Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
691/06.9TBAMT.P1.S1
Nº Convencional: 2. ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MENOR
CULPA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL DE AMBAS AS REVISTAS
Doutrina: - Brandão Proença (Juris et de Jure, Nos Vinte Anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, 110; Cadernos de Direito Privado, 2004, 7, 25 e seguintes).
- Calvão da Silva, na RLJ, n.º137, página 59 E 62.
- Fausto de Quadros e Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, 115, Caramelo Gomes, ob. cit., 60.
- Inês Quadros, A Função Subjectiva da Competência Prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, 49.
- João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, 438.
- Moitinho de Almeida, “Estudo”, página 17, que se pode ver entrando no sítio do STJ, depois em “Documentação” e, seguidamente em “Estudos Jurídicos”.
- Vital Moreira e Gomes Canotilho, anotação XXIII ao artigo 8.º da Constituição.
Legislação Nacional: - ARTIGOS 8.º, N.º 3, 9.º, N.º 1, 483.º, 488.º, N.º2, 503.º, 505.º, 562.º, 564.º, N.º1 566.º, N.ºS 2 E 3, 570.º, 571.º, DO CÓDIGO CIVIL.
- DL N.º 291/2007, DE 21-8.
- PORTARIA N.º 377/2008, DE 26.6.
Legislação Comunitária: - LEI BADINTER , DE 5.7.1985.
- DIRECTIVA N.º 2005/14/CE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 11.5.2005 (CONSIDERANDOS 15.º E 16.º).

Jurisprudência Nacional: - ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 30.6.2005 (CUJO TEXTO SE PODE VER NA CJ STJ, XIII, II/2005, 7)
- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 19.4.2007 (DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT, DEPOIS “DIREITO COMUNITÁRIO” E, DEPOIS, JURISPRUDÊNCIA DO TJ E, FINALMENTE, MESMO PELA DATA).
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 22.4.2008, PROCESSO N.º 08B742,
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE16.10.2008, PROCESSO N.º 08A2362
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 7.5.2009, PROCESSO N.º 09A0512
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 20.10.2010, PROCESSO N.º 346/1998.S1
- DECLARAÇÃO DE VOTO JUNTA AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 4.10.2007, PROCESSO N.º 07B1710 DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT.
Sumário : 1. No julgamento de acidentes de viação, as normas do Código Civil devem ser interpretadas actualisticamente, em ordem a ter-se em conta a protecção das vítimas, com esbatimento da importância da culpa destas.
2 . Não se pode, assim, considerar a culpa dum sinistrado de 9 anos colocando a fasquia de apreciação ao nível do comportamento do adulto.
3 . Por isso, não releva o comportamento do mesmo sinistrado que, num grupo com a mãe e dois irmãos, sendo um transportado num carrinho de bebé, se atrasou num dos lados da via de trânsito para apertar os sapatos, quando os demais a atravessavam e, depois, para reagrupar, atravessou a correr e desatentamente tal via, até ao local por onde circulava uma motorizada em excesso de velocidade que o atropelou.
4 . Relevando, contudo, o comportamento da mãe que procedeu à travessia em local não destinado a peões, sem cuidar do controle absoluto que incluísse o sinistrado.
5. Circulando a motorizada, pelo menos a 45 km/h, em local com total visibilidade, onde o limite sinalizado era de 30km/h, numa zona de escola e igreja, em momento em que para esta seguiam várias pessoas, é adequada a repartição da culpa em 80% para o condutor e 20% para a mãe.
6 . Para fixar indemnização por danos patrimoniais futuros, em casos como este, de uma criança de 9 anos, o recurso à IPP fica particularmente prejudicado.
7 . De qualquer modo, sempre será de tomar como ponto de partida o salário mínimo nacional conjugado com a taxa de IPP e procurar encontrar um capital que produza de rendimento, normalmente juros, o que, muito teoricamente, se vai deixar de auferir e se extinga no fim presumível de vida activa da pessoa.
8 . Este ponto de partida terá, necessariamente, de sofrer forte correcção, atentas as circunstâncias do caso.
9. Tendo o sinistrado ficado com 12% de IPP, é adequado o montante de € 32.000.
10 . Tendo ele sofrido fractura complexa do rim direito, com atrofia renal, diminuição da função renal e lesões corticais, sem reversibilidade e com probabilidade futura de cólicas renais de repetição, infecções renais e hipertensão arterial e, bem assim, com possível necessidade de futura extracção do órgão, tudo com inerentes dores, angústia, tristeza, revolta e incómodos, é justo o montante de € 30.000 para compensar os danos não patrimoniais.
11. Respondendo a seguradora da motorizada apenas por 80% das quantias fixadas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I -
AA e esposa BB, por si e em representação do seu filho menor, CC, intentaram contra:
DD… Seguros, S.A;

A presente acção de condenação emergente de acidente de viação sob a forma de processo ordinário.

Invocaram, detalhadamente, o atropelamento de que foi vítima o CC, por ciclomotor seguro na ré e, bem assim, os danos, que, também pormenorizadamente, descrevem, que daí resultaram.

Pediram, em conformidade, a condenação da ré a pagar:
A) Ao menor CC aqui representado pelos pais:
A quantia de 250.000,00 Euros por danos patrimoniais e não patrimoniais acrescida dos juros moratórios legais que desde hoje se vencerem até integral pagamento.
Os danos patrimoniais e não patrimoniais que vierem a ocorrer em consequência do agravamento do estado de saúde e das sequelas do menor CC;

B) Aos pais a quantia de 1.649,32 euros por danos patrimoniais acrescida dos juros moratórios legais até integral pagamento;
A quantia a liquidar ulteriormente pelos danos patrimoniais futuros que lhes advenham pela necessidade dos tratamentos, agravamento do estado de saúde geral ou das sequelas do seu filho.


Contestou a ré.
Imputou a responsabilidade pelo acidente à mãe do menor por má vigilância deste e ao próprio menor e referiu serem, em qualquer caso, exorbitantes as quantias peticionadas.



II –
A acção seguiu a sua tramitação e, na altura oportuna foi proferida sentença.

Condenou-se a ré a pagar:

Ao autor CC:
1. A quantia de 57.000,00 Euros (cinquenta e sete mil Euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais já liquidados, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 22/03/2006 até integral pagamento;
2. A quantia correspondente à indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que aquele venha a sofrer em consequência dos factos identificados nas alíneas AU e AW dos factos assentes, cuja liquidação se relega para execução de sentença;

À autora BB a quantia de 390,70 Euros (trezentos e noventa Euros e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 22/03/2006 até integral pagamento;

Aos autores AA e BB:
1. A quantia de 649,32 Euros (seiscentos e quarenta e nove Euros e trinta e dois cêntimos), a título de danos patrimoniais já liquidados, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, a partir de 22103/2006 até integral pagamento;
2. A quantia correspondente à indemnização pelos danos patrimoniais que venham a sofrer em consequência dos factos identificados nas alíneas AU e A W dos factos assentes, cuja liquidação se relega para execução de sentença.
A soma das quantias indemnizatórias a liquidar em execução de sentença e a que se reportam os pontos I. b) e 111. b) constantes da sentença, as quais, quando somadas às quantias indemnizatórias já liquidadas terão por limite o valor de 600.000,00 Euros (seiscentos mil Euros).

No mais, absolveu-se a ré do pedido.

Entendeu o Sr. Juiz que:
Os factos apurados não permitiam a formulação de qualquer juízo de culpa sobre a eclosão do acidente;
Impunha-se, pois, o julgamento com base no risco;
Tratando-se dum peão e duma motorizada, o risco impendia totalmente sobre esta.



III –
Apelaram autores e ré, tendo a Relação decidido julgar parcialmente procedentes ambas as apelações, subindo a quantia de € 57.000,00 para 60.000,00 e reduzindo em 40% os demais favores fixados.
Acrescentou um facto à matéria provada e julgou com base na culpa, repartindo-a entre 60% para o condutor do veículo e 40% para o próprio sinistrado.




IV –
Pedem revista, ambas as partes, sendo a dos autores subordinada.



Vamos conhecer primeiro da interposta pela seguradora.

Conclui ela as alegações do seguinte modo:

A- Atendendo à matéria dada como provada quanto à forma de produção do acidente dos autos, entende a ora recorrente que o Tribunal recorrido deveria ter considerado exclusivo responsável pela produção do mesmo o menor CC.
B- Da matéria de facto dada como provada cujo teor, por razões de economia processual se escusa, aqui, de repetir e se dá aqui por integralmente reproduzida, parece poder concluir-se de forma segura como o acidente dos autos se processou. O AMT, seguro na ora recorrente seguia no sentido C... - C... . A dada altura o seu condutor, a testemunha EE, apercebeu-se que se encontrava na berma do lado esquerdo da estrada um miúdo, o qual não dava sinais de que pretendia a atravessar a estrada. Estava derreado e não olhava para nenhum dos lados para ver se podia passar. Por essa razão o ciclomotorista continuou a sua marcha e, quando se encontrava a uma distância não concretamente apurada, o CC correu para a estrada para a atravessar para o lado oposto. De imediato travou mas tal não impediu que viesse atingir o CC em plena metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.
C- Os condutores não estão, nem poderiam estar, obrigados a prever os comportamentos transgressores dos restantes utentes da via. É evidente que o condutor do AMT, tendo visto o CC naquelas condições, tinha razões aceitáveis para se convencer que ele não pretendia atravessar a estrada antes de o ciclomotor passar. Era de supor que a mãe do CC lhe tinha dado instruções para só atravessar depois de olhar para ambos os lados da estrada e de verificar que nenhum trânsito se aproximava. A autora BB estava ali mesmo e tinha a obrigação de zelar por que o seu filho cumprisse as regras da prudência e do cuidado. Por isso o ciclomotorista continuou a sua marcha. Subitamente o CC levanta-se e a correr invade a estrada quando o AMT está já próximo, o que, apesar do condutor do ciclomotor ter travado, impossibilitou que qualquer manobra deste pudesse evitar o embate.
D- Não podia desviar-se para a sua esquerda pois aí estava o CC e este a qualquer momento podia suspender a travessia e assim, se o AMT fosse para a esquerda, ia atingi-lo. Manteve-se na metade direita na esperança de que o peão parasse a marcha.
Nas circunstâncias dos autos a verdade é que o condutor do AMT nada mais podia fazer para evitar o embate. Foi o CC que se atravessou à sua frente. Foi o CC que ocupou inesperadamente o seu espaço livre e visível à sua frente.
E- Deu o Tribunal como provado que o AMT circulava a velocidade de pelo menos 45 km/h, quando no local a velocidade máxima permitida era de 30 km/h. Apesar dessa transgressão do condutor do AMT, a verdade é que a causa adequada do embate foi a invasão por parte do CC da faixa de rodagem onde circulava o AMT. Tivesse este atravessado a estrada com as devidas cautelas, verificando, como qualquer peão medianamente consciente, se lhe era possível fazer essa travessia sem perigo para si próprio como para o demais trânsito - e como tal lhe era tão fácil dada a visibilidade de que dispunha para os lados de onde provinha o AMT - teria ele avistado o AMT a aproximar-se do local onde ele estava na berma, teria ainda podido aquilatar da velocidade a que circulava o AMT, ou seja, poderia ele e até teria essa obrigação de verificar se o AMT se aproximava ou não com maior ou menor rapidez, e o acidente não teria acontecido, fosse qual fosse a velocidade do AMT. Por outro lado é de admitir que o condutor do AMT, tendo constatado da presença do Filipe na berma se tivesse convencido de que não iria atravessar a estrada sem previamente deixar passar o AMT e, nessa medida, tivesse até acelerado este AMT de modo a passar mais depressa por aquele local, atingindo, então, a velocidade de 45 km/h.
F- Não foi, contudo e salvo melhor opinião, a velocidade do AMT a causa adequada do acidente, Pelo contrário no entender da ora recorrente o acidente ocorreu pois por culpa exclusiva do CC.
G- O Tribunal considerou e bem que a Autora BB não cumpriu o dever de vigilância do CC. Diríamos até que esse dever no caso dos autos foi grosseiramente violado. A BB, mãe do CC estava no local. Sabia que o seu filho ia a atravessar a estrada. Tinha obrigação de permanentemente vigiar o seu trajecto. Sabia ou devia saber que o seu filho precisava de apertar um cordão dos sapatos. Devia ter esperado que essa operação terminasse, sem que nenhum dos elementos da família iniciasse a travessia da via. Findo o apertar dos sapatos, devia, então, atravessar a estrada conjuntamente com os seus filhos controlando com segurança essa travessia de modo a evitar que sucedessem dramas como o que veio a acontecer.
H- E verdade que o ciclomotorista infringiu também a regra da velocidade, tendo conduzido a velocidade superior à máxima ali admitida. Porém e ao invés do que considerou o Tribunal essa não foi a causa do acidente. Este teria ocorrido do mesmo modo se o ciclomotor seguisse mais devagar. E não teria ocorrido de certeza se o CC não se tivesse atravessado á sua frente.
O condutor não tinha que prever que o CC encetasse a travessia da via. Em primeiro lugar ele não tinha que prever que havia alguma relação entre quem já atravessara a estrada ou estava prestes a fazê-lo e quem ficou do outro lado. Em segundo lugar, ele podia era esperar precisamente o contrário, ou seja, que o CC permanecesse na berma até ele passar e atravessar se essa era a sua vontade depois de ele passar. O condutor do ciclomotor não sabia a idade do CC nem sabia nem podia saber a sua dose de inconsciência era ou a de uma criança de nove anos, sendo que o que é expectável e normal é que uma criança dessa idade ande acompanhada de quem tem o dever da sua vigilância.
I- Mesmo que se entenda que o excesso de velocidade do AMT contribuiu para a eclosão do acidente, essa contribuição terá de ser muito menor que a contribuição do CC. Na verdade, teremos de concluir que o CC não cumpriu as suas obrigações de peão. Invadiu a faixa de rodagem por onde seguia o AMT no preciso momento em que ele ia a passar. Mesmo admitindo que o JL seguia a pelo menos 45 km/h a verdade é que o acidente não se teria dado se o CC não invadisse a estrada. Se o AMT circulasse à velocidade de 30 km/h (e para o fazer teria, até porque se trata de via a descer, de ir a olhar para o conta-quilómetros para controlar a velocidade de forma a não ultrapassar a velocidade máxima para o local) o acidente teria ocorrido do mesmo modo dado que a distância a que o CC e atravessou não teria permitido que o ciclomotorista evitasse mesmo assim o embate.
Assim e nessa hipótese que, por dever de patrocínio, teremos de admitir a responsabilidade deveria, então, ser repartida por ambos os intervenientes numa percentagem muito mais penalizadora para o CC, entendendo-se como adequada e equilibrada a atribuição de uma percentagem de 80% para o CC e de 20% para o condutor do AMT.
J- Além do mais, sendo o CC menor como o era e cabendo o dever de vigilância à recorrida BB, presume-se, como bem se escreve na douta sentença recorrida, nos termos do art. 491.º do Código Civil que a responsabilidade lhe pertence, sendo manifesto o não cumprimento do seu dever. Assim a responsabilidade dada a menoridade do CC cabe aos recorridos.
L- A factualidade apurada é, pois, suficiente para determinar que o comportamento do CC foi decisivo para a eclosão do acidente.
Independentemente da distância em concreto a que se aproximava o AMT e fosse qual fosse a velocidade deste, se o CC tivesse olhado para a sua direita teria visto o AMT a chegar ao local muito ou pouco depressa, mas bastaria ter visto, como podia e devia, o AMT para que o acidente não se tivesse verificado.
M- Deve, pois, ser alterada a sentença proferida, absolvendo-se a ora recorrente.
É manifesto que o acidente dos autos apenas ocorreu por culpa exclusiva do CC. Não se alcança que outro comportamento poderia ter adoptado o condutor do AMT para evitar o sucedido.
N- Independentemente da alteração da douta decisão recorrida no que respeita á definição da percentagem de responsabilidade de cada um dos intervenientes, entende a ora recorrente que a decisão recorrida ficou valores indemnizatórios excessivamente elevados, que, mais do que constituírem uma justa e equilibrada indemnização pelas perdas do lesado de modo a reconstituir tanto quanto possível a situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão, significam uma vantagem económica excessiva que excedem e em muito a situação que existiria se a lesão não tivesse ocorrido, seja a título de danos morais seja especialmente a título de danos patrimoniais.
O- Qualquer indemnização que a título de indemnização pela IPP vier a ser concedida ao CC de montante superior ao valor atribuído na 1° Instância, ou seja, a € 32.000,00, constituirá uma indemnização desadequada e desconforme à equidade e à Justiça, correndo-se o risco, mais do que provável de que no futuro venha antes a constituir um enriquecimento absolutamente injustificado.
P- Do mesmo modo a indemnização a título de danos morais atribuída pelo Tribunal recorrido é excessiva. A atribuída a esse título pelo Tribunal de 1.ª instância, apesar de pecar por algum excesso, mostra-se bem mais equilibrada e equitativa que a constante da decisão sob recurso.
Assim deve esta última ser alterada para o valor fixado na 1.ª Instância.
Q- Atento o exposto, entende a ora recorrente que deve ser proferida decisão a julgar a acção improcedente e a absolver a recorrente do pedido.
R- A assim não ser entendido e a manter-se o entendimento de que o acidente ocorreu por culpa concorrente de ambos os intervenientes, deve ser atribuída ao CC uma parcela de responsabilidade não inferior a 80%.
S- A indemnização a título da IPP de que o CC ficou afectado deve ser reduzida para o montante fixado na 1.ª Instância, isto é, para € 32.000,00, devendo também a fixada a título de danos morais ser também reduzida para € 25.000,00, fixando-se a indemnização a pagar pela ora recorrente com aplicação da percentagem de responsabilidade que vier a ser atribuída ao CC.
T- A sentença recorrida não fez a melhor e mais correcta aplicação do direito, tendo violado o disposto nos arts. 483°, 503°, n.º 1, 506.°, do C. Civil e art. 101º do Código da Estrada.
Termos em que o recurso interposto deve ser julgado provado e procedente e, por via disso, revoga da a sentença a quo e absolvida a ora recorrente.
A assim não ser entendido e mantendo-se o entendimento que ambos os intervenientes contribuíram para a eclosão do acidente deve a respectiva com participação ser atribuída na percentagem de 80% para o CC e 20% para o AMT.
Deve ainda a indemnização a título de IPP do CC e a título de danos morais ser reduzida para € 32.000,00 e 25.000,00, respectivamente.


Contra-alegaram os autores, rebatendo, ponto, por ponto, as alegações da contraparte.





V –
Ante as conclusões das alegações, as questões que se nos deparam consistem em saber se:
A seguradora deve ser responsabilizada indemnizatóriamente e, na hipótese afirmativa, em que medida;
Devem ser minoradas as quantias fixadas a título de IPP e de danos não patrimoniais.



VI –
Vem provada a seguinte matéria de facto:

A- No dia 5 de Abril de 2003, cerca das 14h45 m, no lugar de …, da freguesia de …, ocorreu um acidente de viação, no qual se verificou o atropelamento do filho dos Autores, CC, pelo veículo motorizado de matrícula 1 AMT-…-…, conduzido por EE.
B- No local onde entroncam as estradas, frente à casa de …, a Autora procedeu à travessia da estrada.
C- E todos completaram sem consequência a travessia da via, com excepção do CC, que sofreu o atropelamento do 1 AMT-…-… .
D- No sentido … - … circulava o veículo de matrícula AMT-…-… .
E- o embate ocorreu a cerca de 1,35 metros da berma do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo.
F- A responsabilidade civil estradal pelos acidentes ocorridos com o 1 AMT -…-… estava transferida para a Ré por contrato de seguro titulado pela apólice 00… - cfr. doc. de fls. 86.
G- Em consequência do acidente dos autos foi o menor CC transportado ao Hospital de Amarante e deste para o serviço de Urgências do Hospital de S. João no Porto.
R- O CC nasceu em 28/06/93.
1- A Autora, conduzindo um carrinho de bebé, a filha mais velha desta e o filho CC, circulavam a pé no sentido B…-I…, pelo lado direito da estrada que entronca numa outra que conduz do C… para C… ( em …).
J- Chegados ao entroncamento da estrada que liga B… à I… com a estrada que conduz do C… para C…, sendo que a primeira entronca na segunda pelo seu lado esquerdo, atento o sentido de marcha C…/C…, a filha da Autora e esta procederam à travessia da estrada que liga o C… a C…, propondo-se o CC também encetar a travessia dessa mesma estrada, porém, atrasou-se em relação à irmã e à mãe, já que esteve na berma esquerda desta estrada, atento aquele sentido de marcha e antes de encetar a travessia da mesma, a apertar um cordão do sapato que trazia calçado, enquanto a irmã e a mãe encetavam aquela travessia.
K- Ao atravessarem a estrada, todos o fizeram perpendicularmente ao eixo da via, tendo primeiro encetado aquela travessia a filha da Autora, logo a seguir a Autora e, por último, o CC, que o fez a correr, tendo este iniciado essa travessia quando a Autora ainda se encontrava a atravessar a estrada, faltando à última percorrer cerca de um metro para atingir o passeio do lado direito da estrada, atento o sentido de marcha C…/C… .
L- O veículo AMT circulava a, pelo menos, 45 Kms./hora.
M- No momento do acidente, não havia trânsito a circular em sentido contrário ao levado pelo condutor do AMT.
N- Com o embate o CC foi projectado, tendo ficado caído no chão da via que liga C… a C… .
O- No local a estrada tem a largura de cerca de 5 metros, com excepção da berma do lado direito ( atento o sentido do veículo) e o espaço transitável comum às duas vias (local da sua intercessão ).
P- O local configura uma recta asfaltada com visibilidade superior a 150 metros para quem circule na via que liga o C… a C… e atento este sentido de marcha.
Q- O condutor do ciclomotor poderia ver a travessia da família do CC a uma distância superior a 50 metros.
R- De ambos os lados da estrada existem casas de habitação.
S- A menos de 100 metros fica a escola e a cerca de 200 metros a igreja, por onde àquela hora se deslocavam pais, catequistas, crianças, que tal como o CC tinham ali catequese.
T- A cerca de 200 metros antes do local do embate existe um sinal vertical proibindo a circulação a todos os veículos em velocidade superior a 30 Kms./hora.
U- O condutor do veículo AMT conhecida muito bem o local e todas as demais características de via por ter ali passado muitas vezes e por morar perto do local.
V- No local à altura do acidente não existiam passadeiras para peões.
W- No Hospital de S. João foi diagnosticado ao CC fractura complexa do rim direito com extravasamento de contraste.
Y- Foi instituído tratamento conservador com repouso absoluto no leito, analgesia e antibioticoterapia.
X- O CC teve alta em 17/05/2003/ após melhoria gradual.
Z- E passou a ser seguido por cirurgia pediátrica.
AA- Onde se manteve até 2004.
AB- Em 09/09/2003/ o menor CC realizou ecografia renal que evidenciava rim esquerdo sem alterações, rim direito com contornos francamente irregulares, com indentação profunda no seu 1/3 médio correspondendo a lesão traumática, espessura parenquimatosa reduzida, aumento da ecogenicidade cortical, com ectasia piélica de 1 cm.
AC- Em 04/02/2004/ o menor CC realizou ecografia renal que evidenciava rim direito com contornos bosselados, indentação no 1/3 médio, traduzindo provável cicatriz. Quistos parafiélicos. Sem dilatações. Rim esquerdo sem alterações.
AD- Em 29/04/2005/ CC realizou ecografia renal que evidenciava rim esquerdo sem alterações com excepção de foco de microtitiase no seu 1/3 médio com 4 mm. Rim direito com franca redução da espessura do parênquima na sua metade inferior associada a ectasia pielocaliceal. Identificam-se alguns cálculos no seu terço médio com dimensões até 9 mm.
AE- Em 14/05/2004 CC realizou DMSA que evidenciava rim direito atrófico, de dimensões muito reduzidas com captação deficiente do radioformaco. Rim esquerdo sem alterações. Rim direito 22,1 %, rim esquerdo 77,9%.
AF- Em 06/05/2005 voltou a fazer DMSA que evidenciava rim direito de muito reduzidas dimensões com hipofunção muito marcada e evidência de lesões corticais. Rim direito 20,7%, rim esquerdo 79,93%.
AG- Em 30/04/2005, a função renal - creatina sérica 0,9 mg/ dI; depuração de creatinina - 52 ml/ min ( valor corrigido para a área de superfície corporal 69,7 ml/MIN/1.73 M2).
AH- Fez análise sumária de urina, em 15/09/2005, sem alterações.
AI- O CC apresenta atrofia renal direita na sequência de traumatismo renal grave e depuração de creatinina calculada em 69,7 ml/ min/ 1.73 m2.
AJ- O menor CC ficou a padecer de atrofia renal direita com diminuição marcada da função renal, com lesões corticais.
AK- O rim direito tem contornos irregulares particularmente no seu terço médio, onde existem calcificações de natureza residual, ectasia calicial de 1/3 inferior do rim.
AL- E, bem assim parênquima de espessura reduzida e ecogenicidade aumentada com diferenciação parênquimo - sinusal razoavelmente conservada.
AM- A função renal diferencial do CC era, em 14/05/2004, de: rim direito - 22,1 % e rim esquerdo - 77,9%.
AN- O filtrado glomerular situa-se actualmente nos 60 ml/ m.
AO- O CC tem uma incapacidade em consequência das lesões e sequelas emergentes do acidente dos autos de 12%.
AP- O menor CC sofreu as dores do acidente e dos ferimentos daí resultantes, seus tratamentos e curativos.
AQ- Sofreu a angústia, a tristeza e o incómodo dos internamentos hospitalares e das sucessivas e múltiplas consultas médicas a que teve que recorrer.
AR- O CC apercebe-se de que algo não está bem consigo próprio embora não saiba ainda a extensão e natureza das lesões de que padece e as de que poderá vir a padecer.
AS- Mas sabe que jamais deixará os exames periódicos de controle.
AT- Tornou-se após o acidente uma criança mais triste, mais retraída e menos brincalhona.
AU- É provável que o CC apresenta no futuro cólicas renais de repetição e de infecções renais e bem assim de hipertensão arterial.
AV- A verificar-se o quadro clínico referido na resposta dada no ponto anterior, tal determinará a necessidade do CC se submeter a tratamentos.
AW- Coloca-se como previsível que ao CC venha a ser necessário, no futuro, extrair (perdendo definitivamente) o rim direito dadas as alterações renais existentes por via do acidente.
AY - Sendo que o exposto há-de trazer dores, incómodos, aborrecimentos, tristezas e revoltas ao menor CC.
AX- A situação vivenciada pelo CC faz-lhe sentir receio pelo futuro.
AZ- A situação vivenciada pelo menor CC e o seu sentimento de receio quanto ao futuro afecta-lhe, de modo moderado, os estudos e o convívio com os outros e poderá, no futuro, afectar-lhe o seu rendimento no trabalho.
BA- A verificar-se a situação clínica referida em AV e AW, tal facto determinará perda de horas de trabalho ou estudo para o CC.
BB- A verificar-se aquela situação clínica tal demandará despesas de deslocação, de telefonemas, em médicos, hospitais, medicamentos e refeições.
BC- Os pais do CC suportaram várias deslocações a consultas médicas em diversos hospitais.
BD- Os pais do CC utilizaram transportes públicos e em que despenderam não menos de 570,99 Euros.
BE- Despenderam ainda os Autores em despesas médicas e medicamentosas e alimentação na ida às consultas a quantia de 78,33 Euros.
BF- Por via do acidente, lesões e sequelas dele emergentes para o CC, a Autora perdeu várias horas de trabalho enquanto dona de casa e despendeu, em refeições fora da sua residência a quantia de 37,50 Euros .
BG- A Autora BB seguia atrás da sua filha e atrás daquela seguia o CC.
BH- O CC, ao chegar à estrada que liga o C… a C…, parou na berma esquerda desta, atento o sentido de marcha C…/C…, e nela permaneceu por alguns momentos a apertar um cordão de um dos sapatos que trazia calçado, de tal modo que, estando ainda na berma, o veículo AMT se aproximou do local.
BI- Quando o veículo AMT estava a uma distância não apurada do CC e quando a Autora ainda estava em plena travessia da estrada, estando a cerca de um metro de distância do passeio do lado direito da via, atento o sentido de marcha C…/C…, o CC lançou-se à estrada a correr em direcção ao outro lado dela.
BJ- Fê-lo sem olhar para o seu lado direito de onde era proveniente a motorizada.
BL- A motorizada era visível para a família do CC e para ele próprio, a uma distância de pelo menos 50 metros (este acrescentado pela Relação).




VII –
O artigo 483.º do Código Civil estabelece, como requisito da responsabilidade civil, a culpa.
E, já a propósito da “Obrigação de indemnização”, insere o artigo 570.º em que admite – ainda que não imponha – a redução ou mesmo exclusão da indemnização, nos casos em que, para a produção ou agravamento dos danos, tenha concorrido um facto culposo do lesado.

Já fora da responsabilidade por factos ilícitos (baseada na culpa) inclui, na Subsecção reportada à “Responsabilidade pelo risco”, o artigo 505.º referindo que, sem prejuízo do artigo 570.º, a responsabilidade fixada no n.º1 do artigo 503.º, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Deste quadro – completado com outras disposições do mesmo código – emerge, no que respeita aos acidentes de viação, um entendimento tradicional.
Primeiro há que tomar posição sobre se existem elementos que permitam ajuizar da culpa. Havendo-os, há que decidir quem foi o ou os culpados e atribuir indemnização de acordo com o que resultar de tal juízo sobre a culpa.

Não havendo tais elementos, valem as regras relativas à responsabilidade pelo risco.



VIII –
Desde logo, porém, no seguimento dos ensinamentos de Vaz Serra, houve quem se insurgisse contra a absoluta clivagem entre os mencionados tipos de responsabilidade, admitindo, para certos casos, e com base numa das possíveis interpretações daquele artigo 505.º, a coexistência.



IX –
Mais insere o código o artigo 9.º, n.º1 que manda atender, na interpretação das leis, às condições específicas do tempo em que são aplicadas. Está aqui uma “nota vincadamente actualista”, no dizer de Pires de Lima e A. Varela em anotação a este artigo.
Tendo a lei vindo a lume em 1966 e entrado em vigor em 1967, claro se torna, a nosso ver, que, no domínio dos acidentes de viação, se impõe ao intérprete um modo de ver particularmente evolutivo. Não só pela imensidão que atingiu o trânsito com veículos a motor e inerentes acidentes, como também pelo acentuar particularmente intenso dos direitos de personalidade e respectiva atribuição indemnizatória quando violados.
Até uma determinada idade que as estatísticas vão precisando, está o ser humano hoje mais sujeito a morrer ou a ser gravemente atingido na sua integridade física ou psíquica em acidentes de viação do que na soma de todas as doenças.



X –
Na verdade, os sinais dos tempos vieram ao de cima.
A tutela dos direitos individuais – mormente dos direitos de personalidade – intensificou-se de tal maneira que passou, em muitos pontos, a obnubilar ou mesmo desprezar a ideia de comportamento culposo de quem os viola. As normas sobre os acidentes de trabalho, sobre a responsabilidade do produtor, sobre a indemnização, por parte do Estado, às vítimas de crimes violentos são disso claro exemplo. Claro exemplo constitui também o próprio seguro obrigatório automóvel em que responde uma seguradora, quando o culpado nem sequer é demandado.




XI –
Neste evoluir dos tempos determinantes para se interpretarem as disposições do Código Civil, vem marcando presença forte o direito comunitário.
Perspectivando a sua incidência legislativa no regime dos seguros, não tem deixado, por si, ou através do TJ que o interpreta, de atingir o âmago da responsabilidade civil.

Para o que aqui nos importa, dele – tendo sempre presente o princípio da primazia - vem derivando uma alteração substancial. Enquanto o Código Civil estatui na perspectiva do agente, o direito comunitário fá-lo, tendo como preocupação fundamental, a protecção da vítima.
São claros exemplos os citados na declaração de voto junta pelo aqui relator ao Acórdão deste Tribunal de 4.10.2007, processo n.º 07B1710 disponível em www.dgsi.pt. Mesmo o legislador nacional tem-se encaminhado nesse sentido, podendo ver-se, a este propósito, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.8, onde se pode ler “No presente vector das soluções centradas no aumento da protecção dos lesados…” e o começo do preâmbulo da Portaria n.º 377/2008, de 26.6.: “A defesa dos interesses das vítimas dos acidentes de viação tem sido uma das prioridades do Governo”.
Entendimento que também tem sido reiterado por este Tribunal (Ac.s de 22.4.2008, processo n.º 08B742, 16.10.2008, processo n.º 08A2362, 7.5.2009, processo n.º 09A0512 e 20.10.2010, processo n.º 346/1998.S1. ) e foi salientado por Calvão da Silva, na RLJ, n.º137, página 59.


Mais vem resultando do direito comunitário, a nosso ver, a concretização da ideia de não considerar a culpa como elemento em torno do qual gira necessariamente a responsabilidade coberta pelo seguro obrigatório automóvel. Neste ponto, surgem mais dúvidas. O TJ pronunciou-se, na sequência de reenvios prejudiciais, nos casos nos casos Katia Candolin e Elaine Farrel,, o primeiro por Acórdão de 30.6.2005 (cujo texto se pode ver na CJ STJ, XIII, II/2005, 7) e o segundo por Acórdão de 19.4.2007 (disponível em www.dgsi.pt, depois “direito comunitário” e, depois, jurisprudência do TJ e, finalmente, mesmo pela data).
As decisões assim tomadas têm um alcance geral, de sorte que os tribunais nacionais são obrigados ao acatamento do sentido e alcance que elas conferiram à norma comunitária (neste sentido, Fausto de Quadros e Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, 115, Caramelo Gomes, ob. cit., 60, João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, 438, Inês Quadros, A Função Subjectiva da Competência Prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, 49, Vital Moreira e Gomes Canotilho, anotação XXIII ao artigo 8.º da Constituição e Moitinho de Almeida no “Estudo”, página 17, que se pode ver entrando no sítio do STJ, depois em “Documentação” e, seguidamente em “Estudos Jurídicos”).
E, em ambas, o Tribunal de Justiça afastou a relevância da culpa na aferição do âmbito do seguro obrigatório. É certo que, ambos os casos, se reportavam a passageiros de veículos a motor – e esta qualidade é acentuada no item 32 do segundo dos arestos - mas, ainda assim, não deixa de merecer ponderação o papel reservado à culpa.
Ponderação, em qualquer caso, muito cautelosa, porquanto nos considerandos 15.º e 16.º da Directiva n.º 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.5.2005, se distinguem os passageiros, por um lado, e os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, por outro, referindo-se, quanto a estes, que “… deverão estar cobertos pelo seguro obrigatório do veículo envolvido no acidente, caso tenham direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional. Esta disposição não condiciona a responsabilidade civil nem o nível de indemnização por um acidente específico, ao abrigo da legislação nacional.”
De qualquer modo, também não podemos ignorar que o progressivo afastamento da relevância da culpa nos acidentes de viação com veículos a motor tem sido constante nos direitos internos dos países com os quais temos mais afinidades legislativas, como pormenoriza Moitinho de Almeida no apontado “Estudo”. Com relevância para a lei francesa, a denominada Lei Badinter (já de 5.7.1985), cuja tutela dos sinistrados, mormente dos menores de 16 anos, dos maiores de setenta e dos reconhecidamente incapazes ou inválidos tem apenas como ressalva os casos em que eles procuraram voluntariamente a produção dos danos que vieram a sofrer.





XI –
Encontrámos, então, dois vectores que se complementam e que são importantes para o nosso caso, quais sejam o da perspectiva da vítima e da esbatida relevância da culpa.
Logo pelo primeiro e em relação ao entendimento tradicional de exame sob a perspectiva do agente, assume particular relevância a idade de 9 anos que tinha o sinistrado.
E, inerente a esta idade, vem a aferição da culpa. Embora a lei só presuma a inimputabilidade relativamente a menores de 7 anos (artigo 488.º, n.º2 do Código Civil) é, para nós, claro que a travessia duma via de trânsito por menor de 9 anos não pode ser analisada, no plano da culpa, como se tivesse lugar por um adulto (a este propósito, veja-se Calvão da Silva, Revista citada, página 62).
Ainda a este propósito, cremos justificar-se que se tragam para aqui as palavras de Brandão Proença (Juris et de Jure, Nos Vinte Anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, 110):
“… Essa abertura exige a adopção dum critério valorativo que considere a fragilidade dos menores no tráfego, que secundarize as noções clássicas ligadas à responsabilidade individual, que acompanhe os modelos mais protectores presentes noutros ordenamentos, que confira protagonismo ao seguro e ao Fundo de Garantia e que circunscreva a exoneração do detentor às condutas conscientes do lesado, reveladoras de um desleixo manifesto com a sua própria protecção. Estas considerações, justificativas da adopção de uma nova ordem, fundam-se em certos postulados fundamentais, dos quais importa salientar a eficácia protectora do seguro obrigatório (com a consequente despersonalização da responsabilidade…) a fragilidade físico-psíquica dos menores de certa idade (a sua vontade natural é insuficiente para afastar uma incapacidade de “diálogo” com o tráfego rodoviário) a moderna acentuação tónica no dano (maxime de natureza corporal) e a tendência para a progressiva rarefacção do conteúdo da conduta autoresponsabilizante.
Essa nova ordem, sintonizada que está com as exigências da vida e a sensibilidade do jurista mais atento, não pode continuar a fundamentar-se numa norma (a do artigo 505.º) que aglutina as pessoas à margem da consciência do perigo e valora puros actos causais… Tendo nós por certo que se impõe a subjectivação do teor do artigo 505.º, orientada para a fixação de comportamentos que pela sua gravidade conduzam ao afastamento da responsabilidade, também não duvidamos da necessidade de ser consagrada uma reparação automática dos danos corporais causados aos menores de certa idade.”
Ideias que o Autor vincula novamente em Cadernos de Direito Privado, 2004, 7, 25 e seguintes.






XII –
No presente caso não temos, sequer, de interpretar o artigo 505.º. Os factos descrevem-nos uma conduta manifestamente negligente do condutor da motorizada.
O que não aceitamos é o cotejo, feito pela Relação, entre a negligência dele e o comportamento, pretensamente negligente, duma criança de 9 anos. Seria colocar em plano de igualdade o que é muito diferente. Seria colocar a fasquia do comportamento devido num plano imutável correspondente às dimensões do adulto. Duma criança de 9 anos que vem com mãe e dois irmãos ainda mais pequenos e que fica na borda da estrada a apertar os sapatos, o que se espera não é que, finda a operação - difícil para ele - recupere, de imediato, a consciência do que significa a travessia dum via de trânsito, mas antes que, finda essa mesma operação, o desligamento com o grupo familiar o preocupe e queira, de imediato reagrupar, correndo.
O artigo 570.º não vale aqui no cotejo entre o comportamento do condutor e o comportamento do sinistrado.
É certo que, na interpretação deste preceito, há quem vá para além da letra da lei e nele inclua os casos em que o lesado tenha contribuído para a produção ou agravamento dos danos ainda que sem culpa. Bastam-se tais intérpretes com a relação de causalidade. No entanto, face a todo o contexto interpretativo relativo a acidentes de viação com menores que resulta do que supra referimos, entendemos ser aqui de afastar o acolhimento desta posição.

Onde vale o artigo 570.º é no cotejo entre o comportamento daquele condutor e o da mãe. Esta está abrangida pela remissão do artigo 571.º. Geralmente a culpa “in vigilando” releva pouco no domínio dos acidentes de viação porque, quando acontecem com menores, estes não estão directamente sob a alçada da visão de quem de direito, nem se pode exigir que o estejam sempre. Mas, “in casu”, a mãe que se meteu a atravessar a via com três filhos tinha-os todos sob a sua protecção para aquele acto concreto. Ou não tomava a decisão de atravessar ou, tomando-a, não podia “perder de vista” e de controle qualquer das crianças. Isto independentemente de surgir ou não surgir qualquer veículo.




XIII –
Entendemos, todavia, que a culpa do condutor é muitíssimo mais grave.
Uma estrada que fica a menos de 100 metros duma escola e a cerca de 200 metros duma igreja, numa hora em que, relativamente a esta, tinham lugar actividades que demandavam a circulação de pessoas, deve, logo à partida, ser encarada quase como zona pedonal e menos de trânsito. Por isso se compreende muito bem a limitação a 30 Km/h da velocidade.
Em desrespeito por esta, o condutor imprimia ao veículo uma velocidade de, pelo menos, 45 km/h.
Depois, teve ele ao seu alcance uma visibilidade perfeita, totalmente atempada relativamente a adequação da circulação ao que se passava. E o que se passava era uma mãe, com um carrinho de bebé e mais duas crianças pequenas a atravessar a estrada. Uma realidade que determina em qualquer condutor, minimamente diligente, uma abrandar do veículo até uma velocidade semelhante à dum peão, se não mesmo a paragem à espera que tudo fique claro quanto ao trânsito. Teve mesmo tempo para ver que uma das crianças se atrasava e a ideia de que, atrasando-se, ia ter consciência dos perigos e não atravessava sem os indagar, traduz, ela mesma, uma negligência, porquanto um condutor normal deve prever que as crianças não agem assim.
A mãe também assumiu a responsabilidade de atravessar onde não havia passadeira e não procedeu ao controle cerrado de todos os filhos, que a circunstância exigia. Mas tinha ela mais dois para cuidar naquele contexto e, por isso, cremos não dever assacar-lhe culpa intensa.
Assim, consideramos, ser adequada a repartição da culpa em 80% para o condutor e 20% para a mãe.


O mencionado artigo 570.º deixa ainda o julgador uma margem de liberdade consistente em decidir ou não decidir, no plano indemnizatório, de acordo com a repartição de culpas.
No presente caso, no entanto, entendemos ter esgotado a favorabilidade que deve assistir ao menor nas considerações que fizemos a propósito da culpa e não seguir para uma segunda valoração responsabilizando a seguradora por mais do que encerra a culpa do condutor do veículo segurado.




XIV –
Insurge-se ainda a seguradora com o “quantum” relativo à indemnização pela IPP e pelos danos não patrimoniais.
O recurso ao instituto da IPP num caso como este faz vir ao de cima as suas próprias limitações. O sinistrado não trabalha, não o pode fazer por lei – a não ser em casos muitíssimo pontuais que a lei laboral ressalva – e está muito longe de o poder vir a fazer. Não se sabe que tipo de trabalho poderá vir a ter e em que medida concreta a incapacidade afectará o seu desempenho ou o esforço relativamente a este.
Neste quadro, resta ao Tribunal - num plano de equidade traçado pelo n.º3 do artigo 566.º do Código Civil - atentar no salário mínimo nacional, passando por cima da sua previsão quando o menor entrar no mercado de trabalho, e encontrar, à partida, um capital que produzindo rendimento venha a equivaler ao que – muito teoricamente – vai deixar de auferir o CC e se venha a extinguir no fim presumível de vida activa do menor, este particularmente longínquo.
Este cálculo deve ser logo corrigido pela antecipação de vários anos que medeiam entre o recebimento da quantia e o começo dos prejuízos e, bem assim, pelo recebimento total desta, quando os prejuízos hão-de, previsivelmente, ter lugar ao longo de toda a vida activa.
Os € 70.000 que nos chegam da Relação, se considerarmos a taxa de juro líquida de 2%, produzem € 1.400 de rendimento anual. A taxa actualmente não está tão alta, mas é previsível que, com o evoluir dos tempos se situe algo acima. Além disso, outras formas de aplicação do capital superam, com segurança, as taxas de juro praticadas pelos bancos.
A perda de 12% (a tal percentagem ascende a IPP) do rendimento auferido, tendo em conta o salário mínimo nacional de € 5.402,6 anuais para 2006 (ano a partir do qual se começam a vencer juros de acordo com a decisão da 1.ª instância, confirmada, nessa parte pela Relação) corresponde a € 648 euros.
Há, no montante que nos chega, uma sobrevalorização manifesta. O que vimos referindo impõe antes um regresso aos € 32.000 da 1.ª instância.

Já os € 30.000 euros que a Relação fixou relativamente aos danos não patrimoniais parecem-nos justos. Trata-se duma criança que vai passar todo o resto da sua previsível vida “amarrado” às consequências do acidente. E foram de monta.
Tendo em conta o que vem sendo fixado por este Tribunal (e está acessível no respectivo sítio em “jurisprudência temática”) e de certo modo, nos vincula atento o n.º3 do artigo 8.º do Código Civil, nada temos a censurar por aqui.

Relativamente às quantias agora encontradas, assim como relativamente às demais, há que ter em conta a proporção de 80% acima falada.



Passemos agora ao recurso dos autores.


XV –
Concluem eles as alegações do seguinte modo:

1 . Discorda-se da divisão na proporção de 60% e de 40% a título de culpa respectivamente para o condutor da motorizada e para a mãe do menor (culpa in vigilando).
2 . Estão já suficientemente expostos os factos e as razões em que se estribam ambas as partes; factos e razões e que também levaram o Tribunal da Relação do Porto a proferir o douto Acórdão ora Recorrido com o qual se concorda por se achar equilibrado o montante fixado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (antes da repartição das culpas).
3 . Sem prejuízo, porém, de tudo quanto se encontra carreado para os autos, de tudo quanto se encontra já aduzido, somos sempre confrontados por dever de justiça, a cotejar a censura ético jurídica passível de fazer-se aos dois agentes.
4 . Por um lado a censura ético jurídica que pode apontar-se a uma mãe que para levar os filhos à catequese desde o lugar do … até à Igreja, em …, transporta consigo uma criança de colo num carrinho de bebé ao longo de todo o percurso, por uma distância não inferior a cerca de 2 km (só a recta que antecede o acidente e tem cerca de 500 m).
E que "leva consigo" junto de si mais, a pé, dois filhos menores de 11 e 7 anos de idade a quem não pode sequer dar a mão pois que as leva ocupadas com o carrinho de bebé que transporta.
Uma mãe a quem se impõe um cuidado intenso e repartido por 3 filhos menores para além do esforço físico de transportar um carrinho de bebé com um bebé dentro, aquele a quem, porventura, devia dispensar os maiores cuidados e atenção.
Uma mãe cuja culpa in vigilando se reconduz, a final de contas, a "ter deixado" por três a quatro segundos, o filho menor CC para trás, na travessia. Apenas esse brevíssimo lapso de tempo, porquanto ainda antes daquela (mãe) ter completado a travessia já o menor (atropelado lhe seguia no encalço).
5 . E por outro lado, a censura ético-jurídica ao condutor de um veículo motorizado, veículo esse potencialmente perigoso que
- Conhecia bem as características da via e do local por residir próximo e por lá passar muitíssimas vezes e desde sempre.
- Que sabia que nas proximidades há uma escola, uma igreja e várias casas de habitação
- Que podia ter visto várias pessoas (incluindo crianças) a circular naquela estrada, que é das mais concorridas da freguesia.
- Que sabia que existia sinalização a proibir a circulação a mais de 30Km/h,
- Impondo-lhe as especiais condições que circulasse ainda a menos que aqueles trinta quilómetros /hora é que apesar disso, alheio a tudo, desprezando todas essas regras de cuidado, circula a 45km/hora, ou seja em mais 50% do que lhe era, no máximo permitido.
-que podendo desviar-se para a sua esquerda pois tinha livre a faixa de rodagem o não tenha feito, sendo certo que se estivesse atento e, sobretudo, se viesse mais devagar realizaria sem dificuldade.
6 . Ora é justamente deste cotejo que concluímos não ser relevante a censura ético jurídica da mãe do menor ou, quando muito, não se valorar esta em mais de 10% contra 90% de culpa do condutor da motorizada.
7 . Ao julgar daquela forma, fizeram os Excelentíssimos Desembargadores aplicação e interpretação menos correcta do disposto dos artigos 483, 562, 564-1 e 566-2-3, todos do Código Civil.

Não houve contra-alegações.



XVI –
Nas suas alegações e respectivas conclusões, levantam os autores apenas a questão da repartição da culpa na eclosão do acidente.
Sobre esta matéria já discorremos a propósito do outro recurso em termos que aqui damos como reproduzidos.




XVII –
Face a todo o exposto, em provimento parcial de ambas as revistas, altera-se a parte decisória do acórdão recorrido, ficando a seguradora condenada a pagar:
€ 25.600 a título de IPP;
€ 24.000 com referência aos danos não patrimoniais;
80% de todas as demais quantias objecto de condenação em primeira instância;
Juros nos termos ali fixados.


Custas aqui e nas instâncias pelos autores e seguradora, de acordo com vencimento e decaimento, não se contando, para já, a quantia a liquidar ulteriormente.

Supremo Tribunal de Justiça
Lisboa, 21 de Abril de 2010,

João Bernardo (Relator)
Oliveira Rocha
Oliveira Vasconcelos