Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20752/19.3T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: SEGURO DE HABITAÇÃO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
CONSERVAÇÃO DE DOCUMENTOS
DEVER DE COOPERAÇÃO
RISCO
DOCUMENTO ESCRITO
NEGÓCIO FORMAL
ÁGUAS
ESGOTO
OBJETO DO CONTRATO DE SEGURO
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :
I - Um dos elementos essenciais do contrato de seguro, e que tem a ver com o seu objeto, é o risco - evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro - o qual define/delimita o objeto dum concreto contrato de seguro.
II - Como decorre do que se expôs sobre a questão da inversão do ónus da prova, esta questão foi colocada justamente por não estar documentalmente provado que o seguro cobrisse o risco de “danos por água” e, ainda, por a prova (sobre a cobertura de tal risco fazer parte das coberturas garantidas pelo contrato) ser um facto constitutivo do direito indemnizatório alegado/peticionado (e, por isso, do ónus da prova das autoras - cfr. art. 342.º, n.º 1, do CC).
III - Em conclusão, operando-se pelo contrato de seguro uma transferência do risco (da verificação de um dano) para a seguradora, a não inclusão no contrato de seguro celebrado do risco “danos por água”, que deu origem aos danos sofridos pelas autoras, significa que estes - os danos assim sofridos pelas autoras - não conferem (por tal risco não estar transferido e não estarem assim provados todos os requisitos da responsabilidade contratual da ré seguradora) direito à indemnização peticionada pelas autoras.
Decisão Texto Integral:



Processo no 20752/19.3T8SNT.L1.S1

ACORDAM, NA 6a SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

AA e BB, na qualidade de herdeiras da herança indivisa aberta por óbito de CC, ambas com os sinais dos autos, propuseram contra Ageas Portugal - Companhia de Seguros, SA e contra o Condomínio do Prédio sito na Rua ..., ..., ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que os RR. sejam condenados a pagar-lhes a quantia de € 47.500,00, acrescida de juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.

Alegaram, muito em síntese, que, no dia 01/05/2019, ocorreram infiltrações de águas de esgotos no teto e paredes de uma fração pertencente a CC, pelas quais são responsáveis os RR, sendo a primeira responsável em virtude de um contrato de seguro celebrado com o dono da fração e o segundo responsável por não ter cuidado das canalizações do prédio.

Os RR. contestaram separadamente.

O R Condomínio alegando que reparou a coluna de esgotos no próprio dia em que a mesma entupiu, necessitando a fração das AA. de limpeza e reparações da responsabilidade das mesmas.

A R Seguradora alegando, inter alia, que o contrato de seguro não cobria danos por água.

Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador – que considerou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – e foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo as RR. do pedido e condenando as AA. como litigantes de má-fé em vinte e cinco UCs de multa.

Inconformadas com tal decisão, interpuseram as RR. recurso de apelação, o qual, por Acórdão da Relação de Lisboa de 12/05/2022, foi julgado parcialmente procedente, “(...) condenando a apelada seguradora a entregar às AA a quantia a liquidar em execução, nos termos do disposto nos n.°s 1 e 2, do art.° 609.°, do C P. Civil, relativamente ao pedido de indemnização no valor de € 41 100,00, referente aos danos sofridos na fração, tendo como limite o valor contratado à data do sinistro, em 1/5/2019, absolvendo as apelantes da condenação como litigantes de má-fé e no mais confirmando a sentença.”

Inconformada agora a R. seguradora, interpõe o presente recurso de revista, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que repristine o sentenciado na 1.a Instância.

Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1a - As autoras não indicaram nenhum facto que pretendessem provar com os documentos que requereram.

2a - No pontual cumprimento deste douto despacho em 07 de setembro de 2020, a ré juntou aos autos 6 documentos, logo afirmando que “Não existem Condições Especiais aplicáveis ao contrato de seguro em causa” e juntou “as Condições Particulares dos últimos 5 anos, através dos documentos nos 2 a 6.”

3a - As AA., mormente na sua resposta de 17 de setembro de 2020, não alegam a sua impossibilidade de prova.

4a - As AA. juntaram 3 documentos e nenhum mais requereram da ré.

5a - As AA. não identificaram nem requereram a junção de mais nenhum documento além dos que a recorrente apresentou.

6a - A ora recorrente apresentou as Condições Gerais e Particulares vigentes à data do sinistro e declarou que “Não existem Condições Especiais aplicáveis ao contrato de seguro em causa”. 7a - Tudo a recorrente juntou quanto aos últimos 5 anos.

8a - As AA. satisfizeram-se com os documentos já apresentados no processo pelas partes e assim seguindo a ação para audiência final e sentença.

9a - Sem indicar nenhum facto concreto – o juiz pode ordenar diligências quanto a factos (art. 411o) – este douto despacho de 9-3-2022 na Relação notifica as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a aplicação “ao contrato dos autos” do no 2 do art. 344o do Código Civil, sem que antes, quando das notificações, facto algum tinha sido indicado e cominação alguma tenha sido advertida.

10a - Apenas com a notificação do acórdão a recorrente teve conhecimento de que o documento que foi convidada a apresentar se destinava à prova do facto específico da cobertura de danos por água. Nada antes nesse sentido lhe tendo sido antes comunicado. A inversão refere-se a facto ou factos e não ao “contrato dos autos” globalmente.3

11a - Notificada agora do douto acórdão, foi a ora recorrente surpreendida – decisão-surpresa porque não indicada, revelada, nem mencionada antes – com a fixação do facto de que o contrato do seguro em causa nestes autos tem cobertura dos danos causados por água. 3 Rita Lynce de Faria, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lex, Lisboa 2001, páginas 50- 53, passim; e Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lex, Lisboa 2000

12a - Em nenhum momento até à notificação do douto acórdão ora recorrido a ré teve conhecimento do que é que se indagava. Nunca foi informada de que era este facto – cobertura no contrato de danos por água – que estava na origem da sua notificação inicial e do posterior convite para juntar documentos aos autos.

13a - A recorrente apenas pelo douto acórdão soube que o facto que se indagava era a cobertura de danos por água.

14a - Se isso lhe tivesse sido dito quando das notificações, tinha logo reiterado que nenhum documento do contrato de seguro alguma vez contemplou e dele constou a cobertura de danos causados por água.

15a - Foi com surpresa – decisão-surpresa – que a recorrente soube apenas pelo douto acórdão, que se indagava por documento do contrato que contivesse a cobertura de danos por água, documento que jamais foi por si produzido, nem nunca existiu neste contrato.

16a - Na notificação determinada à recorrente bem como no convite que lhe foi endereçado jamais foi indicado facto ou factos a cuja prova os documentos se destinassem, bem como jamais nessas comunicações lhe foi feita qualquer advertência da cominação de inversão do ónus da prova para prova de facto ou factos que não lhe foram indicados, cujos efeitos ou consequências jurídicas pudesse prever ou avaliar.

17a - Apenas há inversão quanto a factos determinados; se os factos não estão determinados, se não foram indicados, não pode operar a inversão do ónus.

18a - A ora recorrente desde o início do processo afirma e reitera que no âmbito deste contrato jamais foi produzido ou existiu ou existe documento de onde conste a cobertura de danos por água, que o contrato jamais contemplou.

19a - Tal documento contratual nunca foi produzido e por isso não foi arquivado, guardado, nem conservado, e não pode ser apresentado o que não existe nem nunca existiu.

20a - Na determinação à recorrente na 1a instância para juntar documentos não lhe foi feita nenhuma advertência de cominação de inversão do ónus nem quanto a que facto ou factos. 21a - Na notificação do convite dirigido à recorrente na Relação para juntar documentos igualmente não lhe foi feita nenhuma advertência de cominação de inversão do ónus da prova nem quanto a que facto ou factos.

22a - A decisão no douto acórdão de inversão do ónus da prova e quanto a um facto não anteriormente indicado, sem advertência de tal cominação quer quando da notificação em primeira instância quer quando da notificação do convite na Relação, viola o disposto nos arts. 7o, 411o, 429o, 430o, 431o, 436o e 437o do CPC, e 344o, no 2 do Cód. Civil.

23a - Nem da não correspondência a um mero convite, sem identificação dos factos – que não ordem nem determinação acompanhada da advertência de cominação – pode, pela gravidade das suas consequências, resultar inversão de ónus da prova.

24a - Não há nem houve nunca, por nunca ter sido produzido nem ter tido existência, esse documento em poder da parte contrária – a recorrente – que possa ser apresentado e servir de prova do facto constitutivo do direito das AA. Não existe recusa nem negligência da ora recorrente por não apresentar o que nunca foi produzido nem nunca existiu.

25a - A cobertura de danos por água importa um custo cujo pagamento a recorrente tinha de pedir ao segurado, justificando-o, com o envio do respetivo documento que o segurado tinha o ónus de guardar e exibir.

26a - Contrariamente ao sistema estabelecido nos arts. 429o, 430o e 431o, o sistema de oficiosidade estabelecido nos arts. 7o, 411o, 436o e 437o não conduz nunca à aplicação do art. 344o, no 2 do Cód. Civil, como com toda a clareza estabelece o art. 437o do CPC.

27a - Os arts. 13o, 18o e 20o da Constituição consagram os direitos constitucionais de igualdade das partes no processo, o direito a uma tutela jurisdicional efectiva e o direito a um processo equitativo que, no presente caso, na aplicação adoptada pelo douto acórdão dos arts. 7o, 411o, 429o, 430 , 431o, 436o e 437o do CPC, e 344o, no 2 do Cód. Civil não foram respeitados. 28a - A tutela do direito a um processo equitativo impede a introdução de discriminações em função da natureza subjectiva da parte em causa, não se podendo aceitar num Estado de direito a alteração do ónus da prova em função do sujeito, com efeitos substantivos.

29a - As recorridas podiam na apelação requerer a produção de novas provas, porém, tal como na 1a instância, deram-se por satisfeitas com os documentos já constantes nos autos até à sentença fundando neles a sua afirmação de que provam a cobertura de danos por água. Não pediram, inversão do ónus da prova.

30a - Sem a prova de que o documento de cobertura de danos por água foi produzido e existiu, não pode o facto resultar provado através de inversão do ónus porque se trata de facto que apenas pode ser provado por documento.

31a - A Carta-Circular da ASF referida no douto acórdão não se aplica a documentos que não tiveram nunca existência e que a recorrente por isso nenhuma culpa teve em não o ter em seu poder, não arquivar e conservar. Cabia às AA. provar que o documento teve existência: 1 - Se o notificado declarar que não possui o documento, o requerente é admitido a provar, por qualquer meio, que a declaração não corresponde à verdade (art. 431o).

32a - Deve ser anulada a decisão da Relação de inverter o ónus da prova e, por essa via, fixar o facto de o contrato possuir cobertura de danos por água e, consequentemente, a recorrente deve ser absolvida do pedido contra si na acção, sendo revogado o douto acórdão.

33a - O douto acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente designadamente o disposto nos arts. 7o, 411o, 417o, 429o, 430o, 431o, 436o e 437o do CPC e 344o, no 2 do Cód. Civil, violou o disposto no art. 3o, no 3 e incorreu no art. 615o, no 1, al. d) do CPC, devendo ser revogado. Nos termos das precedentes conclusões e nos mais de direito, com o douto suprimento de Vossas

As AA. responderam, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Concluíram a sua contra alegação nos seguintes termos:

A. Da matéria de facto alegada nos articulados, bem como dos documentos juntos aos autos, infere-se que o contrato de seguro existiu e que a Recorrida com obrigação de o guardar e conservar não o fez.

B. A Recorrente foi notificada para se pronunciar sobre a cominação com a inversão do ónus da prova presente no n.o 2 do art.o 344.o CPC pelo Tribunal a quo.

C . A Recorrida nunca se bastou com a documentação junta, impugnando sempre a mesma, conforme os requerimentos apresentados em 28/03/2022 referencia citius .....6, 25/01/2022, referencia citius .....1, em 07/12/2021 referencia citius .....1, em 24/08/2021 referencia citius ...... e em 17/09/2020 referencia citius .......2.

D . É uma novação na instância pela Recorrida a não existência do documento, no sentido da sua nunca produção, o que não é admissível.

E. A Recorrente que “recebeu” o contrato de seguro e cuja existência e validade não nega, não diligenciou aquando da cessão da posição contratual pela obtenção da documentação original,

F . Pelo que procedeu, uma vez mais, negligentemente.

G . Não podem Recorridas arcarem com as consequências dessa mesma negligência.

H. Encontra-se provada nos autos a negligência da Recorrida que tornou culposamente impossível a prova ao onerado.

I . A Recorrida não juntou o contrato original assinado pelo falecido, por não dispõe do mesmo, pelo que requereu que a Recorrente o junta-se já em sede de 1.a Instância.

J . A Recorrente nunca o fez!

K . A não prova por parte da Recorrente de que o contrato de seguro abrangia ou não a cobertura por danos de água, não pode resultar por si só na não assunção do sinistro.

L . Cabe à Recorrente provar , também ela o que alega, designadamente, que o contrato celebrado não abrange o sinistro que as Recorridas pretendem ver abrangido.

M . O que não logrou fazer!

N . A Recorrida invoca a inversão do ónus da prova, no momento em que interpõe recurso da 1.a instância.

O . O Tribunal a quo nos termos do art.o 652.o do CPC, ordenou as diligências que entender.

P . Assim solicitou à Recorrente a junção aos autos do contrato de seguro original com todas as suas clausulas gerais, especiais e particulares, ao que esta nunca correspondeu. Q . O Tribunal a quo, solicitou à ASF - Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, cópia do contrato original assinado e celebrado pelo falecido.

R . A Entidade ASF respondeu, em suma, que a obrigação de guardar e conservar os documentos referentes ao contrato de seguro eram das Seguradoras, ora aqui Recorrente.

S . Tal dever seria no mínimo de 10 anos, mas devendo ser superior quando existam direitos em que a prescrição seja superior, devendo o mesmo contar -se a partir da cessação do contrato, devendo disponibilizar copia sempre que solicitado.

T. Pelo que sem mais solicitar às Recorridas, porquanto a não junção por estas, não desonerava a Recorrente de provar que o peticionado não correspondia à verdade.

U . Sobre a Recorrente impende um dever legal de conservação de documentação que constituía o contrato de seguro, sem a qual as Recorridas são impossibilitadas de usar o documento como prova do que invocam.

V. Consubstancia numa atuação culposa da Recorrente a leviandade que teve ao não conservar os documentos de um contrato de seguro que, se encontra activo e válido .

W . Atuação que, preenche os requisitos da inversão do ónus da prova.

X . Pelo que o Tribunal a quo notificou ambas as partes nos seguintes termos: “Notifique as partes para se pronunciarem sobre o expediente da ASF, a fls. 307 a 310, em dez (10) dias, e para em igual prazo se pronunciarem, querendo, nos termos do disposto nos art.o 5.o n.o3, 3.o n.o2, 652.o n.o1 al. b) e d) 655.o n.o1 e 665.o n.o3 do CPC sobre a aplicação na decisão de apelação do disposto nos n.os 1 e 2 do art.o 342.o do CC e também do disposto no n.o2 do art.o 344.o do CC, ao contrato dos autos, tendo em atenção as diligencias ordenadas em 30 de junho de 2020 e por esta Relação em 16 de junho de 2021, 19 de Novembro de 2021 e 10 de Fevereiro de 2022 e os elementos de prova que na sequencia delas foram juntos aos autos”.

Y. Nestes termos, notificou o Tribunal a quo as partes quanto à possibilidade da sua substituição ao tribunal recorrido e quanto às normas de direito que pretendia aplicar ao caso em concreto.

Z . Pelo que inexiste decisão-surpresa, pois as partes tiveram prazo para se pronunciarem.

AA. Tanto que a Recorrida o fez.

BB. Já a Recorrente optou por nada dizer, aceitando a factualidade vertida nos autos e a potencial inversão do ónus da prova decorrente da resposta da ASF que a onerava com o dever de guarda e conservação dos contratos de seguro.

CC. Não se concebe, nem concede que o douto Acórdão consubstancie uma decisão surpresa.

DD. Nem que o Tribunal a quo se pronunciou sobre questões que não podia tomar conhecimento.

EE. A modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto do Tribunal de 1a instância pela Relação está regulada no art.o 662o e 665.o do CPC.

FF. O Tribunal de 1.a instância foi omisso quanto ao ónus da prova referente à prova do contrato de seguro, designadamente, entre a repartição do ónus da prova entre Recorrida e Recorrente.

GG. As regras de direito aplicáveis aos autos são de conhecimento oficioso, pelo que podia como fez e bem o Tribunal da Relação.

HH. Pelo que, estando preenchidos os requisitos do art.o 662o e 665.odo CPC, tendo os Venerandos Desembargadores decidido corretamente.

II. Nem constituindo qualquer inconstitucionalidade, porquanto foi dada oportunidade às partes de se pronunciarem antecipadamente e em igualdade de circunstâncias, sobre a possível decisão a proferir.

JJ. Pelo que deve ser confirmado o acórdão recorrido, porquanto a decisão ora proferida cumpre os limites impostos, não merecendo qualquer censura o douto Acórdão. Termos em que deve ser confirmado o Acórdão dos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa.

Distribuídos os autos neste STJ, foi pelo Exmo. Relator proferida Decisão Sumária a “julgar procedente a revista no segmento em que se aprecia e considera ser nulo o acórdão recorrido, com fundamento no art. 615o, 1, d), 2.a parte, e 4, aplicável por força do art. 666o, 1, do CPC, e a anular o acórdão recorrido e ordenar a devolução dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para cumprimento e exercício completo e efetivo do contraditório pelas partes, no que corresponde à integração em despacho do conteúdo indicado no ponto 3.6., (i) e (ii), do cap. II, sendo depois conhecida e julgada a Apelação, se possível pelos mesmos Juízes Desembargadores, com substituição do acórdão assim anulado”.

No seguimento de tal Decisão Sumária do Exmo. Conselheiro Relator, foi requerido pelas AA./recorridas que sobre a mesma recaia Acórdão, requerimento/reclamação sobre o qual se pronunciou a R. seguradora.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto1

II – A – Factos Provados

A) Em data anterior a 01/05/2019, ocorreu um entupimento na coluna de esgoto do prédio sito na Rua ..., ..., de que resultou a saída de águas e dejetos do esgoto pela sanita, bidé e banheira da fração correspondente ao 1.° andar direito (que se situa sobre a fração em causa nos autos, o R/c esquerdo), que alagaram a casa de banho e se espalharam para os quartos e para o átrio de entrada da fração.

B) Em face do referido em A), o administrador do Condomínio e o condómino do 1.° direito telefonaram a CC, o proprietário do r/c esquerdo, que se encontrava na região da ... e que apenas veio no dia seguinte, dia 02/05/2019.

C) No dia 02/05/2019, CC chegou à fração e deparou-se com escorrimentos de água pelas paredes e tetos, acumulações de água e soalhos ensopados.

D) Em consequência do referido em A), a fração em causa nos autos apresenta danos concretamente não apurados.

E) O entupimento referido em A) consistiu, pela sua própria natureza, num evento fortuito, ocasional, súbito e inesperado e não por falta de manutenção do mesmo.

F) As AA. solicitaram um orçamento à empresa V.. . ........... . ............. .. ..... ......., Unipessoal, Lda, que consta de fls. 27v, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

G) CC, à data do sinistro, celebrara com a 1.a R o contrato de seguro titulado pela apólice de fls. 97-131 v, cujo teor se dá como reproduzido, na sequência da comunicação de fls. 46v-47, cujo teor se dá como reproduzido.

H) CC participou o sinistro à 1.a R, que se recusou a ressarcir os prejuízos.

I) O administrador do 2.° R entrou em contacto, no dia 1 de maio de 2019, com DD, canalizador, que ainda nesse dia se deslocou ao imóvel e desentupiu a coluna de esgoto.

J) As condições da apólice referida em G) foram elaboradas sem prévia negociação individual, sem prejuízo do que resulta do teor das cartas de fls. 46v-48 e 133- 137v, cujo teor de dá por reproduzido, designadamente que as novas condições do seguro resultaram de um aumento da cobertura existente por iniciativa da 1 .a R e a título gratuito.

L) Desde 01/05/2019, que as AA., na qualidade que têm nos autos, não fazem uso da fração.

M) As AA têm e tinham (no momento da propositura da ação) perfeita noção de que, sem prejuízo do referido em C), o eventual agravamento das condições da fração se ficou a dever ao facto de não terem arejado nem limpado a fração após a ocorrência do sinistro.

*

II – Factos não Provados:

Não se provou que

1. Sem prejuízo do referido em A) e C), a inundação no 1.° direito e consequente infiltração para o 1.° esquerdo deveram-se a uma rutura da canalização de esgoto, na placa superior da fração, que resultou do entupimento da prumada de águas residuais do edifício.

2. Sem prejuízo do referido em C), no dia 01/05/2019, CC chegou à fração e deparou-se com descascamento de tinta, reboco e estuque em diversas zonas da habitação decorrentes dos escorrimentos de água pelas paredes e tetos e acumulações de água, soalhos ensopados, que não existiam.

3. Em consequência apenas do referido em A) e sem prejuízo do referido em D), é visível, na sala, água a escorrer pelos móveis, paredes e até candeeiros, com os perigos daí decorrentes e todas as alcatifas, estofos e cortinados estão totalmente molhados e com vestígios de bolor.

4. Os prejuízos cujo ressarcimento é peticionado na presente ação repercutem-se por toda a fração em causa nos autos, sendo possível observar água a escorrer na cozinha, entrada, quarto, WC, com danos irreversíveis nas paredes e mobiliário.

5. Sem prejuízo do referido em D), a fração em causa nos autos apresenta os danos constantes das fotos de fls. 18-26v, cujo teor se dá por reproduzido, bem como existem danos tanto na estrutura do imóvel como nos objetos pertencentes à Ia A, designadamente na mobília, que se encontra de tal forma molhada que se encontra deformada e "inchada", sem reparação possível.

6. Em consequência apenas do referido em A), tornou-se impossível a habitabilidade da fração, pelo cheiro nauseabundo que a água que escorreu e escorre pelas paredes e teto da fração, sendo certo os malefícios da respiração deste ar.

7. Torna-se impossível residir na fração que constitui a habitação da Autora, tanto por razões de conforto mínimo a que qualquer ser humano tem direito (cheiro nauseabundo da água que escorreu e escorre pelas paredes e teto da fração) como por razões salutares, sendo que a humidade e gases provocados pelo rebentamento da canalização começam a causar problemas respiratórios nos membros do agregado familiar da Autora.

8. Sem prejuízo do referido em F), a reparação dos prejuízos referidos em D) importa em € 41.100,00.

9. O entupimento referido em A) resultou do rebentamento da coluna de esgotos infiltração na placa superior da fração do piso superior, local que o perito da 1.a R não verificou, ou seja, o telhado principal do imóvel.

10. A fração em causa nos autos é a habitação principal da 1.a A, que se encontra privada do seu uso por impossibilidade de residir na mesma.

11. As AA têm e tinham (no momento da propositura da ação) perfeita noção de que, ao contrário do que alegaram na petição inicial, o contrato de seguro que CC celebrara com a Ia R não cobria os danos peticionados na presente ação.

12. As AA têm e tinham (no momento da propositura da ação) perfeita noção de que, ao contrário do que alegaram na petição inicial, a fração em causa nos autos não é nem era, desde há alguns anos, a residência principal da 1.a A e do seu falecido marido, que apenas lá se deslocavam periodicamente para irem buscar o correio, quando vinham às consultas ao Hospital ....

*

III – Fundamentação de Direito

As AA., na presente ação, pedem uma indemnização por danos causados por infiltrações de águas de esgotos numa sua (mais exatamente, pertencente à herança em que são herdeiras) fração habitacional; e pedem que sejam condenados em tal indemnização a seguradora com quem estava celebrado e vigente contrato de seguro e o condomínio do prédio.

O pedido formulado contra o condomínio foi julgado improcedente em ambas as instâncias e as AA. conformaram-se com a “dupla conforme” assim formada.

Resta pois, como possível objeto da presente revista, a parte da ação que diz respeito ao pedido formulado contra a seguradora, 1.a R. nos autos; e circunscreve-se o objeto dá revista possível à questão que ocupa, desde o início, o centro da discussão dos autos, ou seja, à questão de saber se o contrato de seguro celebrado/invocado cobre o sinistro, o mesmo é dizer, o risco dos “danos por água”.

Sendo que a propósito de tal questão – a propósito dos riscos cobertos pelo seguro – o que está verdadeira e essencialmente em causa (acabando por monopolizar o objeto da presente revista) é o tema da inversão do ónus da prova, decretada pelo Acórdão recorrido, nos termos do art. 344.o/2 do CPC.

Tema este que surge nos autos a partir dos despachos (proferidos pelo Exmo. Relator do Ac. da Relação) de 16/6/2021 e de 17/11/2021 (a convidar a seguradora a juntar aos autos os elementos constitutivos da apólice em causa nos autos), do despacho de 10/2/2022 a oficiar à ASF - Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões e, principalmente, do despacho de 9/3/2022 a mandar notificar as partes da resposta da ASF e para "...se pronunciarem, querendo, nos termos do disposto nos art.° 5.°, n.° 3, 3.o, n.° 2, 652.°, n.° 1, ais. b) e d), 655°, n.° 1 e 665.°, n.° 3, do C. P. Civil, sobre a aplicação na decisão da apelação do disposto nos n.°s 1 e 2, do art.0 342°, do C. Civil e também do disposto no n.° 2 do art° 344.° do C.Civil, do mesmo código, ao contrato dos autos, tendo em atenção as diligências ordenadas pela 1.a instância em 30 de junho de 2020 e por esta Relação em 16 de junho, de 2021, 19 de novembro de 2021 e 10 de fevereiro de 2022 e os elementos de prova que na sequência delas foram juntos aos autos".

Vejamos, então:

Em 1981 (o contrato iniciou-se em 29/06/1981), a lei impunha para o contrato de seguro a forma escrita – o contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num documento que constituirá a apólice, cfr. proémio do art. 426.o do C. Comercial, embora se discutisse por vezes se a forma escrita era um requisito de validade ad substantiam ou um requisito de formalidade ad probationem – e, nesta medida, não constando/resultando dos documentos respeitantes ao seguro que foram sendo juntos aos autos que o risco de “danos por água” estivesse coberto, a 1.a Instância absolveu a R. seguradora do pedido indemnizatório contra ela formulada pelas AA..

A 1.a Instância foi até mais longe e deu como provado (na alínea K) que “as AA têm e tinham (no momento da propositura da ação) perfeita noção de que, ao contrário do que alegaram na petição inicial, o contrato de seguro que CC celebrara com a 1a R não cobria os danos peticionados na presente ação” (e, em consequência, condenou as AA. como litigantes de má-fé em 25 UC).

O que estava em causa nesta alínea K) não eram exatamente os riscos que o contrato de seguro cobria – o conteúdo do contrato – mas sim o conhecimento que as AA. tinham sobre os riscos cobertos e, nesta medida, não estava vedada a possibilidade de tal facto poder ser provado por testemunhas, porém, o dar-se como provado o referido facto significava – sob pena de frontal contradição/incompatibilidade – que não poderia estar, como não estava, documentalmente provado que o seguro cobrisse o risco de “danos por água”.

Perante isto, as AA., na sua apelação, impugnaram o facto dado como provado pela referida alínea K) e o Acórdão recorrido julgou procedente tal impugnação – matéria que, de acordo com o art. 674.o/3 do CPC, não está aqui em causa – passando tal facto a ser considerado como não provado.

Mas, uma vez que, caso viesse a ser julgada procedente tal impugnação, continuava a não estar documentalmente provado que o seguro cobria o risco de “danos por água”, o Relator na Relação, antes da prolação do Acórdão, produziu vários despachos e realizou/ordenou oficiosamente diligências/notificações (os acima referidos), tendo em vista inverter o ónus da prova respeitante ao seguro cobrir o risco de “danos por água” e no Acórdão recorrido decidiu-se inverter o ónus da prova respeitante a tal facto, para o que se expendeu o seguinte raciocínio:

“(...) mais pretendem as apelantes que esta Relação declare provado que os danos por água estão incluídos nas coberturas base do contrato de seguro.

Ora, o facto de se declarar não provado o facto sob a al. K não determina, ipso facto, que possa ser declarado provado o facto contrário, como pretendem as apelantes.

Todavia, nada obsta a que, no seguimento, aliás, do despacho do Relator de 9/3/2022, a fls. 312, quando se reporta à possibilidade de aplicação do disposto no n.° 2, do art.° 344.°, do C. Civil, a este facto de inclusão no contrato do risco relativo aos danos causados por águas, esta matéria seja, desde já conhecida, sem prejuízo da abordagem posterior desta mesma matéria. Dispondo o n.° 2, do art.° 344.°, do C. Civil, sob a epigrafe "inversão do ónus da prova", que "há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado...", a resposta à pretensão das apelantes, de se declarar provado que os danos por água estão incluídos nas coberturas base do contrato de seguro, traduz-se, afinal, em lançar sobre a apelada seguradora o ónus da prova de que tais danos não estavam excluídos do contrato de seguro celebrado, o que esta também não logrou cumprir, como já referimos.

Para esta inversão do ónus da prova exige o preceito citado que a seguradora tiver culposamente tornado impossível a prova às apelantes.

Esta impossibilidade de prova e a culpa da apelada seguradora resultam à saciedade dos autos.

Com efeito, estando ela legalmente obrigada a fazer constar o clausulado do contrato de seguro numa apólice, como impunha o art.° 426.° do C. Comercial à data da celebração do contrato e agora impõem os art.°s 32.° e 34.°, do RJCS, a entregar essa apólice ao tomador do seguro e a guardá-la pelo período de 10 (dez) anos depois de extinto o contrato, como decorre do art.° 40.°, do C. Comercial, a apelada não juntou aos autos tal apólice, nem justificou plausivelmente, essa insólita omissão, escudando-se nas evasivas exaradas a fls. 96, 259, 293, verso, mantendo-se em silêncio em face da invetiva dirigida por esta Relação à entidade supervisora da atividade seguradora e da resposta desta entidade, a fls. 30 a 312 dos autos.

Ao não guardar a apólice do contrato de seguro (como afirma) e ao não juntá-la autos (como neles comprovado), a apelada violou o seu dever legal de guardar esse documento e as próprias "legis artis" da atividade seguradora, nomeadamente a Carta-Circular da ASF, n.° 5/2014, de 1 de setembro, relativa ao "Dever Legal de Conservação de Documentos", que lhe indicava claramente que o prazo de 10 anos para conservação do arquivo se inicia na data em que cessa o contrato e que esse prazo se deveria alongar até que se esgotasse a sua utilidade.

Nestas circunstâncias, para além da prosaica asserção de que se a seguradora não junta a apólice que ela própria fez e arquivou como poderia o tomador fazê-lo e o tribunal exigir-lhe que o faça, estão reunidos os pressupostos do instituto da inversão do ónus da prova, consagrado no n.° 2, do art.° 344.°, do C. Civil, a saber, que a seguradora, culposamente, tornou impossível a prova às apeladas. Não tendo a apelada seguradora logrado fazer prova de que o contrato de seguro não desse cobertura aos danos por água, o sinistro e consequentes danos na fração dos autos deverão, oportunamente, aquando da decisão de direito, considerar-se como abrangidos por esse contrato.”

Com o que, desde já se antecipa, não se concorda.

Diz-se no art. 344.o/2 do C. Civil que há inversão do “ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (...)”.

É o que acontece em certos casos de violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade (constante do art. 417.o do CPC), designadamente, quando uma parte na posse dum documento, após solicitação do tribunal, se recusa a apresentá-lo e, em função de tal recusa, impossibilita a outra parte de provar um facto que só por tal documento pode ser provado; ou ainda, quando a parte responde à solicitação do tribunal, mas colabora de modo reticente e em termos inviabilizadores para a prova a produzir.

Seja como for, esta consequência mais grave da violação do dever de cooperação tem que decorrer de uma atitude dolosa ou culposa da parte que assim procedeu e que assim impossibilita a prova à parte contrária.

E, com todo o respeito, isto não se verifica no caso.

Repare-se:

Na PI, as AA. alegam que o seguro contratado cobria o risco de “danos por água” e como prova documental de tal alegação juntam apenas e só o recibo do seguro respeitante ao período de 26-06-2018 a 27-06-2019 e respeitante à apólice ................0.

A R. reconhece a existência do seguro, mas diz que o mesmo não cobre o risco de “danos por água” e diz (em diversos requerimentos, ao longo dos autos) que, tendo o seguro sido iniciado há 40 anos (e tendo neste lapso temporal ocorrido várias integrações da Companhia de Seguros Garantia), já não possui as condições gerais e as cláusulas especiais do início do contrato, mas procede à junção de diversos documentos, designadamente:

- à proposta 398/81 (à Garantia Seguros) do contrato de seguro (fls. 260 verso) que viria a dar origem à apólice 633585, proposta que se encontra subscrita pelo tomador inicial (CC, marido e pai das AA.) e que no canto superior direito tem um quadrado de que resulta que estava a ser assinada uma proposta de “Incêndio Base”, a que, conforme resulta de fls. 261, correspondia a cobertura dos prejuízos de “incêndio, calor (...), explosões de gás (...), ação de raio, remoções (...) consequência de incêndio”; .

- ao documento, junto a fls. 46 e a fls. 261 verso, assinado pela Garantia Seguros, de que consta, entre outras coisas, “ramo: incêndio”, “este contrato de seguro é constituído pelas condições gerais e cláusulas especiais anexas e pelas seguintes condições particulares”, “apólice 633.585”;

- ao documento junto a fls. 46 verso, consistente numa carta, datada de 21/03/2007, dirigida pela AXA ao CC em que se diz que “(...) atualmente a sua apólice apenas cobre os riscos de incêndio, ação direta de quada de raio e explosão. Após aquela data irá ser substituída por outra (.............3) que, para além destes, inclui mais vantagens e coberturas, como poderá comprovar pelo quadro apresentado no verso”;

- aos documentos da apólice .............3 respeitantes aos anos de 2015/16, 2016/17, 2017/18, 2018/19 e 2019/2020 (cfr. fls. 133 a 137 e fls. 269 a 273), documentos de que constam como riscos cobertos os referidos na carta junta a fls. 46 verso e 47, sendo certo, importa registar, que os elementos constantes do documento que diz respeito ao ano de 2018/19 coincidem com os elementos que constam do documento junto pelas AA (o recibo do seguro respeitante ao período de 26-06-2018 a 27-06-2019 e respeitante à apólice ................0).

Pelo que, em face da junção de tais documentos, não se vislumbra qualquer atitude dolosa ou culposa da seguradora, não se vislumbra sequer a sua recusa em colaborar para a descoberta da verdade.

O que está em causa tendo em vista a inversão (ou não) do ónus da prova – importa não confundir os planos – é surpreender a atitude dolosa ou culposa da R/seguradora nos autos (e a medida em que tal atitude dolosa ou culposa tenha contribuído para impossibilitar a prova das AA.) e não exatamente a violação do seu dever de conservação de documentos por 10 anos (nos termos do art. 40.o do C. Comercial).

Como resulta dos elementos supra alinhados, a R/seguradora conservou uma boa parte dos documentos e, para além de resultar plausível a explicação que deu para já não possuir todos (o contrato iniciou-se em 1981), dá-se o caso dos documentos por si juntos não revelarem, bem pelo contrário, qualquer astúcia na escolha dos que juntou (ou seja, não escondeu, habilmente, documentos que lhe poderiam ser desfavoráveis).

As considerações que estão a ser feitas – chama-se especialmente a atenção – têm apenas em vista apreciar o dolo ou a culpa da R/seguradora em relação aos documentos que não juntou (e de que disse que não juntava porque não existiam e/ou não os tinha), servindo tudo o que se alinhou e se está a observar apenas e só para concluir que não houve dolo ou culpa da R/seguradora na não junção das condições gerais e das cláusulas especiais do início do contrato.

Ademais, vale a pena atentar no seguinte:

As AA. – em linha com o só terem junto o recibo do seguro respeitante ao período de 26-06-2018 a 27-06-2019 – dizem mesmo (por várias vezes e de diversas maneiras):

“As AA. não tinham conhecimento direto e imediato do seguro e cláusulas”

“As AA. apenas sabem que existia contrato de seguro e a convicção que marido e pai tinha sobre as coberturas do mesmo”

Compreende-se a confessada ignorância das AA., mas até por uma questão de igualdade entre as partes (cfr. art. 4.o do CPC) não pode toda a ignorância das AA. ser desculpada – não lhes ser censurado não terem conservado um único documento, com exceção do referido, respeitante ao seguro – e, ao invés, nada ser desculpado à R/seguradora.

Tanto mais que toda a documentação junta pela R/seguradora, embora incompleta – cumprindo aqui chamar a atenção que se entende por apólice o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constem as respetivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas, o que significa que o documento de fls. 46 e 261 verso acaba por ser a apólice, embora incompleta – é totalmente congruente entre si e com o referido documento junto pelas AA., ou seja, as AA. não têm/possuem (pelo menos, não juntaram) um único documento que infirme e/ou coloque dúvidas razoáveis à genuinidade dum único dos documentos que foram juntos pela R., antes se limitando a impugnar/pedir que a R. proceda à junção dos documentos de que resulte coberto o risco que o marido e pai tinha a “convicção” que estava seguro.

Insiste-se e chama-se especialmente a atenção, a propósito da inversão do ónus da prova, que não estamos, aqui e agora, a apurar e decidir se o seguro cobria o risco de “danos por água”, mas apenas a apurar e decidir se, em termos processuais, a R./seguradora, com dolo ou culpa, tornou impossível a prova de tal risco.

Vem isto a propósito das AA. dizerem que “nunca se bastaram com a documentação junta, impugnando sempre a mesma”, o que não é relevante/decisivo para o que está sob apreciação e não é sequer exato: efetivamente, não impugnaram os documentos juntos com a contestação (os já referidos documentos juntos a fls. 46 e 472) e não se bastaram com a documentação junta por a sua posição nos autos ter sido sempre a de considerar, como se vê da sua resposta de fls. 316-318, que é sobre a seguradora que impende o ónus da prova dos factos extintivos ou modificativos que invocou no sentido de que o contrato não tinha cláusulas que cobrissem os danos invocados.

Ou seja, as AA. sempre estiveram equivocadas sobre o modo como as coisas se colocam em termos do ónus da prova, razão pela qual agora censuram a R. seguradora por não haver conservado todos os documentos, mas não procuraram explicar/justificar porque é que, dum seguro com 40 anos, só possuem/conservam um documento (ou seja, repte-se, não possuem/conservam um único documento que infirme a autenticidade do conteúdo da documentação junta pela seguradora).

Enfim, em síntese, não vislumbramos que tenha havido dolo ou culpa da R/seguradora na não junção das condições gerais e cláusulas especiais do início do contrato (e tão pouco que às AA. fosse impossível a produção de qualquer prova), pelo que, em consequência, não podia/devia ter sido decretada a inversão do ónus da prova, havendo nesta exata medida que dar razão à R/seguradora.

Onde – com todo o respeito pelo diferente entendimento constante da Decisão Sumária de que vem requerida a presente Conferência – a R/seguradora não tinha razão é em dizer que foi surpreendida “com a fixação do facto de que o contrato do seguro em causa nestes autos tem cobertura dos danos causados por água3, por não ter sido “informada de que era este facto – cobertura no contrato de danos por água – que estava na origem da sua notificação inicial e do posterior convite para juntar documentos aos autos”.

Sem prejuízo das notificações efetuadas – máxime a que está em causa (e decorrente do despacho de 09/03/2022) – não serem exemplares no seu conteúdo, ponto em que não se diverge do entendimento que em tese é desenvolvido na Decisão Sumária, o certo é que o facto a cuja prova os documentos se destinavam está bem patente em toda a discussão havida ao longo de todo o percurso do presente processo.

A posição da R/seguradora está aliás bem vincada em diversos requerimentos seus, como a própria refere nas conclusões 18.a e 19.o da revista:

“A ora recorrente desde o início do processo afirma e reitera que no âmbito deste contrato jamais foi produzido ou existiu ou existe documento de onde conste a cobertura de danos por água, que o contrato jamais contemplou.”

“Tal documento contratual nunca foi produzido e por isso não foi arquivado, guardado, nem conservado, e não pode ser apresentado o que não existe nem nunca existiu.”

Pelo que, em face disto, não se descortina a utilidade – a R/seguradora já havia dito por mais de uma vez que havia procedido à junção de tudo o que detinha/possuía, já havia dito por mais de uma vez que nada tinha a acrescentar ao que já havia dito e que está sintetizado nas transcritas conclusões 18.o e 19.o – em anular o Acórdão recorrido para que fosse dado o devido e integral cumprimento ao princípio do contraditório e, sendo assim, estaremos, quando muito, perante uma omissão sem influência no desfecho da questão (respeitante à inversão do ónus da prova) e no exame e decisão da causa, ou seja, perante uma omissão que acabou por não produzir sequer uma verdadeira nulidade (cfr. art. 195.o/1 do CPC).

A questão – a verdadeira e útil questão suscitada pela recorrente/seguradora – era a de saber se estavam reunidos os pressupostos para decretar, como fez o Acórdão recorrido, a inversão do ónus da prova, razão pela qual, sendo esta a verdadeira questão da revista, começámos por analisá-la/apreciá-la, degradando a questão formal do cumprimento (ou não) do contraditório para este segundo momento, na medida em que, exposta e apreciada a verdadeira questão, inevitável é concluir pela improcedência (e/ou inutilidade) da questão formal sobre que se debruçou a Decisão Sumária.

Aqui chegados – afastada a inversão do ónus da prova que, como referimos, é a questão essencial da presente revista – forçoso é concluir, como fez a 1.a Instância, pela absolvição da R. seguradora do pedido indemnizatório contra ela formulada pelas AA., por não constar/resultar dos documentos respeitantes ao seguro que o risco de “danos por água” estivesse coberto.

Sinteticamente:

Um dos elementos essenciais do contrato de seguro, e que tem a ver com o seu objeto, é o risco4 – evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro – o qual define/delimita o objeto dum concreto contrato de seguro.

Como decorre do que se expôs sobre a questão da inversão do ónus da prova, esta questão foi colocada justamente por não estar documentalmente provado que o seguro cobrisse o risco de “danos por água” e, ainda, por a prova (sobre a cobertura de tal risco fazer parte das coberturas garantidas pelo contrato) ser um facto constitutivo do direito indemnizatório alegado/peticionado (e, por isso, do ónus da prova das AA. – cfr. art. 342.o/1 do C. Civil).

Em conclusão, operando-se pelo contrato de seguro uma transferência do risco (da verificação de um dano) para a seguradora, a não inclusão no contrato de seguro celebrado do risco “danos por água”, que deu origem aos danos sofridos pelas AA., significa que estes – os danos assim sofridos pelas AA. – não conferem (por tal risco não estar transferido e não estarem assim provados todos os requisitos da responsabilidade contratual da R. seguradora) direito à indemnização peticionada pelas AA..

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IV - Decisão

Pelo exposto, revoga-se a Decisão Sumária proferida neste Supremo e, passando a conhecer-se do mérito da revista, concede-se a mesma e revoga-se o Acórdão recorrido na parte que condena a R. seguradora, Acórdão que se substitui, nessa parte, pela absolvição da R. seguradora do pedido contra ela formulado.

Custas, nas Instâncias e neste STJ, pelas AA..

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Lisboa, 30/03/2023

António Barateiro Martins (Relator)

Luís Espírito Santo

Ricardo Costa, vencido conforme declaração junta.




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Processo n.º 20752/19.3T8SNT.L1.S1
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, … Secção



DECLARAÇÃO DE VOTO


Votei Vencido, após mudança de Relator na apreciação da Reclamação para a Conferência da Decisão Sumária anteriormente proferida, pelas razões que exponho.

1. Vistas as Conclusões que delimitam o objecto da revista (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, CPC), apreende-se como primeira questão a decidir a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia em face de “decisão-surpresa” relativa à inversão do ónus da prova incidente sobre decisão de reapreciação sobre o facto provado K) e consequente decisão de direito sobre a responsabilidade da Ré seguradora.
Nesta frente de impugnação, a Recorrente confronta o acórdão recorrido com a arguição de nulidade tendo por base o art. 615º, 1, d), do CPC, por violação do art. 3º, 3, do mesmo CPC, aquando da prolação do despacho proferido em 9/3/2022 para exercício do contraditório, tendo em conta que, na sua perspectiva, o acórdão do TRL consubstancia, na parcela pertinente, uma verdadeira “decisão-surpresa” quanto aos termos em que, por um lado, reapreciou a decisão de 1.ª instância em considerar provado o facto K) – dando como não provado: “terceira questão” da fundamentação – e, por outro lado, condenou a Ré seguradora e aqui Recorrente nos termos da cobertura do seguro pelos danos sofridos na fracção – “oitava questão” da fundamentação –, fazendo aplicar ao caso o art. 344º, 2, do CCiv. – Conclusões 1.ª a 22.ª, 33.ª (2.ª parte).
Em especial, alega:
“Sem indicar nenhum facto concreto – o juiz pode ordenar diligências quanto a factos (art. 411º) – este douto despacho de 9-3-2022 na Relação notifica as partes para se pronunciarem, querendo, sobre a aplicação “ao contrato dos autos” do nº 2 do art. 344º do Código Civil, sem que antes, quando das notificações, facto algum tinha sido indicado e cominação alguma tenha sido advertida.”;
“Apenas com a notificação do acórdão a recorrente teve conhecimento de que o documento que foi convidada a apresentar se destinava à prova do facto específico da cobertura de danos por água. Nada antes nesse sentido lhe tendo sido antes comunicado. A inversão refere-se a facto ou factos e não ao “contrato dos autos” globalmente.”;
“Notificadaagora do douto acórdão, foi aora recorrentesurpreendida –decisão-surpresa porque não indicada, revelada, nem mencionada antes – com a fixação do facto de que o contrato do seguro em causa nestes autos tem cobertura dos danos causados por água.”
           
Vejamos como resolveria (tal como no projecto para decisão da referida Reclamação, que não mereceu a aprovação da maioria deste colectivo).

2. O sindicado princípio do contraditório (ou da audiência contraditória), enquanto princípio estruturante do processo civil (na exacta medida em que se afigura como contraponto do princípio do pedido), resulta expressamente dos comandos legais previstos no art. 3º, 1 («O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.») e 3 («O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»). Daqui resulta que, quanto a questões de direito, a questões de facto e a matéria probatória, “antes de ser proferida a sentença ou qualquer outra decisão judicial interlocutória ou incidental, seja facultada às partes a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a mesma se baseie”, de forma a que se previnam as decisões-surpresa, “intrinsecamente atentatórias do dever de lealdade que deve presidir à atividade dos agentes, intervenientes ou «operadores judiciários» (princípio da cooperação e dever de boa-fé processual plasmados nos arts. 7º e 8º, respetivamente)”[1].
Estamos perante uma inalienável e impostergável “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[2], sendo, pois e antes de tudo, uma refracção clara do direito constitucional de tutela jurisdicional efectiva e do direito a um processo equitativo, tal como previsto no art. 20º da CRP[3].
O direito ao contraditório relaciona-se – em si mesmo, dele decorre – com o princípio da igualdade das partes[4], tal como vazado inquestionavelmente no art. 4º do CPC: «O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.» Enquanto corolário adjectivo da prescrição matricial constante do art. 13º, 1, da CRP, o preceito do CPC vincula a jurisdição em várias dimensões, acentuando-se como primordial a igualdade na posição de sujeito processual, o que implica a proibição da discriminação das partes no processo e a respectiva igualdade de armas no decurso do litígio[5]. Sendo destinatário legal do art. 4º o tribunal decisor da causa, cabe-lhe, positivamente, promover ou construir a igualdade substancial das partes. E este dever terá desde logo aplicação sempre que a lei imponha uma intervenção assistencial do tribunal em sede de audição prévia[6] – como a que, relevante para o caso dos autos e alegada pela Recorrente, contende com a diferença objectiva entre o decidido pelas instâncias quanto ao facto provado K) (em 1.º grau) e a sua repercussão na decisão de responsabilização da Ré seguradora.
Uma vez aferida a imperatividade do exercício do contraditório, desde logo para assegurar que a igualdade das partes seja respeitada na tramitação destinada ao julgamento e prolação da decisão final, e verificada a sua omissão, total ou parcial (= cumprimento parcial ou defeituoso), estamos perante uma nulidade processual, uma vez que a sua inobservância é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, de acordo com a cláusula geral constante do art. 195º, 1, do CPC para as nulidades inominadas[7].
Porém, estamos confrontados com algo mais crucial na sua consequência, uma vez que a formalidade de cumprimento obrigatório resultante do art. 3º, 3, e 4º do CPC, em especial a que pretende evitar “decisões-surpresa” no julgamento das questões de direito e de facto, se projecta no conteúdo da própria decisão proferida, tendo em conta que a decisão que surpreende a parte sem pronúncia se debruça sobre uma matéria que o tribunal não podia conhecer e decidir antes de ouvir essa mesma parte. Por isso, essa omissão – ab initio, uma nulidade processual – consubstancia in fine, por nela se consumir, uma nulidade de decisão ou julgamento, por aplicação do art. 615º, 1, d), do CPC, enquanto excesso de pronúncia ilícito ou pronúncia indevida sobre questão ou questões sobre as quais, sem a audição prévia das partes, não se poderia pronunciar («O juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»)[8].
Na verdade, só esta qualificação permite que a falta de audiência prévia das partes possa ser conhecida e apreciada com competência funcional própria pelo tribunal de recurso, através do recurso e com o objecto do recurso, como vício autónomo e próprio à luz do catálogo do art. 615º, 1, do CPC, ao invés de ser reclamada (para o caso dos autos) no tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida, como deveria ser se apenas fosse vista como nulidade processual (arts. 196º, 200º, 3, CPC).

3. No caso presente:

(i) foi proferido despacho, para exercício do contraditório (referindo-se em especial os arts. 5º, 3, e 3º, 2, do CPC, quanto à aplicação dos arts. 342º, 1 e 2, e 344º, 2, do CCiv. “ao contrato dos autos”, “tendo em atenção as diligências ordenadas (…) e os elementos de prova que na sequência delas foram juntos aos autos”;

(ii) na decisão da apelação, foi assim considerado:

“Quanto à terceira questão, a saber, se deve ser alterada a decisão em matéria de facto relativamente ao facto constante sob a alínea K dos factos provados, declarando-se provado que os danos por água estão incluídos nas coberturas base.
Digamos, desde já, em jeito de intróito, que esta é a questão que determinou que, tendo a ação dado entrada nesta Relação em 1/6/2021 só agora esteja a ser decidida, pela realização por parte deste Tribunal das diligências acima identificadas, que o tribunal a quo esboçou na audiência de 30/6/2020, a fls. 85 verso dos autos, mas depois abandonou. O facto sob a al. K tem o seguinte conteúdo: "K) As AA têm e tinham (no momento da propositura da ação) perfeita noção de que, ao contrário do que alegaram na petição inicial, o contrato de seguro que CC celebrara com a 1.a R não cobria os danos peticionados na presente ação".
O tribunal a quo declarou provado este facto com a seguinte motivação:
"Relativamente aos factos provados G), J) e K), o Tribunal louvou-se no teor da apólice de fls. 97-131v e das cartas de fls. 46v-48 e 133-137v, de onde resulta que o seguro em causa não cobre os danos relativos a infiltrações e, sendo a 1." A proprietária da fração e a 2.a A filha da 1.a R e de CC (o tomador do seguro) e que claramente tomou as rédeas da resolução desta questão (e, por isso, são factos de que ambas têm conhecimento pessoal, que obviamente abrange a consciência de que a alegação quanto à cobertura do seguro é rotundamente falsa), bem sabiam que o seguro não cobria os danos alegados na PI e, como tal, a indemnização peticionada não é devida, sendo completamente desprovida de credibilidade a sua "defesa" face à litigância de má fé com o estarem absolutamente convictas de que o seguro cobria.
Ademais, sendo um seguro de "danos próprios", certamente que as AA tinham na sua posse as cláusulas do mesmo, que nunca juntaram; na verdade, além de não juntarem a apólice e as cláusulas na PI (bem se percebendo o porquê de não juntarem) nem sequer após a R ter sido notificada e juntado, a fls. 97-131v, as cláusulas do seguro em causa no processo, limitando-se a tentar criar dúvidas acerca da veracidade das mesmas (até porque se as mesmas não fossem verdadeiras, certamente que as AA teriam juntado as verdadeiras e não o fizeram, limitando-se a juntar uns prints da Internet da página da R e, a fls. 149-152v, o clausulado de um seguro da R, aliás, de difícil legibilidade, e que nada demonstra que fossem as verdadeiras cláusulas do contrato em causa nos autos, sendo que as mesmas também não estão "timbradas" como acusam a R de fazer). Na verdade, e bem se percebe o porquê de tal conduta processual (que, obviamente irá ser sancionada), as AA jamais juntaram as cláusulas do contrato (que obviamente têm na sua posse, pois nem sequer alegaram que ficaram destruídas em virtude da infiltração) que reputam como sendo as verdadeiras, limitando-se a tentar gerar a dúvida quanto à veracidade das apólices e clausulado juntos pela R), esquecendo-se de que são as AA que têm de fazer prova da cobertura do seguro e não a R que tem de provar a sua não cobertura. Mas a "história" mal contada das AA cai completamente por terra com o teor de fls. 46v-48 e 133-137v, em que se vê que CC tinha um seguro "antigo" e que, a dada altura, a R lhe propôs alargar o âmbito de cobertura do mesmo sem qualquer custo adicional (o que torna completamente improcedente a sempre fácil alegação das cláusulas contratuais gerais e da sua ambiguidade e falta de explicação, o que, de todo o modo, já não colhe em Tribunal...), sendo certo que entre essas novas inclusões não consta os danos decorrentes de infiltrações, o que CC aceitou, pois sempre pagou anualmente o prémio de seguro a partir daí. Daí que o argumento de que a R terá vendido "gato por lebre" a CC através da ambiguidade e não explicação das cláusulas caia completamente por terra".
Analisada esta mesma motivação, constatamos que, não obstante a sua profusão, o primeiro segmento do facto em causa, ao referir que "As AA têm e tinham (no momento da propositura da ação) perfeita noção de que, ao contrário do que alegaram na petição inicial, o contrato de seguro que CC celebrara com a 1.a R não cobria..." se não encontra, objectivamente, provado.
Com efeito, constituindo a apólice do contrato um documento construído pela apelada seguradora, não o tendo esta junto aos autos na sua completude, apesar das insistentes diligências realizadas a fls. 86, a fls. 247-248, a fls. 281 e a fls. 300-303 verso, também não tendo sido articulado e provado que um seu duplicado foi pela apelada seguradora entregue ao de cujus/e logo às apelantes, não se vislumbra qualquer fundamento para o afirmado conhecimento das apelantes, nessa falta de fundamento incluída uma hipotética presunção judicial, ex vi, arts. 349.º e 351.º, do C. Civil, uma vez que também se não vislumbram os factos nos quais essa mesma presunção pudesse ser ancorada. Este declarado conhecimento das apelantes constitui, pois, erro de julgamento a corrigir por esta Relação, nos termos do disposto no n.º 1, do art. 662.º, do C. P. Civil.
Como é pacífico nos autos, o segundo segmento do facto sob esta al. K, relativo aos “... danos peticionados na presente ação” é que constitui o cerne da causa de pedir relativamente à R/apelada seguradora, pois o que nela está em causa é saber se o contrato de seguro referido no facto G da matéria de facto provada da sentença incluía ou excluía, grosso modo, os danos causados por água.
O facto sob a al. G) refere que "CC, à data do sinistro, celebrara com a 1.a R o contrato de seguro titulado pela apólice de fls. 97-131v, cujo teor se dá como reproduzido, na sequência da comunicação de fls. 46v-47, cujo teor se dá como reproduzido", e se por um lado sabemos que o escrito para que remete não refere os danos causados por água, por outro lado sabemos que não foi junto pela seguradora apelada a apólice original completa, pelo que o contrato em causa, poderia abranger os sinistros causados por água, como afirmado pelo de cujus, seu tomador.
Sobre este facto essencial para decisão da causa nada mais consta no âmbito dos factos provados e dos factos não provados do que o segundo segmento do facto sob a al. K.
Não obstante, como decorre da motivação acima transcrita e da parte decisória da sentença ao referir que “... verifica-se que, quanto à 1.a R, o contrato de seguro em causa nos autos não abrange os danos ocorridos na fração das AA, pelo que a ação terá de Improceder quanto à 1.ª R”, o tribunal a quo considerou não estar provado que o contrato de seguro em parte identificado sob o facto G, abrangesse os danos da fração causados por água.
Para além do já apreciado conhecimento/desconhecimento das apelantes importa, pois, agora, aquilatar do facto objecto desse conhecimento/desconhecimento, a saber, se os danos causados pelo sinistro objecto desta ação, referido na ai. A dos factos provados, se compreendem no objecto do contrato de seguro.
O contrato de seguro é um contrato formal, como à data da celebração do contrato dos autos decorria do disposto no art. 426.º do C. Comercial e agora decorre da conjugação do disposto nos arts. 32.º e 34.º, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, segundo os quais a validade do contrato não depende de forma especial, mas o mesmo deve ser formalizado em apólice pelo segurador, por si datada e assinada, e que deve ser entregue ao tomador.
Como já referido a apólice do contrato de seguro em causa nos autos não foi junta na sua completude pelo que, alegando as AA/apelantes que o contrato de seguro relativo à fração abrangia os danos decorrentes do sinistro do facto sob a al. A (arts. 12.º a 14.º da petição) e alegando a apelada seguradora que tais danos não estavam abrangidos pelo contrato (arts. 14.º a 17.º da contestação da apelada seguradora), nem uma (abrangidos) nem outra coisa (excluídos) estão provadas nos autos.
Importa, pois, saber, primeiramente, se o ónus da prova, da abrangência, incidia sobre as apelantes ou se o ónus da prova, da exclusão, impendia sobre a apelada seguradora.
Afigurando-se-nos, prima facie, que a inclusão dos danos causados por águas no âmbito do contrato de seguro é um facto constitutivo do direito ao ressarcimento invocado pelas apelantes, devendo a sua exclusão reportar-se a quaisquer circunstâncias que, apesar de tais danos estarem cobertos, levasse à sua concreta exclusão, como parece decorrer da conjugação do disposto nas als. b) e c), do art. 18.º, do RJCS, a eventual dúvida sobre esta matéria é solucionada pelo disposto no n.º 3, do art. 342.º, do C. Civil, segundo o qual “Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”.
O ónus da prova de que o contrato de seguro dos autos abrangia o sinistro identificado na al. A dos factos provados da sentença impendia, pois, sobre as apelantes e não foi cumprido.
Não obstante, tal facto não determina, só por si, que deva considerar-se provado o facto contrário, que constitui o segundo segmento desta al. K, a saber, que o contrato de seguro “... não cobria os danos peticionados na presente ação”, pelo que também este segundo segmento do facto em causa se configura como erro de julgamento, a ser corrigido por esta Relação, nos termos do disposto no n.º 1, do art. 662.º, do C. P. Civil, alterando-se em consequência a decisão recorrida e declarando-se não provado o facto a que se reporta a al. K) dos factos provados da sentença.
Procede, pois, nesta exata medida, esta terceira questão da apelação.”

“Ainda no âmbito desta terceira questão da apelação mais pretendem as apelantes que esta Relação declare provado que os danos por água estão incluídos nas coberturas base do contrato de seguro.
Ora, o facto de se declarar não provado o facto sob a al. K não determina, ipso facto, que possa ser declarado provado o facto contrário, como pretendem as apelantes.
Todavia, nada obsta a que, no seguimento, aliás, do despacho do Relator de 9/3/2022, a fls. 312, quando se reporta à possibilidade de aplicação do disposto no n.º 2, do art. 344.º, do C. Civil, a este facto de inclusão no contrato do risco relativo aos danos causados por águas, esta matéria seja, desde já conhecida, sem prejuízo da abordagem posterior desta mesma matéria. Dispondo o n.º 2, do art. 344.°, do C. Civil, sob a epígrafe “Inversão do ónus da prova”, que “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado...”, a resposta à pretensão das apelantes, de se declarar provado que os danos por água estão incluídos nas coberturas base do contrato de seguro, traduz-se, afinal, em lançar sobre a apelada seguradora o ónus da prova de que tais danos não estavam excluídos do contrato de seguro celebrado, o que esta também não logrou cumprir, como já referimos.
Para esta inversão do ónus da prova exige o preceito citado que a seguradora tiver culposamente tornado impossível a prova às apelantes.
Esta impossibilidade de prova e a culpa da apelada seguradora resultam à saciedade dos autos. Com efeito, estando ela legalmente obrigada a fazer constar o clausulado do contrato de seguro numa apólice, como impunha o art. 426.º do C. Comercial à data da celebração do contrato e agora impõem os arts. 32.º e 34.º, do RJCS, a entregar essa apólice ao tomador do seguro e a guardá-la pelo período de 10 (dez) anos depois de extinto o contrato, como decorre do art. 40.º, do C. Comercial, a apelada não juntou aos autos tal apólice, nem justificou plausivelmente, essa insólita omissão, escudando-se nas evasivas exaradas a fls. 96, 259, 293, verso, mantendo-se em silêncio em face da invectiva dirigida por esta Relação à entidade supervisora da atividade seguradora e da resposta desta entidade, a fls. 30 a 312 dos autos.
Ao não guardar a apólice do contrato de seguro (como afirma) e ao não juntá-la autos (como neles comprovado), a apelada violou o seu dever legal de guardar esse documento e as próprias “legis artis” da atividade seguradora, nomeadamente a Carta-Circular da ASF, n.º 5/2014, de 1 de setembro, relativa ao “Dever Legal de Conservação de Documentos”, que lhe indicava claramente que o prazo de 10 anos para conservação do arquivo se inicia na data em que cessa o contrato e que esse prazo se deveria alongar até que se esgotasse a sua utilidade.
Nestas circunstâncias, para além da prosaica asserção de que se a seguradora não junta a apólice que ela própria fez e arquivou como poderia o tomador fazê-lo e o tribunal exigir-lhe que o faça, estão reunidos os pressupostos do instituto da inversão do ónus da prova, consagrado no n.º 2, do art.° 344.°, do C. Civil, a saber, que a seguradora, culposamente, tornou impossível a prova às apeladas.
Não tendo a apelada seguradora logrado fazer prova de que o contrato de seguro não desse cobertura aos danos por água, o sinistro e consequentes danos na fração dos autos deverão, oportunamente, aquando da decisão de direito, considerar-se como abrangidos por esse contrato.
Sobre esta terceira questão, relativa à impugnação da decisão em matéria de facto, alterando-se a decisão recorrida, declara-se não provado o facto a que se reporta a al. K) dos factos provados da sentença, o qual passará a integrar os factos não provados.”;

“Quanto à oitava questão, a saber, se a ação deve proceder contra a apelada Seguradora.
Na decisão desta oitava questão começamos por fazer apelo ao acima expendido na parte final da terceira questão da apelação, por se tratar de matéria conexa com a impugnação da decisão em matéria de facto, no que respeita à inversão do ónus da prova relativamente aos danos da fração por águas.
Estando reunidos os pressupostos do instituto da inversão do ónus da prova, consagrados no n.º 2, do art. 344.º, do C. Civil, a saber, que a seguradora, culposamente, tornou impossível a prova às apeladas, e não tendo a apelada seguradora feito prova de que o contrato de seguro não dava cobertura aos danos por água, o sinistro e consequentes danos na fração dos autos deverão considerar-se como compreendidos nos riscos abrangidos pelo contrato.
A responsabilidade da apelada seguradora é uma responsabilidade contratual, decorrendo assim do cumprimento do contrato de seguro, segundo o disposto no art. 406.º, n.º 1, do C. Civil, e aplicando-se ao seu incumprimento o disposto no art. 798.º e sgts. do mesmo Código, tendo como limite o valor contratado à data do sinistro, em 1/5/2019.
Estando, pois, demonstrada a ocorrência de sinistro coberto pelo contrato de seguro e a ausência de reparação dos danos respectivos, não está demonstrado o valor desses danos, em si mesmos, desconhecendo-se também se ocorreu o agravamento hipotético a que se reporta o facto sob a al. M dos factos provados, pela inação da responsável seguradora ou até pela inação do tomador do seguro, no caso de se tratar de situação recondutível ao disposto no n.º 1, do art. 126.°, do RJCS, segundo o qual "1 – Em caso de sinistro, o tomador do seguro ou o segurado deve empregar os meios ao seu alcance para prevenir ou limitar os danos".
Assim, nos temos do disposto no n.º 2, do art. 609.º, do C. P. Civil, não dispondo este Tribunal da Relação de elementos para quantificar a indemnização devida no âmbito do contrato, não poderá deixar de condenar a R/apelada seguradora em quantia a liquidar, tendo como limite o pedido das AA/apelantes relativos aos danos sofridos na fracção, identificados na al. a) do seu pedido na petição nos termos do disposto no n.º 1, do mesmo art. 609.º, do C. P. Civil.”

Confrontando esta exegese com a arguição primária da Recorrente, quid juris?

4. É comummente aceite que a inibição da prolação de decisões-surpresa, sendo um princípio de actuação crítico para um processo justo, equitativo e igualitário, repousa na consideração atenta a um complexo de fundamentos usados pelo julgador que não foram devida e integralmente enquadrados e ponderados pelas partes, de tal sorte que se verifica uma desvinculação, total ou parcial, entre o alegado e contraditado na disposição material ou processual – como tal, perspectivado objectivamente pelas partes em confronto –, que se repercute, de forma relevante e materialmente inovatória, no conteúdo da decisão[9].
Por conseguinte, essa inibição significa que o julgador não deve exonerar-se de facultar às partes a possibilidade de aduzirem as suas razões, nomeadamente quando, no domínio definido em regra pelo objecto do processo (em função do pedido e dos limites do dispositivo), se exercerá o seu poder de reapreciação factual e/ou a sua liberdade de configuração e qualificação jurídica perante a matéria factual apurada e assente e desse poder e liberdade (legítima e habilitada pela lei: arts. 5º, 3, 607º, 3, CPC) resultam – e se antevêem – configurações jurídico-processuais e/ou respostas na subsunção dos factos ao direito que se desviam de forma significativa e substancial do que foi estruturado pelas partes e/ou configurado na causa de pedir e, por essa via, susceptível de reacção pela parte contrária (arts. 3º, 1, 5º, 1 e 2, 552º, 1, d) e e), CPC).
É para estas situações (e já contando, em princípio, com as questões de conhecimento oficioso) – não todas, portanto – que o art. 3º, 3, em conjugação com o art. 4º, deve mitigar a actuação irrestrita e incondicionada do art. 5º, 3, do CPC e das restantes normas que atribuem poderes oficiosos ao julgador para a resolução do litígio. Claro está que, em especial, esse “conhecimento oficioso da norma jurídica”[10] não se desvirtua nem se preclude, antes fica acrescido de uma audição preliminar, complementar e específica das partes em face do potencial – mas em certo momento pré-decisão já claro para o julgador – relevo de um instituto, de uma disciplina legal, de uma norma circunscrita, e dos correspondentes requisitos de aplicação, para a solução do caso – quanto mais não seja por razões de cautela e de observância dos deveres de gestão processual (maxime, o previsto no art. 6º, 1, CPC) e de cooperação processual em ordem à justa composição do litígio (art. 7º, 1 e 2, CPC).
Situações essas que, portanto, se acentuam quando se prefigura não ser de linear instrumentalidade ou de óbvia e natural conexão o alegado (in casu, em sede recursiva após o julgado em 1.º grau) e o que se prevê decidir tendo em vista a factualidade carreada para os autos e dada como assente.
Situações essas que, portanto, se ajustam ser mais exigentes quando as decisões se colocam em sede de recurso nas instâncias superiores, uma vez que o tribunal “ad quem” está vinculado às questões que fazem o objecto recursivo mas, não estando preso aos argumentos, motivos ou razões invocados pelas partes (e contra-argumentação) utilizado(s) para dar resposta a essas mesmas questões, tem que dar espaço para, se se justificar, conhecer a argumentação das partes sobre um caminho total ou parcialmente inovador ou essencialmente diferenciado que se vai seguir como decisivo para decidir essas questões (sem olvidar essa particular exigência, desde logo, para a admissibilidade, geral e especial, do recurso e subsequente conhecimento do respectivo objecto, de que o art. 655º do CPC é uma refracção flagrante e de particular importância em sede de contraditório).
Na verdade, como se sublinhou no Ac. do STJ de 17/3/2016[11], na consideração da prévia audição das partes para evitar decisões-surpresa será importante atender “sobretudo quando se trata de recurso (onde o legislador foi rigoroso quanto ao ónus de alegar e formular conclusões, tendo este ónus a função de indicar de forma clara, sintética e proficiente as razões da discordância do recorrente)”, situação essa em que uma argumentação prevista daquele tipo e natureza obvie a que “o Tribunal[,] não estando em causa questões de conhecimento oficioso, pudesse decidir o recurso sem ter previamente dado às partes oportunidade adversial de se pronunciarem e darem a conhecer os seus pontos de vista sobre a perspectiva dos argumentos que o tribunal ad quem lançaria mão para sentenciar”.

Posto isto.

5. Não estamos no caso perante uma omissão pura e simples da actuação devida pelo julgador em proporcionar o exercício do contraditório – pois essa omissão enquanto tal não existe e, ao invés, o contraditório foi considerado com o despacho proferido em 9/3/2022.
Estamos, naturalmente com o amplo respeito devido à posição contrária, perante uma incompletude censurável dos termos com que o despacho do juiz relator se configura para que as partes se pronunciem sobre a aplicação ao caso dos arts. 342º, 1 e 2, e 344º, 2, do CCiv., assim como do art. 417º, 1 e 2, do CPC, em sede de ónus da prova relativos aos factos pertinentes aos pedidos feitos.
Sendo certo que a indicação de tais normas apontavam no despacho para o caminho futuro, creio que o caminho que se intui teria que ser completo, integral e elucidativo (mesmo que sintético, naturalmente) sobre os fundamentos que estão a ser preparados num momento anterior à elaboração do projecto de acórdão.
Na verdade, uma vez proferida a decisão em 2.ª instância, que reverte o decidido em 1.ª instância quanto à absolvição da Ré, aqui Recorrente, dos pedidos, desde logo em sede primária de reconfiguração da matéria de facto através da consideração como não provado do facto provado K), decisivo e nuclear para a decisão da questão de direito da responsabilidade da Ré seguradora pelos danos discutidos e apreciados na acção, verifica-se que era crucialmente essencial, sob pena de ainda ser violada a proibição de decisões-surpresa, para uma instruída resposta influenciadora das partes, que se indicasse:

(i) a visada repercussão da aplicação desses regimes de direito probatório material na reapreciação do facto provado K), tal como pedido na apelação das Autoras Apelantes, no que respeita à inclusão ou não na apólice do seguro da cobertura de danos causados por água (de todo é insuficiente a mera alusão ao “contrato dos autos”), uma vez feitas as diligências consubstanciadas nos despachos anteriores e nas respostas da Ré seguradora;
(ii) a visada conjugação, no que toca à actuação culposa da parte Ré, do regime do art. 344º, 2, do CCiv. com o art. 417º, 1, e 2, 2ª parte, do CPC[12].

A observância do princípio do contraditório, em razão de se prevenirem decisões baseadas em fundamentos que não tenham sido previamente considerados pelas partes, nomeadamente em função do decidido em 1.ª instância, não deve ser apenas a observância de um dever processual de teor formal ou mecânico, antes uma verdadeira actuação material e instrumentalmente orientada a uma efectiva audição e pronúncia das partes sobre a configuração gizada pelo julgador e suas consequências no plano do direito.
Assim deve ser uma vez que, inegavelmente, como acentua a doutrina, “o escopo principal do princípio do contraditório deixou (…) de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo”[13] – como vimos, uma verdadeira garantia processual.
O que – in totum e visto o alcance para a sorte da acção no âmbito delineado do seu objecto – obrigaria a que as partes fossem convidadas, uma vez anunciado o propósito de fazer aplicar o art. 344º, 2, ao facto provado K) e a decorrente subsunção dos factos a uma situação de responsabilidade da seguradora pelos danos peticionados, a pronunciarem-se de forma expressa e concreta sobre os requisitos de interpretação e aplicação dos arts. 342º, 1 e 2, 344º, 2, do CCiv. e 417º, 1, e 2, 2ª parte, do CPC, em relação com o regime legal pertinente do contrato de seguro, para a reapreciação da decisão sobre o facto provado K) e da decisão de responsabilização da Ré seguradora.
Só assim – entendo – se garantiria – sempre com utilidade cabal para as partes e proveito para o juízo sequencial do julgador – o contraditório pleno e efectivo e as respostas das partes teriam a virtualidade de se repercutir, de forma crítica e ainda em tempo (em momento processual anterior à decisão, na tramitação e no escopo) na fundamentação e motivações particulares da decisão judicial do recurso[14], nomeadamente depois das respostas e da colaboração probatória atravessadas nos autos pela Ré seguradora Apelada após os despachos anteriores de 16/6 e 17/11/2021 (referidos no acórdão e a seguir recuperados).
Seria – julgo – a oportunidade decisiva, havendo despacho completo e elucidativo sobre o intuito claro do julgador, para ambas as partes acentuarem a sua posição, nomeadamente para a Ré seguradora sublinhar, se assim o entendesse, a sua actuação para a descoberta da verdade, contraditando esse intuito com plenitude e eficácia processual; assim, portanto, dando a ambas as partes o uso do contraditório para influenciar decisivamente o projecto de decisão do julgador em 2.ª instância.
Em síntese: é também para este tipo de situações que o contraditório, materialmente compreendido e actuado fora de uma diminuição apenas formal, serve (e mais serve) para a influenciação significativa do julgador.

6. Por fim.
É de sublinhar que o Senhor Juiz Desembargador se revelou exemplarmente meticuloso e diligente no exercício dos poderes atribuídos pelo art. 652º, 1, d), 411º e 436º do CPC, enquanto instrumento processual para a aplicação do art. 662º, 1, do CPC, realizando oficiosamente diligências em sede relevante para a tomada de posição sobre a inversão do ónus da prova respeitante à cobertura pertinente do seguro.
Assumidos os autos em apelação, “tendo em atenção o objecto da apelação e a natureza formal do contrato de seguro a que se reporta esse mesmo objecto”, foram proferidos despachos (16/6 e 17/11/2021) a convidar a Ré Apelada seguradora a juntar aos autos os documentos relativos à apólice do seguro n.º …5 em causa nos autos, nomeadamente “as “cláusulas especiais aplicáveis” a que se reporta a alteração de 02/06/2015”respondidas pela Ré em 26/7/2021 e em 6/1/2022.
Depois, foi proferido despacho (10/2/2022) a oficiar a «ASF – Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões», solicitando a sua intervenção no sentido de ser junta aos autos a  “... apólice com as condições gerais e particulares e/ou especiais à data da celebração do contrato de seguro e posteriores até 1 de maio de 2019, nomeadamente as indicadas a fls. 262 ...”, tendo essa entidade respondido em 23/2/2022.
Neste contexto que antecedeu o despacho de 9/3/2022, estou convicto que não poderia deixar de, sob pena de ainda se registar incumprimento do art. 3º, 3 (e 2, como mencionou) do CPC, reflectir a diligência exigível na relação com as partes (de acordo com os ditames dos arts. 6º, 1, e 7º, 1 e 2, do CPC) no conteúdo do despacho proferido em 9/3/2022, uma vez prefigurado o seu projecto de decisão factual e jurídica no “thema decidendum” decisivo.

7. Assim, de acordo com a Decisão Sumária antes proferida, procederiam as Conclusões pertinentes da Recorrente e seria procedente a revista nesse objecto recursivo: o acórdão recorrido seria nulo, de acordo com o art. 615º, 1, d), 2.ª parte (“excesso de pronúncia”), sindicável por força do art. 674º, 1, c), do CPC; deveriam os autos baixar ao tribunal recorrido para se cumprir o contraditório omitido na sua completude e integralidade, no que corresponde à integração em despacho do conteúdo indicado no ponto 5., (i) e (ii), sendo depois conhecida e julgada a apelação, se possível pelos mesmos Juízes Desembargadores, com substituição do acórdão assim anulado, naturalmente depois susceptível de nova impugnação recursiva.

Neste momento processual, portanto, seria de indeferir a Reclamação cuja decisão se integra no acórdão agora prolatado; sem prejuízo da bondade da sua fundamentação, atendendo aos elementos factuais constantes e ponderados, quanto ao mérito da segunda questão recursiva, atinente à interpretação e aplicação do regime da inversão do ónus da prova (art. 344º, 2, do CCiv.) e sua consequência decisória.  
 


STJ/Lisboa, 30 de Março de 2023


O Relator Vencido

Ricardo Costa


____________________________________________

1. Nela se incluindo as alterações introduzidas pelo Acórdão da Relação, designadamente, as alterações introduzidas às alíneas K) e L) constantes da sentença da 1.a Instância.

2. ↩︎

3. Dos quais se pode/deve dizer que ficou provado que o seu marido e pai recebeu a carta junta a fls. 46 verso e 47.

4. ↩︎

5. Não foi exatamente isto que foi decidido, nem a inversão do ónus da prova significa isto, mas sim, como aliás resulta da transcrição que se fez, “em lançar sobre a apelada seguradora o ónus da prova de que tais danos não estavam excluídos do contrato de seguro celebrado”: conduz no caso ao mesmo resultado, mas não é a mesma coisa.

6. ↩︎

7. Os outros elementos serão os intervenientes (seguradora e tomador do seguro), as obrigações dos intervenientes (pagamento do prémio pelo tomador e assunção do risco e realização da prestação pela seguradora) e o interesse.

8. ↩︎

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Notas de rodapé da Declaração de Voto:


[1] FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, pág. 92.
[2] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao processo civil. Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 4.ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2017, págs. 126-127.
[3] V., desenvolvidamente, CARLOS LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, Art. 1.º a Art. 800.º, Almedina, Coimbra, 2004, sub art. 3º, págs. 16-17, 25-26, 28-29, com jurisprudência do TC.
[4] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Os princípios estruturantes da nova legislação processual civil”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pág. 46.
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao processo civil… cit., págs. 138 e ss, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume I cit., pág. 93.
[6] V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Os princípios estruturantes da nova legislação processual civil”, Estudos… cit., págs. 43-45.
[7] Por todos: MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Os princípios estruturantes da nova legislação processual civil”, Estudos… cit., pág. 48, JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 1.º, Artigos 1.º a 361.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 195º, pág. 402.
[8] Com indiscutível adesão no STJ, v. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Decisão-surpresa; nulidade da decisão”, Comentário ao Ac. da Relação de Évora de 10/4/2014 (processo n.º 500/12.0TBABF-KE1), com data de 10/5/2014: https://blogippc.blogspot.com/2014/05/decisao-surpresa-nulidade-da-decisao.html; “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, com data de 22/9/2020: https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html; “Por que se teima em qualificação a decisão-surpresa como uma nulidade processual”, com data de 12/10/2021: https://blogippc.blogspot.com/2021/10/por-que-se-teima-em-qualificar-decisao.html; “Artigo 3º”, CPC Online, Art. 1.º a 58.º, Blog do IPPC (https://blogippc.blogspot.com/2022/01/cpc-online-8.html), pág. 5. Convergente: ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 627º, págs. 26 e ss (com jurisprudência), salientando-se que, “designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão-surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art. 3.º, n.º 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, sendo o recurso a via mais ajustada a recompor a situação integrando no seu objeto a arguição daquela nulidade”.
[9] V. CARLOS LOPES DO REGO, Comentários…, Volume I cit, sub art. 3º, págs. 32, 33.
[10] JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 1.º cit., sub art. 5º, pág. 41.
[11] Processo n.º 1129/09.5TBVHR-H.G1.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in CJ/ASTJ, 2016, Tomo I, pág. 179.
[12] V. ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 344º”, Código Civil comentado, I, Parte geral (artigos 1.º a 396.º), coord.: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 1009.
[13] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao processo civil… cit., pág. 127.
[14] Sobre a oportunidade processual da actuação do contraditório, v. CARLOS LOPES DO REGO, Comentários…, Volume I cit., sub art. 3º, págs. 32-33.