Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2612/17.4T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: CULPA DO LESADO
CONDUTOR POR CONTA DE OUTREM
ACIDENTE DE TRABALHO
ÓNUS DO RECORRENTE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
Data do Acordão: 03/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: -NEGADA A REVISTA DOS RÉUS
-CONCEDER A REVISTA DO AUTOR
Sumário :
I. Para efeitos de aplicação do regime do artigo 570.º do Código Civil deve considerar-se uma repartição de responsabilidades de 80% para o condutor de um empilhador e 20% para o lesado, quando o comportamento de ambos foi determinante para os danos sofridos pelo lesado.

II. Para a graduação indicada contribuíram os seguintes fatores:

- O condutor do empilhador exercia funções para as RR. e manobrava uma máquina industrial, tendo ocorrido o embate nas instalações das RR., pessoa coletiva, onde se procedia às descargas de vasilhame;

- O lesado, pessoa singular, exercia funções para uma empresa externa às RR., cuidando de transportar e separar vasilhame;

- As regras organizativas da própria R. relativas à permanência no interior das suas instalações de veículos de transporte foram por ela determinadas, sendo o seu cumprimento e vigilância igualmente da sua principal responsabilidade.

Decisão Texto Integral:

Acórdão



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra Sumol + Compal Marcas, S.A., Sumol + Compal, S.A., BB e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação dos RR. a:

«I. Indemnizar a A. Danos patrimoniais vencidos de 21,887.61 €.

II. Pagar ao sinistrado um valor de 450, bem como um valor vincendo total de 100.000.00 €.

III. Pagar ao sinistrado 250.000,00€ de indemnização por danos morais pelas dores físicas, angústia e perca de dignidade, passadas presentes e futuras

IV. Pagar ao A. todo e qualquer dano futuro, tais como consultas, operações, tratamentos adequados de assistência médica, ajudas medicamentosas e ajudas técnicas para fazer face a dores e incómodos para repor a situação anterior e tratar lesões do A.

V. Condenação da R. a suportar todos os danos patrimoniais futuros decorrentes do mesmo,

VI. Acrescidos dos correspondentes juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento do devido,

VII. Bem como digna procuradoria,

VIII. E custas de parte nas quais o A. venha a incorrer».

Para tanto, alega que:

quando se encontrava nas instalações da R. Sumol + Compal Marcas, a fim de permitir a descarga de mercadorias que para ali tinha transportado por conta da sua entidade patronal, foi atingido por uma empilhadora, conduzida pelo R. BB, o qual efetuou com aquele veículo uma manobra de marcha-atrás sem se aperceber da presença do A..

Refere que desse acidente resultaram para si danos físicos, psíquicos e patrimoniais, que pretende ver ressarcidos.

Conclui que pela indemnização são responsáveis: o 3º R., por ser quem conduzia o veículo, agindo de forma desatenta e inconsiderada; as RR. Sumol + Compal Marcas e Sumol + Compal, uma vez que a organização do trabalho que mantinham no local não cumpria as regras de prevenção de acidentes e porque o 3º R. agiu enquanto funcionário das mesmas; o R. Fundo de Garantia Automóvel, caso não exista seguro válido relativamente à empilhadora.

Contabiliza os prejuízos da seguinte forma:

«Danos Patrimoniais

Até alta It’s € 11,117.15 €

Após alta € 10,770.46 €

Danos futuros € 100,000.00

Danos Morais

1. Quantum Doloris € 100,000.00

2. Prejuízo estético € 50,000.00

3. Afirmação pessoal € 100,000.00

total € 371,887.61»

2. Foi citado o Instituto da Segurança Social, I.P., que apresentou pedido de reembolso das prestações pecuniárias pagas ao A., a título de subsídio de doença, no período compreendido entre 3 de janeiro de 2013 e 16 de março de 2013, tudo no valor global de €851,84, acrescido de juros de mora, contados da data da notificação da reclamação.

3. O R. Fundo de Garantia Automóvel contestou:

invocando a sua ilegitimidade, uma vez que apenas satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículo cujo responsável pela circulação esteja sujeito ao seguro obrigatório, o que não é o caso das empilhadoras, que são utilizadas em funções industriais e não possuem matrícula;

de qualquer modo, uma vez que o acidente em causa é, também, um acidente de trabalho, sempre haveria que aplicar o disposto no artigo 51º nº1 do DL 291/2007, pelo que, também por essa via, seria parte ilegítima.

No mais, impugna os factos alegados pelo Autor.

4. Contestaram também os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., Sumol + Compal, S.A., e BB, invocando, por um lado, a prescrição do direito do Autor, uma vez que decorreram mais de quatro anos entre a data do acidente e a da propositura da ação;

Por outro lado, pretendem ter existido culpa do Autor na produção do acidente, uma vez que desrespeitou a sinalização que existia no local, delimitando a área do corredor de cargas e descargas onde circulava a empilhadora, tendo permanecido em pé nessa área, quando lhe cabia ter-se mantido no interior da viatura durante as operações de descarga da mesma, além de que se encontrava agachado, não permitindo que o condutor do veículo o visse, e não atentou nos sinais sonoros e luminosos da empilhadora que indicam a manobra de marcha-atrás.

Referem, ainda, que a empregadora do 3.º R. era apenas a R. Sumol + Compal Marcas, S.A., não existindo obrigação de seguro, porquanto se tratava de uma empilhadora exclusivamente utilizada em funções industriais.

5. Convidados a pronunciarem-se, o Autor e o Instituto da Segurança Social, I.P., vieram pugnar pela improcedência das exceções suscitadas.

6. Oportunamente, foi saneado o processo, tendo sido julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade do Réu Fundo de Garantia Automóvel e de prescrição.

Foram ainda fixado o objeto do litígio [«Cumpre decidir da responsabilidade dos RR principais pela produção do acidente ocorrido com o veículo empilhador, e, em caso afirmativo, do montante da indemnização a atribuir ao Autor pelos Réus, incluindo o FGA, para ressarcimento dos danos decorrentes do acidente, e do montante a reembolsar à Segurança Social em virtude das prestações pagas»] e selecionados os temas da prova.

7. Procedeu-se a audiência final, tendo, após, sido proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo:

«Nos termos supra expostos, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada, e em consequência, decide o Tribunal:

A. Condenar solidariamente os RR. SUMOL+COMPAL MARCAS, SA, BB E FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL a pagar ao A. AA, a quantia de € 40 000,00 a título de danos não patrimoniais e a quantia de € 96 000,00 a título de danos patrimoniais, num total de € 136 000,00 (cento e trinta e seis mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4 % (Portaria 291/2003) calculados desde a data da presente decisão até efectivo e integral pagamento;

B. Condenar solidariamente os RR. a pagar ao A. a quantia que se venha a liquidar em incidente de liquidação a título de danos futuros relacionados com o agravamento das sequelas decorrentes do embate em causa nos autos, na proporção de 80%;

C. Condenar solidariamente os RR. a pagar ao ISS, IP a quantia de € 851,84, a título de subsídio de doença;

D. Absolver os RR. do demais contra si peticionado;

E. Absolver a R. SUMOL+COMPAL SA do demais contra si peticionado;

F. Condenar as partes nas custas devidas, na proporção dos respectivos decaimentos.»

8. Inconformados com a sentença, recorreram os Réus FGA, Sumol + Compal Marcas, S.A., Sumol + Compal, S.A., e BB.

9. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a proferir Acórdão, sendo o dispositivo do seguinte teor:

“Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação do R. Fundo de Garantia Automóvel totalmente procedente e a apelação dos restantes RR. parcialmente procedente e, em consequência, alterar a decisão recorrida, que passará a ter a seguinte configuração:

a) Absolvem-se os RR. Sumol + Compal, S.A., e Fundo de Garantia Automóvel de todos os pedidos contra os mesmos formulados;

b) Condenam-se, solidariamente, os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., e BB a pagar ao A. a quantia de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença, até efectivo e integral pagamento;

c) Condenam-se, solidariamente, os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., e BB a pagar ao A. a quantia que se venha a liquidar em incidente de liquidação, a título de danos futuros relacionados com o agravamento das sequelas decorrentes do embate em causa nos autos, na proporção de 50%;

d) Condenam-se, solidariamente, os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., e BB a pagar ao Instituto da Segurança Social, I.P., a quantia de € 851,84 (oitocentos e cinquenta e um euros e oitenta e quatro cêntimos);

e) No mais, absolvem-se os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., e BB dos pedidos contra os mesmos formulados».

Quanto ao recurso interposto pelo R. Fundo de Garantia Automóvel:

Custas pelos recorridos, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao A. – art. 527º do Código de Processo Civil.

Quanto ao recurso interposto pelos restantes RR.:

Custas pelos recorrentes e pelo recorrido A., na proporção dos respectivos decaimentos, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao A. – art. 527º do Código de Processo Civil.”

10. Novamente inconformados, o Autor e os Réus Sumol + Compal Marcas, S.A. e BB vieram interpor recurso de revista.

- Nas suas alegações, o Autor formulou as seguintes (transcritas) conclusões:

“1. o Acórdão errou ao concluir haver concurso de culpas, pois houve uma violação do dever de cuidado do Manobrador/Sumol, cujo motorista violou as regras que juntou aos autos:

- antes de fazer marcha-atrás, aguarde que alguém o ajude a realizar a manobra, assegure-se que a área atrás do camião está liberta de peões e de outras obstruções.

2. Se tais regras se aplicavam às empresas externas, por maioria de razão tinham que se aplicar aos funcionários da Sumol.

3. Determina-se portanto, por critérios objectivos, nomeadamente, pelas exigências impostas a um Homem, avisado e prudente na situação concreta do agente.

4. Da factualidade provada, quanto às circunstâncias do acidente, revela que este, resultou da omissão dos cuidados exigíveis ou, mais concretamente, na violação da obrigação do trabalhador da Sumol, de se certificar de que poderia realizar a manobra de marcha atrás sem colocar em perigo os demais trabalhadores que se encontravam a exercer as suas funções naquele espaço, mais concretamente os que por se encontrarem à sua retaguarda poderiam ser pelo mesmo colhido.

5. Efectivamente, caso tivesse tomado a atenção devida, o facto de estarem trabalhadores a efectuar a separação vasilhame, os quais poderia estar a circular na zona onde é realizada tal operação, mais concretamente ao facto de o assistente estar fora da viatura pois uma manobra de descarga da sua responsabilidade, o Sumol certamente teria olhado para a sua retaguarda com uma atenção redobrada e não teria iniciado a manobra de marcha atrás, sem se certificar que o podia fazer em segurança, ou seja, sem que existisse o risco de colher algum trabalhador que ali se encontrasse.

6. E não se diga que a Sumol ou o seu motorista tinha fundamentos para confiar que não se encontraria qualquer trabalhador no local, pois, não se provou que tal regra existisse, pois nas fotografias há paletes para cá da linha amarela e o condutor da Sumol tinha acabado de deixar uma palete em cima da linha amarela.

7. Temos, pois, que o Requerido, ao iniciar a manobra de marcha atrás sem se certificar que o podia fazer em segurança, i.e. por não se encontrar qualquer peão na sua retaguarda, conduzia sem os cuidados e atenção que podia e devia observar no exercício de uma condução prudente.

8. Por outro lado o Requerido poderia ter feito a manobra conforme setas encarnadas (ao colocar as paletes) e verdes (ao retiraras paletes) infra indicadas, que seria decerto mais seguro e adequado:


9. Assim, não resta senão concluir que, caso tivesse o manobrador tomado as devidas precauções, ou seja, caso tivesse adequado a sua atenção ao facto de estar a fazer uma manobra particularmente perigosa (marcha atrás) e dever, por isso, prestar especial atenção à eventual presença de pessoas junto à retaguarda da máquina por si manobrada e, se o tivesse feito, certamente ter-se-ia apercebido da presença do Requerente, não teria iniciado a marcha e o embate não se teria verificado, o que aliás poderia ter feito, como decorre dos depoimentos prestados e das fotografias juntas.

10.Em termos da equidade deve ser concedido ao A valor superior.

11.Atento o risco, tamanho, peso e perigo de um empilhador nunca se poderá dizer que há uma divisão 50% 50%.

12.Se fosse um choque entre dois peões poderia ser 50%.

13.Acresce que atenta a condenação penal há uma presunção de culpa do condutor.”

- Nas suas alegações, os Réus BB e Sumol + Compal Marcas, S.A. formularam as seguintes (transcritas) conclusões:

I. O recurso de revista é o meio indicado para reagir contra a decisão de rejeição do recurso de impugnação da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, por erro de aplicação da lei processual.

II. A fundamentação da sentença sobre o julgamento dos factos descritos sob TT) a VV) da matéria provada, estribada em conjunto nos recibos de vencimento do autor e nas suas próprias declarações, não tem o sentido destes meios de prova serem, cumulativamente, o

III. suporte das decisões sobre cada um deles, individualmente considerados.

IV. Os recorrentes cumpriram o ónus consignado no artigo 640º, nº 1, alínea b) do CPC, ao indicarem que o autor não declarou nada sobre os factos provados incluídos na alínea UU) e que não existia registo de prova sobre essa matéria e que a respectiva decisão se baseou, apenas, nos recibos de vencimento o autor existentes nos autos.

V. A rejeição do recurso nesta parte, com fundamento no incumprimento deste ónus, consubstancia um erro na aplicação da lei adjectiva e viola esta última disposição legal.

VI. A decisão em crise deverá ser revogada e o processo deverá baixar à Relação para aí ser admitida e julgada esta parte do recurso.

11. Os Réus BB e Sumol + Compal Marcas, S.A. contra-alegaram quanto ao recurso interposto pelo Autor, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

I. Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não contemplam a existência de nenhuma regra destinada a disciplinar a realização de manobras de marcha atrás por parte dos condutores de empilhador da

II. SUMOL, nem que o recorrido condutor podia ter feito a manobra sem inverter o sentido de marcha deste último.

III. No recurso de revista, o STJ aplica definitivamente o regime que julgar adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, pelo que está pedido de usar os pressupostos referidos na conclusão I para julgar o recurso.

IV. O tribunal a quo ponderou devidamente que a conduta do recorrido condutor é passível de censura ético-jurídica, na medida em que violou as mais elementares regras de prudência, ao não ter tido especial atenção à existência de pessoas apeadas no espaço em que efectuou uma manobra de marcha – atrás com uma máquina que, pelas suas características, é susceptível de provocar elevados danos corporais, sendo-lhe exigível que, antes de efectuar essa manobra especialmente perigosa, se tivesse certificado que a via de circulação se encontrava desimpedida.

V. O tribunal a quo também considerou que, do mesmo modo, concorreram para o referido efeito danoso factos imputáveis, a título culposo, ao recorrente/lesado, nomeadamente, o de ter invadido o espaço assinalado no solo como reservado à circulação do empilhador, sem prestar atenção às manobras deste último e por ter ignorado as regras em vigor nas instalações da SUMOL+COMPAL, que lhe impunham que se mantivesse dentro do camião até à conclusão das operações de descarga deste último,

VI. É exigível a qualquer pessoa que se encontre na proximidade de uma máquina industrial que tenha o especial cuidado de evitar ser atingido, tendo em conta a natureza da mesma.

VII. Os comportamentos descuidados do recorrente e do recorrido condutor foram decisivos para a produção do acidente.

VIII. Não sendo possível estabelecer uma hierarquia entre as contribuições de cada um deles para a produção dos danos, a concorrência de culpas deve manter-se fixada em 50% para cada.

IX. Não existe nenhuma contradição, nem oposição, entre nenhum dos factos considerados provados no processo penal e os julgados provados nas instâncias cíveis.

X. Na fixação da indemnização por danos patrimoniais, o recurso à equidade só é admissível quando não puder ser averiguado o valor exacto dos danos.

XI. O recorrente fundamenta a pretensão relativa ao aumento da quantia indemnizatória (por danos patrimoniais), tão só na circunstância de se encontrar em situação muito precária.

XII. O tribunal a quo apurou e quantificou os danos emergentes do facto danoso na saúde e nas condições de vida do recorrente, sendo com base neles que fixou o valor da indemnização por danos patrimoniais.

XIII. O autor não recorreu dessa parte da decisão.

XIV. Não será possível, com recurso à equidade ou por qualquer outro meio, alterar, em sede de recurso de revista, o valor indemnizatório fixado pelas instâncias, pera além do que puder resultar da aplicação aos valores já fixados duma proporção de expressão diferente da definida na decisão sub judice quanto à medida da contribuição das culpas de cada interveniente, no que se refere à produção dos danos.

XV. Pelo que decaem todas as conclusões do recorrente.”

12. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo A e pelos RR/ ora Recorrentes decorre que o objeto dos presentes recursos de revista (dois) comportam as seguintes questões:

- Do recurso do Autor:

Saber se o acidente é imputável ao A. e aos RR, em concorrência de responsabilidades e, se sim, na proporção de 50/50.

- Do recurso dos RR:

Saber se o Tribunal recorrido decidiu bem a impugnação da matéria de facto quando não entrou no conhecimento da questão por não cumprimento dos ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.

III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

Da petição inicial

1.A. No dia 3 de Janeiro de 2013, pelas 17 horas e 15 minutos, nas instalações da "Sumol+Compal Marcas, SA", sitas na Estrada ..., ocorreu um sinistro, em que foi interveniente o A. AA, trabalhador da empresa "C..., Lda.", que procedia ao transporte de mercadorias no local por ordem da Sumol+Compal, S.A.

1.B. Nas referidas instalações, estavam a ser realizadas, em simultâneo, operações de descarga de mercadorias com veículos e movimentações manuais de cargas para separação de vasilhame.

1.C. O A. conduzia um veículo pesado de mercadorias, que transportava mercadoria para ser descarregada no local.

1.D. Assim, ao chegar aos armazéns sitos na Estrada ..., o A. imobilizou o camião que conduzia no espaço destinado para esse efeito, para que a mercadoria que transportava fosse descarregada.

1.E. De seguida, o A. saiu do veículo e abriu as lonas laterais do camião, de modo a que o empilhador conduzido pelo R. BB retirasse as paletes de carga.

1.F. Então, o R. BB conduziu o empilhador na direcção daquele camião e retirou as paletes do seu interior.

1.G. Após terminar esse serviço, o R. BB iniciou a manobra de marcha atrás do empilhador para se dirigir a outras paletes que se encontravam no armazém.

1.H. Nessa altura, o A. estava junto ao vasilhame.

1.I. Quando o A. circulava a pé, o R. BB, porque não se apercebeu da presença deste, continuou a manobra de marcha atrás.

1.J. Acto contínuo, o R. BB veio a embater com a roda esquerda traseira da máquina empilhadora no corpo do A., atingindo-o na zona da perna direita, vindo este a cair de imediato no solo.

1.K. Como consequência directa e necessária do embate supra descrito, o A. sofreu fractura exposta da tíbia e do perónio, o que lhe provocou cicatriz na face interna da coxa direita; aspecto cicatricial de toda a extensão da pele da perna direita, com alteração da morfologia do membro, limitação da mobilidade activa e passiva do tornozelo direito, com consequente claudicação da marcha em plano horizontal e necessidade de utilização de auxílio (duas canadianas) para subir e descer escadas; dor no tornozelo direito quando faz movimentos continuados; necessidade de ajuda de terceiro para tomar banho e limitação na actividade de condução de veículo automóvel.

1.L. O A. foi transportado pelo INEM do local do acidente para o Hospital ... – ..., onde recebeu tratamento hospitalar com o n.º de episódio ...57.

1.M. O A. estava consciente quando o levaram para o Hospital.

1.N. O A. permaneceu no Hospital, em virtude de politraumatismo causado pelo acidente, com fractura exposta grau IIIB GA dos ossos da perna direita, tendo sido efectuada osteotaxia externa com fixador tubular.

1.O. O A. apresentava picos febris, estando medicado com antibioterapia.

1.P. A 10-01-2013, apresentava epidermolise extensa dos retalhos, com sinais de necrose.

1.Q. Evoluiu com agravamento da área de necrose cutânea, tendo sido operado a 16-01-2013 para desbridamento e revestimento com auto-enxerto.

1.R. No dia 07-02-2013, é novamente intervencionado para remoção de barras de fixador externo monolateral e colocação de fixador externo Ilizarov.

1.S. Foi ainda efectuada remoção de agrafos de enxerto de partes moles e penso com desbridamento de tecido necrosado.

1.T. Durante o internamento, o A. foi submetido a exames complementares de diagnóstico, terapêutica com transfusão de concentrado de eritrócitos e medicamentosa, incluindo antibioterapia.

1.U. Em 21-02-2013, o A. teve alta por Ortopedia e por Cirurgia Plástica.

1.V. O A. esteve internado no Hospital ... mais de sete semanas e na CUF ... desde 22/02/2022 a 16/03/2013.

1.W. Foi seguido pelos serviços clínicos da R. seguradora, no âmbito do acidente de trabalho.

1.X. Faz fisioterapia.

1.Y. Continua com necessidade de tratamentos médicos no SNS.

1.Z. Toma medicamentos para as dores e anti-inflamatórios.

1.AA. Não consegue andar sem o auxílio de uma canadiana.

1.BB. Não consegue correr ou andar rápido.

1.CC. Tem dificuldade a descer degraus.

1.DD. Qualquer impacto ou vibração que se transmita à perna causa dores.

1.EE. Tem dores na perna.

1.FF. Não consegue estar muito tempo de pé.

1.GG. Não tem posição.

1.HH. O A. não pode andar sem muletas, não pode guiar e com a sua idade não encontra colocação no mercado de trabalho.

1.II. A sua situação clínica não está estabilizada.

1.JJ. O A. é pessoa humilde.

1.KK. O A. era muito experiente e esforçado, razão pela qual os patrões gostavam dele para trabalhar.

1.LL. O A. tem que pagar uma renda de casa de € 290,00, de prestação da casa acrescido de seguros no valor € 70,00.

1.MM. E suporta água, luz e televisão e gás, de cerca de € 100,00.

1.NN. O A. teve que pedir dinheiro emprestado.

1.OO. A situação causou ao A. amarguras e privações.

1.PP. O A. não pode correr, dançar, andar sem canadianas.

1.QQ. Ficou com cicatrizes nas pernas.

1.RR. O A. apresenta as seguintes queixas, cfr. relatório pericial junto aos autos e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais:

- A nível funcional, compreendendo este nível as alterações das capacidades físicas ou mentais (voluntárias ou involuntárias), características de um ser humano, tendo em conta a sua idade, sexo e raça, que surgem na sequência das sequelas orgânicas e são influenciadas, positiva ou negativamente, por factores pessoais (como a idade, o estado físico e psíquico anterior, a motivação e o esforço pessoal de adaptação) e do meio (como as barreiras arquitectónicas, as ajudas técnicas ou as ajudas humanas), refere:

Postura, deslocamentos e transferências: limitação da marcha em plano horizontal, na subida e descida de escadas e rampas, com necessidade de apoio da marcha com duas canadianas. Dificuldade nas transferências de posição e permanência prolongada em posições estáticas e ortostáticas;

Comunicação: zumbidos bilaterais;

Cognição e afectividade: insónia por dores na perna direita e não ter posição antálgica para dormir; sintomatologia depressiva e ansiosa com necessidade de seguimento regular em consulta de psiquiatria e psicologia;

Sexualidade e procriação: deixou de efectuar o acto sexual, por dificuldade na posição durante o acto sexual;

Fenómenos dolorosos: referidos ao tornozelo direito, com irradiação para o joelho, que se agravam com a marcha, necessitando de utilizar calçado com sola amortizadora da planta do pé, aliviam com a toma de Zaldiar; dor tipo queimadura em toda a perna, acompanhada de aumento de volume da perna e ulcerações recorrentes. Referidos como lombalgias e referidos à região da coluna onde terá sido administrada a punção para a anestesia;

- A nível situacional, compreendendo este nível a dificuldade ou impossibilidade de uma pessoa efectuar certos gestos necessários à sua participação na vida em sociedade, em consequência das sequelas orgânicas e funcionais e de factores pessoais e do meio, refere:

Actos da vida diária: necessita de ajuda para as AVD's, nomeadamente para a higiene pessoal, compra e preparação da alimentação e tarefas domésticas;

Vida afectiva, social e familiar: deixou de sair com a frequência que tinha anteriormente por dificuldade de deslocação, deixou de conduzir;

Vida profissional ou de formação: deixou de efectuar as tarefas inerentes à profissão de motorista de pesados por IPATH.

O A. apresenta as seguintes sequelas:

- Ráquis: limitação da mobilidade da coluna lombar por dor nas amplitudes máximas.

- Membro inferior direito: cicatriz não recente na face interna da coxa direita, de área dadora de retalho cutâneo, com 30cm por 20cm de eixos maiores; cicatriz não recente, na face anterior do joelho, linear, acastanhada, obliqua para baixo e para lateral, com 4cm de comprimento; complexo cicatricial envolvendo toda a perna, com diminuição da sensibilidade, com pele friável e alterações tróficas da perna e tornozelo, com sinais de fistulação activa e coberta por pensos; mobilidade do joelho mantida; anquilose do tornozelo com mobilidade inferior aa 100 de flexão plantar; amiotrofia da coxa de 4cm (perímetro da coxa de 62cm Dta e de 66cm Esq); perímetro do tornozelo de 34cm (Esq de 26cm); força muscular da perna de grau 3/5.

- Membro inferior esquerdo: apresenta-se a exame com meia de contensão elástica abaixo do joelho; edema com sinal de godet positivo.

1.SS. O A. apresenta os seguintes:

- Défice Funcional Temporário (corresponde ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, excluindo-se aqui a repercussão na actividade profissional). Considerou-se o:

Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total e correspondendo com os períodos de internamento e/ ou de repouso absoluto), que se terá situado entre 03/01/2013 e 26/09/2015, sendo assim fixável num período de 997 dias.

Repercussão Temporária na Actividade Profissional (correspondendo ao período durante o qual a vítima, em virtude do processo evolutivo das lesões no sentido da cura ou da consolidação, viu condicionada a sua autonomia na realização dos actos inerentes à sua actividade profissional habitual). Considerou-se a:

Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total (anteriormente designada por Incapacidade Temporária Profissional Total, correspondendo aos períodos de internamento e/ ou de repouso absoluto, entre outros), que se terá situado entre 03/01/2013 e 26/09/2015, sendo assim fixável num período total de 997 dias.

Quantum doloris (corresponde à valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é, entre a data do evento e a cura ou consolidação das lesões); fixável no grau 5 numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta as lesões resultantes, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efectuados.

Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica (refere-se à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, e sendo independente das actividades profissionais, corresponde ao dano que vinha sendo tradicionalmente designado por Incapacidade Permanente Geral - nomeadamente no Anexo II do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, e referido na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, como dano biológico) fixável em 34 pontos, sendo de perspectivar a existência de Dano Futuro (considerando exclusivamente como tal o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, por corresponder à evolução lógica, habitual e inexorável do quadro clínico), o que pode obrigar a uma futura revisão do caso.

Repercussão Permanente na Actividade Profissional (corresponde ao rebate das sequelas no exercício da actividade profissional habitual da vítima - actividade à data do evento, isto é, na sua vida laboral, para utilizar a expressão usada na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, tratando-se do parâmetro de dano anteriormente designado por Rebate profissional). Neste caso, as sequelas são impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

Dano Estético Permanente (corresponde à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem da vítima quer em relação a si próprio, quer perante os outros). É fixável no grau 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta os seguintes aspectos: a claudicação da marcha, a utilização de ajudas técnicas e a(s) cicatriz(es).

Repercussão Permanente na Actividade Sexual (correspondendo à limitação total ou parcial do nível de desempenhai gratificação de natureza sexual, decorrente das sequelas físicas e /ou psíquicas, não se incluindo aqui os aspectos relacionados com a capacidade de procriação; trata-se do dano anteriormente designado por Prejuízo Sexual). É fixável no grau 4, com base em limitação na execução do acto sexual.

- Dependências Permanentes de Ajudas:

Ajudas medicamentosas que correspondem à necessidade permanente de recurso a medicação regular, sem a qual a vítima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações da vida diária. Neste caso analgésicos, antidepressivos e ansiolíticos. Tratamentos médicos regulares que correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou agravamento das sequelas. Neste caso tratamentos de MFR regulares (duas vezes por ano, duas séries), manutenção do seguimento em consultas de especialidade.

- Ajudas técnicas que se referem à necessidade permanente de recurso a tecnologia para prevenir, compensar, atenuar ou neutralizar o dano pessoal- do ponto de vista anatómico, funcional e situacional-, com vista à obtenção da maior autonomia e independência possíveis nas actividades da vida diária; podem tratar-se de ajudas técnicas lesionais, funcionais ou situacionais). Neste caso manutenção das canadianas e da contenção elástica.

- Adaptação do domicílio, do local de trabalho ou do veículo (corresponde à necessidade de recurso à tecnologia a nível arquitectónico, de mobiliário e /rni equipamentos, no sentido de permitir a realização de determinadas actividades diárias a pessoas que, de outra maneira, o não conseguiriam fazer sem a ajuda de terceiros). Neste caso adaptação do domicílio e do veículo automóvel.

- Ajuda de terceira pessoa (corresponde à ajuda humana apropriada à vítima que se tornou dependente, como complemento ou substituição na realização de uma determinada função ou situação de vida diária). Neste caso apoio diário durante pelo menos 4horas, para ajudar nas AVD's, para compra e confecção dos alimentos e efectuar as tarefas domésticas.

1.TT. Antes do evento, o A. trabalhava como motorista e distribuidor.

1.UU. O A. auferia um salário de base € 625,00, acrescido de subsídio de almoço de € 112,64 e outros € 312,00, ou seja, um valor anual de € 13 421,04.

1.VV. Desde o evento que o A. não recebe qualquer remuneração do seu patrão.

1.WW. No âmbito do processo n.º 2055/13.9..., que correu termos no Juízo do Trabalho de ... - Juiz ..., foi proferida sentença, junta como doc. 14 com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, tendo sido a Zurich Insurance plc – Sucursal em Portugal condenada a pagar ao A.:

a) Uma pensão anual e vitalícia de € 8035,81, com início em 27/09/2015.

b) A quantia de €4714,27, a título de subsídio por elevada incapacidade permanente.

1.XX. No âmbito do aludido processo, foi fixada a Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual de Motorista, com Incapacidade Permanente Parcial para o exercício de outra profissão de 50,64%, desde 26/09/2015.

1.YY. O 3.º R. agiu enquanto funcionário da R. Sumol+Compal Marcas, SA, exercendo a função de motorista.

1.ZZ. Por decisão já transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 3994/13.2... do Juízo Local Criminal de ..., Juiz ..., o R. BB foi condenado pela prática, em 3/01/2013, de um crime ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1 e 3 e 144.º, al. a) e b do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, já declarada extinta pelo cumprimento.

1.AAA. Do relatório de acidentes de trabalho elaborado por CC, datado de 14/01/2013, junto como doc. 1 com o req. datado de 29/05/2018, e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta, designadamente, que:

6. Conclusões:

Da análise do acidente conclui-se que a ocorrência do mesmo está relacionada com regras e organização do trabalho: a realização simultânea e no mesmo local, das actividades de separação manual de paletes e de descarga do camião empilhador, ou seja, a presença de trabalhadores em movimentação manual e de empilhador em movimento, no mesmo local físico e em proximidade, foram a causa da ocorrência do acidente.

7. Medidas Propostas/Acções Correctivas

Alteração dos procedimentos de trabalho – a triagem do vasilhame e a descarga dos camiões com paletes de vasilhame é efectuada em separado, para não haver cruzamento de empilhadores com pessoas no parque de vasilhame.

Implementada. Data da implementação: 3/01/2013

Sensibilização dos colaboradores da Sumol+Compal bem como dos responsáveis das empresas que efectuam o transporte de vasilhame para o cumprimento do novo procedimento.

Não implementada.

Do ISS, IP

1. BBB. Em consequência do sinistro ocorrido em 3 de Janeiro de 2013, o Instituto de Segurança Social, IP entregou ao A., no período compreendido entre 3 de Janeiro de 2013 e 16 de Março de 2013, o montante de € 851,84 referente a subsídio por doença, conforme certidão com o pedido de reembolso cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

Da contestação

1.CCC. No dia 3 de Janeiro de 2013, existia sinalização horizontal no local onde o sinistro ocorreu.

1.DDD. Esta sinalização consistia em dois segmentos de recta paralelos de cor amarela, com uma distância de sete metros entre si, destinados a delimitar o corredor de cargas e descargas onde circulava o empilhador.

1.EEE. O A. parqueou o camião que conduziu até ao citado parque de vasilhame no dia da ocorrência, paralelamente ao local correspondente a um ângulo de noventa graus formado com outro segmento de recta de cor amarela (cfr. documento 4 junto com a contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido nesta sede, para efeitos de melhor esclarecimento).

1.FFF. Depois, o 3.º R. iniciou as operações de descarga do camião, transportando no empilhador as paletes que dele retirava, dentro do corredor delimitado pelas mencionadas linhas amarelas paralelas e depositando-as ao longo da linha amarela visível oposta.

1.GGG. Depois de completada a operação de descarga do camião, o A. e o seu ajudante deveriam proceder à triagem das grades plásticas que contêm o vasilhame por marca, operação que consiste “… em retirar as grades plásticas que contêm o vasilhame duma palete onde se encontram misturadas grades de várias marcas e colocá-las manualmente noutra palete, organizadas por marcas”.

1.HHH. Enquanto a operação de descarga decorria, o assistente dirigiu-se para o local onde deveria executar a operação de triagem, onde, de resto, já se encontrava o seu ajudante, de forma a acelerarem a conclusão do seu trabalho diário.

1.III. O 3.º R. tinha acabado de pousar uma palete contendo grades de plástico que descarregara do camião, junto à linha amarela que delimita o corredor do espaço reservado às operações de triagem.

1.JJJ. Seguidamente, engrenou a marcha atrás do empilhador.

1.KKK. O A. foi colhido pelo empilhador quando se encontrava dentro do corredor delimitado entre linhas para a circulação deste.

1.LLL. Aquando do impacto, o A. encontrava-se a não mais de um metro de distância da traseira do empilhador, no espaço delimitado entre linhas para a circulação deste último.

1.MMM. Entre o local em que o autor foi colhido pelo empilhador e o local onde este último parqueou o camião que conduzira até ali, distam cerca de 12 metros.

1.NNN. Ao A. competia manter-se no interior da viatura, durante as operações de descarga do seu camião.

1.OOO. A SUMOL+COMPAL, pelo menos desde Janeiro de 2011, tinha elaborado e em vigor um conjunto de instruções de segurança dirigidas às empresas externas, quanto a cargas e descargas nas suas instalações, que definia expressamente esta regra.»

2. E foram julgados como não provados os seguintes factos:

2.1. Quando teve alta, o A. foi para casa com cadeira de rodas, sem o que não conseguia andar.

2.2. A Zurich pagou as incapacidades temporárias, que ascendem a cerca de €769,00 por mês x12, ou seja, cerca de €9355,15 anuais.

2.3. O A. vive sozinho.

2.4. Em deslocações e roupa, o A. gasta cerca de €150,00.

2.5. Em comida, o A. gasta cerca de 100.00 a 150.00 €.

2.6. Desde o evento, o A. não mais conseguiu trabalhar.

2.7. Nas circunstâncias descritas em KKK., o A. encontrava-se afastado das paletes com as grades e da referida linha amarela.

2.8. Não se apercebendo do embate, o R. continuou a manobrar a máquina empilhadora para descarregar outras paletes.

2.9. Quando o 3º R. accionou a respectiva alavanca, no sentido do empilhador fazer marcha atrás, de forma imediata e automática, foram accionados os correspondentes sinais sonoros e os sinais luminosos (pirilampo e luz branca de marcha atrás), indicativo desse sentido de marcha.

2.10. O empilhador utilizado na altura não dispõe de nenhum botão ou dispositivo semelhante que tenha que ser accionado manualmente para fazer funcionar os referidos sinais luminosos ou sonoros.

2.11. Antes de iniciar a marcha, o 3º réu olhou para trás para se certificar de que a via de circulação se encontrava desimpedida.

2.12. Não tendo visto nenhum obstáculo, iniciou a marcha.

2.13. Entre o momento em que o 3.º R. accionou a marcha atrás do empilhador e foram accionados os respectivos sinais sonoros e luminosos e o do início de movimentação do mesmo, decorreram alguns segundos.

2.14. Nas circunstâncias descritas em LLL., o A. encontrava-se agachado e de frente para o empilhador.

2.15. O 3.º R. não se apercebeu da presença do A., porque este estava encoberto pela traseira da própria máquina.

2.16. Insensível aos sinais luminosos e sonoro da máquina, o autor não abandonou o local até ser atropelado pelo empilhador.

2.17. A R. SUMOL+COMPAL MARCAS, S.A. proporcionou ao 3.º R. formação na operação de máquinas de elevação e transporte, nomeadamente, no parque de vasilhame onde se verificou o descrito sinistro».

3. Apreciação do recurso

3.1. Recurso dos RR.

Começando a análise do recurso pelas questões suscitadas na revista dos RR, por aí se pedir a devolução dos autos ao tribunal recorrido para reanálise da impugnação da matéria de facto objeto do recurso de apelação, e tomando por referência as conclusões dessa apelação transcritas no Acórdão recorrido, vê-se que os (outrora) apelantes pediram a reanálise dos factos provados relativos ao valor da retribuição auferida pela A. e que estava consignado no ponto UU da matéria de facto, com a formulação das seguintes conclusões:

“I. A circunstância de o Tribunal a quo ter considerado provado que o autor auferia 112,64 € a título de subsídio de refeição e 312,00 € mensais, a título de “outros”, não encontra nenhum estribo nos documentos indicados na sentença para fundamentar essa decisão, nomeadamente, porque deles resulta que a soma do valor das ajudas de custo com o valor do abono por falhas pagos mensalmente ao autor ao longo do ano 2012 nunca atingiu o valor de 312,00 €.

II. O ponto UU) da matéria de facto está incorrectamente julgado.

III. Na ausência de qualquer registo de prova sobre os mesmos, os concretos meios de prova constantes do processo, que impunham decisão diferente são precisamente os mesmos que foram invocados pela Mma. Juiz a quo para fundamentar a resposta impugnada, ou seja, os mencionados recibos de vencimento do autor.

IV. A decisão que deverá ser proferida sobre este concreto ponto da matéria de facto deverá ser assim a de não provado ou, quanto muito, alterada restritivamente para “UU) O A. auferia um salário de base € 625,00”.”

O facto UU (agora 1.UU ) tinha a seguinte redação:

UU. O A. auferia um salário de base € 625,00, acrescido de subsídio de almoço de € 112,64 e outros € 312,00, ou seja, um valor anual de € 13 421,04.

Referem os Recorrentes que o Tribunal recorrido se recusou a reanalisar o ponto, invocando que os apelantes não cumpriram os ónus impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil.

A ser assim poderia estar em causa o não cumprimento dos deveres impostos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil pelo Tribunal recorrido, situação que tem sido entendida na jurisprudência como questão suscetível de recurso de revista.

Vejamos, então, se o Tribunal recorrido deixou de conhecer da impugnação da matéria do ponto UU, com o indicado fundamento.

No acórdão recorrido consta:

“No caso dos autos, os recorrentes Sumol + Compal Marcas, Sumol + Compal e BB insurgem-se contra a alínea UU) dos factos provados [«O A. auferia um salário de base € 625,00, acrescido de subsídio de almoço de € 112,64 e outros € 312,00, ou seja, um valor anual de € 13 421,04»], defendendo que tal matéria deverá considerar-se como não provada ou, quando muito, ser alterada restritivamente para «O A. auferia um salário de base € 625,00».

Defendem, nas suas alegações, que tal alteração se impõe porque a redacção dada àquela alínea pelo tribunal a quo «não encontra nenhum estribo nos documentos indicados na sentença para fundamentar essa decisão, nomeadamente, porque deles resulta que a soma do valor das ajudas de custo com o valor do abono por falhas pagos mensalmente ao autor ao longo do ano 2012 nunca atingiu o valor de 312,00 €. (…) Efectivamente, na ausência de qualquer registo de prova sobre os mesmos, os concretos meios de prova constantes do processo, que impunham decisão diferente são precisamente os mesmos que foram invocados pela Mma. Juiz a quo para fundamentar a resposta impugnada, ou seja, os mencionados recibos de vencimento do autor».

Acontece que, ao contrário do que referem os recorrentes, o tribunal recorrido não fundou a sua convicção apenas nos documentos juntos aos autos, mas também nas declarações de parte do A.. Com efeito, como se refere expressamente na sentença, «a condição profissional do A. resultou do teor dos recibos de vencimento e das suas próprias declarações1, posto que não mais trabalhou como motorista (factos TT) a VV))». Note-se que a matéria em causa não está sujeita a qualquer restrição probatória. Ou seja, para a sua prova a lei não exige qualquer formalidade especial, nem determina que apenas possa ser provada por documentos. Vale, deste modo, o princípio da livre apreciação das provas a que alude o art. 607º nº5 do Código de Processo Civil, o que significa que, para que o tribunal superior pudesse sindicar a convicção do tribunal de primeira instância, seria necessário que os recorrentes tivessem cumprido todos os ónus a que alude o citado art. 640º do Código de Processo Civil.

Ora, compulsadas as alegações e as conclusões, constata-se que não são indicadas as exactas passagens da gravação em que os recorrentes se fundam e que possam permitir ao tribunal ad quem sindicar a decisão proferida em primeira instância (sendo certo que o tribunal a quo baseou a sua convicção em prova gravada – como se disse, as declarações de parte do A.).

Deste modo, e considerando que «a exigência da (…) especificação dos concretos meios probatórios convocados (…) integra[m] um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objecto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto» e que, por outro lado, «a exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados (…), integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida», não tendo sido cumprido, minimamente, o ónus de indicação das passagens da gravação da prova que implicam decisão diversa, ficando impedido «o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso», tal implica a imediata rejeição do recurso, nessa parte .

Pelo exposto, rejeita-se o recurso da matéria de facto.”

Do teor da fundamentação apresentada no Acórdão recorrido decorre que a posição do Tribunal da Relação de Lisboa foi a seguinte: os apelantes pretendiam ver alterado o facto UU por entenderem que o mesmo estava mal julgado a partir dos documentos que constavam dos autos; seriam esses documentos que imporiam uma conclusão diversa.

Analisando a pretensão dos apelantes o Tribunal considerou a fundamentação do referido ponto UU constante da sentença e concluiu que, na fixação do ponto UU, o Tribunal de 1.ª instância baseou a sua convicção não apenas nos documentos apresentados nos autos (não sujeitos a regime de força probatória tabelada) com as declarações do próprio Autor.

Sendo justificada a consideração do facto UU com o recurso a dois meios de prova – documental e declaração do Autor – ambos sujeitos a livre apreciação do julgador – podia o tribunal concluir como o fez, indo para além do que constava dos documentos.

E, a ser assim, na apelação ao se pretender a reanálise do ponto UU com invocação apenas de haver erro de julgamento por não haver correspondência com os documentos, não mereciam uma posição diversa do Tribunal de recurso, sendo necessário que na apelação o facto fosse impugnado à luz dos diversos meios de prova que haviam justificada a sua consideração como facto provado.

Da justificação do Tribunal recorrido decorre ainda uma outra ideia, que deve ser entendida como argumento adicional e não fundamental na decisão – se se admitisse que os apelantes também pretendiam questionar a ilação do Tribunal reportada às declarações do Autor, dever-se-ia exigir que no recurso de apelação, por referência a essas declarações gravadas, tivesse havido a indicação das passagens da gravação que sustentariam uma versão diversa. Mas no recurso dos referidos apelantes, essa indicação não se encontrava, pelo que, mesmo na hipótese de ser essa a intenção dos Recorrentes, não se poderia prosseguir no conhecimento da impugnação com o referido sentido por não terem sido cumpridos os ónus do artigo 640.º do Código de Processo Civil.

Desta análise também decorre que a questão colocada no presente recurso de revista não é uma verdadeira questão de não cumprimento dos ónus do artigo 640.º do Código de Processo Civil ou do artigo 662.º do Código de Processo Civil, mas de incorreta interpretação da decisão judicial.

Na verdade, o Tribunal conheceu da impugnação do facto provado UU. Mas só conheceu na medida da sua reanálise face aos documentos dos autos e, como é lógico, se os documentos analisados não foram os únicos motivos para a sua consideração como provado, não haveria que alterar o ponto, sem a correta impugnação de todos os meios de prova convocados na sentença para a sua consideração como provados.

Assim, não assiste razão aos Recorrentes – não houve recusa na apreciação da impugnação da matéria de facto.

Deste modo, o recurso dos Réus tem de improceder.

3.2. Recurso do Autor

Iniciando a análise do recurso do Autor, pela questão que coloca - saber se o acidente é imputável ao Autor e ao Réu manobrador da empilhadora, em concorrência de responsabilidades e, se sim, na proporção de 50/50 - vejamos como se chegou a este resultado no Acórdão recorrido.

A questão foi assim justificada:

“Resta-nos, apenas, determinar a medida da responsabilidade dos RR. Sumol + Compal, S.A., e BB, sendo certo que a da primeira se mede pela do segundo (cfr. art. 500º do Código Civil).

O tribunal a quo ponderou da seguinte forma a culpa:

«Ora, da factualidade dada como provada retira-se a conclusão de que o 3.º R. condutor agiu, pelo menos, a título de negligência inconsciente, tendo a sua conduta resultado de imprevidência e imperícia, na medida em que, aquando da execução da manobra de marcha-atrás do empilhador que conduzia, veio a embater no A., não se apercebendo da presença deste na sua rectaguarda (…)

E, de facto, resultou apurado que, no momento do embate, ao A. competia manter-se no interior da viatura, durante as operações de descarga, regras que se incluía num conjunto de instruções de segurança, dirigidas às empresas externas, que se encontravam em vigor desde Janeiro de 2011.

E resultou igualmente provado que o embate se deu quando o A. se encontrava a cerca de 12 metros de distância da sua viatura, procedendo à operação de separação de vasilhame que se encontrava a decorrer em simultâneo com a operação de descarga do camião, vindo a ser colhido pelo empilhador quando se encontrava a cerca de um metro da sua traseira.

Releva, também, neste aspecto a circunstância de se ter apurado, no relatório de acidente de trabalho das RR., que a ocorrência do mesmo está relacionada com regras e organização do trabalho: a realização simultânea e no mesmo local, das actividades de separação manual de paletes e de descarga do camião empilhador, ou seja, a presença de trabalhadores em movimentação manual e de empilhador em movimento, no mesmo local físico e em proximidade, foram a causa da ocorrência do acidente (facto AAA.). Tal conclusão levou a que se implementasse, como medida correctiva, que a triagem do vasilhame passasse a ocorrer em separado da descarga dos camiões com paletes de vasilhame, com vista a evitar cruzamento de empilhadores com pessoas no parque de vasilhame.

Deste modo, é possível concluir que a não observância, por parte do A., da instrução de se manter no interior do seu veículo contribuiu para a verificação do evento, não sendo de olvidar que tal não foi sequer mencionado quer no relatório da ACT, quer no relatório de acidente de trabalho das RR., o que nos leva a ponderar sobre se tal regra se encontrava efectivamente instituída na prática.

Quanto ao pressuposto da culpa, terá que se concluir que o mesmo se verifica na medida em que de acordo com ao critério do bom pai de família postulado no artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil, era exigível que ao A. que tivesse actuado com a diligência devida, designadamente devia ter-se assegurado podia proceder à separação do vasilhame em condições de segurança, não se posicionando na trajectória do empilhador.

Acrescente-se, aliás, que é exigível a qualquer pessoa que, encontrando-se na proximidade de uma máquina industrial, operando em simultâneo, tenha redobrados cuidados para evitar ser atingido, tendo em conta a natureza da mesma. Por outro lado, verifica-se, também, o nexo de causalidade entre a conduta e o dano.

Deste modo, há que concluir pela existência de culpa do lesado, pois que a conduta deste contribuiu de forma juridicamente relevante para a verificação dos danos, havendo, pois, concorrência entre a culpa do lesante e a culpa do lesado.

Havendo que proceder a uma repartição de culpas, por se encontrarem em concorrência entre si, deve o Tribunal proceder a um juízo de graduação entre as culpas com base na gravidade e nas consequências das mesmas de forma a concluir se a indemnização devida pelo lesante por se constituir em responsabilidade civil deve ser concedida na totalidade, ou se, por outro lado, deve ser reduzido, ou até mesmo excluída.

No caso dos presentes autos, constata-se que o condutor do empilhador exercia funções para as RR. e manobrava uma máquina industrial, tendo ocorrido o embate nas instalações das RR., pessoas colectivas, onde se procedia às descargas de vasilhame.

Por seu turno, o A., pessoa singular, exercia funções para uma empresa externa às RR., cuidando de transportar e separar vasilhame.

Além disso, como se disse supra, não nos parece que a permanência no interior de veículos de transporte fosse uma prática instituída por parte dos motoristas de transporte, de tal modo que houve necessidade de implementar novas medidas de segurança, constatada a insuficiência das existentes para prevenir acidentes como o que se cuida nos autos.

Acresce que, não obstante a conduta do A. ser ela própria censurável, a verdade é que, comparativamente com a censurabilidade que deve ser ajuizada relativamente ao comportamento do condutor do empilhador, vislumbra-se uma censurabilidade menor do que esta, havendo que graduar as culpas em função da própria ilicitude das condutas, que, no caso, se conclui ser de maior intensidade a do condutor do empilhador e de menor intensidade a do A.

Assim sendo, tudo visto e ponderado, atentas as circunstâncias apuradas, decide-se fixar a culpa do A. em 20% e a culpa do condutor da empilhadora, o R. BB em 80%.».

Ora, atenta a factualidade provada – que é a única que poderemos ter em consideração, não sendo lícito recorrer a juízos hipotéticos –, temos de concluir que se encontra configurada a existência de culpa, quer do R. BB, quer do próprio A., em termos de as condutas [descuidadas] de ambos terem contribuído para a produção dos danos, com o que, aliás, os recorrentes também concordam. Analisemos então a proporção dessa contribuição.

A culpa consiste na conduta humana censurada pelo Direito: o agente podia e devia agir de outra maneira. Tem como sub-requisitos a imputabilidade (capacidade de querer e entender - art. 488º do C.C.) e a culpa em sentido estrito (censurabilidade).

Quanto à imputabilidade, consiste a mesma na atribuição da prática do acto ao agente lesante: considera-se imputável todo aquele que possui discernimento e vontade, liberdade de determinar-se, o que não vem posto em causa.

A culpa stricto sensu engloba o dolo e a negligência e deve ser avaliada «pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso» (art. 487º nº2 do C.C.).

Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta merecer a reprovação do Direito, pressupondo que o lesante, pela sua capacidade, e em face das circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de outro modo. O juízo de reprovabilidade assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do lesante, quer ele tenha representado no seu espírito determinado efeito da sua conduta e querido esse efeito como fim da sua actuação (dolo), quer apenas tenha previsto o efeito como possível, acreditando na sua não verificação por leviandade ou incúria (culpa consciente), ou nem sequer tenha concebido a possibilidade de o facto se verificar, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, quando podia e devia prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse a diligência devida (culpa inconsciente).

Na síntese de Antunes Varela, a culpa envolve um juízo de censura ou reprovabilidade: ela é o nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ilícito à vontade do agente.

Por outro lado, de acordo com o art. 570º nº1 do Código Civil, «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».

A culpa do lesado, a que alude esta norma, «é uma culpa imprópria, não técnica (…) por não assentar numa conduta ilícita, já que o lesado, na ausência de um dever geral de autoprotecção, age, apenas, dolosa ou negligentemente, contra os seus interesses pessoais e patrimoniais, suportando os efeitos da sua liberdade pessoal ao pretender responsabilizar o lesante / devedor culpados. Não lesando direitos ou interesses alheios, nem atentando contra normas de protecção mista, a falta de cuidado ou de zelo com os seus bens não envolve ilicitude mas, somente, e segundo o entendimento dominante, a inobservância de um ónus jurídico (…). Quanto ao modo de apreciação da “culpa do lesado”, não estando em causa, e, em rigor, a reprovação da sua conduta, mas a distribuição dos danos, parece razoável a defesa de um critério objectivo temperado pela consideração circunstancial e por certos factores subjectivos como a idade, a pouca instrução e a deficiência. A pergunta nuclear será saber o que faria, perante um certo factualismo, uma pessoa com as características do lesado (…).

Para o exame ponderativo previsto no nº1 a norma exige não só a presença de duas condutas culposas mas que tenham sido causalmente concorrentes para o evento lesivo ou para o agravamento dos danos (…). O teste da concausalidade não se basta com uma averiguação condicionalista (…) mas exige a presença de critérios jurídicos, seja o da causalidade adequada, seja o da causalidade normativa (…)».

Isto posto, há que dizer, desde logo, que, para a decisão, é irrelevante o teor da alínea AAA) dos factos provados, que dá por reproduzido o teor de um relatório de acidentes de trabalho elaborado por CC e cujas conclusões se reportam ao acidente dos autos. Com efeito, nessa alínea o tribunal limita-se a dar como provado que foi elaborado um relatório com aquele conteúdo, mas não que as causas do acidente tenham sido efectivamente as que constam desse relatório, nem que tenham ocorrido os factos nele relatados. Trata-se, portanto, de matéria inócua do ponto de vista que nos ocupa.

No mais, verifica-se que se provou que:

- No dia 3 de Janeiro de 2013, pelas 17 horas e 15 minutos, nas instalações da R. Sumol + Compal Marcas, estavam a ser realizadas, em simultâneo, operações de descarga de mercadorias com veículos e movimentações manuais de cargas para separação de vasilhame;

- Tendo o A. aí chegado, ao volante de um veículo pesado de mercadorias, imobilizou-o no espaço destinado para esse efeito, para que a mercadoria que transportava fosse descarregada;

- Depois de completada a operação de descarga do camião, o A. e o seu ajudante deveriam proceder à triagem das grades plásticas que contêm o vasilhame por marca, operação que consiste “… em retirar as grades plásticas que contêm o vasilhame duma palete onde se encontram misturadas grades de várias marcas e colocá-las manualmente noutra palete, organizadas por marcas”;

- Logo após ter estacionado o seu veículo, o A. saiu do mesmo e abriu as lonas laterais do camião, de modo a que a empilhadora conduzida pelo R. BB retirasse as paletes de carga;

- Então, o R. BB conduziu a empilhadora na direcção daquele camião e retirou as paletes do seu interior;

- No local existia sinalização horizontal, consistente em dois segmentos de recta paralelos de cor amarela, com uma distância de sete metros entre si, destinados a delimitar o corredor de cargas e descargas onde circulava a empilhadora;

- As operações de descarga do camião, transportando na empilhadora as paletes que dele retirava, foram feitas pelo 3º R. dentro do corredor delimitado pelas linhas amarelas paralelas;

- Enquanto a operação de descarga decorria, o A. dirigiu-se para o local onde deveria executar a operação de triagem, onde, de resto, já se encontrava o seu ajudante, de forma a acelerarem a conclusão do seu trabalho diário;

- O 3.º R. tinha acabado de pousar uma palete contendo grades de plástico que descarregara do camião, junto à linha amarela que delimita o corredor do espaço reservado às operações de triagem;

- Terminado o serviço de descarga do camião, o R. BB engrenou a marcha atrás da empilhadora, e iniciou a manobra de marcha atrás, para se dirigir a outras paletes que se encontravam no armazém;

- Nessa altura, o A. estava junto ao vasilhame, a não mais de um metro da traseira da empilhadora;

- Quando o A. circulava a pé, o R. BB, porque não se apercebeu da presença deste, continuou a manobra de marcha atrás;

- Acto contínuo, o R. BB veio a embater com a roda esquerda traseira da máquina empilhadora no corpo do A., atingindo-o na zona da perna direita, vindo este a cair de imediato no solo;

- O A. foi colhido pela empilhadora quando se encontrava no espaço delimitado entre linhas para a circulação desta;

- Entre o local em que o autor foi colhido pela empilhadora e o local onde este último parqueou o camião que conduzira até ali, distam cerca de 12 metros;

- A SUMOL+COMPAL, pelo menos desde Janeiro de 2011, tinha elaborado e em vigor um conjunto de instruções de segurança dirigidas às empresas externas, quanto a cargas e descargas nas suas instalações, que definia expressamente a regra de que ao A. competia manter-se no interior da viatura, durante as operações de descarga do seu camião.

Ora, é certo, por um lado, que o R. BB violou as mais elementares regras da prudência, uma vez que, encontrando-se a conduzir uma máquina que, atentas as suas características, é susceptível de provocar elevados danos corporais, e estando a operar num local onde ocorriam movimentações manuais de cargas para separação de vasilhame, lhe incumbia ter tido especial atenção à eventual existência de pessoas apeadas e, pelo contrário, efectuou uma manobra de marcha-atrás sem se ter apercebido sequer da presença do A. a cerca de um metro de distância. Note-se que, diferentemente do que vinha alegado, não se provou que o R. tivesse olhado para trás antes de efectuar a manobra, nem que a tenha iniciado apenas depois de não ter visto nenhum obstáculo, ou sequer que não pudesse ter visto o A. por este se encontrar agachado e estar encoberto pela traseira da máquina. É, assim, a conduta do R. BB passível de censura ético-jurídica, já que lhe era exigível que, antes de efectuar uma manobra especialmente perigosa como é a de marcha-atrás de uma máquina empilhadora, se tivesse certificado de que a via de circulação estava desimpedida.

Mas é igualmente verdade que também o A. agiu descuidadamente. Com efeito, apesar de se encontrar sinalizado a amarelo um corredor onde operava a empilhadora, e apesar de o R. BB ter feito todas as manobras dentro desse espaço, o A. posicionou-se dentro daquele corredor, sem que, como era exigível a qualquer pessoa que ali circulasse a pé, tivesse prestado atenção às manobras do R.. Acresce que, apesar de vigorarem nas instalações da R. Sumol + Compal regras de segurança quanto a cargas e descargas nas suas instalações, que definiam que ao A. competia manter-se no interior da viatura durante as operações de descarga do seu camião, o certo é que o A. desrespeitou claramente tais instruções, tendo-se dirigido para o local onde deveria executar a operação de triagem, percorrendo cerca de 12 metros, enquanto a operação de descarga decorria – o que fez, ignorando instruções de segurança expressas, contra o que aconselhava toda a prudência, com vista a acelerar a conclusão do seu trabalho diário. Contribuiu, assim, o A. de forma muito relevante para a produção dos danos.

Ora, sabido que é que não é genericamente exigido aos demais que contem com atitudes imprudentes de outrem, temos que, do ponto de vista do A., este não podia contar com que o R. fizesse uma manobra de marcha-atrás sem verificar previamente a inexistência de pessoas apeadas, mas, do ponto de vista do R., este não podia contar com que o A. saísse do seu veículo antes do momento previsto e se colocasse dentro da área de circulação da empilhadora. O que significa que os comportamentos descuidados tanto do R. BB como do A. foram decisivos para a produção do acidente e respectivos danos, não sendo possível estabelecer uma hierarquia entre as contribuições de cada um deles, pelo que há que fixar uma concorrência de «culpas» na proporção de 50% para cada.

Nessa medida, procedem parcialmente as conclusões de recurso, havendo que reduzir as indemnizações fixadas a favor do A. em conformidade, cabendo, assim, aos RR. Sumol + Compal Marcas e BB o pagamento de € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais e € 60.000,00 a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a data da decisão proferida em primeira instância (arts. 611º nº1 do Código de Processo Civil, e 566º nº2 e 804º a 806º do Código Civil).”

Do exposto resulta que a sentença e o Acórdão recorrido são concordantes no entendimento de que o acidente ocorreu por causa que é simultaneamente imputável ao comportamento inadequado do Autor e do condutor do empilhador, divergindo apenas na repartição de responsabilidades: o Tribunal de 1.ª instância considerou que o comportamento do condutor do empilhador era mais censurável do que o do Autor, tendo contribuído em maior medida para o acidente e para os respetivos danos; o Tribunal da Relação considerou que havia responsabilidades equivalentes.

O Recorrente advoga que a responsabilidade não seja repartida em igual medida, por considerar que:

- Assim, não resta senão concluir que, caso tivesse o manobrador tomado as devidas precauções, ou seja, caso tivesse adequado a sua atenção ao facto de estar a fazer uma manobra particularmente perigosa (marcha atrás) e dever, por isso, prestar especial atenção à eventual presença de pessoas junto à retaguarda da máquina por si manobrada e, se o tivesse feito, certamente ter-se-ia apercebido da presença do Requerente, não teria iniciado a marcha e o embate não se teria verificado, o que aliás poderia ter feito, como decorre dos depoimentos prestados e das fotografias juntas.

- Atento o risco, tamanho, peso e perigo de um empilhador nunca se poderá dizer que há uma divisão 50% 50%.;

- Acresce que atenta a condenação penal há uma presunção de culpa do condutor.”

A questão que nos é colocada é a de saber se a conduta do Autor e do condutor do empilhador assumem igual gravidade e juízo de desvalor para efeito de repartição de responsabilidades.

No Tribunal de 1ª instância foi entendido que a conduta do condutor do empilhador era mais censurável: “Acresce que, não obstante a conduta do A. ser ela própria censurável, a verdade é que, comparativamente com a censurabilidade que deve ser ajuizada relativamente ao comportamento do condutor do empilhador, vislumbra-se uma censurabilidade menor do que esta, havendo que graduar as culpas em função da própria ilicitude das condutas, que, no caso, se conclui ser de maior intensidade a do condutor do empilhador e de menor intensidade a do A.”

Para isso contribuiu a relação de cada um dos sujeitos com a Ré Sumol + Compal Marcas: “… o condutor do empilhador exercia funções para as RR. e manobrava uma máquina industrial, tendo ocorrido o embate nas instalações das RR., pessoas colectivas, onde se procedia às descargas de vasilhame.”; “Por seu turno, o A., pessoa singular, exercia funções para uma empresa externa às RR., cuidando de transportar e separar vasilhame.”

E ainda as regras organizativas da própria Ré Sumol + Compal Marcas: “não nos parece que a permanência no interior de veículos de transporte fosse uma prática instituída por parte dos motoristas de transporte, de tal modo que houve necessidade de implementar novas medidas de segurança, constatada a insuficiência das existentes para prevenir acidentes como o que se cuida nos autos.”

Já o Tribunal da Relação entendeu que não era possível determinar qual das condutas era mais censurável.

A questão a decidir prende-se com a interpretação e aplicação do regime do artigo 570.º do Código Civil que preceitua: «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída», tendo o Tribunal recorrido indicado como a norma deve ser interpretada na perspetiva da concausalidade das condutas na dimensão dos danos, e não necessariamente na culpa subjetiva.

Ora, considera-se que do ponto de vista da censurabilidade da conduta – e medida em que esta conduta contribui para o resultado danoso - ela é superior no que respeita ao condutor do empilhador, em termos que tornam mais adequado dividir a responsabilidade nos moldes indicados na sentença, quer pelos motivos aí indicados – que se afiguram bem pensados e adequados à regulação das responsabilidades – quer porque o exato cumprimento das regras de circulação/convivência entre os operadores internos e externos (ou a sua falha) devem ser, num primeiro patamar, definidos e implementados pela própria R. Sumol + Compal Marcas, incumbindo-lhe igualmente assegurar o seu respeito por todos os que se movimentam no espaço, ainda que a cada um caiba igualmente uma quota de responsabilidade nos cuidados a ter quando se movimenta num perímetro de convivência entre máquinas, pessoas e veículos.

Em face do exposto, é de considerar que a repartição das responsabilidades deve ser definida nos termos constantes da sentença, com a atribuição de responsabilidade de 80%/20% para, respetivamente, condutor do empilhador/Autor.

Tendo a decisão recorrida reflexos no que toca aos segmentos condenatórios A e B da sentença (e que no Acórdão recorrido são B e C), por se ter decidido que passariam a ser os seguintes - “b) Condenam-se, solidariamente, os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., e BB a pagar ao A. a quantia de € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença, até efectivo e integral pagamento; c) Condenam-se, solidariamente, os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., e BB a pagar ao A. a quantia que se venha a liquidar em incidente de liquidação, a título de danos futuros relacionados com o agravamento das sequelas decorrentes do embate em causa nos autos, na proporção de 50%”- impõe-se repristinar a solução original (com exceção da condenação de Ré já absolvida do pedido), ficando a condenação a figurar assim:

“b) Condenar solidariamente os RR. SUMOL+COMPAL MARCAS, SA e BB a pagar ao A. AA, a quantia de € 40 000,00 a título de danos não patrimoniais e a quantia de € 96 000,00 a título de danos patrimoniais, num total de € 136 000,00 (cento e trinta e seis mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4 % (Portaria 291/2003) calculados desde a data da presente decisão até efectivo e integral pagamento2;

c) Condenam-se, solidariamente, os RR. Sumol + Compal Marcas, S.A., e BB a pagar ao A. a quantia que se venha a liquidar em incidente de liquidação, a título de danos futuros relacionados com o agravamento das sequelas decorrentes do embate em causa nos autos, na proporção de 80%”.

Deste modo, o recurso do Autor tem de proceder.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em:

- negar a revista dos Réus e, consequentemente, em manter o Acórdão recorrido (nesta parte);

- conceder a revista do Autor e, em consequência, revogar o Acórdão recorrido (nesta parte), repristinando a condenação na sentença do Tribunal de 1.ª instância, mas somente quanto à condenação solidária dos Réus Sumol + Compal Marcas, S.A. e BB.

As custas serão da responsabilidade dos Réus vencidos.

Lisboa, 12 de março de 2024

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

António Magalhães

Nelson Borges Carneiro

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1. Sublinhado nosso.↩︎

2. A sentença fixou ao Autor, em relação aos danos não patrimoniais, uma compensação de €50.000,00, entendendo que, atenta a repartição de culpas entre o Réus BB e o Autor, cabe aos Réus o pagamento de 80% daquele valor. Já a quantia devida ao Autor, a título de danos patrimoniais foi fixada em €120.000,00 [dos quais € 96.000,00 (ou seja, 80%) a cargo dos RR.].↩︎