Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1694/20.6T8CSC.C1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
RESPONSABILIDADE AGRAVADA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 11/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REMETIDO À RELAÇÃO PARA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
Sumário :

I- A formação profissional pode servir para alertar para regras do bom senso, da prudência ou do senso comum, contribuindo para uma melhor consciencialização das mesmas.


II- Para prova do nexo causal, basta a demonstração de que o sinistro é uma consequência normal, previsível da violação das regras de segurança, independentemente de se provar ou não, com todo o rigor e extensão, a chamada dinâmica do acidente.


III- No entanto, para que a violação das regras de segurança se possa considerar causal relativamente ao acidente ocorrido é necessário apurar se no caso concreto ela se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1694/20.6T8CSC.C1.S1


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,


Relatório


AA, BB e CC intentaram a presente ação especial de acidente de trabalho contra Liberty Seguros, S.A. e Ventosa Transportes, Lda., alegando, em síntese, que o sinistrado DD foi vítima de um acidente quando prestava o seu trabalho à 2ª Ré manobrando a grua do camião na operação de descarga de um porta paletes, altura em que a porca e a cavilha se soltaram do gancho da grua, desenroscando-se do suporte e originando que o porta paletes com os sacos de argamassa que se encontrava suspenso no ar se soltasse e caísse sobre o sinistrado, em consequência do que resultaram para o mesmo lesões traumáticas que foram causa direta e necessária da sua morte; a entidade patronal não procedeu e registou a manutenção do equipamento em cumprimento das periodicidades definidas na tabela de manutenção do manual de instruções; o sinistrado não possuía formação adequada para o desempenho das funções de gruista que nunca lhe foi ministrada pela Ré patronal e é requisito constante do manual de instruções para operar o equipamento; o acidente foi consequência direta e necessária do comportamento omissivo e descuidado da Ré patronal cabendo-lhe, por isso, proceder à respetiva reparação, sendo a Ré seguradora subsidiariamente responsável.


Realizado o julgamento foi proferida sentença com o seguinte teor:


“Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a presente ação, e, em consequência:


A. Condeno a R. Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal”, sem prejuízo do direito de regresso sobre a R. "Ventosa”, a pagar:


1) à A. AA:


a) a pensão anual e vitalícia no valor de € 4.115,12 (quatro mil, cento e quinze Euros e doze cêntimos), desde 27/6/2020, a ser paga na proporção de 1/14 até ao 3.º dia de cada mês, sendo os subsídios de férias e de Natal, na mesma proporção, pagos em junho e novembro, até a A. perfazer a idade de reforma por velhice, e no valor que vier a ser apurado a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho;


O montante atualizado desta pensão é, desde 1/1/2022, € 4.156,27 (quatro mil, cento e cinquenta e seis Euros e vinte sete cêntimos).


b) a quantia de € 2.896,15 (dois mil, oitocentos e noventa e seis Euros e quinze cêntimos), a título de subsídio por morte, na qual haverá a descontar o montante de € 1.316,43 (mil, trezentos e dezasseis Euros e quarenta e três cêntimos) que lhe foi pago pelo “Instituto da Segurança Social, I.P.”;


c) a quantia de € 1.850,00 (mil oitocentos e cinquenta Euros), a título de despesa de funeral;


d) a quantia de € 18,00 (dezoito Euros), a título de deslocações;


e) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;


2) ao A. CC:


a) uma pensão anual no valor de € 2.743,41 (dois mil, setecentos e quarenta e três Euros e quarenta e um cêntimos), de 27/6/2020 a 31/12/2020.


b) a quantia de € 1.448,07 (mil, quatrocentos e quarenta e oito Euros e sete cêntimos), a título de subsídio por morte;


c) a quantia de € 18,00 (dezoito Euros), a título de deslocações;


d) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;


3) à A. BB:


a) uma pensão anual no valor de € 2.743,41 (dois mil, setecentos e quarenta e três Euros e quarenta e um cêntimos), a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia cada mês e ainda os subsídios de férias e de Natal, de idêntico montante, a serem pagos em Junho e em Novembro, devida desde 27/6/2020, até que a mesma atinja os 18 anos, ou até aos 22 ou 25 anos de idade, respetivamente, enquanto frequentar o ensino secundário ou superior, sem limite de idade quando afetada por deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho.


O montante atualizado desta pensão é, desde 1/1/2022, de € 2.770,84 (dois mil, setecentos e setenta Euros e oitenta e quatro cêntimos);


b) a quantia de € 1.448,07 (mil, quatrocentos e quarenta e oito Euros e sete cêntimos), a título de subsídio por morte;


c) a quantia de 18,00 (dezoito Euros), a título de deslocações;


d) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;


B. Condeno a R. “Transportes Ventosa, Lda." a pagar:


1) à A. AA:


a) a pensão anual e vitalícia


►até 31/12/2020: no valor de € 1.455,82 (mil, quatrocentos e cinquenta e cinco Euros e oitenta e dois cêntimos), desde 27/6/2020, a ser paga na proporção de 1/14 até ao 3.º dia de cada mês, sendo os subsídios de férias e de Natal, na mesma proporção, pagos em junho e novembro;


►desde 1/1/2021: no valor de € 4.241,30 (quatro mil, duzentos e quarenta e um Euros e trinta cêntimos), a ser paga na proporção de 1/14 até ao 3.º dia de cada mês, sendo os subsídios de férias e de Natal, na mesma proporção, pagos em junho e novembro, até a A. perfazer a idade de reforma por velhice, e no valor que vier a ser apurado a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho;


O montante atualizado desta pensão é, desde 1/1/2022, de € 4.283,71 (quatro mil, duzentos e oitenta e três Euros e setenta e um cêntimos).


b) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;


2) ao A. CC:


a) uma pensão anual no valor de € 1.434,80 (mil, quatrocentos e trinta e quatro Euros e oitenta cêntimos), de 27/6/2020 a 31/12/2020.


b) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento;


3) à A. BB:


a) a pensão anual e temporária


►até 31/12/2020, no valor de € 1.434,80 (mil, quatrocentos e trinta e quatro Euros e oitenta cêntimos), a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia cada mês e ainda os subsídios de férias e de Natal, de idêntico montante, a serem pagos em junho e em novembro, devida desde 27/6/2020;


►desde 1/1/2021, no valor de € 2.827,53 (dois mil, oitocentos e vinte e sete Euros e cinquenta e três cêntimos), a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia cada mês e ainda os subsídios de férias e de Natal, de idêntico montante, a serem pagos em junho e em novembro, até que a mesma atinja os 18 anos, ou até aos 22 ou 25 anos de idade, respetivamente, enquanto frequentar o ensino secundário ou superior sem limite de idade quando afetada por deficiência ou doença crónica que afcte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho;


O montante atualizado desta pensão é, desde 1/1/2022, de € 2.855,81 (dois mil, oitocentos e cinquenta e cinco Euros e oitenta e um cêntimos).


Ao montante global da pensão anual a pagar pelas RR. serão deduzidas, na proporção da respetiva responsabilidade, as quantias recebidas a título de pensão de sobrevivência no montante:


- quanto à A. AA, por referência ao mês de outubro de 2022, de € 9.690,04 (nove mil, seiscentos e noventa Euros e quatro cêntimos);


- quanto ao A. CC de € 715,50 (setecentos e quinze Euros e cinquenta cêntimos);


- quanto à A. BB, por referência ao mês de Outubro de 2022, de € 2.699,93 (dois mil, seiscentos e noventa e nove Euros e noventa e três cêntimos).


C. Julgo procedente, o pedido de reembolso formulado pelo “Instituto de Segurança Social, I.P.” e, em consequência:


a) absolvo a R. “Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A. – Sucursal em Portugal” do pedido contra si formulado;


b) condeno a R. “Transportes Ventosa, Lda. a pagar ao “Instituto” as quantias de € 1.316,43 (mil, trezentos e dezasseis Euros e quarenta e três cêntimos), que este suportou a título de subsídio por morte, bem como as quantias pagas a cada um dos AA. a título de pensão de sobrevivência, atualmente, no montante global de € 13.105,47 (treze mil, centos e cinco Euros e quarenta e sete cêntimos).”


Inconformada a Ré “Transportes Ventosa, Lda., recorreu.


O Tribunal da Relação de Coimbra, por maioria, decidiu no sentido da improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.


Ainda inconformada a Ré “Transportes Ventosa, Lda., recorreu de revista.


Em representação de AA, BB e CC, o Ministério Público contra-alegou, pedindo que o recurso fosse julgado improcedente.


Também o segurador, Liberty Seguros S.A. contra-alegou.


Fundamentação


De Facto


1. A A. AA nasceu em ... de ... de 1971 e é viúva de DD – A) dos factos assentes;


2. O A. CC nasceu em ... de ... de 1997 e é filho de DD e da A. AA – B) dos factos assentes;


3. A A. BB nasceu no dia ... de ... de 2000 e é filha de DD e da A. AA – C) dos factos assentes;


4. À data de 17 de setembro de 2020, a A. BB encontrava-se matriculada no 2.º ano curricular da licenciatura em design de comunicação da Faculdade de ... – D) dos factos assentes;


5. À data de 7 de outubro de 2020, o A. CC encontrava-se a frequentar o 2.º ano do curso de técnico superior profissional em cibersegurança do Instituto Politécnico da ..., que veio a concluir a 31 de dezembro de 2020 – E) dos factos assentes;


6. DD faleceu no dia 26 de junho de 2020, em ..., no estado de casado com a A. AA – F) dos factos assentes;


7. À data de 26 de junho de 2020, EE trabalhava, sob a autoridade e direção, da R. “Ventosa”, com a categoria profissional de motorista de veículos pesados de mercadorias – G) dos factos assentes;


8. E auferia a retribuição anual de € 13.927,36 [(€ 750,00 x 14) + (€ 4,70 x 22 x 11 – subsídio de alimentação) + (€ 51,00 x 14 – diuturnidades) + (€ 15,00 x 14 – complemento salarial) + (€ 113,83 x 12 – outras retribuições)] – H) dos factos assentes;


9. A R. "Ventosa" celebrou com a R. "Liberty” um contrato de seguro de acidente de trabalho, [na modalidade de prémio variável], mediante o qual transferiu para esta a sua responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, no que a DD diz respeito, através da apólice n.º ........40, pela retribuição anual de € 13.717,36 [(€ 801,00 x 14) + (€ 103,40 x 11 – subsídio de alimentação) + (€ 113,82 x 12)] – I) dos factos assentes;


10. No dia 26 de junho de 2020, pelas 16 horas, DD, encontrava-se, ao serviço da R. “Ventosa”, no estaleiro temporário de construção civil, sito na Av.ª ..., a efetuar a descarga de argamassa para a sociedade “C..........., S.A.” – J) dos factos assentes;


11. Nessa ocasião, DD manobrava a grua do camião, utilizando para o efeito os comandos desta situados na lateral da carroçaria do lado do condutor, e procedia à operação de descarga do porta-paletes que continha sacos de argamassa, com o peso aproximado de 1400kg – L) dos factos assentes;


12. A dado momento, a porca e a cavilha soltaram-se do gancho da grua, este desenroscou-se do suporte enquanto a lança era esticada, e o porta-paletes, que se encontrava suspenso no ar, soltou-se e caiu sobre DD - M) dos factos assentes;


13. Em consequência direta e necessária do descrito em M) dos factos assentes, DD sofreu lesões traumáticas raqui meningo medulares e lombares, que foram causa direta e necessária de sua morte – N) dos factos assentes;


14. DD não possuía formação para o desempenho das funções de gruista – O) dos factos assentes;


15. No âmbito destes autos, cada um dos AA. despendeu € 18,00, em deslocações desde a sua residência à Procuradoria do Trabalho em ... – P) dos factos assentes;


16. A A. AA gastou € 1.850,00 com o funeral de seu marido – Q) dos factos assentes;


17. O “ISS” pagou à A. AA a quantia de € 1.316,43, a título de subsídio por morte relativamente ao beneficiário DD – R) dos factos assentes;


18. O “ISS”, no período de julho de 2020 a maio de 2022, pagou à A. AA o montante de € 7.716,07, a título de pensão de sobrevivência decorrente da morte de seu marido – S) dos factos assentes;


19. O “ISS”, no período de julho de 2020 a fevereiro de 2022, pagou à A. BB o montante de € 2.071,85, a título de pensão de sobrevivência decorrente da morte de seu pai – T) dos factos assentes;


20. O “ISS”, no período de julho de 2020 a março de 2021, pagou ao A. CC o montante de € 715,50, a título de pensão de sobrevivência decorrente da morte de seu pai – U) dos factos assentes;


21. Em maio de 2022, o valor mensal da pensão de sobrevivência da A. AA era de € 291,09 e a da A. BB era de € 80,35 – V) dos factos assentes;


22. O veículo automóvel com a matrícula ..-..-RA, marca DAF, é propriedade de “R........ ......, Lda.”, desde 13/4/2004 – X) dos factos assentes;


23. O equipamento que estava a ser manobrado por DD – grua Palfinger, PK 9501, n.º ....60 – contém manual de instruções referente à utilização da grua, que determina que, pelo menos a todas as 50 horas de utilização do equipamento, devem ser verificados o gancho de carga, as cavilhas dos cilindros e o braço de articulação – 1. dos temas de prova;


24. O manual de instruções mencionado em 1. dos temas de prova impõe que a operação da grua deve ser efetuada por quem possua carta de operador de grua ou curso de aprendizagem de gruista - 2. da base instrutória;


25. A grua estava acoplada a um veículo pesado de mercadorias de dois eixos, com a matrícula ..-..-RA – 4. da base instrutória;


Mais ficou provado, por força da certidão de fls. 297:


26. O “ISS”, no período de julho de 2020 a outubro de 2022, pagou à A. AA o montante de € 7.716,07, a título de pensão de sobrevivência decorrente da morte de seu marido;


27. O “ISS”, no período de julho de 2020 a outubro de 2022, pagou à A. BB montante de € 2.699,03, a título de pensão de sobrevivência decorrente da morte de seu pai;


28. Em outubro de 2022, o valor mensal da pensão de sobrevivência da A. AA era de € 298,21 e a da A. BB era de € 89,55.


De Direito


Existindo, no caso vertente, uma violação das regras de segurança a única questão que se discute no presente recurso é a de saber se tal violação se deverá considerar causal do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado DD.


Com efeito, ainda que nas Conclusões do recurso se afirme, a dado momento, que “[n]ão se verifica assim, que a Ré Transportes Ventosa, Lda. tenha violado as regras de segurança a que estava obrigada” (Conclusão V), é inequívoco que existiu tal violação face aos factos provados 11, 14 e 24. Com efeito, o trabalhador não recebeu a formação legalmente exigida para a realização da atividade de operador de grua.


No seu recurso, depois de assinalar que a prova do referido nexo causal cabe a quem alega a verificação da responsabilidade agravada prevista no artigo 18.º da LAT, o empregador afirma que “não basta que se verifique um comportamento culposo da entidade empregadora ou a inobservância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho por banda da mesma entidade para a responsabilizar, de forma agravada, pela reparação do acidente, sendo, ainda, necessária, a prova do nexo de causalidade entre essa conduta ou inobservância e a produção do acidente” (Conclusão R), que “o acidente se ficou a dever ao facto do gancho de suspensão que segurava a palete de sacos de argamassa se ter soltado súbita e inesperadamente” (Conclusão S), de uma viatura que não pertencia ao empregador (Conclusão T), pelo que este “acidente podia ter ocorrido mesmo que a Ré empregadora tivesse cumprido os deveres de informação e formação em causa” (Conclusão U). Sustenta, igualmente, que o acidente resultou “de facto imprevisível e fortuito e o acontecimento causal foi exterior ao trabalhador sinistrado, que se encontrava a operar a grua” (Conclusão N).


Sublinhe-se que na declaração de “voto de vencido” no Acórdão do Tribunal da Relação se afirmou o seguinte:


“A matéria de facto é, na nossa apreciação, insuficiente para que se possa afirmar que tendo sido ministrada formação e/ou estando o sinistrado habilitado com carta de gruista o acidente não teria ocorrido.


É do senso comum, qualquer pessoa sabe, que uma carga não deve ser movimentada por cima de pessoas sejam elas terceiros ou próprio operador que manobra a grua.


Não é preciso qualquer formação ou habilitação especial para se saber que qualquer carga não pode ser movimentada do modo como o fez o sinistrado para mais quando a carga apresentava um peso tão elevado”.


Cumpre apreciar.


Começaremos por destacar que embora a formação profissional exigida para o desempenho de certas funções vá para além – e frequentemente muito para além – das regras do bom senso, da prudência ou do senso comum, ela também pode servir para alertar para tais regras e conduzir a uma consciencialização mais intensa das mesmas. Não procede, pois, o argumento de que “qualquer pessoa sabe” que uma determinada regra deve ser observada quando a formação exigível não foi ministrada1.


Importa, também, atentar à decisão recente deste Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que “[p]ara prova do nexo causal, basta a demonstração de que o sinistro é uma consequência normal, previsível da violação das regras de segurança, independentemente de se provar ou não, com todo o rigor e extensão, a chamada dinâmica do acidente”2.


Com efeito, o artigo 563.º do Código Civil estabelece a respeito da obrigação de indemnização que esta “só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” (sublinhado nosso). Quer se considere que a norma consagra assim a chamada “causalidade adequada” na sua formulação negativa, quer se ponha o acento no escopo da norma violada e na interação entre o fundamento da responsabilidade e a imputação do dano ao agente3, o lesado tem aqui apenas que invocar que a não observância das regras de segurança terá provavelmente influído na ocorrência do acidente. Como bem destacou o Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão também ele recente, “trata-se de elaborar um juízo de prognose sobre se aquele facto, em abstrato e em condições normais, tem aptidão genérica para produzir aquele resultado típico que é, assim, sua consequência normal, recorrendo-se à probabilidade fundada em conhecimentos médios e em regras da experiência comum”4.


Nas suas alegações de recurso o empregador reiteradamente afirma que o acidente teria ocorrido ainda que a formação tivesse sido ministrada.


Antes de mais, não o podemos afirmar com segurança, porque estamos a falar de uma incerteza, a incerteza sobre o que teria ocorrido se a regra de segurança tivesse sido respeitada. Sem dúvida que o porta-paletes suspenso no ar poderia igualmente ter-se soltado repentinamente (facto 12), mas teria a formação contribuído para alertar o sinistrado dos perigos e tê-lo-ia levado a adotar um comportamento “defensivo” mais prudente? O que pode afirmar-se é que não ministrar formação a um gruísta tornou muito mais provável a ocorrência do acidente.


Face à formulação do artigo 18.º n.º 1 que responsabiliza o empregador inclusive pela violação das regras de segurança por terceiros (por exemplo, por empresas por si contratadas) é igualmente indiferente que a viatura mencionada no facto 22 não fosse propriedade do empregador.


No entanto, para que a violação das regras de segurança se possa considerar causal relativamente ao acidente ocorrido é necessário, como se disse, apurar se no caso concreto ela se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.


No “voto de vencido” afirma-se que “qualquer carga não pode ser movimentada do modo como o fez o sinistrado para mais quando a carga apresentava um peso tão elevado”.


Todavia, e perante a matéria de facto apurada (factos 11, 12 e 13), não é claro se tal manobra foi efetivamente executada de tal modo que não teve em conta o previsto, por exemplo, no artigo 33.º n.º 4 do Decreto-Lei n.º 50/2005 de 25 de fevereiro que estabelece que “[é] proibida a presença de trabalhadores sob cargas suspensas ou a deslocação de cargas suspensas por cima de locais de trabalho não protegidos e habitualmente ocupados por trabalhadores, exceto se a boa execução dos trabalhos não puder ser assegurada de outra forma e se forem adotadas as medidas de proteção adequadas”. Com efeito, importa determinar se a palete estava ou não suspensa sobre o sinistrado e se haveria medidas de proteção a tomar que não foram adotadas. Por outro lado, e face ao facto 23 convém esclarecer se a manutenção do equipamento aí referido se fez com a periodicidade aí assinalada.


Ao abrigo do disposto na parte inicial do n.º 3 do artigo 682.º do CPC determina-se que a decisão volte ao tribunal recorrido para ampliar a matéria de facto.


E definindo o direito aplicável, como estabelece o artigo 683.º n.º 1, dir-se-á que se a matéria de facto permitir a conclusão de que a manobra foi executada de modo deficiente – não deveria ter sido executada do modo como o fez o sinistrado – haverá fundamento para afirmar o nexo de imputação do acidente à violação das regras de segurança pelo empregador, mormente à violação do seu dever de formação. De igual modo, se a verificação referida no facto 23 não tiver sido feita com a periodicidade indicada – 50 horas – pode afirmar-se a referida imputação.


Decisão: Acorda-se em determinar novo julgamento da causa com ampliação da matéria de facto.


Custas a fixar a final.


Lisboa, 3 de novembro de 2023


Júlio Gomes (Relator)


Ramalho Pinto


Domingos José de Morais


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1. Sublinhe-se, de resto, que o artigo 18.º n.º 1 da LAT se refere hoje à falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho e não à violação das normas legais. Afigura-se, assim, como refere MARIA JOSÉ COSTA PINTO, O art. 18.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro: Uma Questão de Culpa?, PDT n.º 71, 2005, pp. 105 e ss., p. 115, que “[o] art. 18.º da LAT de 1997 ao aludir genericamente a “falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho” sem restringir apenas à violação das regras legais a conduta da entidade empregadora determinante do agravamento da responsabilidade, abarcou necessariamente todas as regras (expressas em texto legal ou noutro, ou impostas pela técnica e pelo uso no âmbito da actividade exercida pela entidade empregadora)” (o sublinhado é nosso).↩︎

2. Ac. STJ de 23-06-2023, processo n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1 (Ramalho Pinto).↩︎

3. Assim ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, VIII, Direito das Obrigações (Gestão de Negócios, Enriquecimento sem Causa, Responsabilidade Civil), Almedina, Coimbra, 2017 (reimpressão da 1.ª edição do tomo III da parte II de 2010), embora defenda que o artigo 563.º do Código Civil não consagra a chamada causalidade adequada, acrescenta (p. 542) que o mesmo “arreda, como regra, a necessidade da absoluta confirmação do decurso causal: não há, que provar tal decurso, mas, simplesmente a probabilidade razoável da sua existência” (sublinhado nosso). Cfr., também, MAFALDA MIRANDA BARBOSA, “Os Conceitos de Causalidade, Imputação e Implicação a Propósito da Responsabilidade por Acidentes de Trabalho”, Para Jorge Leite, Escritos Jurídico-Laborais, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pp. 53 e ss., Autora que afirma, aliás, que a prova do dano deve traduzir-se na “prova da possibilidade da produção da lesão pelo acidente ocorrido” (p. 68; cfr. também pp. 86-87) e CLÁUDIA ALEXANDRA DOS SANTOS SILVA, O ato suicida do trabalhador no contexto do regime infortunístico laboral: comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/2010, Questões Laborais 2022, n.º 61, pp. 143 e ss., p. 157, ainda que com o apelo à causalidade adequada (“o facto que atuou como condição do dano (ou uma das condições) só deixa de ser considerado como causa adequada quando para a produção do dano tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto”).↩︎

4. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-02-2020, processo n.º 2930/18.4T8BRG,G1 (Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso). Neste mesmo Acórdão sublinha-se que “a causalidade adequada abarca todo o facto que atue como condição do dano, exceto se, numa perspetiva de prognose normal, se mostrar completamente indiferente para a verificação do dano/evento, tendo-o provocado somente porque interferiram no processo causal concreto circunstâncias extraordinárias, anómalas ou excecionais”.↩︎