao contrário do pretendido pela recorrente, também é manifesto que a mesma não pode “retirar” agora a confissão considerada, ao abrigo do art. 465º, nº 2. Primeiro, porque esta disposição legal apenas abrange as “confissões expressas de factos, feitas nos articulados”; segundo, e só por si determinantemente, porque o recurso de revista não é certamente a sede adequada para fazer uso do invocado mecanismo legal…

Improcede, pois, a questão em apreço.

Questão que, refira-se, sempre improcederia por uma derradeira razão: o facto aditado carece de qualquer relevo para a decisão da causa.

Com efeito:

Por um lado, já constava da matéria de facto que o processo de recrutamento do A. foi feito por CC, no exercício das suas funções de Business General Diretor da R., com o conhecimento e acordo da R. Lusiteca (nº 2 dos factos provados), realidade reforçada pelo teor do facto provado nº 5.

Por outro lado, na medida em que “quando a natureza da atividade envolver a prática de negócios jurídicos, considera-se que o contrato de trabalho concede ao trabalhador os necessários poderes, salvo se a lei exigir instrumento especial” (art. 115º, nº 3, do CT), norma da qual emergem, automaticamente, poderes representativos, pelo que – salvo alegação e prova em contrário – não seria necessário fazer prova positiva de que o Business General Diretor da R. Lusiteca agiu dentro dos limites inerentes às suas funções.


b) – Existência de dupla conforme.

14. Relativamente a todas as demais questões suscitadas pela R. (valor da retribuição, ilicitude da resolução do contrato de trabalho, suas consequências e créditos de formação), o Tribunal da Relação confirmou a decisão da 1.ª instância, com fundamentação que não é essencialmente diferente e sem voto de vencido, pelo que, nesta parte, não é admissível o recurso de revista (cfr. art. 671.º, n.º 3).

Na verdade, ambas as decisões consideraram que, a partir de Janeiro de 2015, o A. tem direito à retribuição base de 4.000,00 €, pelo que a recorrente lhe deve, desde essa data, a diferença de 500,00 € mensais, no total de 39.500,00 €. Entenderam ainda que o atraso no pagamento desta quantia, há mais de 60 dias, constitui fundamento de resolução do contrato de trabalho, nos termos do artigo 394.º, n.º 5, do Código do Trabalho. E coincidiram relativamente às consequências indemnizatórias da resolução contratual e aos créditos de formação reconhecidos.

Como é jurisprudência reiterada do STJ, a admissibilidade do recurso de revista no tocante à alegada violação pela Relação das normas processuais que regulam os seus poderes no domínio da fixação da matéria de facto (como ocorreu no caso vertente) não obsta a que, quanto a tudo o mais (i.e., na parte respeitante à decisão de direito), o acórdão recorrido se encontre cabalmente abrangido pelos efeitos jurídicos da dupla conforme (pelo que, nesta parte, caso estivessem verificados os respetivos requisitos, a decisão só seria passível de revista excecional)[8].

Também é pacífico que (salvo situações excecionais) não constitui fundamentação essencialmente diferente, em termos de afastar a dupla conformidade das decisões, a alteração da matéria de facto que não tenha tido reflexo no segmento decisório[9]. Uma modificação da matéria de facto que conduza a idêntico resultado jurídico só poderá “desembocar em fundamentação essencialmente diferente, se dela emergir um pressuposto de facto que implique um percurso analítico-argumentativo substancialmente distinto do entendimento anteriormente adotado”[10] (ou, por outras palavras, baseado em “normas, interpretações, normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos”[11]), o que claramente não se verifica no caso dos autos (a factualidade relevante é a mesma, tal como é fundamentalmente coincidente o enquadramento jurídico das duas decisões).

Quanto à matéria relativa à decisão de direito, verifica-se, pois, motivo impeditivo do conhecimento do objeto do recurso interposto pela R. Lusiteca.

c) – Caducidade do recurso subordinado.

15. Se o tribunal não tomar conhecimento do recurso principal/independente, caduca o recurso subordinado (art. 633º, nº 3, pelo que igualmente não se conhecerá deste último, interposto pelo A.[12]

IV.

16. Em face do exposto, acorda-se:

– Em negar provimento à revista da R. e confirmar o Acórdão recorrido na parte respeitante à decisão sobre a matéria de facto;

– Em não tomar conhecimento do mesmo recurso na parte atinente à decisão de direito;

– Em não tomar conhecimento do recurso subordinado.

A R. suportará a totalidade das custas da revista (art. 633º, nº 3, in fine).

                                                      

Lisboa, 10 de maio de 2023



Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Ramalho Pinto




___________________________________________________


[1] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.
[2] Todos os sublinhados e destaques são nossos.
[3] Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.
[4] V.g. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pp. 318-319.
[5] V.g. Ac. de 15.09.2021 desta Secção Social, Proc. n.º 559/18.6T8VIS.C1.S1, Ac. do STJ de 22.02.2022, Proc. n.º 5688/17.0T8GMR.G1.S1-6.ª Secção, e Ac. do STJ de 06.09.2022, Proc. nº 3714/15.7T8LRA.C1.S1-6.ª Secção.
[6] V.g. Ac. do STJ de 30.11.2010, Proc. n.º 1136/06.0TBCTB.C1.S1-6.ª Secção.
[7] Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., VI, p. 28.
[8] V.g. Acs. do STJ de 09.03.2021, Proc. n.º 2028/12.9TBVCT-D.G1.S1-1.ª Secção e de 09.12.2021, Proc. n.º 1420/18.0T8PVZ.P1.S1-2.ª Secção, e Abrantes Geraldes, ob. Cit., pp. 366-368.
[9] V.g. Acs. do STJ de 14.12.2021, Proc. n.º 855/14.1TBBRG.G1.S1-1.ª Secção, de 02.12.2020, Proc. n.º 7751/16.6T8VNG.P2.S1- 1.ª Secção e de 22.05.2018, Proc. n.º 9/14.7T8CTB.C1.S1-6.ª Secção.
[10] No dizer do Ac. do STJ de 29.10.2020, Proc. n.º 985/08.9TBVVD-A.G2-A.S1, 2.ª Secção.
[11] Ac. do STJ de 19.02.2015, Proc. n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1 - 7.ª Secção.
[12] Sobre as conexões entre recurso independente e subordinado, cfr. Ac. de 26.01.2017 desta Seção Social, P. 308/13.5TTVLG.P1.S1.