Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97A733
Nº Convencional: JSTJ00036874
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
NEXO DE CAUSALIDADE
VEÍCULO AUTOMÓVEL
VELOCÍPEDE
COLISÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
GRADUAÇÃO DE CULPAS
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
Nº do Documento: SJ199803100007331
Data do Acordão: 03/10/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1371/96
Data: 04/22/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CCVI66 ARTIGO 483 ARTIGO 487 N2 ARTIGO 563 ARTIGO 570 N1.
CE54 ARTIGO 5 N2 N4 N8.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1971/05/04 IN RLJ ANO105 PAG168.
ACÓRDÃO STJ PROC161/96 DE 1997/01/22.
ACÓRDÃO STJ DE 1961/02/21 IN BMJ N104 PAG417.
ACÓRDÃO STJ DE 1982/10/14 IN BMJ N320 PAG422.
ACÓRDÃO STJ DE 1987/01/06 IN BMJ N363 PAG488.
Sumário : I - A prova da inobservância de leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência.
II - A investigação de um nexo de causalidade adequada entre a conduta e o dano serve para excluir do âmbito definido para a responsabilidade decorrente de certo facto as consequências que não são típicas ou normais.
III - As características de peso e potência de um veículo pesado de mercadorias são completamente distintas das de um velocípede com motor, sendo, em tese geral, totalmente diferentes as consequências de um hipotético embate em ambas as viaturas e nas pessoas que, nelas, também hipoteticamente, circulem.
IV - É particularmente censurável a condução de um pesado de mercadorias que, a velocidade não inferior a 60 Km/hora, ao descrever uma curva para a esquerda, invade a metade contrária da faixa de rodagem, indo, por isso, embater com um velocípede que segue nessa metade esquerda da via, embora perto do respectivo eixo.
V - Se não é recomendável, representando, pelo contrário, conduta contravencional conduzir perto do eixo da via, muito mais grave é, no plano da conculpabilidade do lesado, invadir a outra metade da faixa de rodagem.
VI - Para efeitos de indemnização na graduação das culpas, deverão fixar-se, neste caso, em 80% e 20%, respectivamente, a culpa do condutor do pesado e a do condutor do velocípede.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
A propôs no tribunal da comarca de Amares, contra B, S.A., acção de responsabilidade civil em que pediu a condenação desta na quantia de 24500165 escudos, depois ampliada para 28924666 escudos, e juros moratórios legais, com fundamento em acidente de viação causado por um veículo pesado conduzido por um empregado da segurada da ré que, circulando em excesso de velocidade e pela esquerda da faixa de rodagem, atingiu gravemente o autor que se deslocava segundo todas as regras, em sentido contrário, num velocípede motorizado.
A demandada impugnou os factos e imputou a culpa na produção do acidente, pelo menos em parte, ao autor, por ir no momento a ultrapassar outro veículo.
Realizada a audiência, foi proferida a sentença que julgou parcialmente procedente o pedido e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 14449013 escudos e juros à taxa legal desde a citação.
Ambas as partes recorreram.
A Relação julgou totalmente improcedente a apelação da ré e parcialmente procedente a do autor, alterando a indemnização por danos não patrimoniais de 2000000 escudos para 4000000 escudos mantendo, no mais, a sentença, com um voto de vencido no sentido de que teria havido culpa exclusiva do condutor do auto pesado.
O autor interpôs novo recurso, agora de revista, em que formula, em síntese, as seguintes conclusões:
1ª - O acórdão recorrido imputou ao condutor do auto pesado uma contravenção - a circulação pela esquerda - e ao autor, duas - seguir perto do eixo da via e muito próximo de um veículo que seguia à sua frente - atribuindo 70% de culpa àquele condutor e 30% ao autor.
2ª - Mas a única contravenção causal do acidente foi a do condutor do auto pesado porque se não circulasse pela metade esquerda da faixa de rodagem, nunca colheria o autor.
3ª - Àquele incumbia provar que a invasão desta meia faixa foi estranha à sua vontade ou motivada por caso fortuito ou de força maior, o que não provou.
4ª - Também o dever de previsão dos condutores não pode ir até ao ponto de lhes ser imposto que contem com as condutas culposas dos outros condutores.
5ª - Foi violado o artigo 5º do Código da Estrada em vigor à data do acidente.
A recorrida defende a posição do acórdão recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1 - Foram dados como provados pelas instâncias os seguintes factos:
a) No dia 03-08-1993, cerca das 7,40 horas, na E.N. nº 308 ao Km. 57,845, no lugar de Regueira, freguesia de Goães, concelho de Amares, ocorreu um acidente de viação em que intervieram o velocípede com motor 1-AMR, conduzido pelo autor e o veículo pesado de mercadorias de matrícula ZE, propriedade de B, Ldª, conduzido por D (al a) da espec.).
b) O velocípede com motor 1-AMR circulava na E.N. nº 308 no sentido de Santa Marta do Bouro - Goães; em sentido contrário ao veículo pesado de mercadorias ZE que circulava no sentido Goães - Santa Marta (resp. ques. 1º a 3º).
c) O ZE circulava a velocidade não inferior a 60 Km/hora (ques. 5º).
d) Ao chegar ao local referido em a) da especificação a estrada descrevia uma curva para a esquerda, atento o sentido em que seguia o ZE (ques. 12º).
e) O ZE ao descrever uma curva para a esquerda consoante o seu sentido de marcha, invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem (ques. 6º).
f) Quando o ZE descrevia essa curva, surgiu-lhe em sentido contrário um veículo automóvel e o condutor do ZE quando o avistou, travou de imediato, deixando um rasto de travagem com a extensão de 23,8 metros e que se iniciou a cerca de 1,90 metros da berma do seu lado esquerdo (ques. 7º).
g) O embate com o velocípede com motor conduzido pelo autor, ocorreu na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do ZE, a menos de 50 cm. do eixo da via (ques. 8º).
h) O velocípede com motor 1-AMR circulava imediatamente atrás a não mais de 3, 4 metros do veículo automóvel referido na resposta ao quesito 7º, pela metade direita da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha, próximo do eixo da via (ques. 14º).
i) O embate ocorreu entre a roda da frente esquerda de ZE e a frente do 1-AMR (ques.15º).
j) Após ter embatido no velocípede o ZE atravessou a metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha e foi parar na berma do mesmo lado da estrada (ques.9º).
l) Após o embate os veículos vieram ocupar a posição do "croquis" elaborado na participação do acidente de viação de fls. 8 dos autos (ques. 16º).
m) Em consequência do embate o autor sofreu:
a) traumatismo crânio-encefálico;
b) fractura das plataformas verticais de C4 e C5;
c) fractura cominutiva do corpo C7 e uma lâmina esquerda do C7;
d) fractura dos ossos da perna esquerda, fémur e côndilo femural externo;
e) esfacelo do joelho esquerdo;
f) fractura dos ossos do antebraço direito;
g) fractura de extremidade distal do rádio esquerdo (ques. 17º).
n) Do local do acidente foi logo transportado para o Hospital de São Marcos em Braga, onde foi imediatamente submetido a uma intervenção cirúrgica (al. b) e c) espec.).
o) Esteve internado em vários serviços do Hospital de São Marcos e foi em 18-08-93 submetido a outra intervenção cirúrgica (al. d) e ques. 19º).
p) Teve alta hospitalar em meados de Outubro de 1993, altura em que passou a ser seguido na consulta externa (ques. 20º e 21º).
q) Em 13-09-93 começou a fazer tratamento de fisioterapia de 2ª a 6ª feira, até 30-05-94 (ques. 22º).
r) O autor, apesar dos tratmentos a que se submeteu, ficou a padecer definitivamente de:
a) franca diminuição da força muscular do membro superior direito;
b) rigidez do punho e joelho esquerdos;
c) cicatrizes do joelho e exerese da rótula;
d) sinais de artrose precoce nas superfícies articulares no que respeita ao joelho e punho esquerdos;
e) síndrome pós-comocional (ques. 23º).
s) Em consequência dessas sequelas, o autor ficou com uma IPP de 65% e totalmente incapaz para o exercício da sua actividade profissional de construção civil (ques. 24º e 25º).
t) Sofreu dores muito intensas, quer no momento do acidente quer no decurso do tratamento e as sequelas com que ficou a padecer definitivamente continuam a provocar-lhe dores físicas e um grande mal estar, que o vão acompanhar toda a vida e que se exacerbam com as mudanças de tempo (ques. 26º a 29º).
u) O autor sente um profundo desgosto por, na pujança da vida, se ver totalmente inválido (ques. 30º).
v) Na altura do acidente tinha 22 anos de idade, era fisicamente bem constituído, saudável, dinâmico e trabalhador (al. e) e ques. 32º).
x) Na altura exercia a profissão de trolha com um salário mensal de 75000 escudos acrescido de igual montante de subsídio de férias e de Natal e do susídio diário de alimentação de 505 escudos (als. s), f), g) e h).
z) O autor aos sábados, com regularidade, fazia trabalhos de trolha em pequenas obras ou serviços de reparação, ganhando por dia 6000 escudos (ques. 35º e 36º).
aa) Nessa actividade extra emprego fazia em média 18000 escudos mensais (ques. 38º).
bb) Desde o acidente o autor nunca mais trabalhou (ques. 40º).
cc) O autor gastou:
a) 37000 escudos em honorários médicos;
b) 32600 escudos em meios de diagnóstico;
c) 2924 escudos em medicamentos;
d) 20250 escudos no Hospital de S. Marcos;
e) 8400 escudos num par de muletas;
f) 2625 escudos num par de canadianas;
g) 19140 escudos em transportes para os tratamentos;
h) 243220 escudos em transportes dos bombeiros para os tratamentos (ques. 41º).
dd) O autor ainda vai ter de se submeter a algumas intervenções cirúrgicas para a extracção de material de osteossíntese, intervenções essas que a custos actuais não lhe irão ficar por menos de 1000000 escudos (ques. 42º e 43º).
ee) Pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº 675178 a ré assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo pesado de mercadorias ZE propriedade de C Ldª., e que no momento da colisão circulava sob a sua direcção e interesse, conduzido pelo seu empregado D, no exercício das suas funções laborais de que o tinha incumbido e a quem tinha cedido o seu uso (al. I).
ff) O 1-AMR foi avaliado em 90000 escudos (al. l).
gg) O C.R.S.S. pagou ao autor a título de subsídio de doença 30498 escudos (al. m).
hh) A ré adiantou ao autor a quantia de 250000 escudos (al. j).
2 - A questão que vem dada como controvertida consiste em saber se o autor contribuiu para o acidente e, em caso afirmativo, em que medida, daí se extraindo as inerentes consequências a nível indemnizatório.
O autor sustenta que o exclusivo causador do acidente foi o condutor do auto pesado.
A ré, na contestação, distribuiu as responsabilidades na proporção de 50% para cada um; na apelação propôs 40% para o autor e 60% para o condutor do pesado; na revista aceitou o resultado das instâncias.
As instâncias fixaram a graduação em 30% para o autor e 70% para o outro condutor.
No voto de vencido, finalmente, atribuiu-se a responsabilidade por inteiro ao condutor do pesado.
III
1 - A apreciação das questões apresentadas impõem a dilucidação de dois problemas que aqui surgem confundidos: um, relativo à culpa; o outro, respeitando à causalidade, ambos enquanto pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos - artigo 483º do Código Civil, diploma a que pertencerão os normativos que se venham a indicar, sem menção da sua fonte.
1.1. - Com efeito, dois dos pressupostos condicionantes, na responsabilidade por factos ilícitos, da obrigação de indemnizar imposta ao lesante, são a imputação do facto ao lesante (culpa) e o nexo de causalidade entre o facto e o dano - Antunes Varela, "Das Obrigações em geral", vol. I, 7ª edição, pág. 516.
Para que o facto ilícito gere responsabilidade é necessário que o autor tenha agido com culpa. Não bastando que tenha agido objectivamente mal, é preciso, atento o disposto no artigo 483º, que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa.
Agir com culpa, segundo Antunes Varela, significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo (loc. cit., pág.554).
A culpa implica que o lesante conhecesse, ou tivesse podido conhecer, o desvalor da acção que cometeu.
Diferente do dolo, em qualquer das suas variantes, é o conceito da mera culpa ou negligência, a qual consiste na omissão da diligência exigível ao agente. No âmbito da mera culpa cabem, em primeiro lugar, os casos - excluídos do conceito do dolo - em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar - culpa consciente.
Ao lado destes, há as situações em que o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida - culpa inconsciente.
O grau de censura ou de reprovação será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo, e mais forte e intenso o dever de o ter feito (Ibidem, págs. 565 e 566).
Ao prescrever que a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2), o Código Civil consagrou expressamente a tese da culpa em abstracto.
1.2. Apenas os danos resultantes do facto (artigo 483º), os danos causados por ele, são incluídos na responsabilidade do agente.
O nexo de causalidade traduz-se numa relação entre o facto praticado pelo lesante e o dano, segundo a qual ele fica obrigado a indemnizar os prejuízos - todos os prejuízos - que causar ao lesado, ou, na formulação legal, os danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563º).
Ou seja, a obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo; o facto causador da obrigação de indemnizar deve ser a causa do dano. A disposição do artigo 563º, colocando a solução do problema na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão,mostra que se aceitou a doutrina da causalidade adequada - cfr. Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, pág. 578.
Como ponderou Vaz Serra, não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. Ora, sendo assim, prossegue o citado Autor, parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária - cfr. "Obrigação de indemnização", nº 5, no BMJ, nº 84. Veja-se ainda, do mesmo Autor, a anotação crítica ao acórdão do STJ, de 4 de Maio de 1971, aí também publicado, na RLJ, ano 105º, págs. 168 e segs.
Pode-se, assim, afirmar que a causa juridicamente relevante será a causa em abstracto adequada ou apropriada à produção desse dano segundo regras da experiência comum ou conhecidas do lesante e que pode ainda ser vista, numa formulação positiva, como a condição apropriada à produção do efeito segundo um critério de normalidade, ou, numa formulação negativa, que apenas exclui a condição inadequada, pela sua indiferença ou irrelevância, verificando-se então o efeito por força de circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.
Do conceito de causalidade adequada, pode extrair-se o corolário segundo o qual o que é essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente acontece, ele seja apenas uma das condições (adequadas) desse dano (Antunes Varela, "Das Obrigações (...), pág. 893).
2. A actuação do condutor do pesado é, sem dúvida, ilícita e culposa, ligando-a ao acidente um nexo indiscutível de causalidade adequada. Trata-se de matéria incontroversa.
2.1. Com efeito, infringiu o nº 2 do artigo 5º do Código da Estrada (CE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 39672, de 20 de Maio de 1954, em vigor ao tempo do acidente, norma mantida inalterada pelo Decreto-Lei nº 270/92, de 30 de Novembro, que alterou o Código da Estrada.
O problema que se coloca tem que ver com a conculpabilidade do autor. A este são atribuídas duas contravenções: uma, por não seguir suficientemente próximo da berma da direita; outra, por circular demasiadamente junto de um veículo automóvel que circulava à sua frente.
Dir-se-á, a título de parêntesis, que, na subsunção de tais contravenções às normas correspondentes do CE, não se teve em consideração, nas instâncias, as já referidas alterações introduzidas ao Código da Estrada pelo Decreto-Lei nº 270/92. O que se justificava, uma vez que, sendo a vacatio deste diploma de 180 dias após a data da sua publicação - cfr. artigo 2º -, o mesmo já se encontrava em vigor à data da ocorrência do acidente.
As duas indicadas contravenções passaram a estar previstas, respectivamente, pelos nºs 4 e 8 (que substituiram os primitivos nºs 3 e 5) do artigo 5º do Código da Estrada. A referida alteração de enquadramento normativo, matéria de que oficiosamente se podia, a todo o tempo, tomar conhecimento, não tem, no entanto, consequências no plano da decisão. Tratou-se de simples alteração da numeração das normas aplicáveis, sem que lhe corresponda modificação da respectiva substância.
Aquilo que importa ponderar traduz-se na questão de saber se as referidas contravenções cometidas pelo recorrente são fundamento da decisão de graduação de culpa feita pelas instâncias - 70% para o condutor do pesado; 30% para o recorrente.
E o problema cardeal que é necessário resolver diz respeito à verificação, ou não, dum nexo de causalidade adequada entre as referidas contravenções e o acidente.
Ou seja, há que responder às duas seguintes questões: O autor contribuiu ou não para a verificação do acidente?; Em caso de resposta afirmativa, em que medida e qual a proporção da sua culpa?
2.2. Dissertando acerca da problemática relativa ao concurso de culpa do lesado, escreveu Vaz Serra, "Conculpabilidade do Prejudicado", BMJ, nº 86, págs. 131 e segs: "Parece de exigir que o facto do prejudicado possa considerar-se uma causa (ou melhor, concausa) do dano (...), em concorrência com o facto do responsável, causa também do dano. Ambos os factos devem, pois, ser causa do dano e o nexo causal é de apreciar segundo o mesmo critério (o da causalidade adequada, se for este o admitido)".
Prosseguindo, a respeito do requisito segundo o qual o procedimento do prejudicado deve ser culposo, observa Vaz Serra : "Visto que se está em face de um facto de terceiro, causador de dano, quer-se dizer que o facto do prejudicado só contribui para redução da indemnização, quando este tenha omitido a diligência exigível com a qual poderia ter evitado o dano. Entende-se que aquela redução só é razoável quando o prejudicado não tenha adoptado as medidas exigíveis com que poderia ter impedido o dano" - Loc. cit., págs. 135 e 136.
2.3. A matéria é objecto da disciplina do artigo 570º, nº 1, que assim dispõe: "Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída".
Significa isto que, para que o tribunal goze da faculdade conferida nesta disposição, é necessário que o acto do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente (cfr. artigo 563º).
Tem sido orientação constante deste Supremo Tribunal aquela segundo a qual a prova da inobservância de leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se a prova em concreto da falta de diligência - cfr. acórdãos de 21/2/1961, 14/10/1982 e 6/1/1987, publicados, respectivamente, nos BMJ nº 104, pág. 417, nº 320, pág. 422, e nº 363, pág. 488.
Esta linha de pensamento tem o apoio de Sinde Monteiro, "Responsabilidade por Conselhos, Recomendações e Informações", págs. 263-267, o qual, ao referir-se expressamente às normas legais de protecção de perigo abstracto, diz que a conduta infractora que as infringe, traduzindo a inexistência do necessário cuidado exterior, só não responsabilizará o agente se este demonstrar ter tido o necessário cuidado interior - tendo este o ónus da "(...) prova das circunstâncias morais e intelectuais de que preponderantemente se compõe o cuidado interior que excepcionalmente possam afastar a culpabilidade (...)".
Passemos, então, à consideração do problema central que consiste em saber se, entre as contravenções e o acidente, existe o nexo causal já referido.
Como se escreve no Acórdão deste Supremo Tribunal de 22/01/1997 - Revista nº 161/96, a violação de uma norma de perigo abstracto tende a proteger determinados interesses - aqueles para cuja protecção a norma foi criada.
Esta circunstância tem tido, na doutrina e prática jurídicas, reflexos que foram ao ponto de se defender que, em tais casos, seria de dispensar a demonstração de um nexo de causalidade adequada relativamente aos "primeiros danos". Nesse caso, tratando-se de responsabilidade a título de culpa, dispensar-se-ia a formulação de um juízo de adequação; este juízo, em tal caso, seria uma pura repetição daquilo que o legislador já fizera ao emitir a norma de protecção, visto que esta, destinada à protecção de certos interesses, foi concebida de modo a proibir as condutas que, por experiência da vida, se sabe já que são idóneas para violar aqueles interesses.
Defendendo que esta ideia não é de defender em termos absolutos, Sinde Monteiro, op. cit.,pág, 280, reserva ao critério da adequação um papel de segundo plano na área das disposições de protecção, dizendo que "no mínimo, o critério da adequação servirá de auxiliar indispensável para a interpretação do fim da norma (...), não devendo na dúvida aceitar-se que por ele sejam abrangidas consequências atípicas ou extradordinárias (...)".
Assim, a investigação de um nexo de causalidade adequada entre a conduta e o dano servirá, nestes casos, para excluir do âmbito definido para a responsabilidade decorrente de certo facto as consequências que não são típicas ou normais.
Ensaiemos a aplicação destes princípios às duas concretas contravenções imputadas ao recorrente.
Para isso, importa analisar, do ponto de vista teleológico, as normas que estabelecem as referidas contravenções, a fim de desvendar a respectiva intencionalidade.
Quanto à primeira contravenção, convém começar por recordar, na parte que interessa à economia dos autos, a previsão da norma violada. Estabelece o nº 4 do artigo 5º do CE, na redacção dada pelo referido Decreto-Lei nº 270/92, que os veículos transitarão sempre o mais próximo possível das bermas ou passeios, mas a uma distância destes que permita evitar qualquer acidente.
Parece claro que o tipo de acidente que, em termos de causalidade adequada, se pretende evitar foi, justamente, o que pudesse resultar de um embate com outra viatura que seguisse em sentido contrário e que, por qualquer motivo, passasse para a outra metade da faixa de rodagem. Com efeito, nesse caso, o acidente poderia ser evitado se o primeiro veículo circulasse o mais próximo possível da berma ou passeio.
Tendo o embate , no acidente que deu causa aos presentes autos, ocorrido a menos de cinquenta centímetros do eixo da via, é manifesta a existência do nexo causal entre a condução, em infracção ao disposto na norma em apreço, por parte do recorrente, e o acidente. Isto sem pôr obviamente em causa o nexo causal já afirmado relativamente ao condutor do veículo pesado.
Trata-se de uma causalidade estabelecida pela própria lei e que necessariamente intercede desde que o acidente - que a previsão da norma pretendia evitar - ocorra em circunstâncias subsumíveis à situação normativamente prevista - circulação em infracção ao disposto no referido nº 4.
Estamos, para utilizar a terminologia adoptada na breve explanação teórica acima ensaiada, no âmbito das consequências típicas ou normais, ou seja, no quadro daquelas consequências que respeitam aos fins que a norma de protecção acautela.
Consideremos agora a segunda contravenção.
Prescreve-se, na norma, que os veículos em marcha devem guardar entre si a distância necessária para que possam fazer qualquer paragem rápida sem perigo de acidente.
Qual o "acidente" que, em termos de causalidade adequada, é de possível, se não provável, ocorrência, no caso de violação da disciplina prescrita? Manifestamente o embate com o veículo que segue à frente e em relação ao qual não se guardou a necessária e prudente distância.
Ou seja, não ocorreu, no presente caso, um nexo causal entre a contravenção ao nº 8 do artigo 5º do CE - anterior nº 5 - e o acidente.
Socorrendo-nos das considerações de índole dogmática a que procedemos supra, com subsídios recolhidos no Acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 1997, já citado, dir-se-á inexistir, neste caso, um nexo de causalidade naturalística. As consequências ocorridas não são, a essa óptica, típicas ou normais. A falta em concreto do nexo de causalidade naturalística excluirá, nessa medida, a responsabilidade.
3. O que se expôs tem consequências na graduação das culpas e na determinação do montante da indemnização.
Enunciam-se, em forma de síntese, e por razões de método, os três seguintes pontos:
- O primeiro para reconhecer que existe nexo causal entre uma parte da conduta contravencional do recorrente e o embate com o veículo segurado na ré.
- O segundo para observar que a parte restante da referida conduta contravencional não apresenta nexo causal com o aludido embate;
- O terceiro para reiterar as considerações já produzidas no próprio acórdão recorrido, a propósito do grau muito elevado de culpa do condutor do veículo pesado.
Para o corroborar, bastará ter presentes os seguintes factos:
- As características de peso e potência de um veículo pesado de mercadorias o são completamente distintas das de um velocípede com motor, sendo, em tese geral, totalmente diferentes as consequências de um hipotético embate em ambas as viaturas e nas pessoas que nelas, também hipoteticamente, circulem.
- É particularmente censurável a condução de um pesado de mercadorais que, a velocidade não inferior a 60 km/hora, ao descrever uma curva para a esquerda, invade a metade contrária da faixa de rodagem, indo, por isso, embater com um velocípede que segue "na sua mão", nessa metade esquerda da via, embora bastante perto do respectivo eixo.
- Se não é recomendável, representando, pelo contrário, e como se viu, conduta contravencional, conduzir perto do eixo da via, muito mais grave é invadir a outra metade da faixa de rodagem, como fez o condutor do pesado.
Pelas razões indicadas e restando apenas, com relevância, no que à conculpabilidade do lesado se refere, a prática de uma contravenção (e não duas), entende-se dever alterar, para efeitos de indemnização, a graduação das culpas, que se fixam nas seguintes percentagens: 80% para a Companhia de Seguros recorrida e 20% para o recorrente.
Da alteração da graduação das culpas resultam em termos indemnizatórios as seguintes consequências:
Ao montante dos danos sofridos pelo autor, ora recorrente, que foi fixado, na 1ª instância, em 21042159 escudos, há que adicionar a quantia de 2000000 escudos, resultante da indemnização alterada pela Relação no que se refere aos danos não patrimoniais (4000000 escudos - 2000000 escudos). Desse total de 23042159 escudos, o recorrente tem direito a 80%, ou seja, a 18433727 escudos, a que há a deduzir as quantias de 250000 escudos, que já recebeu da recorrida e 30498 escudos, que recebeu do C.R.S.S., tendo, por conseguinte, a receber 18153229 escudos, a que acrescem juros de mora desde a citação.
Termos em que se dá parcial procedência à revista.
Custas pelas partes na proporção do vencimento e tendo-se em atenção o benefício concedido ao autor.
Lisboa, 10 de Março de 1998.
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro.