Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2172/06.1TBGRD.C1.S.1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: URBANO DIAS
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO-PROMESSA COM TRADITIO
Nº do Documento: SJ
Apenso:
Data do Acordão: 11/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – O êxito de uma qualquer acção de reivindicação passa sempre pela verificação de uma aquisição originária na pessoa do A., maxime pela via da usucapião, excepto se houver registo de aquisição e não tiver sido ilidida a presunção prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial.
II – Esta só se verifica pela verificação simultânea do corpus e do animus em relação à coisa objecto de acção, e pelo decurso do prazo, consoante a posse seja de boa (15 anos) ou de má fé (20 anos).
III – A simples ocupação ou detenção de um prédio, por virtude da celebração de um contrato-promessa, não é, de per se, suficiente, para se poder falar numa situação de verdadeira posse, a menos que, entretanto, tenha havido inversão do título, altura em que começa a correr o prazo necessário para a verificação da usucapião.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA e mulher, BB, intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, acção ordinária contra Sociedade de C....... Urbanas do C.......... Lª, pretendendo, por um lado, obter o reconhecimento da qualidade de proprietários de dois lotes de terrenos, e, por outro, a sua condenação a cessar e a abster-se de praticar quaisquer actos que colidam com esse direito e, ainda, no pagamento de quantia a liquidar, a título de indemnização pelos danos causados.

Em suma, alegaram a seu favor a aquisição, por usucapião, dos ditos lotes, por os terem usufruído como seus proprietários, pouco tempo após a outorga de contratos-promessa com a sociedade CC e M..... Lª, sendo que os mesmos foram, posteriormente, vendidos por esta sociedade à R., juntamente com a restante área da Quinta do ....., da qual também faziam parte integrante, que registou a aquisição em seu nome, apresentou à Câmara Municipal projecto de loteamento e, no exercício dos trabalhos de preparação do mesmo, invadiu-os com máquinas, causando-lhes danos.

A R. contestou, por excepção, alegando que os AA. usufruíram os ditos lotes por mera tolerância, e por impugnação, pondo em crise parte da factualidade vertida na petição, terminando por pedir a sua absolvição.

Saneado e condensado, o processo seguiu para julgamento e, findo este, foi proferida sentença, pelo Juiz de Círculo da Guarda, a julgar a acção totalmente improcedente.

Inconformados, apelaram os AA. para o Tribunal da Relação de Coimbra que, depois de alterar a resposta ao quesito 23º, de que resultou a matéria constante de AJ, acabou por revogar o julgado, dando-lhes, desse modo, total razão.

Foi a vez de a R. mostrar a sua irresignação, pedindo revista do aresto ali proferido, o que fez, rematando a sua minuta com as seguintes conclusões:

- Na presente acção a causa de pedir invocada pelos AA. – que não pode ser ignorada ou substituída por qualquer outra – consubstanciou-se no seguinte: a sua posse (da qual extraíram a aquisição por usucapião) relativamente aos lotes de terreno melhor identificados nos autos em epígrafe ocorreu por força da traditio operada em consequência dos contratos-promessa de compra e venda celebrados com a CC & M....., Lda., ali intervindo esta última entidade como promitente-vendedora, e eles AA. como promitentes-compradores.

- Ora, atendendo à matéria de facto alegada pelos AA. e aquela que se encontra dada como provada, e atendendo ao que resulta dos documentos juntos aos autos, a sociedade CC & M....., Lda. – entidade que prometeu vender aos AA./recorridos os lotes de terreno ora em apreço – jamais foi proprietária do bem imóvel denominado de «Quinta do .....» (do qual foram extraídos os ditos lotes).

- Acresce que também não foram trazidos aos autos quaisquer factos dos quais resulte que a CC & M....., Lda. fosse possuidora da denominada Quinta do ......

- Do que resulta que jamais a CC & M....., Lda. podia transmitir aos AA. a propriedade ou a posse relativamente a um prédio do qual jamais foi proprietária, ou, sequer, possuidora.

- Admitindo, no entanto, por mera cautela de patrocínio e exercício académico, que a CC & M....., Lda. – promitente-vendedora – tivesse a posse do terreno em questão, uma vez que os AA. obtiveram a sua posse por concessão da promitente-vendedora, fundada na expectativa da futura celebração do contrato de compra e venda, ou, ao menos, por acto próprio fundado na mesma expectativa, e sem oposição da promitente- vendedora, tal posse é uma posse condicional, dependente, na sua subsistência, da celebração daquele contrato.

- Ou seja, os promitentes-compradores (os aqui AA.), ao praticarem os actos possessórios, terão agido como proprietários, mas a título provisório; e terão agido em seu próprio nome e interesse, mas sabendo ou devendo saber que, se a compra e venda se não fizesse, teriam de restituir o prédio ao seu dono.

- Assim, a sua posse não era oponível à promitente-vendedora, para o efeito de poderem os promitentes-compradores recusar a restituição pedida por aquele, e, consequentemente, não era oponível à pessoa a quem aquela veio a vender o prédio.

- Existe, no entanto, uma outra forma de encarar este problema: perante a existência de um contrato-promessa de compra e venda de um bem imóvel, com tradição da coisa (como é o caso dos autos), hão-de ser o acordo de tradição e as circunstâncias relativas ao elemento subjectivo a determinar a qualificação da detenção.

- Ora, no caso vertente, não foram sequer alegados factos que consubstanciassem tal acordo de tradição.

- Por isso que não podia o mesmo vir a ser objecto de prova (como não foi), e, nessa medida, servir para que os AA./recorridos, arrogando-se beneficiários da tradição da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda, pudessem ser reconhecidos como possuidores e não meros detentores da coisa (dos lotes de terreno, entenda-se).

- Acresce que também não foi dado como provado que os AA. houvessem pago, para lá do(s) sinal(ais) (no valor de 224.470$00, e no valor de 500.000$00, respectivamente), qualquer outra importância imputável no preço das coisas prometidas vender, no valor global de 1.100.000$00 e de 1.500.000$00, respectivamente.

- Ou seja, os AA./recorridos não pagaram a totalidade do preço convencionado para as prometidas compras e vendas – o que, só por si, determina a sua falta de razão.

- À data em que foram celebrados com os AA. os contratos-promessa de compra e venda (e com base no qual estes alegam haver adquirido a sua posse), a CC e M....., Lda. não era proprietária ou possuidora da Quinta do .....; e os sócios da CC & M....., Lda. eram apenas proprietários de 4/5 do prédio denominado Quinta do ......

- Ou seja, a CC & M....., Lda., não podia vender aos AA. qualquer lote da Quinta do ..... porquanto esta não lhe pertencia.

- Da mesma forma, a CC & M....., Lda. não era possuidora daquele prédio, nem, tão-pouco, os seus sócios o eram (à data, eram apenas proprietários – e, eventualmente, possuidores – de 4/5 do dito imóvel).

- E, se é verdade que tal circunstância não tornava inválido os contratos promessa ora em análise (pois que a obrigação de facere continuava a ser possível), tornava-os insusceptíveis de execução especifica, sem que haja qualquer dúvida de que a CC & M....., Lda. não tinha legitimidade para alienar tal prédio – daí que a transmissão prometida, se realizada, seria inválida.

- Ora, se a transmissão da propriedade e posse estava afectada de invalidade, por se tratar de alienação de coisa alheia, do mesmo vício teria que padecer também a convenção de tradição da coisa (que, aliás, não se provou existir no caso dos autos) através da qual se poderia transmitir a posse, enquanto antecipação da prometida transmissão da propriedade plena.

- O acordo de tradição (posto que existente, o que não se concede), com virtualidade de transmissão da posse, seria nulo ou ineficaz – o que se alega para todos os devidos e legais efeitos.

- O acórdão revidendo violou, entre outras, as normas dos artigos 1251°, 1253°, 1263°, alínea b), 1268°, 1287° e 1290°, todos do Código Civil.

Os recorridos responderam, em defesa da manutenção do acórdão impugnado.

2.

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

A – Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda, sob a ficha nº 609/19920225, da freguesia de S. Miguel – Guarda, o seguinte prédio urbano: terreno para construção, com a área de 113.995 metros quadrados, denominado de Quinta do .....situado na mesma Quinta do ......, na freguesia de S. Miguel – Guarda, a confrontar do Norte com a estrada e EE, de Sul com DD, Nascente com EE e Poente com o caminho, omisso na respectiva matriz.

B – O mesmo prédio proveio do seguinte prédio: terra de cultura com fruteiras, lameiros, vinha e pastagem, denominado de Quinta do .....situado na mesma Quinta do ......, na freguesia de S. Miguel – Guarda, a confrontar do Norte com a estrada e FF, de Sul com DD, Nascente com EE e Poente com o caminho, inscrito na respectiva matriz predial rústica da referida freguesia sob o artigo 540º e descrito, na Conservatória do Registo Predial da Guarda, na ficha da mencionada freguesia de S. Miguel, sob o nº 609/19920225.

C – Pela Ap.18 de 1983/02/01, da inscrição registral do mesmo prédio, consta a aquisição por compra, de uma quota de 1/5 do mesmo prédio, a favor de GG, tendo a mesma sido adquirida a HH e mulher, II.

D – Também pela Ap.12 de 1992/02/25, da inscrição registral do mesmo prédio, consta ainda a aquisição por compra, de uma quota de 4/5 do mesmo prédio, a favor de KK, LL, MM. e NN, tendo a mesma sido adquirida a HH e mulher, II.

E – Pela Ap.28 de 1996/06/14, da inscrição registral do mesmo prédio, consta ainda a aquisição por partilha subsequente a divórcio, de uma quota de 1/5 do mesmo prédio, a favor dos adquirentes mencionados em D) precedente, tendo a mesma sido adquirida a GG e mulher, JJ.

F – Finalmente, pela Ap.27 de 1997/01/24, da inscrição registral do mesmo prédio, consta a sua aquisição por compra, a favor da Sociedade de Construções Urbanas do ....... Lda., aqui R..

G – Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial da Guarda, no dia 9 de Dezembro de 1982, exarada a fls. 31 v a fls. 35 v do Livro de Escrituras Diversas nº12 E do referido Cartório Notarial, foi constituída a sociedade CC & M..... Lda.

H – Esta sociedade “CC & M..... Lda.” tinha como sócios KK, LL, MM. e NN, os mesmos adquirentes de 4/5 do prédio mencionado em D) e pertencendo a cada um uma quota de 250.000$00 no capital social total de 1.000.000$00.

I – Nos termos da referida escritura pública da sociedade mencionada em G) as quotas de cada um dos seus sócios mencionados em H) foram integralmente realizadas pela transferência que todos declararam fazer para a mesma sociedade dos 4/5 indivisos do seguinte prédio rústico de que os mesmos se declararam donos em partes iguais:

“Prédio rústico composto de terra de cultura com fruteiras, lameiros, pinhal e pastagem, no sítio da Quinta do ....., na freguesia de S. Miguel, concelho da Guarda, a confrontar do Norte com a estrada e EE, de Sul com DD, Nascente com EE e Poente com o caminho, inscrito na respectiva matriz predial rústica da referida freguesia sob o artigo 2.225º e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda, sob os nºs 44.636 e 27.677, a fls. 43 vº e 68 dos livros B-98 e B-54, respectivamente”.

J – O prédio identificado em A) e B) é o mesmo identificado em I), tendo na data da constituição da sociedade mencionada em G), o artigo matricial e descrições prediais também descritas em I), ambas então da freguesia da Sé – Guarda.

L – Por escrito particular datado de 11/10/1985, a sociedade Romano Porto e M..... Lda., mencionada em G) e H), representada pelo seu então gerente QQ, declarou prometer vender ao A. marido AA e este prometeu comprar o lote de terreno nº 19, com a área de 4.230 m2, situado na Quinta do ..... – Carapito de S. Salvador, então da freguesia da Sé – Guarda.

M – O preço estipulado pelo lote 19 foi de 1.100.000$00, a ser pago pelo A. à mencionada sociedade nas seguintes condições:

- 224.470$00 na data da assinatura do contrato;

- 275.529$00 no dia 20/12/1985;

- 300.000$00 no dia 20/02/86;

N – O restante do preço no acto da realização da respectiva escritura de compra e venda.

O – Mais foi acordado e prometido, reciprocamente entre o A. e a mencionada sociedade, que a respectiva escritura pública de compra e venda seria realizada no Cartório Notarial da Guarda, no ..... de 365 dias, a contar de 11/10/1985, a qual seria marcada pela mesma sociedade promitente-vendedora, a qual deveria avisar o A., para o efeito, e, ainda, comprometendo-se a fornecer todos os documentos necessários à realização da referida escritura.

P – Também por escrito particular datado de 11/10/1985, a mesma sociedade Romano Porto e M..... Lda., representada pelo seu então gerente QQ, declarou prometer vender ao A. marido AA e este prometeu comprar o lote de terreno nº 20, com a área de 3.780 m2, situado na Quinta do ..... – Carapito de S. Salvador, então da freguesia da Sé – Guarda.

Q – O preço estipulado pelo nº 20 foi de 1.500.000$00, a ser pago pelo A. à mencionada sociedade nas seguintes condições:

- 500.000$00, na data da assinatura do contrato;

- 750.000$00, no dia 11 de Dezembro de 1985;

- 250.000$00, no dia 11 de Janeiro de 1986, com a escritura notarial.

R – Mais foi acordado e prometido reciprocamente entre o A. e a mencionada sociedade que a respectiva escritura pública de compra e venda seria realizada no Cartório Notarial da Guarda, no ..... de 90 dias a contar de 11/10/1985, a qual seria marcada pela mesma sociedade promitente-vendedora que deveria avisar o A. para o efeito, comprometendo-se, ainda, a mesma a fornecer todos os documentos necessários à realização da referida escritura.

S – O lote 20 era e é confinante com o lote 19.

T – Os lotes mencionados, na data aí mencionada de 11/10/1985, faziam parte integrante do prédio identificado em A), B) e I), denominado Quinta do ......

U – O loteamento da Quinta do ..... havia sido já aprovado pela Câmara Municipal da Guarda, que, na reunião de 4 de Outubro de 1985, havia deliberado conceder o respectivo alvará.

V – Desde data não concretamente apurada, mas situada antes do Verão de 1986, com autorização expressa da sociedade CC e M..... Lda., os AA. plantaram árvores de fruto, designadamente cerejeiras, nos lotes mencionados e objecto dos contratos aí mencionados, em conjunto, e que passaram a considerar como um único imóvel, tendo, passado algum tempo, procedido à vedação do terreno dos mencionados lotes, neles tendo implantado pilares de cimento com rede de vedação nas respectivas extremas e neles colocando portões com chave e cultivando diversos produtos agrícolas.

X – Cerca de 4 anos depois, abriram, no conjunto unificado de ambos os lotes, um poço para captação de águas e fizeram infra-estruturas para rega de toda a propriedade.

Z – Nesse terreno construíram também, no ano de 1989, um imóvel devidamente licenciado pela Câmara Municipal da Guarda, através do alvará 1277-B, que passaram a utilizar como armazém de apoio à actividade agrícola que desde então vêm desenvolvendo no mesmo terreno ou propriedade.

AA – Tudo isto os AA. fizeram, à vista de todos, sem interrupção e sem oposição de ninguém, com a convicção de que exerciam um direito próprio e que não lesavam direitos.

AB – A sociedade CC e M..... Lda., outorgante nos contratos mencionados, apesar de se comprometer a realizar as respectivas escrituras não as veio a realizar, alegando dificuldades de natureza burocrática.

AC – Nunca tendo a mesma sociedade posto em causa a detenção e fruição da propriedade do terreno correspondente aos lotes objecto dos contratos-promessa em causa por parte dos AA..

AD – Em data não concretamente apurada, os AA. tiveram conhecimento de que a sociedade Romano Porto e M..... Lda. havia vendido a Quinta do ..... à sociedade R. e que em tal negócio se teriam salvaguardado os direitos que eventualmente assistiriam aos AA..

AE – Os AA. tiveram conhecimento de que a R. havia solicitado e obtido da Câmara Municipal da Guarda a aprovação de um loteamento da Quinta do ..... e que nesse projecto de loteamento, pela mesma R. apresentado, se incluía o terreno dos lotes 19 e 20.

AF – Os AA. tiveram conhecimento da aquisição da Quinta do ..... pela R. e da escritura de compra e venda, relativa à mesma, celebrada com esta.

AG – Até que, em 11 de Setembro de 2006, a R., no exercício dos trabalhos de preparação do loteamento que obteve da Câmara Municipal da Guarda, invadiu com máquinas o terreno.

AH – Derrubando a vedação que haviam aí colocado, no lado Norte, os respectivos pilares, alterando o perfil do terreno, por efeito das terraplanagens aí realizadas.

AI – Acção essa da R. que foi objecto de embargo extra-judicial, por parte dos AA..

AJ – Os AA. exerceram os actos de posse referidos em V e AA, da forma descrita, durante mais de vinte anos, continuadamente.

3.

Quid iuris?

Da síntese conclusiva, apresentada pela recorrente, retira-se a ideia de que toda a sua estratégia passa pela consideração de que a causa de pedir, que sustentou os pedidos formulados pelos AA., radica nos invocados contratos-promessa celebrados entre estes e a sociedade CC e M..... Lª.

Dessa premissa partiu para a defesa da tese de que, por força da celebração dos mencionados contratos-promessa, nunca poderiam eles ser considerados como possuidores dos ditos lotes. Mais acrescentou que a promitente-vendedora nem sequer era proprietária dos mencionados lotes, pelo que, quando muito, a sua posse poderia ser qualificada como condicional.

Ao colocar o acento tónico da causa de pedir apenas e só na outorga dos contratos-promessa, a recorrente desviou-se da realidade fáctica alegada e, posteriormente, provada, desvirtuando, assim, todo o seu raciocínio.

A causa de pedir que ampara os pedidos formulados pelos AA., não está, contrariamente ao que julga a recorrente, na outorga dos referidos contratos, mas, antes, no que, por eles, foi alegado e, que, posteriormente, provado, permitiu concluir à Relação de Coimbra, revogando o julgado na 1ª instância, pela verificação dos pressupostos do instituto da usucapião, forma originária de aquisição da propriedade (artigo 1317º, alínea c), do Código Civil), proclamando-os como seus verdadeiros donos, com todas as consequências daí derivadas, em face do factualismo provado, ou seja, a procedência do peticionado.

Artur Anselmo de Castro ensinou, com toda a propriedade, que “sempre na prática judicial foi presente intuitivamente esta ideia (a ideia de que o acto translativo em si não é título que se imponha ao R., mas apenas a posse durante o ..... necessário que invista o A. no direito de propriedade invocado), não havendo acção de reivindicação que se não fundamente sempre, em última análise, na aquisição da propriedade pela prescrição e não apenas pelo acto translativo” (Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, página 208).

Os AA. reivindicaram, ao proporem a presente acção contra a R., aqui recorrente, a propriedade dos aludidos lotes 19 e 20, formulando dois pedidos que, em si, caracterizam a acção de reivindicação, consagrada no artigo 1311º do Código Civil: o reconhecimento da propriedade e a restituição.

A estes dois pedidos, cumularam um outro, o de indemnização, ao abrigo do disposto no artigo 470º do Código de Processo Civil.

Como suporte de todos os pedidos, alegaram, e, posteriormente, provaram, que, comportando-se em relação aos lotes referidos como verdadeiros proprietários, desde o Verão de 1989, ininterruptamente, o que permitiu concluir serem eles, na verdade, os seus donos (possuidores sem qualquer interrupção, de forma pacífica, pública e presumidamente de má fé).

Não podiam os contratos-promessa ter sido invocados como causa de pedir dos pedidos formulados e não o foram.

E não podiam, pela singela razão de que um contrato-promessa, em si, não tem a virtualidade de criar uma situação de verdadeira posse.

Pode acontecer e acontece com frequência que, por força da celebração de um contrato-promessa, se criem condições para que se inicie uma verdadeira situação possessória. Que os promitentes-compradores, por força da traditio, passem de simples detentores a verdadeiros possuidores.

Foi o que aconteceu no caso em apreciação.

Vistas bem as cousas, o que se passou foi simplesmente o seguinte: os AA., aqui recorridos, alegaram e provaram que, logo após terem celebrado os mencionados contratos-promessa, agiram, em relação aos mesmos lotes prometidos vender (usando-os e gozando-os), como se proprietários fossem.

É nesta sua conduta, integradora do corpus e do animus, que radica, juntamente com o decurso do tempo, a sua pretensão.

Estamos, pois, perfeitamente de acordo com a recorrente quando defende que o exercício dos poderes de facto que decorre da mera traditio da coisa, objecto de um contrato-promessa, não pode qualificar-se como sendo pura posse, composta daqueles dois elementos citados.

De facto, e como refere Antunes Varela, “…a tradição da coisa, móvel ou imóvel, realizada a favor do promitente-comprador, no caso da promessa de compra e venda sinalizada, não investe o accipiens na qualidade de possuidor da coisa... E os poderes que o promitente-comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente-adquirente perante o promitente-alienante ou transmitente” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 124º, página 347).

No fundo, a posição defendida por A. Varela acaba por aceitar a chamada teoria da causa, de que fala Manuel Rodrigues, que se traduz no facto de, na aquisição bilateral da posse, o animus resultar da natureza do acto jurídico por que se transmitiu o direito susceptível de posse.

Assim, se a tradição se realizou em consequência de um acto de alienação da propriedade, a intenção que tem o adquirente é a de exercer o direito de propriedade, sendo que “contra a vontade que da causa deriva não é permitido alegar uma vontade concreta do detentor, salvo se este houver invertido o título” (A Posse, Estudo do Direito Civil Português, 3ª edição, pág. 222).

No caso concreto dos AA., promitentes-compradores, o mero efeito da outorga dos contratos-promessa não podia nunca habilitá-los a exercer poderes de facto sobre os lotes, pois não são actos de alienação, pelo que, ao recebê-los, o fizeram como meros detentores.

Em tese geral, portanto, nunca, por mero efeito da outorga dos contratos-promessa, poderiam os AA. arvorar-se em verdadeiros possuidores.

Mas, descendo da teorização geral para o domínio casuístico, poderemos dizer, acompanhando de perto Pires de Lima e Antunes Varela, que “são concebíveis situações em que a situação jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse (caso, por exemplo, de promessa de compra e venda com traditio, pagamento integral do preço e da sisa, não tendo as partes o propósito de celebrar a escritura definitiva).

Em casos como o narrado, a coisa é entregue ao promitente-comprador como se fosse sua e, em face de tais circunstâncias, este pratica todos os actos, não em nome do formalmente proprietário, mas sim em nome próprio, “com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real”.

Nestes casos, o promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse (Código Civil Anotado, Volume III – 2ª edição –, página 6 e seguintes). Passa, pois, o promitente-comprador a comportar-se, em relação à coisa objecto do contrato-promessa, como se fosse sua, por efeito da inversão do título de posse, isto é, transformando o inicial animus detendendi num animus possidendi.

Esta forma de aquisição originária da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265º do C. Civil).

Segundo NN, tais actos caracterizadores da inversão “devem significar que o detentor quer, doravante, possuir para si” e, ainda, que “devem ser praticados na presença, ou com o conhecimento daquele a quem se opõem e este efeito obtém-se com a prática de actos materiais” (obra citada, página 232 e seguintes).

Também a este propósito se pronunciou Vaz Serra, fazendo notar que “o promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com intenção de agir em nome do promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome, … passando a conduzir-se como se a coisa fosse sua, …julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa, actos possessórios, o faz com animus de exercer em seu nome o direito de propriedade” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 109º, páginas 347 e 348, em anotação ao aresto deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Fevereiro de 1986.

Cristalinamente, como é seu timbre, João Calvão da Silva, não deixa qualquer dúvida a este respeito, quando defende que, a priori, não é possível qualificar “de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido entregue antecipadamente. Tudo dependerá do animus que acompanhe esse corpus. Se o promitente-comprador tiver animus possidendi – o que não é de excluir a priori – será possuidor, o que pode acontecer derivadamente, nos termos da alínea b) do art. 1263º (…), ou originariamente, nos termos da alínea a) do art. 1263º, conjugado com o art. 1267º, nº 1, alínea d) e o art. 1265º” (Sinal E Contrato Promessa, 11ª edição, Revista e Aumentada, página 231, nota 55).

Feito este pequeno excurso doutrinal, é-nos lícito concluir pela total falência da tese que a recorrente nos apresentou, com vista a obter ganho de causa.

É que, vistas bem as cousas, não invocaram os AA., aqui recorridos a outorga dos contratos-promessa para consolidarem automaticamente a sua pretensão de verdadeiros proprietários dos lotes 19 e 20.

Não, nada disso. O que eles fizeram foi tão simples quanto isto: narraram que, por força dos contratos-promessa que celebraram, passaram, pouco tempo depois, a portarem-se como se donos dos mesmos fossem, praticando todos os actos inerentes a tal qualidade. Dito isto, por outras palavras: alegaram que, desde o Verão de 1986, invertendo o título de posse, passaram a comportar-se como verdadeiros donos.

É assim e só assim que se deve interpretar o que foi dado como provado e resultante da resposta dada aos quesitos 11º e 21º: obtida autorização da promitente-vendedora para ocuparem os lotes, depressa os AA. se passaram a comportar como seus verdadeiros donos.

Essa actuação dura há mais de vinte anos, como resulta da alteração da matéria de facto, introduzida pela Relação de Coimbra.

Se juntarmos a tudo isto a ideia de que a posse dos AA. – e posse, repita-se, porque houve corpus e animus (não obstante a presunção de que beneficiavam, por força do estipulado no nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, o certo é que este mesmo elemento ficou plenamente provado – “com a convicção de que exerciam um direito próprio e que não lesavam direitos”, ut respostas dadas aos quesitos 18º a 22º) – foi pública, pacífica, presumidamente de má fé (atento o nº 2 do artigo 1260º do Código Civil) e sem qualquer interrupção (cfr. ponto AA), está encontrado o caminho para negar qualquer razão às críticas dirigidas pela recorrente ao acórdão revogatório proferido pela Relação de Coimbra.

A decisão impugnada teve, depois de chegar a esta mesma conclusão, a oportunidade de explicar que de nada servia, no caso concreto, a invocação da presunção estabelecida no artigo 1268º do Código Civil, na justa medida em que o registo de aquisição da propriedade por parte da R.-recorrente é posterior ao início da posse.

Em resumo, poderemos dizer, concordando, neste ponto, com a recorrente, que a mera outorga de contratos-promessa não cria automaticamente um situação de posse.

Mas isso não legitima a feitura de qualquer teoria geral, antes nos obriga a, olhando o caso concreto, procurarmos a verdadeira e concreta situação criada com a traditio operada, por via da outorga do contrato-promessa: tudo depende, como ficou sublinhado, da atitude que o promitente-comprador passe a ter em relação à coisa prometida comprar – haverá, em princípio, apenas uma mera detenção, não sendo de excluir, havendo inversão do título, a constituição de uma verdadeira situação possessória capaz de potenciar, com o decurso do tempo, a aquisição (originária) da propriedade, por obra e graça do instituto da usucapião, já invocado.

Assim, desde o apontado Verão de 1986, os AA., invertendo o título de posse, passaram-se a comportar como donos dos lotes que foram objecto dos mencionados contratos-promessa, acabando por os adquirir, pois que tal situação dura há mais de 20 anos.

Não é lícito, nem correcto, falar em posse provisória: esta situação existe ou não existe e, no caso em apreciação, verificou-se desde a data referida.

Atento o que ficou dito, irreleva na decisão o eventual não pagamento total do preço (poderia, até, acontecer que não fosse pago na sua totalidade): não está em causa o cumprimento ou incumprimento dos contratos, mas a verificação dos pressupostos que conduziram a uma situação possessória que se prolongou o tempo suficiente para que os AA. pudessem, com legitimidade, reclamar a qualidade de proprietários, com todas as demais consequências, quer ao nível da restitutio, quer do ponto de vista indemnizatório.

Outrossim se torna inócuo, pelo que ficou já dito e explicado, saber se a promitente-vendedora era ou não a verdadeira proprietária dos lotes prometidos vender. O que releva, repete-se, mais uma vez, é a atitude dos AA., perante os mesmos, que, ao inverterem o título, deixaram de ser seus meros detentores para passarem a ser seus verdadeiros possuidores.

E tudo isso aconteceu, quase ab initio, no Verão de 1986, sem interrupção,

à vista de toda a gente e sem qualquer tipo de oposição, muito embora presumidamente de má fé (artigo 1260º, nº 2, do Código Civil).

Damos, por fim, nota da irrelevância da qualidade da promitente-vendedora, no momento da outorga dos ditos contratos-promessa, certo que isso em nada afecta a sua validade: ela podia mui bem prometer o que (ainda) não lhe pertencia.

Definitivamente, apesar do registo de aquisição a favor da R., são os AA. os proprietários dos mencionados lotes, pois que os adquiriram, por via da usucapião.

Improcede, pois e em toda a linha, o pedido de revista da R..

4.

Nega-se a revista e condena-se a R.-recorrente no pagamento das custas totais.


    Lisboa, aos 03 de Novembro de 2009

    Urbano Dias

    Paulo Sá

    Mário Cruz