Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3711
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: ACÇÃO
PREVENÇÃO
DANO
REQUISITOS
Nº do Documento: SJ200611210037116
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - A proibição do art. 1347 do C.C., pressupõe o receio fundado de que as obras, instalações ou depósitos de substância corrosivas ou perigosas tenham efeitos nocivos não permitidos por lei, sobre os prédios vizinhos.

II - Com a reforma do Código do Processo Civil de 1995/1996, foi alterada a redacção do artigo 1052 do C.P.C. e suprimido o processo especial de prevenção contra o dano, pelo que a verificação do receio de efeitos nocivos sobre o prédio vizinho passou a fazer-se em acção declarativa, em processo comum.

III - Os nºs 1 e 2, do art. 1347 do C.C. prevêem duas situações distintas, conforme as obras tenham ou não sido autorizadas pela entidade pública.

IV - O nº1 contem uma restrição de natureza preventiva, não exigindo a existência de dano efectivo sobre o prédio vizinho, mas apenas a possibilidade de um dano, que deve ter um mínimo de probabilidade.

V - O nº2 já não tem natureza preventiva, de tal modo que a inutilização das obras, instalações ou depósitos só poderá ser pedida a partir do momento em que o prejuízo se torne efectivo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



"AA" e mulher BB, instauraram a presente acção ordinária contra o réu CC, pedindo que este seja condenado:
a) - a reconhecer o autor como dono e legítimo possuidor do prédio identificado no art. 1º da petição inicial;
b) - a não utilizar e a destruir as duas fossas que construiu no seu prédio e a não construir quaisquer outras que não respeitem as prescrições legais;
c) a indemnizar os autores pelos prejuízos que lhes advenham da eventual utilização de tais fossas e da inquinação das águas do seu poço, quer para a saúde, quer para a utilização do prédio do autor, com montante a liquidar oportunamente.
Para tanto, alegam, resumidamente:
- o réu construi uma fossa, a cerca de seis metros do poço da casa de habitação dos autores, destinada a recolher as águas das lavagens da cozinha e os diversos efluentes do quarto de ganho, de uma habitação que o mesmo réu construiu em frente à casa dos autores;
- perante os protestos do autor, que fatalmente ficaria com a água do seu poço inquinada e imprópria para consumo, o réu construiu então uma outra fossa, sem destruir a primeira;
- os riscos da contaminação da água do poço do autor mantêm-se, quer porque a, nova fossa dista apenas cerca de 15 metros do dito poço, quer porque, mesmo que a segunda fossa seja cerzitada, bastará um pequeno movimento de terras ou mudanças de temperatura para que as suas paredes possam abrir brechas, que, por pequenas que sejam, serão suficientes para provocar um derrame contínuo, que fatalmente inquinaria as águas do subsolo, das quais se abastece o poço do autor.
O réu contestou, dizendo que o protesto dos autores quanto à construção da 1ª fossa foi injustificado, que ambas as fossas estão certizadas e que foram licenciadas pela Câmara Municipal de Vila do Conde, pelo que considera infundada a pretensão dos autores.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, que decidiu::
a) - Condenar o réu a reconhecer o autor, como dono e legítimo possuidor do prédio misto constituído por casa de rés do chão, com garagem a arrumos e andar com dependências, com a área de 140 m2 e cortinha junta, de cultura e ramada, com a área de 8.960 m2, sito no Local-A da freguesia de Outeiro, do concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz urbana sob o art. 107 e na rústica sob o art. 151, descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº 00133/0106/12;
b) - Condenar o réu a não utilizar e a destruir a 1ª fossa que construiu no seu prédio e se situa a cerca 9 a 10 metros do poço do autor;
c) - Absolver o réu do demais pedido.

Apelou o réu e a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 5-6-06, julgou procedente a apelação e revogou a sentença recorrida, na parte em que nela se decide condenar o réu a não utilizar e a destruir a 1ª fossa que construiu no seu prédio, situada a cerca de 9 a 10 metros do poço do autor.

Agora, são os autores que pedem revista, onde consideram violado o art. 1347, nº1, do C.C., por entenderem que tal disposição se contenta com o mero risco da ocorrência do dano e por os autores terem provado a fatalidade ou certeza da inquinação da água do seu poço, pela utilização da 1ª fossa, construída pelo réu.

O réu contra-alegou em defesa do julgado pela Relação.

Corridos os vistos cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes:

1 - O autor é dono e possuidor de um prédio misto, constituído por casa de rés do chão, com garagem e arrumos e andar com dependências, com a área de 140 m2, e cortinha junta, de cultura e ramada, com a área de 8.960 m2, sito no Local-A, da freguesia de Outeiro, do concelho de Vila do Conde, inscrito na matriz urbana sob o art. 107 e na rústica sob o art. 151, descrito na Conservatória do registo predial sob o nº 00133/010612.

2 - O autor adquiriu tal prédio por adjudicação, em partilha por óbito de DD, tendo-o registado em seu nome.

3 - O prédio do autor situa-se na Avenida Principal, nº ..., na dita freguesia de Outeiro.

4 - A respectiva casa de habitação, onde vivem os autores, fica a quatro metros da rua.

5 - No lugar e na freguesia não existe rede pública de abastecimento de água.

6 - O réu é dono de uma área de terreno situada também na Avenida Principal, da freguesia de Outeiro, situada mesmo em frente do prédio do autor, ou seja, do outro lado da via.

7 - O réu está a construir nessa área de terreno uma casa de habitação que já está identificada com o nº ...de polícia, da Avenida Principal da freguesia de Outeiro, desta comarca.

8 - No âmbito dessa construção, o réu edificou uma fossa junto à rua, em frente da casa do autor.

9 - Fossa essa que se destinava a recolher as águas das lavagens da cozinha e os diversos efluentes do quarto de banho da casa que tem em construção e que funciona como caixa retentora, com bombagem para a outra fosse existente.

10 - O autor tem no seu prédio um poço com água.

11 - Da qual se abastece para todos os seus gastos domésticos de ordem alimentar, higiénica e mesmo de rega do seu jardim.

12 - Poço esse que se situa mesmo junto à rua.

13 - A fossa edificada pelo réu junto à rua, em frente da casa do autor, situa-se a cerca de 9 a 10 metros do poço do autor.

14 - Perante os protestos do autor, que fatalmente ficaria com a água do seu poço inquinada e imprópria para o consumo, o réu construiu então uma outra fossa um pouco mais afastada ( resposta ao quesito 6º da b. i.).

15 - Mas sem que tenha destruído a primeira.

16 - Os riscos da contaminação da água do poço do autor, dependem da capacidade de permeabilização do terreno e dos veios de água que possam existir no subsolo ( resposta ao quesito 8º da b. i.).

17 - A nova fossa situa-se a cerca de 20 metros do dito poço.

18 - Ainda quer tal fossa venha a ser cerzitada, basta um pequeno movimento de terras ou mudanças de temperatura para que as suas paredes possam abrir brechas.

19 - A contaminação da água do poço dos autores atingiria os mesmos e todos quantos com eles vivem, em sua casa, na sua saúde.

20 - Assim como comprometeria a habitabilidade da casa do autor, que ficaria sem água potável.

21 - Os autores têm a segunda fossa a cerca de 20 metros do poço.

22 - Entre o prédio dos autores e o do réu existe um caminho público.

Sendo estes os factos provados, é perante eles que teremos de decidir o recurso.
A decisão tem de ser encontrada no âmbito do art. 1347 do C.C., que dispõe o seguinte:
"1- O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei.
2 - Se as obras instalações ou depósitos tiverem sido autorizados por entidade pública competente, ou tiverem sido observadas as condições especiais prescritas na lei para construção ou manutenção deles, a sua inutilização só é admitida a partir do momento em que o prejuízo se torne efectivo.
3- É devida em qualquer dos casos, indemnização pelo prejuízo sofrido".
Refere-se este preceito à construção ou manutenção, num prédio, de quaisquer obras, instalações ou depósitos de substancias corrosivas ou perigosas.
Como observam Pires de Lima e Antunes Varela ( Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, pág. 180 ), " a proibição pressupõe o receio fundado de que as obras , instalações ou depósitos tenham efeitos nocivos não permitidos por lei.
O artigo não diz de que obras se trata, ao contrário do Código Civil de 1867, que se referia, no seu art. 2338, às cloacas, fossas, canos de despejo, chaminés, lares, fogões, fornos e aos depósitos de sal ou outras matérias corrosivas, ou que produzam infiltrações nocivas.
Pareceu preferível referir genericamente os efeitos nocivos não permitidos por lei, evitando-se omissões difíceis de resolver, dada a natureza especial do preceito ".
E acrescentam mais à frente os insignes civilistas (obra citada, pág. 181):
"Quando se alude aos efeitos nocivos sobre o prédio, não se pretende restringir o âmbito do preceito às obras, instalações ou depósitos capazes de atingir apenas, directamente, o prédio.
Há que contar também com os efeitos nocivos sobre a segurança, a saúde ou a tranquilidade das pessoas, que só indirectamente atingem o prédio, desvalorizando-o em maior ou menor escala ".
O receio a que se refere o texto tem de ser apreciado objectivamente.
Até à reforma do processo civil de 1995/1996, tal apreciação fazia-se na acção especial de prevenção contra o dano que o proprietário vizinho instaurasse nos termos do seu art. 1052 do C. P. C., quando quisesse opor-se às obras, com receio dos efeitos nocivos que daí lhe advenham.
Com a reforma do Código do Processo Civil de 1995/1996, foi alterada a redacção do aludido art. 1052 e suprimido o processo especial de prevenção contra o dano, pelo que a verificação do receio passou a fazer-se em acção declarativa, com processo comum.

O citado art. 1347 prevê duas situações distintas, conforme as obras tenham ou não sido autorizadas pela entidade pública competente.
No seu nº1, " estabelece uma restrição de natureza preventiva, destinada a afastar o perigo de prejuízos para o prédio vizinho, cuja finalidade é impedir determinadas emissões de carácter nocivo.
Desde que seja de recear a verificação destas emissões, devem os proprietários abster-se de praticar os actos que possam originá-las; se tiverem sido feitas quaisquer obras que envolvam os perigos que a lei pretende evitar, deverão ser destruídas " ( Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pág. 145).
Quer dizer, não se exige a existência de um dano efectivo, mas apenas a possibilidade de um dano, dano esse que deve ter um mínimo de probabilidade (Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, 597).
Mas o nº2 do aludido art. 1347 já não tem natureza preventiva.
A inutilização das obras, instalações ou depósitos que nele se referem só poderá ser pedida a partir do momento em que o prejuízo se torne efectivo (Henrique Mesquita, obra citada, pág. 145, nota 1).
Tal significa que, quando as obras ou instalações prejudiciais tiverem sido autorizadas pela autoridade pública competente, a proibição surge não já com a previsibilidade do dano, mas com a sua efectivação (Menezes Cordeiro, Direitos Reais , 1979, 597).
É que, se as obras foram autorizadas pela Administração ou se foram efectuadas de acordo com as condições especiais prescritas na lei, há uma presunção legal de que não advirão danos.
Pois bem.
No nosso caso concreto, o réu não logrou provar que a construção da primeira fossa ( ou seja, a fossa edificada junto à rua, em frente à casa dos autores), tivesse sido autorizada pela Câmara Municipal de Vila do Conde, nem tão pouco que esteja certizada, isto em face das respostas negativas que foram dadas aos quesitos 15º e 16º da base instrutória e da resposta restritiva ao quesito 21º da mesma peça.
Daí que o caso em apreciação se enquadre na previsão do art. 1347, nº1, do C.C. , que já vimos estabelecer uma restrição de natureza preventiva.

Neste recurso, a questão a decidir respeita apenas à apreciação da construção da primeira fossa e ao receio dela provocar efeitos nocivos não permitidos por lei sobre a água do poço da casa dos autores.

Nesse domínio, apurou-se que o réu edificou uma fossa junto à rua, em frente à casa dos autores, fossa essa que se destinava a recolher as águas das lavagens e os diversos efluentes do quarto de banho da casa que aquele tem em construção e que funciona como caixa retentora com bombagem para a outra fossa existente.
Aquela fossa foi edificada a cerca de 9 a 10 metros do poço de água existente na casa dos autores, água de que este se abastece para todos os seus gastos domésticos, de ordem alimentar e higiénica.
A contaminação da água do poço dos autores atingi-los-ia, bem como a todos quantos com eles vivem, na sua saúde, assim como comprometeria a habitabilidade da casa dos mesmos autores, que ficaria sem água potável.
No lugar e na freguesia da localização do prédio do autor não existe rede pública de abastecimento de água.
Segundo o Manual dos Sistemas Prediais de Distribuição e Drenagem de Águas, do Socionimo-B, a distância mínima a observar entre o local da construção de uma fossa e um poço de água ou uma fonte é de 15 metros ( fls 76).
Mais se apurou que, em consequência da construção da primeira fossa, o autor "fatalmente ficaria com a água do seu poço inquinada e imprópria para consumo", tal como consta da resposta ao quesito 6º da base instrutória.
Com efeito, da conjugação dos quesitos 6º, 7º e 8º da base instrutória, não pode deixar de concluir-se que a resposta ao quesito 6º se reporta à primeira fossa, enquanto a resposta ao quesito 8º se refere à segunda fossa, quando prevê os riscos de contaminação da água do poço.
O que tudo significa que mais do que um receio fundado, um risco efectivo ou uma probabilidade séria de efeitos nocivos, se apurou uma certeza de que a água do poço do autor ficará inquinada com a construção da primeira fossa.
Daí que se imponha a revogação do Acórdão recorrido, à luz do disposto no art. 1347, nº1, do C.C.

Termos em que, concedendo a revista, revogam o Acórdão recorrido e condenam o réu a não utilizar e a destruir a primeira fossa que construiu no seu prédio e se situa a cerca de 9 a 10 metros do poço do autor.
Custas pelo réu (ora recorrido), quer na segunda instância, quer no Supremo.


Lisboa, 21 de Novembro de 2006
Azevedo Ramos
Silva Salazar
Afonso Correia